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  • Como funciona o lobby internacional contra descriminalização do aborto no Brasil

    Como funciona o lobby internacional contra descriminalização do aborto no Brasil

    Por: Luiza Villaméa e Mônica Tarantino (originalmente publicada pelo El País Brasil)

    Uma rede de organizações espalhadas por todo o Brasil está cada vez mais presente –e influente– no Congresso Nacional. Tem como principal bandeira proibir o aborto no país e influenciar os 35 projetos sobre os direitos sexuais e reprodutivos da mulher que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado. E novos projetos nessa linha continuam a chegar, junto com parlamentares de primeiro mandato eleitos com os votos dessa rede, como o senador Eduardo Girão (Pode-CE) e as deputadas Chris Tonietto (PSL-RJ) e Flordelis (PSD-RJ). Novatos e antigos são abordados por ativistas da causa até nos cafés do Congresso. “É onde acontecem os encontros, por onde passam os tomadores de decisão”, assume Hermes Rodrigues Nery, coordenador do Movimento Legislação e Vida, uma grande liderança contra o aborto no Brasil e presença constante no Congresso.

    Professora da UnB e militante contra a descriminalização Lenise Garcia defende a proibição do aborto em qualquer circunstância

    A atuação mais visível desses grupos de pressão é a Marcha Nacional pela Vida, que acontece em Brasília em junho e se multiplica no decorrer do ano em versões regionais. Na retaguarda, estão juristas, acadêmicos, religiosos, médicos, empresários, assessores parlamentares, editores, toda uma gama de profissionais que fornece argumentos e participa de debates e audiências públicas. Dentro do próprio Congresso, têm representação de peso. A Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família da atual legislatura reúne mais de 200 congressistas. Evangélicos, católicos, espíritas se unem sob a mesma bandeira.

    Hermes Rodrigues Nery investe no corpo a corpo com parlamentares nos cafés do Congresso (Foto: Marcelo Laganaro)

    Há quem entre na política para fortalecer o grupo, que costuma se identificar como pró-vida. É o caso do senador Eduardo Girão, empresário que disputou sua primeira eleição no ano passado. Um dos fundadores do Movida, organização que tem como principal meta banir o aborto, Girão não demorou a mostrar a que veio. Onze dias depois de tomar posse, ele desarquivou uma Proposta de Emenda à Constituição do senador não-reeleito Magno Malta que inclui o termo “desde a concepção” no artigo relativo ao direito à vida. É a chamada PEC da Vida. Se for aprovada, nem grávidas em risco de morte, vítimas de estupro ou com fetos anencéfalos poderão adotar o procedimento, como garante a lei hoje. Relatora da proposta na Comissão de Constituição e Justiça, a senadora Selma Arruda (PSL-MT) apresentou parecer favorável na quarta-feira 24 de abril, abrindo exceção para quando não houver outra forma de salvar a vida da gestante ou se a gravidez decorrer de estupro. A comissão, no entanto, pode aprovar a proposta mais restritiva.

    “Precisa de três quintos dos votos dos senadores para aprovar no plenário, mas a chegada de Girão ao Senado favorece. A PEC muda a Constituição, é muito mais abrangente do que o Estatuto do Nascituro”, ressalta o ex-deputado Luiz Bassuma, referindo-se ao projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados desde 2007. Espírita como Girão, Bassuma é um dos autores do projeto, que garante ao feto os mesmos direitos dos nascidos vivos e prevê assistência financeira às vítimas de estupro que não abortarem. “O pessoal pró-aborto distorceu isso, como se estivéssemos criando uma bolsa estupro. É para que nenhuma mulher aborte por falta de dinheiro. Se o estuprador não tiver condições, o Estado assume”, diz Bassuma.

    Mesmo sem mandato, Bassuma acompanha de perto a tramitação do Estatuto do Nascituro, deslocando-se com frequência de Salvador, onde mora, para Brasília. O projeto avança por esforço coletivo. Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Família e da Vida, o deputado Diego Garcia (Pode-PR) começou o ano legislativo com um pedido para promover uma audiência pública sobre o Estatuto do Nascituro. Ano passado, no auge da campanha eleitoral, Garcia já tinha alavancado o projeto com um parecer favorável à Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher: “Ainda que seja pequena a expectativa de duração de vida extrauterina, a proteção do nascituro deve ser efetivada”.

    Outra figura de peso nessa rede virou ministra do Governo Bolsonaro e agora defende “o direito à vida desde a concepção” até no Conselho de Direito Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça. É a pastora e advogada Damares Alves. “Sou contra o aborto em qualquer circunstância. Todos sabem, todos conhecem”, repete Damares desde 1999, quando começou a atuar em Brasília como assessora parlamentar. Desde então, ela trabalhou no gabinete de quatro parlamentares – todos evangélicos e defensores da mesma causa. Além de ministra, Damares é secretária nacional de Relações Institucionais do Brasil Sem Aborto –Movimento Nacional da Cidadania pela Vida.

    Questionada pela reportagem, a Fiocruz foi categórica em desmentir a informação: “Levantamento feito pela área financeira da instituição não identificou qualquer projeto em relação ao aborto vinculado às verbas mencionadas. A verba foi para a área de saúde da mulher e da criança.”

    O Brasil Sem Aborto foi criado em 2007 pelo então assessor parlamentar Jaime Lopes, que procurava uma mulher para comandar a organização. No ano seguinte, a farmacêutica Lenise Garcia, professora de microbiologia da Universidade de Brasília, participou de uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre o uso de células-tronco embrionárias para pesquisa. Lenise era contra, o Supremo decidiu a favor. Por afinidade de ideias, o Brasil Sem Aborto ganhou uma presidente. Há 11 anos na função, ela tornou-se a mais atuante acadêmica em audiências e palestras contra o aborto, nas quais exibe uma réplica de plástico de um feto de 12 semanas, similar aos modelos em silicone usados pelos movimentos americanos antiaborto.

