Jornalistas Livres

Tag: Rafael Braga

  • Não importa se dendê ou se maconha, não importa se explosivo ou pinho sol

    Não importa se dendê ou se maconha, não importa se explosivo ou pinho sol

    Nas últimas semanas, em algumas oportunidades, sugeri para algumas colegas que refletíssemos sobre a questão da proibição do dendê na Bahia. Um assunto até que já vem rendendo um caldo pelo mundo, o que acabei descobrindo nesta ocasião. A indústria de óleo de palma, um produto extraído do dendezeiro, passou a sofrer pressão na Europa depois que autoridades afirmaram que o produto aumentaria o risco de câncer. Na indústria do biocombustível, interesses econômicos se confrontam sobre a utilização do dendê versus outras matrizes energéticas. (ver também).

    Mas o meu convite se referia a uma comparação mais profunda, sobre a proibição da maconha do Brasil, essa sim em vigor a várias décadas, e a possibilidade da restrição do uso, comércio e produção do dendê. Todas as possibilidades estão abertas na Era dos Absurdos. Pena Hobbsbawn não ter sobrevivido…

    O café por exemplo, já foi uma bebida perseguida em diversos lugares do mundo. [O professor Henrique Carneiro nos narra muito bem a relação entre alimentos, drogas e proibição na história da humanidade].

    Na data de 4 de outubro de 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro penalizava o pito de pango, “fumar maconha”, na postura que regulamentava a venda de gêneros e remédios pelos boticários. Ficaria proibida assim, a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor [multado] em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dêle usarem, em 3 dias de cadeia”. Ao escravo, seria destinada a prisão, portanto.

    As pessoas escravizadas, para as quais não eram reservados direitos e portanto, excluídas dos demais códigos jurídicos, não deixava de aparecer no entanto nas posturas criminais. Nesse caso, se destacaria inclusive entre as demais pessoas que usassem. Só poderiam ser consideradas cidadãs, pessoas portanto, para serem criminalizadas.

    A criminalização da população negra tinha relação com o controle da raça negra para que não boicotassem o projeto civilizatório das elites políticas brancas, que ao final do século XIX, às vésperas do fim da escravidão formal, se perguntavam: “O que fazer com o negro?”. [Questionamento que a professora Celia Maria Marinho Azevedo tentou observar].

    Antes mesmo da primeira constituição republicana, já se deixava bem claro com quem se esperava compor a população do Brasil a partir dali: É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos a ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos, de acordo com as condições estipuladas. Somente mediante a autorização do Congresso Nacional, importante frisar. [Quem muito bem escreve sobre os enlaces e entraves dessa dissimulação brasileira, é a autora Wlamyra Albuquerque, querida professora].

    O código penal de 1890, já continha as cartas que seriam usadas no começo do século seguinte para a repressão ao samba e à capoeiragem (perseguida pela lei desde o código do Império), assim como às pessoas consideradas vadias, através de uma caracterização ampla contida no termo de “desordem”, e outros códigos. Uma portaria no Rio de Janeiro em 1889, determinava que, em caso de conflito, a polícia deveria usar preferencialmente “meios suasórios”, “cacetadas, maus tratos e até tiros, se possível for”. (Ver sobre isso)

    Em 1915, o professor da Faculdade de Medicina da Bahia Rodrigues Dória, assume que criminalizar a maconha no Brasil era uma tarefa de controle da população negra egressa da escravidão. Ele afirma que, a raça (negra) outrora cativa, trouxera bem guardado consigo para ulterior vingança, o algoz que deveria mais tarde escravizar a raça opressora. (…) O vício de fumar a erva maravilhoso, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim da sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva (sobre o tema). A maconha seria assim uma vingança dos negros contra os brancos por terem nos roubado a liberdade preciosa e sugado a seiva reconstrutiva.

    Em 1938, diversas autoridades se reúnem em Salvador para discutir a elaboração de instrumentos para coibir o comércio, o consumo e a produção da planta, no I Convênio Interestadual da Maconha, e assim, pôr em prática a decisão editada na lei de seis anos antes, e uma das orientações retiradas daqueles dois dias, de uma sala quente no centro da cidade da Bahia, foi a obrigatoriedade de inscrição dos terreiros de candomblé em autoridade policial, medida que não é suspensa até 1978.

    E a perseguição à planta deveria ser por todo o Brasil: “Uma luta sem tréguas contra os fumadores de maconha. No Rio de Janeiro, em Pernambuco, Maranhão, Piauí, Alagoas e mais recentemente Bahia, a repressão se vem fazendo cada vez mais enérgica e poderá permitir crer-se no extermínio completo do vício”, comemoravam os proibicionistas. A polícia sempre como agente de destaque para a manutenção da ordem e dos bons hábitos na cena urbana. Nas zonas rurais, outras milícias menos institucionalizadas, por assim dizer.

