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  • Desmontamos a farsa que incriminou Preta e os movimentos de moradia

    Desmontamos a farsa que incriminou Preta e os movimentos de moradia

    Por Santiago Gómez, especial para os Jornalistas Livres

    Uma denúncia anônima copiada de um post das redes sociais. Reconhecidas lideranças de movimentos sociais com CNPJ chamadas de “pessoas travestidas de lideranças sociais”. Transcrições de grampos no processo, nos quais as lideranças contam que evitaram o ingresso do PCC nas ocupações enquanto a polícia afirma que os movimentos estão ligados ao crime organizado.

    A polícia e o Ministério Público pediram a prisão de Carmen Silva do MSTC por acusações pelas quais já foi processada e inocentada. É uma violação do princípio legal de que uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pelo mesmo fato. Há acusações de que os movimentos de moradia obrigam as pessoas a trocar o título de eleitor para votar no PT. Mas o processo não menciona que é preciso informar o documento para ter acesso aos programas sociais estaduais e municipais. Relatórios de inteligência da polícia afirmam que as ocupações representam um risco para a saúde. E esses mesmos relatórios afirmam que investigadores nunca conseguiram ingressar nas ocupações. Fica difícil não acreditar que se trata de um processo de criminalização dos movimentos sociais?

    Jornalistas Livres teve acesso ao inquérito pelo qual foram pedidas as detenções de 19 pessoas, às quais são parte de movimentos sociais diferentes. A maioria não tem ligação nenhuma com o Edifício Wilton Paes de Almeida que desabou em maio do ano retrasado e era organizado por Ananias Pereira dos Santos, do Movimento Social de Luta por Moradia (MLSM).

    Conforme assinado pelo delegado Newton Fugita, em 4 de maio de 2018, instaurou-se o inquérito policial “tendo em vista os fatos que chegaram ao meu conhecimento por meio de mídias e reportagens referentes à invasão ilegal de prédio que veio a ruir no centro desta municipalidade”. As primeira 15 páginas do processo são cópias de matérias de jornal. Na folha 16, foi incorporada a famosa carta anônima sobre a qual falou o delegado na coletiva de imprensa que brindou após as detenções de Sidney Ferreira Silva, Janice “Preta” Ferreira Silva, Edinalva Silva Franco e Angélica dos Santos Lima.

    A “missiva endereçada à Delegacia Geral da Polícia – DGP, cujo autor refere fatos relacionados à invasão do Edifício Wilton Paes de Almeida”, é a impressão de uma postagem realizada em redes sociais. Tanto é assim que quem entregou a nota esqueceu de apagar o trecho “este post está sendo publicado às 14:34”. Na mesma carta, o MLSM (Movimento de Luta Social por Moradia) é acusado de expulsar as pessoas que atrasam no pagamento da contribuição, de trancar as portas das ocupações a partir das 19h. Quem copiou o post das redes, imprimiu e o entregou para a policia com um trecho escrito à mão: “isto ocorre em todos os prédios invadidos”.

     

     

    O delegado geral da polícia, o adjunto Waldir Antonio Covino Junior remeteu a missiva para o Departamento Estadual de Investigações Criminais – DEIC, e o diretor do DEIC, Emygdio Machado Neto, encaminhou o expediente à Divisão de Investigações Gerais – DIG. O delegado desta repartição, Newton Fugita, por sua vez enviou um ofício à Secretaria de Habitação da Prefeitura solicitando informações sobre os prédios ocupados na cidade de São Paulo. Toda essa burocracia do Estado, vale ressaltar, foi acionada pela cópia de uma postagem nas redes sociais.

    51 vistorias e 3 interdições da Prefeitura

    No processo, está anexado o chamado “Relatório de Investigação”, elaborado pela equipe da polícia “Venus 54”. Trata-se de um compilado de 21 páginas – 18 delas de fotos das fachadas de prédios – em que os policiais afirmam que nas ocupações visitadas “famílias inteiras residem sem qualquer norma de segurança, sem condições adequadas no tocante a limpeza, higiene, ainda expostos a todos os riscos nocivos a saúde pessoal de cada pessoa ali residindo”.