    A professora de microbiologia da UnB, Lenise Garcia, costuma expor uma réplica de feto de plástico como forma de persuasão (Foto: Luiza Villaméa)

    “Mostro essas réplicas porque muita gente fala que um embrião é só um punhadinho de células. Um punhado de células eu também sou”, diz Lenise em sua casa, em Brasília, que funciona como uma espécie de sede do movimento. Ela defende a proibição do aborto em qualquer circunstância. Pelo Código Penal Brasileiro, aborto é crime, com pena de um a três anos de prisão para a mulher, exceto nas duas situações previstas por lei (risco de vida e estupro) ou determinada pelo Supremo (anencefalia do feto).

    À frente do Brasil Sem Aborto, Lenise promove encontros com organizações de todo o país. Ainda assim, ela garante não saber o número de entidades que integram o movimento e divaga sobre o financiamento da organização: “Como o tema é controverso, às vezes as empresas dão dinheiro, mas não querem aparecer. Outros ajudam, como empresas de transporte que abrem espaço nos ônibus para nossos cartazes”. Lenise também não alimenta conversas sobre suportes internacionais às organizações pró-vida, embora esses vínculos estejam presentes desde a concepção desses movimentos.

    Em contrapartida, ela faz questão de divulgar dados sobre grupos que atuam pela descriminalização do aborto. “ONGs estrangeiras investem pesadamente para a aprovação do aborto na América Latina. Saiu um artigo recentemente. Investiram 18 milhões de dólares”, declarou no Supremo. Perguntada pela reportagem sobre a fonte de informação, Lenise citou o site Estudos Nacionais. “Está lá. A pesquisa é o doutor Marlon, um médico de Santa Catarina, que publicou um livro sobre o aborto. Sou autora de um dos capítulos”, conta. O doutor Marlon é, na verdade, o administrador de empresas Marlon Derosa, um dos donos da Editora Estudos Nacionais, sediada em Florianópolis (SC). Católico praticante, Derosa milita contra o aborto em qualquer circunstância e decidiu investir no mercado editorial em 2015: “Tinha dificuldade em encontrar livros sobre o aborto que não tivessem orientação pró-legalização”. Ele chegou à cifra de 18 milhões de dólares citada por Lenise pesquisando sites de entidades estrangeiras e nacionais. Uma delas é a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com 4,2 milhões de dólares.

    Questionada pela reportagem, a Fiocruz foi categórica em desmentir a informação: “Levantamento feito pela área financeira da instituição não identificou qualquer projeto em relação ao aborto vinculado às verbas mencionadas. A verba foi para a área de saúde da mulher e da criança.” Depois de divulgados no Supremo, os milhões contabilizados por Derosa passaram a circular como dado confiável nas redes sociais e sites simpatizantes. Processo similar ocorre quando se discute os números do aborto no Brasil, sempre menores na contabilidade dos movimentos pró-vida.

    Derosa é organizador do livro Precisamos Falar sobre Aborto, lançado no final do ano passado no Salão Nobre da Câmara dos Deputados. A escolha do local tem a ver com a meta de sensibilizar os parlamentares para os argumentos contrários ao aborto. São 638 páginas e 13 coautores, estrangeiros e nacionais. Derosa edita ainda uma revista trimestral e mantém um site com frequentes referências ao tema aborto. Um dos mais recentes artigos do site é sobre um homem que conseguiu na Justiça impedir o aborto planejado pela ex-namorada em Mercedes, no Uruguai. Lá, o aborto é permitido até a 12ª semana de gestação.

    No Congresso e fora dele, a rede de pressão inclui juristas. Entre eles está a advogada Angela Vidal Gandra Martins, doutora em Filosofia do Direito e professora da Universidade Mackenzie, em São Paulo. Sua aproximação com o movimento se deu a partir de uma temporada nos Estados Unidos, onde trabalhou com a Alliance Defending Freedom, organização cristã sem fins lucrativos que atua no direito à liberdade religiosa e aos direitos fundamentais. Em palestras e audiências, ela recorre a argumentos de sua área: “O termo que a Constituição usa é inviolabilidade da vida humana. Inviolável é um termo absoluto”.

    A origem dos movimentos antiaborto do Brasil também está vinculada a grupos americanos, em particular à Human Life International, a maior organização antiaborto do mundo.

    O artigo 5º da Constituição prevê a “inviolabilidade do direito à vida”, mas não determina quando ela começa. A questão é objeto de debates nos meios religiosos e científicos. “Há um movimento conservador internacional que defende o início da vida desde a concepção; outros grupos quando o embrião se implanta no útero; há aqueles que consideram como marco os primeiros sinais de atividades cerebrais e outros, os primeiros batimentos cardíacos fetais”, afirma bioeticista Antônio Carlos Rodrigues da Cunha, coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília. “Na verdade, há uma percepção entre os pesquisadores de que o conceito de início da vida é filosófico e não embriológico.”

    A organização Católicas pelo Direito de Decidir, que é a favor da descriminalização e da legalização do aborto, também não tem uma resposta sobre o início da vida. Coordenadora executiva da organização, a psicóloga Rosângela Talib esclarece que as Católicas priorizam a autonomia das mulheres sobre a sua vida e o seu corpo: “O aborto para a Igreja não é um dogma, como a virgindade de Maria. Faz parte dos seus ensinamentos. Diante de situações difíceis, o princípio maior é a consciência do fiel”.

    No embate, os contrários à descriminalização não têm dúvidas: a vida começa na fecundação. Para difundir esse e outros valores no âmbito jurídico, investem também na formação de novos quadros. Em Porto Alegre (RS), a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) acaba de contemplar 50 bolsistas para um curso de 40 horas em julho. Destina-se a estudantes ou recém-formados em Direito e terá entre os professores o americano Jeffery Ventrella, da Alliance Defending Freedom, sediada no Arizona. Na organização, Ventrella dirige um programa de nove semanas criado em 2000, que já treinou mais de 2.100 estudantes de Direito de 21 países, alguns deles selecionados no Brasil pela Anajure.