    A proibição da maconha surge não a partir dos efeitos da planta no organismo, dos seus usos, ou dos seus possíveis agravos, mas sim como uma nova engrenagem do projeto de controle da população negra egressa da escravidão, para manutenção dos mecanismos de hierarquia racial construída naquele período. E aqui eu misturo o dendê e o pinho sol.

    O jovem negro Rafael Braga deixou um casarão abandonado no centro do Rio de Janeiro, onde catava algumas quinquilharias, e não tinha ainda se dado conta de que haviam mais de 300 mil pessoas do lado de fora que se manifestavam contra a realização da Copa das Confederações no Brasil, e uma enorme confusão causada pela repressão policial. Em seu percurso para a casa de uma tia que morava próximo, onde pretendia deixar uma garrafa de água sanitária e outra com desinfetante que havia encontrado junto às escadarias do local onde estava, foi abordado por policiais e levado à delegacia.

    Dois policiais civis afirmaram que Rafael portava duas garrafas de plástico com um estopim laranja, e que o material parecia com coquetel molotov. O laudo técnico da Polícia Civil atestou que a água sanitária não poderia ser utilizada como material inflamável (para espanto de todos, surpreendendo até a obviedade). O desinfetante, no entanto, do jeito que estava, teria, no máximo, “mínima aptidão para funcionar como ‘coquetel molotov’”. O juiz Guilherme Schilling Polo Duarte, branco, resolveu assim, baseado naquele laudo e na declaração dos policiais, condenar Rafael Braga Vieira a cinco anos de reclusão, que deveriam ser cumpridos inicialmente em regime fechado. Rafael foi ainda condenado pelo diretor da unidade que cumpria pena a dez dias na solitária por ter tirado uma foto em frente a um muro, quando progrediu meses depois para o semiaberto. No muro, a frase: “Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima para baixo”. Pena de 2 m², sem acesso à luz e a outras pessoas.

    Quando saiu da prisão em 1º de dezembro de 2016, para o regime aberto com tornozeleira eletrônica, Rafael foi abordado de novo por polícias, 40 dias depois. Ao ser parado, Rafael afirma que foi chamado de “bandido” e conduzido até um beco, onde, foi agredido com socos no estômago e o ameaçado. Surgiram então 0,6 gramas de maconha, 9 gramas de cocaína e um rojão nos bolsos de quem havia deixado a casa da sua mãe com três reais para comprar o pão. Rafael foi condenado a 11 anos e nove meses de prisão. O juiz Ricardo Coronha Pinheiro, branco, impediu inclusive a verificação dos dados da tornozeleira que Rafael usava, pois isso colocaria em xeque o depoimento dos policiais que o prenderam.

    Jhonata Dalber Matos Alves tinha 16 anos quando foi atingido por polícias da UPP no Morro do Borel no Rio de Janeiro, que “confundiram” o saco de pipoca que ele tinha na mão com drogas*. O menino Joel morreu aos 10 anos dentro de casa no Nordeste de Amaralina, também numa operação policial. Luciana segue presa em Natal. Cláudia Ferreira foi arrastada em rede nacional.

    Chegamos então às conclusões que me trouxeram de um simples post para o facebook a uma tarde dedicada a escrever essa breves palavras para vocês.

    O que eu trazia para as minhas colegas em Salvador era que a questão da substância em si, maconha, pinho sol, dendê, explosivo, feijão, café ou açúcar, pouco importa para o processo criminalizador. A construção da pessoa criminosa no Brasil se dá antes mesmo da realização do crime. E ela tem raízes profundas no nosso processo de escravização, que é a maior parte da história brasileira. As noções de crime, castigo, punição, pena, em nosso país, são oriundos dos quintais da Casa Grande, e são a base do nosso sistema penal, como nos lembra a professora Ana Flauzina.

    A arquitetura punitiva herdada do modelo imperial-escravista, onde as práticas de controle se desenvolveram no terreno das relações entre o senhor e o escravo em séculos e, portanto, dentro do âmbito privado, ao transferir-se para o Estado republicano, gerenciado pelos mesmos senhores, esforçava-se na extensão do discurso da inferioridade negra, desenhando novos manejos que reforçassem a naturalização da subalternidade.