    Vale comparar a conclusão dos investigadores com um outro relatório mas feito pela Prefeitura a partir de visitas técnicas em 51 ocupações realizadas entre os dias 7 de maio e 14 de julho de 2018. O informe “Situação das ocupações na cidade de São Paulo”, de 34 páginas, é assinado por um grupo executivo formado por representantes das secretaras de Direitos Humanos, Assistência Social, Infraestrutura e Obras, Habitação, Segurança Urbana e GCM (Guarda Civil Municipal), representantes de universidades definidas pela sociedade civil, movimentos de moradia, Ministério Público e Tribunal de Contas. A conclusão é bem diferente da polícia: “de acordo com os dados, as condições físico-estruturais dos imóveis apresentam-se, de modo geral, satisfatórias, não se identificando a incidência de patologias em nível crítico que comprometam a função estrutural das edificações”. E tem mais.

    Segundo a Prefeitura, “a vinculação com Movimentos de Moradia apresenta-se como facilitador para a implementação de ações de requalificação de segurança dado o maior grau de organização identificado nestas ocupações”. Apenas três foram interditadas. Vale lembrar: 51 foram visitadas.

     

    Além da falta de competência para uma equipe da polícia afirmar tamanhos riscos, cabe até duvidar se efetivamente foram feitas as diligências encomendadas já que as fotos de todos os prédios incorporadas no relatório foram tiradas do Google Maps. Outra equipe responsável citada no inquérito, a Vênus 53-A, afirmou que, de fato, sequer conseguiu ingressar nas ocupações.

    O relatório da equipe Venus 54 é o último anexado ao inquérito antes do mandado de prisão temporária solicitado pelo delegado André Vinicius Alves Figueiredo, da 3º DIG/DEIC, no dia 10 de junho de 2019. Nele, afirma-se que “pessoas travestidas de lideres de movimento de habitação, de algum modo lucravam através de cobranças de ‘taxas’ ‘alugueis’ para que as pessoas realmente necessitadas pudessem usufruir da moradia invadida”. De acordo com os policiais, são indivíduos “extremadamente convincentes, que lideram pessoas com promessas falsas de habitação gratuita, porém quando as pessoas aderem a estas ordens são obrigadas a pagar mensalidades em forma de alugueis”. Essa afirmação é contraria a todos os depoimentos das testemunhas. Nenhuma das lideranças disse que morar nas ocupações seria de graça e todas as testemunhas reconhecem que deviam pagar uma  contribuição para a manutenção do prédio.

    Seguindo a teoria penal das convicções e não das provas, após o relatório da equipe Vênus 54, o delegado Alves Figueiredo, pediu mandados de prisão, em letras maiúsculas, para “ADRIANA, ELIZETE, LILIANE, WELITA, ELISABETE, JANICE, EDNALVA, SIDNEY e ANGÉLICA”, “sobre os quais tenho plena convicção da autoria dos delitos de extorsão e associação criminosa, em virtude do robusto conjunto probatório coligido dos materiais até aqui, inseridos neste inquérito”.

    Quais são esses materiais? O mesmo delegado responde “no curso das investigações foram ouvidos moradores de diversos prédios ocupados pelos movimentos”. Não há mais que testemunhas.

    Das acusações

    Em linhas gerais, o relato da acusação contra os movimentos sociais é o seguinte: todos eles seriam parte de uma organização criminosa com o objetivo de extorquir as pessoas pobres, cobrando por viverem nas ocupações, as quais não teriam condições mínimas de habitação. Além disso, as lideranças, quaisquer delas, obrigariam as pessoas a trocar de endereço para São Paulo para votar no PT e após a votação pediriam o comprovante. Segundo uma testemunha, até a líder Carmen Silva, do Movimento Sem Teto do Centro, teria acesso às urnas, que são eletrônicas!

    Mas, as próprias testemunhas protegidas que acusaram Carmen reconhecem que as ocupações são pintadas, que os moradores são responsáveis pela limpeza dos prédios, que há câmeras de segurança, que aqueles profissionais pedreiros ou encanadores colaboram nas obras, deixando os prédios “bem bonitinhos”, nas palavras de uma das testemunhas.

    Outra acusação é que os movimentos obrigavam os moradores a participar de atos pro Lula e Dilma. A quantidade de pessoas que se mobilizaram para pedir a liberdade de Preta, Sidney, Ednalva e Angélica provam que os movimentos não têm muita capacidade de obrigar as pessoas a se mobilizar. O MSTC, que reconheceu contar com cerca de 3 mil pessoas, não conseguiu reunir mais de 40 integrantes na porta da Delegacia quando as lideranças foram presas.