    A origem dos movimentos antiaborto do Brasil também está vinculada a grupos americanos, em particular à Human Life International, a maior organização antiaborto do mundo. A entidade participou da criação do Movimento em Defesa da Vida, lançado no Rio de Janeiro pelo monsenhor Ney Affonso de Sá Earp. Em julho de 1989, o próprio fundador da Human Life, padre Paul Marx, veio ao Brasil para a primeira ação do Defesa da Vida. Veio também a ativista Joan Andrew, uma espécie de estrela do movimento nos Estados Unidos, onde o aborto é legalizado.

    Junto com 20 manifestantes, o monsenhor promoveu uma Operação Resgate –como chamam o bloqueio da entrada de clínicas de aborto–, diante da Clínica Santiago, em Botafogo. Entre os manifestantes estava o criador do GBM, grupo que atuava de forma isolada em Santa Catarina e continua ativo. Depois do episódio no Rio, o monsenhor e seus parceiros americanos trataram de espalhar o movimento pelo Brasil.

    A visita do grupo à cidade de Anápolis (GO) culminou na criação de um dos núcleos mais fortes do movimento. Na ocasião, foi lançado o Pró-Vida de Anápolis, hoje sob a liderança do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, o padre Lodi. Em Brasília, ele chama a atenção por circular, sempre de batina preta, em todos os espaços nos quais se debate os direitos reprodutivos da mulher. Muitas vezes acompanhado por fiéis com terço na mão. Não pestaneja ao tratar do tema: “O aborto é o homicídio preferido do demônio”. Recusa-se, no entanto, a dar entrevista: “Só falo com a mídia pró-vida.”

    Hoje, o mais articulado parceiro da Human Life International no Brasil é Hermes Rodrigues Nery, conhecido como professor Hermes, aquele que investe no corpo a corpo com parlamentares nos cafés do Congresso. Depois de presidir por três anos a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, ele agora está à frente do Movimento Legislação e Vida. Embora more na cidade paulista de São Bento do Sapucaí, onde trabalha na prefeitura, ele se desloca para onde for necessário. Sem entrar em detalhes nem revelar nomes, Nery afirma que, para circular pelo Brasil e pelo mundo, conta com a ajuda financeira de amigos.

    “Estive recentemente nos Estados Unidos, com lideranças conservadoras. Mike Pence, o vice-presidente, é muito pró-vida. E o Governo Trump tem cortado verbas para ONGs abortistas”. Nery também conhece de perto a Pontifícia Academia do Vaticano e a Polônia, país de arraigada tradição católica. Lá, a interrupção voluntária da gravidez era autorizada entre 1956 e 1993, mas hoje o país tem as leis mais restritivas sobre o aborto de toda a Europa.

    No interior da Igreja Nossa Senhora do Rosário, em São Bento do Sapucaí, ele lembra que depois de perder a batalha no Supremo sobre o uso de células-tronco embrionárias em 2005, as lideranças pró-vida mudaram de estratégia: “Em vez de atuar só contra o aborto, entramos com ações propositivas, como a PEC da Vida. Em fevereiro de 2015, procuramos o senador Magno Malta. Levamos informações, ajudamos na redação do projeto. Na época, o Luiz Bassuma, autor do Estatuto do Nascituro, e Damares Alves estavam assessorando o senador. A ideia de explicitar na Constituição que a vida começa na fecundação tinha surgido durante uma conversa com o jurista Ives Gandra Martins”.

    A mais recente frente de combate dos pró-vida envolve neutralizar o “ativismo do Supremo”. Isso porque lá correm duas ações relativas ao aborto. Uma, para descriminalizá-lo até a 12ª semana de gestação, proposta pelo PSOL. Outra, para permitir a interrupção da gravidez nos casos de gestantes infectadas pelo vírus zika, protocolada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos. Para impedir que o Tribunal decida sobre essas questões, um grupo de senadores tenta acelerar a aprovação da PEC da Vida. Na Câmara, já tramita projeto de lei que permite enquadrar ministros do Supremo em crime de responsabilidade por “usurpação de competência” do Poder Legislativo. É o lobby contra o aborto em ação.

     

    GRUPO DE SC CHEGOU A INVADIR CLÍNICAS PARA IMPEDIR INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ

    LUIZA VILLAMÉA

    Cada vez que o aborto entra em discussão no Congresso, mensagens eletrônicas são disparadas da pequena cidade de Rancho Queimado, em Santa Catarina. São endereçadas à rede de 500 mil apoiadores do Movimento GBM em todo o país, para que acionem deputados e senadores. A iniciativa visa barrar a legalização do aborto no Brasil, como afirma a presidente do GBM, Kateri Werlich: “Alguns parlamentares ouvem esse clamor. Outros fazem de conta que não é com eles”.

    Werlich conta que a mãe biológica de Kateri desistiu de interromper a gravidez e entregou a criança para que ele a criasse (Foto: Luara Wandelli Loth)

    “Começamos invadindo abortórios. Fazíamos denúncias. Ajudamos a colocar bastante gente na cadeia, mas a polícia encobria muita clínica clandestina”

    Fundado em 1973 pelo pai de Kateri, Sabino Werlich, o GBM é o mais antigo grupo de pressão contra o aborto do país. “Começamos invadindo abortórios. Fazíamos denúncias. Ajudamos a colocar bastante gente na cadeia, mas a polícia encobria muita clínica clandestina”, conta Sabino, 81 anos. As ações eram feitas em conjunto com a mulher, Vali, hoje afastada das atividades do movimento.

