Jornalistas Livres

Tag: rentismo

  • “A lei é para todos”

    “A lei é para todos”

     Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na UFBA

    “A lei é para todos”. É com esse mantra, repetido à exaustão, que a mídia hegemônica tenta justificar a prisão de Lula.

    É assim que a fábrica de narrativas do golpe neoliberal tenta legitimar a prisão, em um processo para lá de controverso, da maior liderança popular que o Brasil já teve.

    Mas a realidade é arisca e o povo de burro tem nada não.

    Como justificar a prisão de Lula se Aécio Neves está livre, leve e solto?

    Sim, Aécio Neves está solto, mesmo tendo recebido dinheiro de frigorífico, mesmo sendo flagrado em áudio planejando assassinato e aprontando todo tipo travessuras.

    As pessoas perguntam em tudo quanto é canto: e o Aécio? Tá solto por quê? Como pode tá solto?

    O departamento de jornalismo da rede globo, liderado por Ali Kamel, já identificou o problema e já inventou a sua narrativa.

    É essa narrativa, os seus desdobramentos e a sua relação com o golpe neoliberal em curso no Brasil o abacaxi que tento descascar neste ensaio.

    Vamos devagar, despacito, que o abacaxi é cascudo.

    Acompanhado de seus cupinchas, Ali Kamel, em um primeiro momento, usou a não prisão de Aécio Neves para atacar o “foro privilegiado”.

    Essa talvez tenha sido a última serventia de Aécio Neves ao golpe que ele ajudou a parir lá em 2014: simbolizar a dimensão nefasta do “foro privilegiado”.

    Sei bem que em tempos de criminalização da política, essa discussão é muito difícil, muito difícil mesmo. Mas precisamos enfrentá-la, pois está aqui, exatamente aqui, o núcleo duro do projeto institucional do golpe neoliberal: fragilizar a democracia, colocando-a de joelhos diante de um sistema de justiça que já mostrou ser facilmente pautado pelo império da comunicação.

    Não que o sistema de justiça seja uma mera marionete nas mãos da mídia hegemônica. Dizer isso significaria apresentar uma leitura míope da crise que desconsiderara os recentes conflitos travados entre os juízes e a imprensa, envolvendo o auxílio moradia e outros privilégios funcionais que o sistema de justiça serve numa bandeja de prata aos seus servidores.

    O que estou querendo dizer é que o sistema de justiça tem seus interesses corporativos, que se manifestam na defesa de benefícios e gordas pensões que oneram as contas públicas e, por isso, contrariam o projeto neoliberal.

    O neoliberalismo quer um Estado leve, enxuto, barato.

    Deu curto-circuito na bolsa de valores? Chama o Estado pra limpar a sujeita!

    O Estado precisa estar pronto, saudável, com contas equilibradas.

    O objetivo central do golpe está aqui: adaptar o Estado brasileiro aos interesses do rentismo. Pra isso, é necessário esvaziar a função social do Estado, tal como foi prevista na Constituição de 1988.

    O golpe não foi contra Dilma, não foi contra Lula, não foi contra o PT.

    O golpe é contra o contrato social e político da Nova República, que instituiu o Estado como agente provedor de direitos sociais.

    O neoliberal quer o Estado mínimo, mas só para os pobres.

    Para o rentista, o Estado deve ser máximo. O rentista não gosta da insegurança do mercado. O rentista gosta mesmo é do capitalismo sem riscos. O rentismo reúne o pior de dois mundos: a rapina burguesa e o ócio aristocrata.

    O rentismo, com seu desprezo pelos investimentos na cadeia produtiva, é o verdadeiro inimigo de todos nós, inclusive do sistema de justiça.

    Mas mesmo assim, mesmo com esse conflito potencial, a aliança entre a mídia hegemônica e o sistema de justiça continua sendo a força motora do golpe. A mídia hegemônica tem grande capacidade de pautar o comportamento dos magistrados, como demonstram a atuação de personagens como Joaquim Barbosa, Sérgio Moro, Carmem Lúcia e Luís Roberto Barroso.

    Todos eles, de alguma forma, trabalham com os dois olhos na “opinião pública”. O problema é que “opinião pública”, como bem lembrou Gilmar Mendes, nada mais é que “opinião publicada”, é aquilo que a imprensa hegemônica, dona do monopólio da informação, diz ser a opinião pública. Tempos estranhos esses em que Gilmar Mendes se transforma em referência.

    Enfim. Retomando o fio.

    O argumento de que Aécio Neves não foi preso por conta do “foro privilegiado” é falacioso em diversos aspectos e traduz o interesse do golpe neoliberal em tutelar a soberania popular.

    Explico.

    1°) O termo correto não é “foro privilegiado”, mas, sim, “prerrogativa de foro”. Não se trata de mera nomenclatura. No imaginário da população, o termo “foro privilegiado” está associado à impunidade, à blindagem a uma classe política corrupta.

    Chamar a “prerrogativa de foro” de “foro privilegiado” é uma estratégia para jogar a população contra a classe política, para fazer o povo negar a sua própria soberania. Pois é isso que acontece quando negamos a política: abrimos mão de nossa soberania e assinamos um contrato de servidão voluntária.