    Para que mudar o título de eleitor?

    Enquanto a Polícia e o Procurador afirmam que os movimentos obrigavam os moradores trocar o título de eleitor para votarem no PT, a realidade é que o título de eleitor é um dos documentos que, conforme informa a Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, serve para a inscrição no Cadastro Único. Ou seja, o credenciamento “para que as famílias de baixa renda possam acessar serviços, programas e benefícios sociais da Política de Assistência Social e outras políticas públicas dos Governos Municipal, Estadual e Federal”, como consta no site oficial da instituição. “Com o Cadastro Único, o governo fica sabendo quem são e como vivem as famílias, quais são as principais dificuldades que a família enfrenta e como pode melhorar as condições de vida dos cidadãos”.

    Então, é lógico que movimentos como o MSTC, que contam com a colaboração de assistentes sociais, sugiram aos moradores trocarem seu título eleitor. É lógico que nem a Polícia Civil nem a Polícia Federal nem os Procuradores fazem parte das famílias de baixa renda e desconhecem essas informações. Para eles, a mudança do título de eleitor é apenas uma operação com fins políticos.

    Quais vínculos com o PCC?

    Com base em uma interceptação telefônica, o delegado da 3º DIG/DEIC, André Vinicius Alves Figueiredo, afirma que Ednalva estaria envolvida com o crime organizado. A transcrição do áudio é contraditória a essa afirmação. O O texto literal da folha 530 do inquérito é:

    “No dia 23/10/2013, às 17h06m13s, a investigação observou uma ligação oriundo do terminal móvel (11) 9XXX-XXX5 (N.E: reservamos o número), uma uma mulher alcunhada de “net”, liga para a investigada Ednalva e diz que esta recebendo uma família, tratando-se de família do “coquinho” e que estavam na calçada e queria entrar na ocupação para tomar um banho. Edinalva explica que tal pessoa não tem boa índole e gosta de arruma confusão e diz, in verbis: ‘Ele chamou o P.C.C para mim… esse cara articulou pra tomar a ocupação da Carmem, depois para tomar a minha… esse cara morava no Marrocos, ele e o capeta na forma de gente. Em seguida ‘net’ passa o seu terminal móvel a pessoa alcunhada de ‘Shi’ e Edivalda menciona com o novo interlocutor, dizendo, in verbis: ‘Tentou tomar a ocupação de Carmem, tentou tomar minha ocupação, trazendo uns caras lá não o que do norte, sabe? … é… a família do Norte… uns caras que saiu da cadeia aí, e era desta facção família do norte”.

    No áudio fica claro que Ednalva quis evitar o ingresso de uma pessoa ligada ao PCC e essa pessoa tentou tomar a ocupação dela e da Carmen.

    Em entrevista à Rádio Brasil Atual, Preta Ferreira afirmou que ela e Carmen foram ameaçadas pelo PCC e que a polícia se esforça para afirmar que os movimentos de Ednalva e Carmen têm algum tipo de envolvimento com o crime organizado. Cabe salientar que o Delegado, na coletiva de imprensa após as prisões das quatro lideranças, afirmou que a polícia não achou nem drogas nem armas quando foram feitas as buscas e apreensões.

    Carmen inocente

    Carmen Silva já foi acusada por extorsão e inocentada. Os depoimentos contra ela foram exatamente os mesmos, acusando-a de extorquir moradores, de ameaças, mas todas as testemunhas reconheceram as reformas feitas nas ocupações. O juiz na sentença afirmou que “ainda que tivesse a acusada agido de forma incisiva e ríspida contra as vítimas Alfa e Beta, em razão do comportamento dessas na ocupação e também da recusa em cumprir decisões proferidas em assembleias, seguindo previsão estatutária, suas condutas não podem ser, de forma alguma, equiparadas ao grave crime de extorsão”.