    O casal não teve filhos, mas adotou dez crianças, entre elas Kateri. Há 30 anos, a mãe biológica de Kateri pensava em abortar, quando um padre da cidade onde ela morava, Itajaí, falou sobre os Werlich. “Ela veio para Rancho Queimado e, a partir do quarto, quinto mês de gravidez, ficou morando com meus pais. Após o parto, me entregou para eles”, diz Kateri, a única da família que ainda mora com o pai.

    O padre de Itajaí, por sua vez, conhecia o GBM por causa do jornal Em Defesa da Vida, que o movimento publica há 36 anos e distribui para paróquias e apoiadores. Com quatro páginas, trimestral, trouxe na primeira página da mais recente edição um artigo do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, de Anápolis, contra a ação que tramita no Supremo Tribunal Federal para liberar o aborto até a 12ª semana de gestação.

    “A última tiragem foi de 15 mil exemplares, mas já chegamos a tirar 200 mil. Falta apoio financeiro”, diz Kateri. Nem sempre foi assim. Apesar de sofrer lapsos da memória, Sabino se recorda bem da ajuda que recebeu em dólares do padre Paul Marx, fundador do Human Life International, e da ativista Joan Andrews Bell. Ambos americanos, eles vieram ao Brasil em julho de 1989, para difundir o movimento Brasil afora. No Rio de Janeiro, fizeram um protesto diante de uma clínica clandestina de aborto.

    Sabino participou do protesto no Rio e voltou para Rancho Queimado com recursos para fazer melhorias na sede, que até hoje se estende por uma área de 2,5 mil metros quadrados. Ele não se lembra mais da quantia recebida, só da orientação de que era para “trocar aos poucos, gastar o do dia e guardar o resto”. Kateri, que sucedeu ao pai no comando do movimento, garante que atualmente não recebe nenhuma ajuda do gênero.

    Instalada em uma rua que Sabino conseguiu batizar como Nossa Senhora Protetora dos Nascituros, a sede tem construções modestas, mas amplas. Além de capela, escritório e das casas de Sabino e Kateri, abriga uma rádio que jamais foi legalizada e hoje está desativada por problemas técnicos.

    O nome GBM é homenagem à médica italiana Gianna Beretta Molla, que escolheu manter uma gravidez de risco que culminou em sua morte, em 1962. Em maio de 2004, ela foi proclamada santa pelo papa João Paulo II, mas Kateri lembra que essa possibilidade não estava no horizonte dos Werlich quando escolheram o nome do movimento: “Eles simplesmente se encantaram com a história dela. O marido dela, Pietro Molla, mantinha contato com o movimento, por cartas”.

     

    A fundadora do Centro de Reestruturação para a Vida, Rose Santiago (Foto: Marcelo Laganaro)

     

    ORGANIZAÇÃO ATRAI MULHERES COM DE ANÚNCIOS DE FALSO SUPORTE À GRAVIDEZ INDESEJADA

    MÔNICA TARANTINO

    À primeira vista, nada indica que o Cervi – Centro de Reestruturação para a Vida –, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, é uma organização contrária ao aborto. No site que oferece suporte às mulheres para lidar com a gravidez indesejada e o abuso sexual, esse posicionamento não fica claro. Assim como não está explícito para aquelas que chegam encaminhadas por unidades básicas de saúde, hospitais ou delegacias com os quais o Cervi trabalha em parceria. Além de aconselhamento, a associação providencia testes de gravidez, encaminha para o pré-natal e para cursos profissionalizantes. Criado em 1999, o Cervi informa que já atendeu mais de 18 mil mulheres. “Eu diria que temos uns cinco mil filhos”, diz sua principal fundadora, a tradutora Rose Santiago. Os cabelos roxos, as tatuagens e a postura despojada de Rose evidenciam sua busca por maior empatia com as mulheres que procuram o serviço. Mineira de Poços de Caldas, ela representa a ala mais moderna de um movimento que evita o convencimento por meio de argumentos religiosos e exibição de imagens chocantes de fetos na hora de levar as mulheres a mudarem de ideia. “No dia a dia, vi que nossa missão não é religiosa. É alcançar a mulher no bio-psico-social-espiritual. Cuidamos das duas vidas, da mãe e do feto”, explica. Ainda assim, o Cervi faz parte da Rede Solidária da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo.

    O modelo do Cervi é inspirado nas organizações americanas Pregnancy Resource Center (PRC) e Life International (LI), que inicialmente financiaram sua atividade. Rose conheceu os fundadores da LI, Fran Malfer e Kurt Dillinger, quando atuou como tradutora no processo de adoção de duas crianças brasileiras. Ficaram amigos e ela foi convidada a representá-los no Brasil. “No começo recebemos ajuda para pagar salários, aluguel e comprar mobília. Hoje nós não representamos mais essas associações e temos uma rede própria de parceiros e mantenedores.” Apesar disso, Rose frequenta os congressos dessas entidades, é convidada para fazer palestras e busca, como a matriz, expandir o seu campo de ação. “Nós estamos abrindo o Cervi em Sergipe e Brasília. Existe um em Porto Alegre que nós treinamos que se chama Servi, com S.”

    Associações com o mesmo propósito do Cervi atuam em todo o país. Alguns tentam atrair as mulheres oferecendo falso suporte ao aborto, como o gravidezindesejada.com, da Associação Mulher. Essa entidade faz parte da Red Latinoamericana de Centros de Ayuda para la Mujer, os CAMs, em atividade nos Estados Unidos, na Espanha e por toda a América Latina. No Brasil, o site da rede informa que há CAMs em São Paulo (nas cidades de Piracicaba, Jacareí e na capital), Rio de Janeiro, Porto Alegre (RS) e Florianópolis e Três Barras (SC). Outras instituições com atuação similar são a Associação Guadalupe em São José dos Campos (SP) e Missão Fiat, em Campinas (SP), Pró-Vida de Anápolis (GO) e Comunidade Santos Inocentes, em Brasília (DF).