    Entre o conjunto de mecanismos que permitiam a gerência real sobre a circulação material do corpo negro na cena urbana, e que alimentava a apreensão racista do fenômeno do crime pelo conjunto responsável por normalizar a acusação social, e reproduzi-la, tornando o criminoso, construído anteriormente ao crime, um corpo real, material, a ser punido, encontraremos a perseguição à vadiagem para o processo almejado de profilaxia social, intimamente ligada ao controle do uso de substâncias psicoativas, sejam legais como o álcool, ou ilegais como a maconha. Mas os corpos foram criminalizados antes de alcançarem essas substâncias e as suas classificações legais. Afinal de contas, vejo jatinhos e helicópteros circulando livremente com insígnias oficias e proteção judicial… mas desde que não carreguem dendê ou pinho sol, tá tudo certo…. pros brancos.

    * História lembrada pela querida amiga Luísa Saad, a quem também agradeço aquele “revisãozinha pro broder”.

  • Por que Rafael Braga não é um caso isolado

    Por que Rafael Braga não é um caso isolado

    Rafael Braga não é um caso isolado.

    Sua história integra o quadro estatístico do sistema carcerário brasileiro. O país possui a quarta maior população de detentos do mundo. São 622 mil presos, sendo 61,6% negros. Isso não é uma coincidência.

    De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) realizado entre 2005 e 2012, o número de jovens no sistema prisional brasileiro (56%) supera de maneira discrepante a proporção de jovens da população do País (21,5%). Somente no ano de 2012, a quantidade de detidos com idades entre 18 e 29 anos foi 2,5 vezes maior que a de encarcerados de outras faixas etárias.

    Se analisados os dados sobre cor e raça, verifica-se que, em todo o período analisado pelo estudo, existem mais negros presos do que brancos. A cada três presos no Brasil, dois são negros. A pesquisa também registrou que o crescimento da população carcerária nacional impulsiona o aumento da quantidade de negros presos.

    Outra informação alarmante revela que, em um sistema superlotado, 48% dos presos brasileiros recebeu condenação de até oito anos, sendo que 18,7% se enquadra no perfil que deveria cumprir penas alternativas de acordo com Código de Processo Penal. Essa realidade está relacionada a fatores como: alto número de indivíduos sob custódia do Estado aguardando julgamento, tendências punitivistas dos operadores da justiça criminal, falhas no exercício do direito de defesa e deficiências na função fiscalizadora do Ministério Público.

    Quando as pessoas deixam os presídios, o sistema carcerário continua a contribuir para a perpetuação da desigualdade racial pelo País. O gasto anual no setor é superior a 40 mil reais para cada um dos mais de 140 mil presos por uso e comércio de drogas e o déficit por ano soma mais de 6 bilhões de reais , pagos através de tributação . Com essa conjuntura, os maiores punidos serão novamente os negros, em sua maioria pobres e vítimas de um sistema que penaliza desproporcionalmente a população de baixa renda.

    A lógica nacional de encarceramento massivo e vertiginoso vai na contramão das políticas de países com as maiores populações de presos do mundo, como Rússia e Estados Unidos, que estão diminuindo suas taxas de detenções anualmente. Diante disso, em poucos anos, o Brasil poderá ser o país com o maior número de encarcerados do planeta.

    Em evento promovido pela campanha #30DiasPorRafaelBraga e que discutiu o encarceramento massivo no País, o professor Humberto Barrinuevo Gabretti, advogado criminalista com foco em direito penal econômico, revelou que há um déficit de 250 mil vagas dentro do sistema prisional brasileiro e que, atualmente, os presídios estão abrigando o dobro de sua capacidade.

    “Esses números vão ao encontro ao caso do Rafael Braga. O sistema não escolhe aleatoriamente as pessoas que farão parte dele e, apesar de não ser declarado, tem como função realizar o controle dessa população. É um erro achar que os problemas do Brasil se resolverão a partir de repressão”, afirmou.

    Casos como os de Rafael Braga, condenado pela primeira vez em 2013 sob a acusação de porte ilegal de Pinho Sol, e que hoje responde por tráfico de drogas (0,6 grama de maconha e 9,3 gramas de cocaína), continuam acontecendo. Não dão nome, a população negra padece da invisibilidade ao não ter essa pauta como prioridade na agenda da esquerda brasileira, o Estado segue esmagando de cima para baixo e não da esquerda para direita. Os movimentos negros entendem a urgência e clamam por: Primeiramente, liberdade para Rafael Braga!

     

  • Ato em solidariedade a Rafael Braga

    Ato em solidariedade a Rafael Braga

    “Povo negro lindo é povo negro forte! Que não teme a Luta; que não teme a Morte!” Por Rafael Braga!