    Enquanto foram pedidas as prisões de 19 pessoas, na base de acusações orais, sem prova nenhuma, o juiz que inocentou Carmen sentenciou: “A prova oral produzida em juízo é frágil e insuficiente para demonstrar que a acusada se apropriou indevidamente de valores arrecadados das vítimas ou outros ocupantes do edifício. As vítimas e testemunhas de acusação apenas acusaram Carmen, mas não trouxeram nenhum elemento concreto de prova. Pelo contrário, a defesa anexou aos autos notas fiscais e ata de assembleia demonstrando a destinação das contribuições individuais que cada família deveria pagar para suportar as despesas mensais do edifício. E mais, as acusações narradas e trazidas aos autos, sob o crivo do contraditório, mostraram-se inconsistentes e contraditórias”.

    Carmen Silva já foi julgada e inocentada pelas mesmas acusações e a lei proíbe uma pessoa ser julgada duas vezes pelo mesmo fato. Não existem provas contra Preta, Sidney, Ednalva e Angélica, mais que as testemunhas. Todas elas tinham direito de acompanhar o processo em liberdade, nunca recusaram se apresentar quando assim a justiça solicitou. É difícil acreditar que os movimentos obrigavam os moradores a participar de atos, quando hoje com as suas lideranças presas não têm um amplo poder de convocatória. Afirmar que Carmen podia saber em quem votaram os moradores, é desconhecer como funcionam as urnas eletrônicas. Afirmar que as ocupações não tem condições mínimas, sendo que tiveram vistorias da Prefeitura e não foram interditadas, só prova o que o grupo Vênus da polícia afirmou: nunca conseguiram ingressar nas ocupações para conhecer a realidade das mesmas.

  • Promotor Conserino pede prisão de dirigentes do movimento de moradia de SP

    Promotor Conserino pede prisão de dirigentes do movimento de moradia de SP

    Na última sexta-feira, dia 11 de julho, o promotor de justiça criminal Cassio Roberto Conserino, do Ministério Público do Estado de São Paulo, denunciou à Justiça que 19 diferentes lideranças ou membros de movimentos de luta por moradia, entre os quais Carmen Silva Ferreira e Preta Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), fazem parte de uma suposta “organização criminosa”, inclusive com ligações com a facção PCC. Não dava para esperar nada diferente de Conserino.

    Em documento sigiloso a que os Jornalistas Livres tiveram acesso, o promotor afirma que os membros das diversas ocupações da cidade “associaram-se entre si” de maneira ordenada, em vários grupos, com divisão de tarefas, ainda que informalmente, “com o objetivo de obter direta e indiretamente vantagens de cunho econômico, mediante a prática de incontáveis extorsões”.

    Cassio Roberto Conserino, autor da denúncia, foi um dos promotores que apresentaram a denúncia criminal sobre o tríplex atribuído ao ex-presidente Lula, transformando-o em réu. Anticomunista militante, em março desse ano, Conserino foi condenado a pagar indenização de R$ 60 mil por danos morais a Lula por causa de um post no Facebook em que se referia ao ex-presidente como “encantador de burros”, expressão que o juiz Anderson Fabrício da Cruz, da 3ª Vara Cível de São Bernardo do Campo, em São Paulo, disse tratar-se “de conteúdo ofensivo, pejorativo e injuriante”, conforme “deveria ser do conhecimento de um experiente integrante do sistema de Justiça”.

    No caso dos movimentos de moradia, o promotor Conserino baseou a denúncia no inquérito policial que tinha como propósito investigar responsabilidades pelo incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por pessoas sem casa, no dia 1º de maio de 2018. Na tragédia, sete pessoas perderam a vida. O Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), dirigido por Ananias Pereira dos Santos, era quem coordenava aquela ocupação.

    O problema é que o inquérito policial e depois a denúncia do promotor Conserino, em vez de apurar as irregularidades que por ventura existissem no prédio sinistrado, resolveram mover uma cruzada contra todos os movimentos de moradia que atuam no centro da cidade de São Paulo.

    Estariam a serviço da especulação imobiliária? Dos proprietários de imóveis vazios que ficam anos e anos sem pagar IPTU, cheios de lixo, focos da criminalidade, de ratos e doenças?

    Conserino denuncia várias lideranças, entre as quais, como dito acima, as lideranças do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), por supostamente extorquir, mediante violência, moradores pobres das ocupações. Se pelo menos tivesse se dado ao trabalho de andar alguns quarteirões entre o Fórum e a Ocupação 9 de Julho, dirigida por Carmen Silva Ferreira, o Promotor Anticomunista Militante Conserino teria se surpreendido com a organização, a limpeza, a habitabilidade de um prédio que até três anos atrás era apenas um depósito de lixo, doenças e ratos (fora os dependentes químicos que utilizavam o local para consumir drogas).