    (Esta reportagem foi produzida com o apoio do edital Jornalismo Investigativo em Direitos Humanos, Aborto e Saúde Pública, uma parceria do Instituto Patrícia Galvão, Abraji e GHS)

  • Evangélica deixa o país por sofrer ameaças

    Evangélica deixa o país por sofrer ameaças

    “Perdi o direito! Perdi o direito de viver no meu próprio país! Quem defende a laicidade do Estado, é massacrado por um Estado que não é laico. Perdi o direito de viver com minha família e meus amigos, de levar meu trabalho adiante. Perdi o direito de viver minha vida como a vivo hoje. Perdi esse direito porque o fundamentalismo que governa o Brasil hoje assassina qualquer profeta que denuncie o pecado das grandes lideranças.”

    O desabafo é da carioca Camila Montovani da Silva e foi postado nesta sexta-feira, 26, em sua página no Facebook. É mais uma brasileira do Estado do Rio a deixar o país em consequência das perseguições e ameaças que vem sofrendo, neste caso, de fundamentalistas. A jovem é perseguida por prestar solidariedade e apoio pastoral a mulheres evangélicas que sofrem violência doméstica. Recentemente, o deputado federal Jean Wyllys (Psol-RJ) e a ex-candidata ao governo do Rio de Janeiro pelo PT, a filósofa Márcia Tiburi, também tiveram de deixar o país por causa de perseguições e ameaças. 

    “Perdi meus direitos porque um Brasil governado por evangélicos é um Brasil anti povo, anti direitos, anti pluralidade que é tão importante pra assegurar a democracia! Estou indo embora do país em exílio depois de esgotar todas as minhas possibilidades de ficar aqui e permanecer viva. Lutei o quanto pude pra não ter que sair, mas me colocaram no limite. Estou indo porque quero viver e quero viver porque quero continuar a construção de um outro mundo. Estou indo porque quero deixar minha família e meus amigos seguros. Estou indo, mas continuo a denúncia da barbárie que esse país se tornou sendo um país tão evangélico! Sigo na luta, porque a despeito da igreja hegemônica que persegue e mata quem ousa contrariá-la, eu tenho comigo a força do Nazareno, do Deus que encarnou preto e pobre, do Deus que valorizava as mulheres. Eu sigo com Jesus Cristo, apregoando o Reino de Deus, mesmo que isso me custe a Cruz!
    Me tiraram tudo. Mas o sorriso de quem tem paz no coração fica!

    Aqui ou em qualquer lugar eu sigo pela vida das mulheres, pelo respeito à diversidade, pela garantia da democracia, contra o fundamentalismo religioso!
    Da Luta, não me retiro!”, conclui Camila em seu desabafo de despedida.

    Solidariedade

    Além do apoio manifestado por muitos de seus 4.979 amigos e amigas de Facebook, Camila recebeu também a solidariedade  do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC).

     

    Nota de Solidariedade a Camila Montovani e seus familiares

    “Felizes as pessoas que promovem a paz,
    porque serão chamadas filhas de Deus” (Mt5.9)

    O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e o Fórum Ecumênico ACT Brasil (FEACT) expressam irrestrita solidariedade a Camila Montovani e seus familiares.

    Uma das atuações de Camila, uma jovem evangélica, é prestar solidariedade e apoio pastoral a mulheres evangélicas que sofrem violência doméstica e não conseguem romper com este ciclo porque são orientadas por lideranças religiosas de que “a mulher cristã deve ser submissa a seu marido”.

    Lembramos que nas histórias do Antigo Testamento bíblico muitas mulheres ousaram desafiar o sistema opressor, entre elas, Vasti, que não se submeteu ao rei Assuero (Est 1.1-22).

    Há bastante tempo, o protagonismo de Camila tem provocado a raiva de líderes religiosos evangélicos fundamentalistas. Hoje, a raiva tornou-se ódio.

    As ameaças se tornaram graves. Sua casa e seus familiares passaram a ser vigiados e Camila ficou sem lugar fixo para morar. Foi obrigada a mudar a rotina. A gravidade das ameaças obrigou Camila a sair do país.

    O CONIC e o FEACT colocam-se ao lado de Camila e de seus familiares. Denunciam que outras pessoas evangélicas, engajadas em movimentos de promoção e defesa dos direitos humanos, estão sofrendo ameaças semelhantes.

    A perseguição vivida por estas pessoas é consequência da instrumentalização da fé cristã para legitimar práticas de violência e discursos de ódio. O fundamentalismo religioso não aceita o pluralismo e nem a crítica à religião – mesmo que ela cause algum tipo de opressão ou violência.

    A fé cristã não pode ser instrumentalizada para subjugar as pessoas, nem para dominar territórios, impondo medo às pessoas. A fé cristã não pode ser associada com armas e nem com o crime organizado.

    A fé evangélica não é violência. Não está fundamentada no exclusivismo e nem no autoritarismo. Ela se orienta pela graça amorosa de Deus e pela liberdade. É este o testemunho das muitas tradições evangélicas no país. Não aceitaremos que nossa tradição de fé seja instrumentalizada para a promoção do ódio, do racismo, do sexismo e outras formas de dominação e violência.

    Que a paz de Jesus Cristo, seu testemunho radical de vida, contrário a todo o poder opressor estatal e religioso nos oriente e fortaleça.

  • O padre pop

    O padre pop

    A moça cheia de destreza burla a segurança desatenta e se joga nos braços do padre-galã. Chora desesperada. Ele a consola. A cabeça dela recosta-se no peito malhado do padre e umedece a camisa feita sob medida para destacar o peitoral maior.