    O instituto da prerrogativa de foro não significa impunidade, mas, sim, uma garantia fundamental para a democracia moderna representativa, que é fundada na premissa de que a soberania pertence ao povo e é exercida pelo voto.

    O político eleito, portanto, representa a soberania de uma parcela da sociedade relevante o suficiente para se fazer representar por um mandato público.

    A prerrogativa de foro tem o objetivo de proteger esse mandado do arbítrio do sistema de justiça, que é constituído por servidores que não são eleitos, que não representam a soberania popular.

    Essa proteção, entretanto, não se dá pela impunidade. O político eleito pode, e deve, ser processado e julgado, mas apenas pela corte que, ao menos em teoria, é a mais qualificada da justiça brasileira: o Supremo Tribunal Federal, cujos ministros são escolhidos pelo presidente da República, que é eleito, que representa a soberania popular.

    É como se a escolha dos ministros do STF pela instituição Presidência da República significasse a transferência da soberania popular.

    O povo escolhe o presidente. O presidente escolhe os ministros. Logo, o povo também escolhe os ministros.

    Segundo a prerrogativa de foro, somente esses ministros, cuja autoridade também deriva da soberania popular, são legítimos para julgar os políticos eleitos.

    O conceito “prerrogativa de foro” faz todo sentido.

    Sem a prerrogativa de foro qualquer juiz de primeira instância teria poder para desestabilizar o mandato que a soberania popular emprestou ao político eleito.

    Entendem o risco que isso significa?

    Um exemplo pra ilustrar meu argumento, para que não saiam por aí dizendo que estou defendendo político corrupto:

    Uma liderança de bairro, oposição às forças políticas dominantes naquela localidade, consegue vencer as eleições e ocupar um mandato como deputado (a) no Legislativo estadual.

    Sem a prerrogativa de foro pra proteger o mandato dessa liderança, um juiz de primeira instância, na vara local, alinhado com os caciques derrotados, poderia constranger o representante da soberania popular.

    Ou seja, bastaria apenas um juiz, um único juiz mal intencionado, para processar a liderança eleita pela coletividade. A democracia ficaria fragilizada e nas mãos de um poder sobre o qual a soberania popular não tem nenhuma interferência.

    2°) É mentira dizer que o senador Aécio Neves não foi processado e condenado por causa do instituto da prerrogativa de foro.

    O mesmo STF que lavou as mãos quando permitiu que o Senado desse a última palavra no processo contra Aécio Neves, autorizou a prisão do senador Delcídio do Amaral, do Partido dos Trabalhadores, em pleno exercício do mandato.

    Entendem? Aécio e Delcídio, como senadores da República, tinham a mesma prerrogativa de foro, o mesmo direito de serem julgados pelo Supremo Tribunal Federal.

    O Supremo Tribunal Federal julgou e condenou Delcídio do Amaral, que teve seu mandato cassado pelos seus colegas, no plenário do Senado da República.

    O mesmo STF escolheu não processar Aécio Neves, que teve seu mandato preservado, também no Senado da República.

    O próprio Aécio Neves votou pela cassação de Delcídio do Amaral. O cinismo no Brasil parece não ter limites.

    Ou seja, o STF, por uma decisão política, escolheu não processar Aécio Neves.

    O problema não está na prerrogativa de foro. O problema está no STF, que se tornou o principal avalista do golpe neoliberal, um golpe que tem o objetivo de perseguir todas as lideranças e partidos políticos que de alguma forma possam atrapalhar o desmonte do Estado brasileiro.

    Pra concluir, adianto aquela que será a próxima narrativa mobilizada pela mídia hegemônica para tentar justificar a prisão do presidente Lula. O golpe neoliberal não fecha sem a total destruição política do presidente Lula.

    Aécio Neves será preso!

    Com isso, o golpe neoliberal agradará a todos.

    Agradará aos justiceiros que sairão por aí gritando “A lei é pra todos!”.

    Agradará também a esquerda, que se sentirá vingada ao ver o candidato derrotado nas eleições de 2014, o mesmo que ajudou a desestabilizar o país, sendo devorado pelo monstro que alimentou.

    Uns e outros comemorarão como tolos, pois Aécio Neves já não serve pra nada. É um defunto político. É um boi magro que o vaqueiro experiente entrega às piranhas para conseguir atravessar o rio, são e salvo com o restante do rebanho.

    Ao entregar Aécio Neves para ser comido, o golpe neoliberal estará protegendo a sua vaca sagrada, o único tucano que tem alguma viabilidade eleitoral: Geraldo Alckmin, o Santo!

    Esse aí é privilegiado, com foro ou sem foro. Em Alckmin, nenhum juiz relará um dedo sequer.

  • Para além da austeridade: as “heresias” das Nações Unidas

    Para além da austeridade: as “heresias” das Nações Unidas

    “A economia global parece travada em seu caminho para a recuperação”, aponta novo estudo das Nações Unidas, Para além da austeridade, que contradiz grande parte do que advogam membros do governo do Temer e os economistas brasileiros conservadores que palpitam diariamente na mídia tradicional. A austeridade fiscal é apontada como o principal entrave à retomada mais vigorosa da economia mundial.