    O prédio já foi inspecionado pela Prefeitura e até premiado internacionalmente por sua atuação na solução do problema de moradia em São Paulo. Mas, para o Promotor Anticomunista Militante Conserino, todos os gestores e movimentos seriam, como diz o povo, “farinha do mesmo saco”.

    Depoimento de Chucre sobre Carmen
    Depoimento de Chucre sobre Carmen

    Ocorre que os movimentos populares por moradia são diversos. O secretário de habitação de São Paulo, Fernando Chucre, sabe disso. À época do incêndio do Wilton Paes, por exemplo, declarou que aquele grupo que o coordenava “não participa da política habitacional, como os demais movimentos que, inclusive, são parte da solução desse problema”. E na semana passada, em depoimento aos Jornalistas Livres, afirmou sobre Carmen Silva: “Ela é uma mulher extremamente segura e envolvida com o movimento que administra. Eu tenho muito respeito por ela.” E não só.

    Chucre apontou que “o movimento de Carmen conseguiu o retrofit [reforma de imóvel antigo] para o Hotel Cambridge”. De fato, agora renomeado como Residencial Cambridge, o imóvel ganhou edital para financiamento da Caixa Econômica Federal, dentro do programa Minha Casa Minha Vida-Entidades. A obra segue sob severas e constantes fiscalizações do poder público. Importante dizer: ao contrário do que imaginam os críticos dos movimentos sociais por moradia, nada vem de graça. Todos os futuros moradores vão pagar pelo financiamento que, por sinal, já colabora com os impostos da cidade ao arcar com custos de IPTU, o Imposto Predial e Territorial Urbano.

    DEPOIMENTOS ANÔNIMOS

    A denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino é baseada em depoimentos anônimos e interceptações telefônicas que, coisa gravíssima, provam que havia discussões entre vizinhos! É isso o que o promotor cita à guisa de provar que todos os dirigentes dos movimentos de moradia extorquem dinheiro dos moradores “mediante grave ameaça e com o intuito de obter para si indevida vantagem econômica, a fazer alguma coisa, ou seja, pagar alugueres e outras verbas para entrar e permanecer em edifícios invadidos pelos grupos criminosos”. Carmen Silva Ferreira já foi acusada desse mesmo crime e foi inocentada em 2018, porque ficou comprovado que as pequenas contribuições pagas pelos moradores das ocupações que ela dirige (R$ 200 por mês de cada família) são revertidas em melhorias nos imóveis ocupados.

    Além disso, a denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino padece do vício de ser in-in (incompetente e inventiva). Por exemplo, diz que as ocupações são habitadas por “estrangeiros em sua maioria”, um erro crasso, sanável com meia hora de trabalho sério. Acusa o movimento de Carmen Silva Ferreira, o MSTC, de estar por detrás da ocupação do Cine Marrocos, fechada em 2016 depois de se terem encontrado armas e drogas no poço do elevador. Ali quem atuava era o Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS), mas a letrinha dissonante não incomodou o Promotor Anticomunista Militante Conserino. Carmen nunca nem sequer pôs os pés no Cine Marrocos. Se tivesse conversado com o delegado de polícia que atuou no Cine Marrocos e assina o inquérito sobre a moradia, o Promotor Anticomunista Militante Conserino teria evitado o vexame de confundir movimentos tão diferentes (ou será que esse é mesmo o propósito?). E há várias mentiras como essa na acusação, revelando, mais uma vez, o caráter persecutório das denúncias do Promotor Anticomunista Militante Cassio Conserino.

    Entre as 19 prisões pedidas pelo promotor, quatro já estão sendo cumpridas: a da  cantora, atriz e produtora cultural Preta Ferreira, formada em publicidade, do educador Sidney Ferreira, ambos do MSTC, e de Ednalva Silva Franco Pereira e Angélica dos Santos Lima, do Movimento de Moradia para Todos (MMPT). Todos negros e pobres.

    Para comentar a denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino, Jornalistas Livres entrevistaram Lúcio França, advogado que representa Carmen Silva, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro.