    A música está terminando e ele precisa decidir como incorporar a moça à performance. Fala alguma coisa no ouvido dela, que sussurra uma resposta, já mais calma. Então, ela pega o microfone, confiante. Ele, com sorriso fraterno, a incentiva a falar.

    A moça discursa entre soluços: “padre furustreco, não é justo o que o senhor faz conosco, mulheres de família, contrárias ao aborto, tementes a Deus, à espera de homem-príncipe, gentil e cavalheiro que nos retire a virgindade, tão cara para nós quanto o voto de castidade feito (e mantido) pelo senhor. Padre, o mundo precisa de homens como o senhor, íntegros, verdadeiros e bonitos! O senhor é lindo! É um desperdício que seja padre. O senhor me desculpe pela sinceridade e ousadia, é caso até para pedir perdão a Deus, e eu peço, mas, como eu, muitas moças gostariam de ter a chance de desposá-lo, de ter filhos lindos como o senhor”.

    O padre sorri um riso premeditadamente tímido. A audiência divide-se nas reações. Muitos acham cômico o depoimento, alguns o consideram inadequado, outros acham que a moça está histérica e precisa de internação ou de casamento. O padre, a princípio condescendente, silencia por alguns segundos, enquanto matuta o seguimento da performance.

    Resolve direcionar as mãos para o céu (um auxiliar de palco corre para acertar o microfone de boca) e aguarda alguns segundos enquanto a iluminação divina o toma e a plateia se harmoniza, e exorta: “oh Deus-pai-todo-poderoso, conforte o coração desta filha aflita para que ela entenda que Deus não escolhe apenas os feios e imperfeitos. Deus também precisa dos belos e perfeitos para realizar suas obras”.

    As ovelhas-ovelhas aplaudem em frenesi. Que presença de espírito! Que inteligência e perspicácia do padre-galã.

    As ovelhas negras, subsumidas no mundo convencional das ovelhas, se perguntam onde, gotas de sabedoria e compaixão no lamaçal do coração narcisicamente humano do padre best(a) seller?

  • Sobre o filme “Ex-Pajé”

    Sobre o filme “Ex-Pajé”

    Emocionado, maravilhado, abalado, envergonhado.

    Foi com esse misto de emoções que saí da sala de projeção no Cine Belas Artes de Belo Horizonte após assistir o filme/documentário “Ex-Pajé”, dirigido por Luiz Bolognesi.

    Explico a avalanche de emoções: sou pastor evangélico, e boa parte do filme trata da estranha e violenta relação entre uma missão evangélica (batista, denominação que abraço) e o “ex-Pajé” Perpera, que teve sua pajelança questionada e “encerrada” de forma sórdida e cruel por parte da igreja que se instala em sua aldeia.

    A demonização da cultura e da religião indígena é de uma violência sem tamanho. Nada novo para um projeto que vai muito além de uma honesta evangelização, mas trata-se, na verdade, de um grande processo de colonização, que passa pelo discurso e força da religião “cristã” (as aspas aqui são necessárias). Religiões chamadas primitivas e, geralmente não brancas, são sempre demonizadas e, mais que uma possibilidade de convívio entre as diferentes cosmovisões, faz-se necessário, nesses casos, um total aniquilamento do inimigo, para que o projeto final seja concretizado: o total ocaso das religiões inimigas.

    O filme, de forma poética e resgatando o melhor sentido do profetismo, faz a denúncia dessas violências, mas sem entrar no jogo de certo/errado, o que dá mais força ainda à narrativa dirigida por Bolognesi, que deixa ao espectador a percepção e a conscientização através da própria vivência dos índios Paiter Suruí, principalmente os dramas do “ex-pajé” Perpera.

    A força do canto, da mística e da espiritualidade indígena são de emocionar e nos fazem perceber a riqueza, grandiosidade e leveza que existem numa cultura milenar (bem anterior à fé cristã) e que leva a tribo a entender as forças da natureza de forma tão bela e que se manifesta, principalmente, na sua relação espiritual com a natureza, beleza esta agredida e retirada pelas forças da colonização religiosa à que são submetidos, muitas vezes em troca de remédios, assistência e até mesmo, convívio (que é negado aos que não se “convertem”).

    O olhar triste e constrangido do “ex-pajé” ao sofrer a violência que lhe é imposta pelos missionários é ponto marcante no documentário e traduz, sem palavras, a crueldade que lhe é imposta e lhe obriga a abandonar a beleza e sua natureza de pajelança e cuidado dos seus. Imperialismo em nome de um deus branco e inimigo da sua própria história.

    Mas, e não quero correr o risco de dar “spoiller”, não há força imposta que tire de nós a essência. E ao fim do filme há um sopro de esperança que me fez chorar de emoção, alívio e vergonha. Vergonha por, de alguma forma, estar ligado a esse sistema que oprime, elimina culturas e vivências e faz isso “em nome de deus”. Emoção e alívio por já há alguns anos entender que não há, no Cristo, violência e imposição quaisquer que deslegitimem outras experiências e percepções do Sagrado.

    A verdadeira fé, aquela mais íntima, que sistema religioso nenhum é capaz de dominar, sempre prevalecerá! Ainda bem!

    Quanto ao filme, assista!!! Não deixe de ver!!! E perceba, com poesia, a beleza de uma espiritualidade viva e totalmente conectada com seu mundo e gentes.

    Que Deus e os Espíritos da floresta e dos rios não nos abandonem!

    * por José Barbosa Junior – pastor da Comunidade Batista do Caminho – Belo Horizonte

  • A deselegância do Cardeal Scherer

    A deselegância do Cardeal Scherer

    Conheci dom Angélico Bernardino Sândalo quando eu era repórter no Estadão e escrevia sobre religião. Ele me chamava de ‘irmão’. Não era uma exclusividade. Todo mundo é ‘irmão’ de d. Angélico. Até pessoas das quais não gosta. Nunca perguntei o motivo desse tratamento. Imagino que seja para lembrar que somos todos filhos de um mesmo pai. Também imagino que foi essa ideia de fraternidade que o levou, desde a ordenação sacerdotal, a se voltar mais para as pessoas carentes, os que perderam tudo, os migrantes, os sem-teto, os sem-terra, os excluídos.