    Nesta segunda, 24 de abril, foi realizado na Avenida Paulista, um Ato-Vigília em solidariedade a Rafael Braga, condenado no último dia 20 de abril a 11 anos de prisão  por suposto trafico de drogas e associação para o tráfico. O Ato político é um entre tantos outros que acontecem no Brasil, em universidades e espaços públicos.

    A concentração começou a partir das 18h00 no MASP. Os organizadores entre eles Mães de Maio, Frente Alternativa Negra, Agenda Preta, Contra o Genocídio negro e UNEafro Brasil,  contaram com um carro de som que era aberto a todo negro que quisesse falar em nome de algum coletivo ou por si mesmo. Mas o ato não se deu apenas no âmbito do discurso, contando com performances de um coletivo de jovens negros que denunciavam o encarceramento e o genocídio da juventude negra.
    Além de representantes e militantes de diversos coletivos do movimento  negro, inúmeras pessoas não vinculadas a nenhuma organização estiveram presentes com velas e cartazes. Nota-se que o ato foi inteiramente protagonizado por homens e mulheres negras de diversas gerações. A denúncia à violência estatal foi uníssona, mas houve espaço para a diversidade de ideias durante as falas. As principais falas pontuaram como o caso de Rafael representa o estado da justiça no Brasil: seletiva, racista e classista, justificado por meio da guerra às drogas. Muitos deram testemunhos de ações violentas que passaram na mão da polícia militar.
    A marcha seguiu de forma organizada e combativa até a frente do Escritório da Presidência da República em São Paulo, que fica em frente ao metrô Consolação, na Avenida Paulista. O objetivo seria exigir providências  do Governo Federal em relação aos abusos cometidos pela PM. O fim da Polícia Militar era exigida em gritos de ordens entoados ao longo do ato.
    Essa mesma Polícia Militar que  acompanhou a vigília, inicialmente observando e filmando as movimentações do ato, acompanhando de longe o caminho e, finalmente, esperando os manifestantes no final do ato. Não causou espanto que estivessem prontos para iniciar mais um daqueles massacres tão comuns a um estado que reprime qualquer forma de democracia que supere os limites burgueses.

    O ato teve fim na frente do escritório com a simbólica ação de deixar os cartazes e velas em frente a porta de entrada, esperando que assim a voz de muitos, dessa vez, não fosse silenciada pelas autoridades.

  • RAFAEL BRAGA: QUANDO A JUSTIÇA MATA A JUSTIÇA!

    RAFAEL BRAGA: QUANDO A JUSTIÇA MATA A JUSTIÇA!

      O Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, na pessoa do magistrado Ricardo Coronha Pinheiro, condenou Rafael Braga a 11 anos e três meses de reclusão e ao pagamento de R$ 1.687 (mil seiscentos e oitenta e sete reais) por tráfico de drogas e associação para o tráfico. A sentença foi publicada no dia 20 de Abril de 2017, mas ainda não transitou em julgado (ainda está no prazo para apresentação de recurso contra a sentença condenatória), ou seja, não vamos tratar Rafael como culpado, conforme nos garante a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LVII (cinquenta e sete), que afirma que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória“. As circunstâncias e algum senso de “justiça” nos permitirão manter esta postura, ainda que a condenação seja confirmada, conforme se pretende afirmar neste texto.

      A leitura da sentença penal fornece os elementos de sua própria contradição. Por isso, citaremos aqui alguns trechos da decisão do juiz. A análise será feita em três partes (a Terra, o Homem e a Luta), em franca alusão ao livro “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Mais uma vez leremos sobre o conflito entre forças de repressão e gente que só deseja viver a vida sem fazer ou sofrer mal.

    A TERRA

      Brasil. Estado do Rio de Janeiro. Cidade do Rio de Janeiro. Bairro da Penha. Comunidade da Vila Cruzeiro. Rua 29. Local conhecido como “Sem Terra”. Vai ficando menos turístico conforme se aprofunda na geografia do local: o país é menos “tropical” e a “cidade é menos maravilhosa” naquele canto em que Rafael Braga foi torturado e preso por policiais militares.

      “Sem Terra” é uma denominação que não conhecemos a origem, mas representa dois fatos de máxima importância para compreender a relevância da condenação de Braga.

                – O direito interno é inerente ao território. A isto chamamos jurisdição. Não se pode falar em Estado e aplicação de leis estatais sem a delimitação de um território. Não se pode aplicar (via de regra) leis brasileiras fora do Brasil. Um hipotético lugar “sem terra” é um lugar “sem lei” que possa ser aplicada.