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    Jornalistas Livres — O senhor poderia comentar a denúncia contra Carmen Silva Ferreira e seus filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), apresentada no dia 3 de julho na segunda promotoria de Justiça Criminal Ministério Público pelo promotor Cassio Conserino?

    Doutor Lúcio França — É muito importante ir um pouquinho mais atrás, onde começou tudo isso. Houve um processo com as mesmas acusações contra Carmem Silva Ferreira em 2017. Nesse processo, houve uma investigação sobre esses mesmos fatos agora descritos na atual denúncia do promotor Cassio Conserino. Ou seja, investigou-se se Carmem Silva Ferreira cometeu atos de extorsão, cobranças indevidas, se ameaçou ou coagiu moradores das ocupações. Ficou comprovado que isso nunca existiu. Quando uma pessoa entra no movimento dirigido por Carmen, ela é orientada sobre as regras de conduta, os regulamentos e os procedimentos internos das ocupações dirigidas pelo MSTC. Por exemplo: não se admite violência doméstica de nenhuma forma; mães não podem deixar seus filhos trancados no apartamento e sair para trabalhar ou se divertir; todas as crianças são obrigadas a frequentar escolas; não se pode consumir drogas na ocupação; tráfico, nem pensar. As contribuições para a manutenção do prédio são decididas em assembléias e todas as famílias devem colaborar ou justificar eventuais faltas; há uma escala de limpeza dos andares e todas as famílias precisam contribuir com a higiene do espaço comum, e por aí vai. No processo que se iniciou em 2017, tudo isso foi juntado, e Carmen Silva Ferreira foi inocentada. Estamos assistindo agora a uma reedição daquele processo que ocorreu em 2017 e a denúncia atual do promotor de justiça Cassio Conserino cita “coincidentemente” contra a Carmen as mesmas testemunhas acusadoras que foram desqualificadas no processo que resultou na absolvição da liderança do MSTC.

    Jornalistas Livres — Quem são essas pessoas que acusam Carmen?

    Doutor Lúcio França — São dissidentes do MSTC, o movimento dos sem-teto do centro. São pessoas que queriam ocupar o lugar da principal dirigente do movimento, que nutriam por ela uma profunda inveja da liderança que ela conquistou com o movimento, e que se ligaram a pessoas inidôneas para acusá-la. É importante falar que Carmen é a liderança principal da Ocupação que se instalou no antigo Hotel Cambridge e que agora se encontra em fase de reforma para ser transformado moradia de interesse social, isso tudo com o financiamento da Caixa Econômica Federal. A história desse movimento de moradia acabou transformada no filme da premiadíssima diretora Eliane Caffé, “Era o Hotel Cambridge”, de 2016.

    Jornalistas Livres — Como o senhor avalia a prisão temporária pedida para Carmen Silva Ferreira e a prisão preventiva de seus filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira Silva?

    Doutor Lúcio França — É importante ressaltar que o promotor que atuou no primeiro processo chegou a pedir a prisão de Carmen por três vezes na primeira instância e foi recusado. Ele então foi à segunda instância e os desembargadores por unanimidade recusaram-se a prendê-la. Ao final, viu-se que a prisão não cabia mesmo, já que ficou comprovada a inocência de Carmen e ela foi absolvida. Quanto aos demais acusados do MSTC, os filhos de Carmen —Preta Ferreira e Sidney Ferreira—, é preciso dizer que Sidney nem mora mais em ocupações, tendo fixado residência em outra cidade na região metropolitana de São Paulo. Quanto a Preta Ferreira, ela nunca fez qualquer ameaça contra qualquer pessoa, morador de ocupação ou não. As pessoas que disseram terem sido ameaçadas por Preta estão mentindo e sabem disso. Aliás, na verdade, é bem o contrário o que se passou. Foi Preta Ferreira quem foi ameaçada, bem como toda a família de Carmen, por essa denunciante.

    Jornalistas Livres — Como se chegou, então, a essas prisões?