    Na década de 1970, esse interesse do padre Angélico pelos pobres chamou a atenção do então arcebispo de São Paulo, o franciscano Paulo Evaristo Arns. E quando o papa Paulo VI disse a ele que devia dividir seu trabalho e nomear um bispo auxiliar para cada milhão de fiéis da arquidiocese, o primeiro nome que veio à cabeça de d. Paulo foi o daquele padre. Logo depois de sagrá-lo bispo, despachou-o para a periferia, o extremo da Zona Leste, bandas de Itaquera, na época uma das regiões mais carentes da cidade. Lá, o bispo se entrosou tão bem com o povo que até trocou de time: deixou o Palestra Itália pelo Corinthians.

    D. Angélico foi um dos principais conselheiros de dom Paulo nos anos da ditadura. Acompanhou-o, lado a lado, no episódio do assassinato do jornalista Vladmir Herzog, numa dependência do Exército. Editou o jornal católico O São Paulo. Enfrentou a censura à imprensa. Por onde passou estimulou movimentos populares por habitação, creches, transportes.

    Hoje, com 85 anos, aposentado, vive numa casa modestíssima na Zona Norte. Às vezes é chamado para alguma celebração especial. No ano passado ministrou o sacramento da extrema-unção à esposa do ex-presidente Lula, Marisa Letícia, de quem era amigo há quase quarenta anos.

    Agora o chamaram para o ato ecumênico que celebraria o aniversário de Marisa. Era para um ser ato no interior do sindicato. Mas, com a decretação da prisão de Lula e a multidão que se aglomerava do lado de fora, acabou transferido para a rua. E foi assim que o País viu o bispo ao lado do ex-presidente.

    Como era de se esperar, nesses tempos de polarização política e de ódios, a imagem dos dois em rede nacional provocou reações furiosas, quase fratricidas, entre católicos. D. Angélico foi xingado das piores coisas. Como nos velhos tempos da guerra fria, o chamaram de bispo da batina vermelha. Um colunista político disse que rezou uma missa negra, confundindo, como vários outros jornalistas, ato ecumênico com missa.

    D. Angélico desceu do caminhão assim que encerrou o ato e Lula começou a discursar. Ninguém prestou atenção nele quando seguiu por uma rua estreita e íngreme, à procura da condução que o levaria para casa. Trajava calça cinza, de cós muito alto, e camisa branca com mangas longas. Os passos eram lentos e amparados pelas mãos da irmã Carmem Julieta, que o acompanha sempre.

    No dia seguinte, a assessoria do arcebispo de São Paulo, cardeal Odilo Scherer, divulgou uma nota sobre o assunto. É um texto curto e objetivo. Começa preocupado em isentar o cardeal: diz que ele não tem nada a ver com o ato ocorrido em São Bernardo e explica que “aconteceu fora da jurisdição e responsabilidade do arcebispo e da arquidiocese de São Paulo”. Depois desse ato de lavar as mãos, o texto faz a afirmação que logo em seguida se transforma em manchetes de sites, jornais, rádios e TVs: “O arcebispo lamenta a instrumentalização política do ato religioso”.

    Li e reli a nota. Parece feita às pressas, com o objetivo de dar satisfações aos católicos mais direitistas, e suscita uma pergunta óbvia: se o arcebispo metropolitano não tem nada a ver com aquilo, a quem cabe a responsabilidade? É assim que o cardeal joga a bomba no colo do bispo de Santo André, d. Pedro Cipolini.

    Para entender melhor é preciso explicar que a Igreja Católica tem uma divisão própria de territórios. De acordo com essa divisão eclesiástica, São Bernardo faz parte da diocese de Santo André. Indiretamente, portanto, o cardeal está perguntando o seguinte ao irmão e bispo vizinho: como é que você permite que um ato desses ocorra em sua jurisdição?

    O alvo mais óbvio da nota, no entanto, é d. Angélico. O cardeal divulgou a nota sem dar um telefonema para o bispo emérito que mora na mesma cidade e a poucos quilômetros de distância. Nem sequer para avisá-lo. Tratou-o, de acordo com os tempos de guerra, como inimigo.

    Faltou elegância, no mínimo, ao cardeal. Como arcebispo metropolitano, poderia ter conversado com o bispo de Santo André ou se dirigido à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Por outro lado, em vez engrossar e estimular o conflito, poderia ter exercido o papel de pastor, acalmando os ânimos e pedindo orações para o Brasil.

    Como entender essa reação do cardeal? Existem algumas pistas. D. Scherer é um expoente do conservadorismo católico. Em 2013, no conclave que elegeu o sucessor do papa Bento XVI, o nome dele figurou na lista dos preferidos da ala conservadora. Mas não prosperou. Se é mesmo o Espírito Santo que orienta o conclave, ele deve ter soprado no ouvido dos cardeais, que, após dois papados conservadores, seria melhor optar por uma cabeça mais arejada e reformadora. E eles elegeram o jesuíta Bergoglio, hoje papa Francisco.

    Em 2014, o papa afastou o cardeal Scherer e outros três cardeais da cúpula do Banco do Vaticano, instituição financeira envolvida numa série de escândalos, inclusive com suspeitas de lavagem do dinheiro do crime organizado. Foi uma demonstração de que ele veio mesmo para mudar.

    No Brasil, o cardeal é um dos poucos integrantes da CNBB que defendem abertamente as propostas do governo Temer para a reforma da Previdência. Antes disso, ele já havia apoiado a proposta que congelou gastos públicos.