                – Ser “sem terra” é ser desprovido de propriedade privada. A opressão de classe se dá sobre aqueles que são despossuídos. O capitalismo impôs a confusão entre propriedade e riqueza.

      Em suma, não é de se estranhar que este lugar – SEM TERRA – seja cenário de [I] aplicação de medidas de exceção como as que ocorreram com Braga (tortura; acusação falsa; racismo institucionalizado) que, assim como os moradores da região [II], é um pobre sem propriedade que lhe garanta alguma riqueza. Ali, no “Sem Terra”, o direito se revela tão somente como instrumento de opressão de classe [e raça].

      Na sentença, a questão do local foi levantada mais de uma vez como “fundamento” para que o juiz pudesse condenar Rafael Braga, conforme se pode ler:

     

    Registre-se que a localidade em que se deu a apreensão do material entorpecente de fls. 12 e 13 (vide laudo de exame de entorpecente às fls. 99/100), mais precisamente na região conhecida como “sem terra”, no interior da Comunidade Vila Cruzeiro, no Bairro da Penha, nesta cidade, é dominada pela facção criminosa “Comando Vermelho”, conhecida organização criminosa voltada a narcotraficância.

    (…) segundo relato dos policiais que efetuaram a prisão do réu e a apreensão do material entorpecente, o local é conhecido como ponto de venda de drogas. (grifo nosso).

               

     

       

     

      Em outras palavras, o que o juiz diz é: se não estivesse na região “sem terra”, não teria sofrido a condenação por tráfico de drogas. Rafael Braga não foi acusado por ter sido flagrado comercializando maconha ou cocaína, mas por estar no local – vizinhança de sua casa – que se atribui à traficância, e não à existência de homens e mulheres que por ali transitam no caminho de casa, trabalho, estudo ou lazer.

      Não se aceita que o acusado estivesse lá para comprar pães na padaria (conforme versão de Rafael) e não para vender drogas (conforme versão dos PMs e do MP). Nenhuma outra forma de comércio poderia ser reconhecida pelo juíz. Todo mundo “sabe” da suposta existência do Comando Vermelho na região, mas ninguém fez nada contra a organização em si. Melhor ir para cima de pequenos traficantes do que tentar desmantelar um esquema que corrompe desde policiais a políticos.

    O HOMEM

      Um juiz: Ricardo Coronha Pinheiro. Quatro testemunhas de acusação: Policiais Militares Pablo Vinicius Cabral, Victor Hugo Lago, Farley Alves de Figueiredo e Fernando de Souza Pimentel. Um morador sem nome ou existência comprovada. Um réu: Rafael Braga.

      Dentre tantos casos de injustiças cometidas pelo aparato penal brasileiro, vale lembrar o porquê do nome de Braga se destacar: ele foi o único condenado por supostos crimes cometidos por manifestantes durante os atos de 2013. À época foi acusado de portar explosivos, que na verdade eram produtos de limpeza. Uma acusação tão absurda quanto a afirmação que você pode explodir sua casa enquanto limpa a privada do seu banheiro.

      O homem em questão (velho conhecido da repressão política e social do Rio de Janeiro) é negro e também pobre, e sofre como negro e pobre. É muito mais que experimentar a opressão cotidiana do racismo e a desigualdade de classe. Ele sofre algo que eu e a maior parte daqueles que nunca foram acusados de crimes que não cometeram jamais sofremos. O sentimento de injustiça é acompanhado de consequências objetivas: perda da liberdade e condenação a pagamento de multa.

      Outro homem, o Juiz, fundamenta quase toda a sua decisão apenas em testemunho de policiais militares. Desconsidera o que foi dito pela testemunha da defesa, como se fosse mentira:

     

    Embora a testemunha Evelyn Barbara (fl. 194) tenha afirmado em seu depoimento que o réu RAFAEL BRAGA foi vítima de agressão por parte dos policiais militares que o abordaram, fato este também sustentado pelo acusado quando interrogado neste Juízo (fl. 250), o exame de integridade física a que se submeteu o réu RAFAEL BRAGA VIEIRA não constatou “vestígios de lesões filiáveis ao evento alegado”, consoante laudo de fl. 136.

       

     

     

     

      Talvez, o senhor Coronha, que hoje é juiz, quando universitário deva ter faltado às aulas de criminalística para saber que a tortura nem sempre deixa vestígios. Evelyn, por ser quem é (moradora do “Sem terra”), talvez não tenha a abstrata investidura de “verdade” conferida ficcionalmente a agentes estatais, como se estes não tivessem ideologias, preconceitos e interesses materiais.