     Doutor Lúcio França — A nossa leitura é a seguinte: no meio desse primeiro processo contra a Carmen ocorreu a tragédia com o edifício Wilton Paes de Almeida (1º de maio de 2018), no Largo do Paissandu, centro de São Paulo. Trata-se de um antigo prédio da Polícia Federal que ficou abandonado por anos e acabou ocupado. Essa ocupação, entretanto, nunca fez parte do MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), mas sim de um tal Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), coordenado e dirigido por uma pessoa de nome Ananias Pereira dos Santos. São movimentos absolutamente distintos. Mas, a partir do desabamento e da tragédia Wilton Paes de Almeida, onde morreram sete pessoas, foi instaurado inquérito para apurar as responsabilidades. Era isso mesmo o que deveria ser feito. O problema foi aproveitarem-se da tragédia para prejudicar Carmem e outras lideranças idôneas e honestas do movimento de moradia. A polícia em primeiro lugar e o promotor, logo depois, colocaram todos os movimentos que atuam no centro na mesma vala comum da criminalidade. Trata-se de uma clara manipulação, já que Carmen Silva Ferreira é uma liderança reconhecida nacional e internacionalmente. Agora mesmo, é uma das convidadas da Bienal de Arquitetura de Chicago (EUA), o que mostra seu prestígio internacional. No ano passado, a Bienal de Veneza instalou-se na Ocupação Nove de Julho, dirigida por Carmen, exatamente por tê-la como modelo de intervenção urbana levada a cabo com o movimento social. Carmem dá palestras no Brasil e no mundo inteiro sobre direitos humanos e o Direito à Cidade. Enfim este é o trabalho dela, que foi muito bem explicado no primeiro processo, aquele do qual ela saiu absolvida. O juiz que decidiu pela absolvição desqualificou assim as testemunhas mentirosas que visavam colar na pessoa de Carmem a pecha de alguém que extorque, ameaça e constrange pessoas. Uma mentira completa.

    Jornalistas Livres — Fiquemos no caso de Carmen Silva Ferreira: como é possível que ela esteja sendo acusada novamente de cometer delitos pelos quais ela já foi processada e julgada inocente?

     Doutor Lúcio França — Quanto ao fato de Carmen estar sendo acusada pelos mesmos crimes pelos quais já foi absolvida do primeiro processo, isso configura-se uma clara ilegalidade. O princípio non bis in idem (não repetir sobre o mesmo) estabelece que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato delituoso. O bis in idem no direito penal seria a não observância desse princípio, acusando e julgando uma pessoa pelo mesmo crime.

    Jornalistas Livres — E por que isso está ocorrendo?

     Doutor Lúcio França — Isso se deve ao fato de que as acusações contra Carmem e filhos são acusações políticas, típicas de ditaduras. Por exemplo, isso ocorreu no Brasil durante a ditadura militar entre 1964 e 1985. Caetano Veloso e Gilberto Gil, para ficar em dois casos apenas, foram presos em São Paulo aqui na região da Praça da República pelo pessoal do Segundo Exército. Eles perguntaram por que estavam sendo presos, mas só ficaram sabendo anos depois que contra eles pesava a acusação de terem pego uma bandeira do Brasil e escrito, no lugar do Ordem e Progresso, a frase do [pintor, escultor, artista plástico e performático] Hélio Oiticica “Seja marginal, seja herói”. A acusação, portanto, seria eles terem “ultrajado a bandeira nacional”. Um mero pretexto. Foi esse o motivo alegado para a prisão de oito meses incomunicáveis, ao fim dos quais Gil e Caetano foram obrigados a se exilarem em Londres. Então, é assim que nós temos hoje gente disposta a criar fatos ficcionais para acusar pessoas honestas, abrir um processo, destruindo vidas e reputações. Carmen teve a sorte de encontrar um juiz justo na primeira vez, alguém que analisou as provas e decidiu pela sua absolvição.

    Jornalistas Livres — Como o senhor avalia o fato de terem sido decretadas as prisões de várias lideranças de moradia, entre os quais Sidney e Preta? Como é possível que a prisão de Carmen tenha sido pedida e concedida por um juiz se antes, mediante as mesmas provas e as mesmas testemunhas, a prisão dela foi recusada por três vezes e depois também recusada na segunda instância?