    O estudo carrega pouco mais nas tintas e decreta que “a prosperidade para todos não pode ser proporcionada por políticos com fixação na austeridade, por empresas que buscam ganhos monopolistas (rent-seeking) e por banqueiros especuladores”. Em outro termos, o relatório afirma que as promessas, de sociedades mais justas e de menor desigualdade, entre as nações não foram cumpridas.

    Rentismo e rent-seeking estão entre as causas. Mas o que querem dizer esses termos?

    O termo rentista é, normalmente, usado no Brasil para designar aqueles que obtêm renda por emprestar seu capital financeiro a terceiros, especialmente ao governo. “Viver de renda”, dizia-se. Renda astronômica de R$ 428 bilhões é a que o Brasil pagou sob a forma de juros, nos últimos 12 meses terminados em julho de 2017, àqueles rentistas que emprestaram seu capital para o governo.

    Rent-seeking é usado no texto, não somente para designar ganhos derivados da simples propriedade ou controle de ativos, mas também ganhos de posições monopolistas. O feirante não consegue cobrar o preço que quiser pela dúzia de bananas, pois a concorrência o destruiria. No entanto, há empresas monopolistas, ou quase monopolistas, que têm capacidade de fixar seus preços acima do que conseguiriam em um mercado concorrencial. Rent-seeking é a busca dessa renda extra para engordar os lucros.

    As privatizações, muitas vezes, não aumentam a eficiência

    A busca por essa renda extra não para por aí: “outros [ganhos são] conquistados pela predação do setor público, inclusive por privatizações de larga escala – que simplesmente deslocam recursos dos contribuintes para administradores e acionistas de empresas privadas – e subsídios a grandes empresas, frequentemente sem resultados para a eficiência econômica ou geração de renda”. Saliente-se que essa conclusão do estudo é oposta ao discurso privatizante do grupo no poder no país hoje.

    “Fortemente encorajada por muitas instituições internacionais, esperava-se que as privatizações melhorassem as práticas administrativas, aumentassem a eficiência e quebrassem monopólios, gerando, assim, ganhos de bem-estar. Todavia, ao invés disso, muitos programas de privatização foram altamente eficientes em promover ganhos extras (rent) para empresas monopolistas.” É preciso ressaltar que essa renda extra se dá em detrimento de outras empresas e, especialmente, às custas dos consumidores, com forte impacto na concentração de renda.

    O relatório sublinha esse ponto pois, embora a atenção tenha, corretamente, ido para as empresas do mercado financeiro, “cujo retorno é absurdamente desproporcional ao retorno social que geram”, as empresas não-financeiras também se adaptaram à busca desse tipo de renda e “surgiram como fonte disseminada de desigualdade”. Essa atitude das empresas, financeiras ou não, e o apego extremado pela austeridade fiscal, inibem a retomada do crescimento econômico e aprofundam a desigualdade de renda.

    Quais são as medidas-chave propostas no relatório?

    Para tentar corrigir as graves consequências da hiperglobalização (“desigualdade e instabilidade estão conectadas à hiperglobalização”), da retirada de controle dos fluxos financeiros, das privatizações, da precarização do trabalho, entre outros efeitos perversos da cartilha econômica ortodoxa, o relatório sugere as seguintes medidas-chave:

    • Pôr fim à austeridade por meio de investimento público, maior e melhor, com uma forte dimensão assistencial, incluindo vultosos programas que aprimorem a infraestrutura e gerem emprego.

    • Aumentar a receita governamental: um maior recurso a impostos progressivos (inclusive sobre a propriedade e outras formas de renda).

    • Dar mais voz ao trabalho (os salários precisam subir em linha com a produtividade; a insegurança no emprego precisa ser corrigida por meio de ações legislativas e medidas ativas no mercado de trabalho).

    • Domar o capital financeiro: regular de forma apropriada o setor financeiro.

    • Melhorar a capitalização dos bancos de desenvolvimento multilaterais e regionais.

    • Manter o controle sobre o “rentismo” empresarial.

    Seriam heresias?

    Como “heresia” final, há um trecho sobre a importância dos bancos públicos: “Um sistema financeiro que harmonize um papel significativo para bancos públicos de diversos tipos e bancos privados menores com influência política limitada e com fiscalização mais dura, estará menos sujeito a gerar excessos especulativos, ciclos de grande expansão seguidos por colapsos e austeridade.” Música para meus ouvidos!

    Nota

    As citações estão em: UNCTAD, Trade ad Development Report, 2017: Beyond Austerity – Towards a Global New Deal (

    [contact-form][contact-field label=”Nome” type=”name” required=”true” /][contact-field label=”E-mail” type=”email” required=”true” /][contact-field label=”Site” type=”url” /][contact-field label=”Mensagem” type=”textarea” /][/contact-form]

    , Relatório de Comércio e Desenvolvimento 2017: Para além da austeridade – rumo a um novo pacto global) disponível em http://unctad.org/en/PublicationsLibrary/tdr2017_en.pdf.