      Devemos nos perguntar sobre mais um homem, que talvez não seja um homem, mas tão somente o deus ex machina de um teatro de mentiras montado para incriminar um sujeito: o “morador“. Sem nome, é aquele que supostamente indicou os policiais até o ponto de traficância que, por sua vez, era conhecido pelos policiais.

     

    Narrou a testemunha policial militar Pablo Vinicius Cabral (fl. 195) que estavam em patrulhamento de rotina, com intuito de garantir a segurança de trabalhadores que implantavam blindagem no posto policial, na Comunidade da Vila Cruzeiro, quando um “morador” foi até a guarnição policial informar que havia um grupo de pessoas comercializando drogas nas proximidades.

               

     

      E já que falamos da imputação de crime de associação para o tráfico, onde estão os associados? Quais indícios de autoria para a associação com este fim? Segundo o juiz, o conteúdo da embalagem supostamente encontrada com o acusado e as pessoas que teriam corrido quando os policiais chegaram dão conta desta acusação… Nada mais vago!

     

    No caso presente a posse do material entorpecente (maconha e cocaína) embalado em saco plástico (vide laudo de exame de entorpecente de fls. 99/100), fracionado, inclusive, contendo inscrições “CV”, que sabidamente destinava-se à venda, evidencia a estabilidade do vínculo associativo com a facção criminosa “COMANDO VERMELHO” que controla a venda de drogas no local dos fatos.

        Ademais, com o réu houve a apreensão de um rojão (fl. 17), sendo certo que no momento da prisão em flagrante do réu RAFAEL BRAGA, conforme relato dos próprios policiais neste Juízo, havia inúmeros elementos que se evadiram.

        Dessa forma, restou inequívoca a estabilidade do vínculo associativo para a prática do nefasto comércio de drogas, sendo certo que a facção criminosa “Comando Vermelho” é quem domina a prática do tráfico na localidade conhecida como “sem terra”, em que o réu foi preso, situada no interior da Vila Cruzeiro.

        Por outro lado, a regra de experiência comum permite concluir que a ninguém é oportunizado traficar em comunidade sem integrar a facção criminosa que ali pratica o nefasto comércio de drogas, sob pena de pagar com a própria vida.

        Portanto, não poderia o réu atuar como traficante no interior da Comunidade Vila Cruzeiro, sem que estivesse vinculado à facção criminosa “Comando Vermelho” daquela localidade.

                           

     

     

     

      Pelo visto, o juiz tem perícia nas “leis anti-estatais de regulação de comércio de drogas”.

    A LUTA

      “O problema é antigo”.

      Assim começa a terceira parte d’Os Sertões, de Euclides da Cunha. A guerra às drogas e o encarceramento em massa de negros é um problema antigo no Brasil!

      Aqui não pretendo fazer mais nenhuma análise dos vícios de um processo que visa “coibir” o venda de entorpecentes para viciados. A “guerra às drogas”, que é a paz de grandes empresários do ramo de drogas e “segurança”, e uma afronta a direitos fundamentais neste país é absurda por si mesma. Enquanto se atribuir à questão das drogas à questão da segurança e não da saúde pública, milhões continuarão sendo acusados e mortos. Mas quem tem poder para mudar, simplesmente não se importa.

      Mais injusto que o processo é a legislação que lhe dá base no direito material: vender drogas enquanto conduta criminosa. Ainda que o juiz fosse exímio cumpridor da lei, uma injustiça teria sido cometida. Ainda que Rafael fosse o traficante que disseram que ele é, uma injustiça ainda assim teria sido feita.  Em 1842, o governo da Renânia, aprovou a “Lei da Repressão ao Roubo de Lenha” que impedia trabalhadores pobres, sujeitos ao frio extremo, de recolherem lenhas e gravetos caídos no chão, uma tradição nunca antes contestada. Supomos que Rafael Braga tivesse vivido naquela época e local, e tivesse sido acusado de apanhar lenha. Não importa se acusação era verdadeira ou não, ou se o juiz aplicou direito o Direito: a injustiça existia pela própria criminalização da conduta. Ou seja, o crime muda, mas o criminoso tem sempre a mesma cara: a de quem a justiça tem — interesse  —  em prender.

      Por hoje defendemos Rafael Braga, mas mantenhamos nossa posição pelo fim da, genocida e repressiva, Guerra às Drogas.