     Doutor Lúcio França — Agora, chegaram de repente e decretaram a prisão de Carmen. Não poderia ser assim. Por que não houve flagrante, nenhuma acusação grave envolvendo a figura dela. Quando houve a queda do Wilton Paes de Almeida, todas as lideranças do movimento de moradia começaram a ser chamadas à polícia para serem ouvidas. Eu mesmo fui com a Carmen e ela deu todas as explicações pedidas a respeito de seu movimento, o MSTC. Ou seja, ela já foi ouvida. Preta, também. Então, não houve obstrução da Justiça não houve fuga. Carmen e seus filhos, que têm endereço domiciliar e trabalho conhecido, se apresentaram com a cabeça erguida para fornecer todas as explicações pedidas pela autoridade policial. Tudo estava correndo em segredo de Justiça, mas –estranhamente— há três meses essas prisões foram anunciadas no programa “Fantástico” da TV Globo. Como é que é um canal de televisão, num programa de domingo, uma das maiores audiências, anuncia que haverá prisões dois meses depois? Trata-se de uma coisa montada. Trata-se de uma questão política porque querem criminalizar as lideranças da luta por moradia digna na cidade de São Paulo. O objetivo é depois acabar com os próprios movimentos de moradia.

    Jornalistas Livres — Isso não se configura numa terrível forma de violência do Estado contra pessoas pretas pobres?

    Doutor Lúcio França — Sim é uma violência de Estado. A filha de Carmem, Preta Ferreira, estava iniciando uma carreira como cantora, atuava como atriz e produtora cultural. Ela, de repente, foi arrancada de seu trabalho e de sua vida e colocada atrás das grades por uma denúncia absolutamente vazia. Isso é uma violação de direitos. O mesmo ocorre com Sidney. Mas não podemos generalizar. O próprio judiciário de São Paulo já absolveu Carmen uma vez antes. Hoje, estamos vivendo retrocesso muito grande em todo o país e sabemos que judiciário é muito conservador em sua maioria. Mas, “nem todas as mães são Marias e nem todos os juízes são iguais”.

    Jornalistas Livres — O movimento por moradia começou a se organizar na época do ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, um homem de direita. Mas nem mesmo Maluf pedia a prisão das lideranças que lutavam por moradia digna. Maluf era contra a luta por moradia e pedia a reintegração de posse, mas nunca ousou prender lideranças por serem lideranças…

    Doutor Lúcio França — É por isso que nós consideramos as prisões de Carmen, Preta e Sidney como prisões políticas. São prisões de pessoas primárias, sem antecedentes criminais, com endereços e trabalhos conhecidos, que não têm envolvimento criminal algum, muito menos com crime organizado, como eles querem fazer crer. São prisões totalmente políticas. Nós acreditamos na inocência de Carmen Silva Ferreira, de Preta Ferreira e de Sidney Ferreira. Pela vida que eles têm, por tudo que eles fazem pela população mais pobre da cidade de São Paulo, até sacrificando suas vidas pessoais em função de uma causa.

    Jornalistas Livres — Cassio Conserino, o promotor que denuncia agora as lideranças de moradia é o mesmo promotor que, em 2016, queria denunciar Lula na investigação do tríplex do Guarujá, que usou as redes sociais para chamar o ex-presidente de ‘encantador de burros’ e que acabou condenado a a pagar indenização de R$ 60 mil a Lula por danos morais. É coincidência o fato de, de repente, um promotor anticomunista militante seja alçado à condição de promotor de Justiça em um caso como este?

    Doutor Lúcio França — Não só ele fez isso como convocou alguns promotores fazer uma manifestação contra Lula e Dilma dentro do Fórum. O promotor de justiça tem que ser isento. Por isso, ele é “promotor de justiça”. Este é o nome do cargo dele. Ele não é um “promotor de acusação”. Ele tem que ser isento assim como o juiz. Tem que ser técnico. Mas, aqui, estamos vendo que a questão política está acima da técnica. Isso é gravíssimo. É uma usurpação do estado de direito.

    Jornalistas Livres — O senhor esteve hoje com a Preta Ferreira no presídio feminino de Santana. Como está a Preta?

    Doutor Lúcio França — Ao contrário do que imaginávamos, ela não está abatida. Está muito firme, com a serenidade de quem sabe da sua inocência. Preta nos disse que agora está muito mais consciente da luta que terá de travar quando sair da prisão. Da sua luta como negra, mulher e artista ligada ao movimento social. Está lendo muito e ficou bastante emocionada quando soube que o ex-presidente Lula lhe enviou uma carta de solidariedade. Ela não sabia disso ainda.

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