    Em São Paulo, Scherer procurou demonstrar proximidade com João Doria – tucano que lastreou sua campanha eleitoral para a prefeitura em ataques ao PT e a Lula. Chegou a falar de maneira positiva, em duas ocasiões e publicamente, a respeito da ‘farinata’ que Doria pretendia distribuir nas escolas públicas.

    O cardeal até posou ao lado do prefeito tucano quando ele divulgava o tal composto alimentar. No final da história, porém, ficou falando sozinho. O valor nutritivo do composto era tão duvidoso e polêmico que foi posto de lado. Pelo próprio Doria, que já se afastou da prefeitura para se candidatar ao governo do Estado, após ter prometido aos seus eleitores que jamais deixaria o cargo antes de terminar o mandato.

  • DEUS E O DIABO NA TERRA DESVAIRADA DA ‘SACRACIDADE’

    DEUS E O DIABO NA TERRA DESVAIRADA DA ‘SACRACIDADE’

    O sagrado, em suas diferentes manifestações, vive em cada canto da região central de São Paulo. É o que mostra, por meio de imagens e reportagens, o livro “Sacracidade – Expressões da Fé na Metrópole”, de Xavier Bartaburu. Na locomotiva econômica do país, nem tudo é caos e business. Histórico destino de imigrantes – vindos das mais diferentes regiões brasileiras e também de países com as mais diversificadas culturas –, a capital paulista, que acaba de comemorar 464 anos, é um mosaico multifacetado. Neste, convivem as mais variadas etnias, que mantêm e expressam suas tradições e, sobretudo, sua religiosidade.

     

    É justamente esta São Paulo que está estampada nas páginas de “Sacracidade”. Lançando mão de ferramentas do jornalismo literário e da fotografia documental, Xavier Bartaburu buscou o sagrado em esquinas, vielas e ruas enviesadas. Percorreu igrejas, templos, mesquitas, sinagogas e terreiros para registrar as muitas formas com que os habitantes da maior cidade do Brasil se conectam com o divino. Como resultado, surge uma detalhada cartografia da fé. O título, com 224 páginas, 16 reportagens e mais de 80 fotos, é um dos mais completos registros da diversidade religiosa no centro paulistano. Um retrato de cristãos, muçulmanos, judeus, espíritas, budistas, umbandistas e candomblecistas, os quais – e cada um a seu modo – buscam Deus ao meio do já consagrado desvario da pauliceia.

    Segundo o autor, “Sacracidade” pode ser definido como uma coletânea de contos da vida real. “As histórias que coletei são todas reais, mas bem poderiam ter sido inventadas, de tão insólitas. Por isso, apesar de ser um livro de não ficção, optei por um tratamento literário que ilumina sob outros ângulos aqueles lugares e personagens.”

     

    Quanto às imagens, Bartaburu diz: “Todas as fotos foram capturadas pelo ângulo de uma testemunha ocular ao mesmo tempo ativa e passiva desses cenários. Não tem nenhum retrato, nada foi posado. Registrei os cultos como se estivesse no meio da massa de fiéis, imerso naquelas experiências do sagrado”.

     

    Ao dirigir seu olhar para esses universos de conexão e religação com o sagrado, o autor, mais do que coletar imagens, se viu testemunha de situações pouco imagináveis até então. Na introdução do livro, ele escreve: “São Paulo talvez não tenha 365 igrejas como Salvador, mas tem missa em alemão, japonês, italiano, espanhol, armênio, árabe, coreano e latim. Tem boliviano na sinagoga e chinês no terreiro. Trans no púlpito e freira na clausura. Zé Pelintra no Bixiga e Alá no Anhangabaú. Tem padre dando passe e mãe de santo em porta de igreja. Tem pastor peregrino e, também, butique de batina. Tudo isso bem no centro. A três, quatro, não mais que dez quadras de distância. Entre o lixo e o xixi, entre a fumaça e o fuzuê, não tem canto onde alguém não tenha encontrado seu Deus”.  

    Neste entroncamento de crenças que é a região central, a fé parece estar em permanente congestionamento e floresce ao meio do concreto sujo do território profano da metrópole. “Em todos esses templos que ancoram o sagrado, os cidadãos buscam refúgio, conexão e sanidade numa cidade por si ilógica”, diz Bartaburu. “São muitas as portas abertas. Basta entrar”, sintetiza.

    Sobre Xavier Bartaburu

    Xavier Bartaburu (São Paulo, 1976) é jornalista, fotógrafo e pesquisador das tradições populares brasileiras. Formou-se em Jornalismo na ECA-USP e trabalhou por sete anos na revista Terra, na qual foi editor-executivo e publicou mais de cinquenta reportagens produzidas ao redor do mundo e pelo interior do Brasil, tanto em texto quanto em foto, sempre buscando revelar novas visões do patrimônio socioambiental do planeta. Nos últimos anos, tem dado continuidade a esse trabalho escrevendo e fotografando para livros, sites e revistas, em grande parte dedicados à difusão da cultura e da biodiversidade brasileiras. Até o momento, já são cerca de 20 livros publicados. Mais informações sobre o autor no site www.xavierbartaburu.com.

    Sobre a Editora Origem

    Editora especializada em livros de fotografia, fundada em 2001 pelo publisher e fotógrafo Valdemir Cunha. Tem 17 títulos publicados, todos sobre a cultura, o povo e a geografia do Brasil. A empresa é também uma livraria que, além dos títulos próprios, vende trabalhos de outros fotógrafos brasileiros, dificilmente encontrados nas livrarias tradicionais.

    (SERVIÇO)

    SACRACIDADE: EXPRESSÕES DA FÉ NA METRÓPOLE

    Autor: Xavier Bartaburu

    Editora: Origem

    Número de páginas: 224

    Preço: R$ 65

    Onde comprar: nas grandes livrarias e no site www.origemphotobooks.com/product-page/sacracidade