  • Um valentão no STF

    Um valentão no STF

    Eike Batista, outrora um dos homens mais ricos do Brasil e do mundo, foi preso na segunda-feira (30) por conta da Operação Lava Jato, acusado de pagar propina para o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Neste momento, ainda está preso no complexo penitenciário de Gericinó, Bangu, RJ. A prisão causou alvoroço no país, em alguns noticiários mundo afora, nas principais redes de notícias e nas redes sociais. Mesmo com as impressionantes e hollywoodianas prisões da Operação, quem imaginaria ver Eike de cabeça raspada, vestido de presidiário junto de outros presos tão comuns? Justiça, afinal?

    Empresário Eike Batista deixa a sede da PF, na região portuária da cidade, após depoimento na Delegacia de Combate ao Crime Organizado e Desvio de Recursos. foto Fernando Frazão/Agência Brasil/fotospublicas.com

     

    O que se espera agora é que o ex-empresário e novo preso faça uma delação premiada, delate alguns de seus antigos aliados, muitos dos quais importantes figurões do cenário politico, para que assim sua desagradável estadia dentro dos muros de Bangu seja rápida ou para que passe logo para o regime semiaberto. Dependendo de quantos e de quem ele delatar, talvez ele possa até ter a pena mudada para prisão domiciliar…

    Nas palavras do próprio Eike, a Lava Jato está passando o país a limpo. Quem sabe o que Eike quis dizer? Só ele mesmo, em companhia de Deus. Para os meros mortais é bom lembrar que, com base nos dados que existem, a Lava-Jato é apenas uma ação política, que limpa o que interessa e arquiva o que não convém. Mas, deixemos as considerações jurídicas para os juristas. O que mais espanta na prisão de Eike não é a seletividade das instituições brasileiras, mas a confirmação de que não se odeia o crime, mas a cor e a condição social de quem o comete.

    O Brasil é o país do linchamento, do “bandido bom, é bandido morto” – mas só para negros e pobres. Virou clichê fazer essa análise, mais repetido que isso só mesmo o número de jovens, negros e pobres que são mortos, presos e injustiçados todos os dias e que não recebem apoio ou chance de se defender como Eike recebeu.

    Nada menos do que 42% dos presos (232.244 almas) estão atrás das grades sem condenação (sem julgamento), como aponta o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional). Muitos desses compartilham uma característica em com Eike: não têm ensino superior completo. Todos pudemos acompanhar a preocupação dos advogados de Eike com a qualidade do presídio para qual seria levado.

     

    fonte: (http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/relatorio-depen-versao-web.pdf)

     

    O novo preso está junto com o 1% que tem ensino superior incompleto, sendo assim não tem direito a ficar no regime especial, concedido para quem tem diploma universitário, membros das forças armadas, ministros, governadores e juízes.

    Agora vem a grande pergunta, qual a diferença entre o criminoso Eike de seus pares de cela? As características que o diferenciam da maioria dos presos brasileiros são duas em especiais: não é negro e não é pobre.

    A lei de Drogas, que passou a vigorar em 2006, em vez de ajudar, produziu um efeito reverso e aumentou a superlotação nos presídios, uma vez que deixa para o juiz a responsabilidade de decidir entre as penas alternativas (para aqueles considerados usuários) ou a prisão (para aqueles considerados traficantes), sem critérios claros (quantidade, redes de contato, organização). Isso acaba por tornar mais fácil para o sistema judicial criminalizar os estereótipos de criminoso: o pobre e negro.

    Mas a criminalização da pobreza não se restringe aos crimes ligados às drogas. Enquanto os casos relacionados a tráfico encarceram 25% dos Homens e 63% das mulheres, o segundo maior motivo de prisão para os homens é roubo (21%) e para mulheres furtos(8%) –crimes em grande parte decorrentes da pobreza. E a natureza racista do judiciário brasileiro fica em evidência quando se percebe que 67% dos presos são negros e 31%, brancos. Peguemos o caso de Thor Batista, filho de Eike, e Rafael Braga de exemplo.

     

    O primeiro foi acusado de matar um ciclista (Wanderson Pereira dos Santos) em 2012, em um caso de grande repercussão, cheio de idas e vindas, anulações de provas (houve um laudo rejeitado pelo TJ-RJ que atestava a velocidade acima da permitida) e afastamento, pelo TJ-RJ, do perito que produziu o laudo técnico que apontava como causa do acidente a velocidade alta em que estava Thor. Uma juíza da primeira instância pediu uma investigação sobre Eike e Thor, por suposto pagamento para o bombeiro que socorreu a vítima, mas a investigação não ocorreu. O fim do caso foi em 2015 com a absolvição de Thor.

    Já o segundo, Rafael Braga negro e morador de rua, foi acusado de portar material explosivo durante as manifestações de 2013, também no Rio de Janeiro. O laudo técnico apresentado para o juiz atestava que o material analisado tinha pouco potencial explosivo. Rafael explicou por que: tratava-se de duas garrafas de desinfetante (!!!). Mas, essa constatação não foi o suficiente para o juiz. O menino negro tinha, na ficha, um registro antecedente por roubo e acabou preso. O caso ganhando relevância nacional por conta da relação com as manifestações, e foi usado para expor a perseguição seletiva da polícia.

    Outros casos interessantes para comparação são os do ex-médico Roger Abdelmassih e de Amarildo. Enquanto um tem seu caso analisado pela suprema corte do país, o outro nem tem a chance de ser criminalmente apontado –é apenas assassinado por forças estatais.

    O médico branco e rico, famoso por ser especialista em inseminação artificial, foi condenado formalmente em 2010 por estupro contra 37 mulheres. A sua pena foi estipulada em 278 anos. Existe também outra investigação pelo estupro de mais 26 mulheres. As acusações são de pacientes, que relatam os abusos durante tratamentos –muitos, inclusive, ocorreram enquanto estavam sedadas.

    Mas, mesmo com a condenação, Gilmar Mendes, presidente do STF na época, lhe concedeu um habeas corpus por não considerá-lo perigoso. Foi o que bastou para ele fugir do país, sendo preso novamente somente em 2014.

    Já Amarildo, negro e pobre, não chegou a lidar com o sistema judicial. Foi apreendido por policiais enquanto estava em um bar em julho de 2013 e levado para a sede da UPP da região, na favela da Rocinha. Depois de torturado na sede da UPP, sumiu e até hoje seu corpo não foi encontrado. Amarildo tinha 47 anos, uma mulher e seis filhos e trabalhava como pedreiro.

    Assim é a Justiça no Brasil. Mas o país, com a quarta maior população carcerária do mundo (atrás apenas de EUA, Rússia e China), para muitos ainda é o país da impunidade. Diz-se que se pune pouco o bandido. Sendo assim, o presidente golpista, com uma dose de cinismo e uma boa pitada de populismo, aproveita a misteriosa morte de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) para indicar Alexandre de Moraes, antigo homem de ferro do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). Moraes, o filiado ao PSDB que é inimigo declarado dos direitos humanos.

    Ou não?

    Como secretário de Segurança Pública de São Paulo, ele reprimiu com violência internacionalmente repudiada diversas manifestações políticas que estavam em desacordo com a agenda do governador, inclusive de estudantes secundaristas que se organizavam contra propostas do governo. Coincidentemente, durante sua chefia da polícia paulista, diversas chacinas ocorreram, muitas ligadas a grupos de extermínio da PM, como as chacinas de Itapevi, Carapicuíba e Osasco, na qual seis pessoas morreram e uma ficou ferida. Seguiu-se mais uma chacina na qual dezessete foram mortas e seis feridas, novamente em Osasco e Barueri. Vale lembrar que a PM-SP durante a gestão de Moraes manteve nas nuvens o índice de letalidade policial.

    Já como ministro da Justiça, Moraes tornou prioritária a guerra às drogas, e o controle fronteiriço, atuando em direção oposta à preconizada pelo mundo, que se dá conta da falência da criminalização das drogas, política de segurança pública que só serve para encarcerar parcelas vulneráveis da população. Como ficou claro em seu fantasioso e propagandístico  Plano Nacional de Segurança Pública lançado como resposta aos Massacres nos presididos.

    Foi durante a gestão de Alexandre de Moraes que explodiu o caos no sistema prisional, neste começo de 2017. Sua primeira providência foi negar o envolvimento de facções. Foi desmentido pelos fatos. O programa de segurança pública de Alexandre de Moraes não se preocupa com a discriminação por parte da Justiça. Não se preocupa com o encarceramento em massa. Quer até reforçá-lo. Ele é o homem certo para a linha preconceituosa e punitivista do governo.

    A Justiça deveria tratar todos como iguais, mas é impossível imaginar isso em um país no qual desejar a morte de Eike, rico e branco, causa (e deve mesmo) calafrios, mas as cenas de guerra nos presídios são acompanhadas de exortações do tipo “que venham mais”, faladas por pais na frente de crianças. Eike não é bom morto. Ele pode ser um bandido, mas para que matá-lo, além da torpe e desumana vingança? Então, ainda fica a dúvida. Qual a diferença entre um empresário que subornou um governador e um garoto qualquer, que, para muita gente, se não foi morto pela polícia, deveria ter sido?