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  • Antígona e o direito universal de enterrar nossos mortos

    Antígona e o direito universal de enterrar nossos mortos

    Neste nosso momento, com este nosso presidente eleito, há uma significativa parcela da população que saliva por sangue. Gente que, em outros tempos, embarcaria com convicção nas cruzadas contra os mouros (ou, covardemente, apoiaria os templários da santa paz de suas casas). Essa gente, que é parte do mesmo povo brasileiro do qual faço parte, tomou ódio dos “direitos humanos”. Suponho que essa gente esteja acompanhando as notícias do dia de hoje com a mesma disposição de quem acompanha um capítulo de novela, cheio de revira-voltas. Afinal, hoje a justiça brasileira teve de decidir se Lula poderia acompanhar o enterro do irmão. Gostem de spoilers ou não, o fato é que Lula conseguiu a autorização já tarde demais, quando seu irmão já havia sido sepultado. Como se sentiu essa gente com esse desfecho?

    Posso imaginar o júbilo de grande parte dessa gente. Mas tenho fé de que muitos antipetistas, e mesmo probolsonaristas, vacilaram hoje. Há algo de profundo nos eventos desta quarta-feira, 30 de janeiro de 2019. Algo que diz respeito aos direitos humanos e que é capaz, como em toda dramaturgia clássica, transmitir ensinamentos preciosos. Diante disso, afirmo: o dia de hoje, às custas da dor de um cocidadão, generosamente explica o humano no direito.

    Sepultar um irmão é um direito tão, mas tão antigo, que o dramaturgo Sófocles escreveu, no século V antes de Cristo, uma tragédia, intitulada “Antígona”, inteira sobre esse tema. No caso, a personagem Antígona contraria as ordens do rei e sepulta seu irmão, condenado a jazer insepulto. Um corpo insepulto é a maior das desonras. Não por acaso as famílias de desaparecidos clamam pelos seus mortos. Somos humanos porque temos humanidade. E se há, nas culturas comparadas, alguns pontos convergentes, esse é um deles: mesmo os indignos têm direito à sepultura. E seus parentes têm o direito (e o dever) de enterrá-los. Por isso que nossas leis garantem aos presidiários, os criminosos condenados popularmente chamados de “bandidos”, o direito de sepultarem seus familiares mais próximos. Um irmão, por exemplo. Esse direito foi negado ao Lula.

    Antipetistas e probolsonaristas podem vibrar com a justiça brasileira ter julgado, condenado e preso um ex-presidente (certamente não compartilham da minha visão de que Lula é um preso político). Podem, inclusive, perder a compostura e rejeitar o tratamento honrado que cabe a ex-presidentes. Porém, diante dos fatos ocorridos hoje, tenho certeza de que somente os mais inumanos e crueis dos homens não empatizem com Lula. Tenho certeza de que a justiça dos homens falhou aqui e que o povo compreende isso. Porque lá dentro, em nós, há um humano compassivo que sabe que esse nosso direito soberano e universal de enterrar nossos mortos vale pra todos. Um direito que, se nos fosse negado por um Moro-Creonte, nos levaria à desobediência civil. Afinal, somos todas Antígona. Se eu fosse Lula e pudesse fugir para enterrar meu irmão, eu o faria.

    *Por Raquel Valadares, documentarista, especial para os Jornalistas Livres.

  • Trinta e sete anos e meio depois, Brasil volta a ter preso político

    Trinta e sete anos e meio depois, Brasil volta a ter preso político

    De Eduardo Campos*, com ilustração de Eneko.

    13.697 dias
    1.956,71 semanas
    450 meses
    37,5 anos
    Mais de 328 mil horas
    Mais de 19 milhões de minutos
    Mais de 1 bilhão e 180 milhões de segundos

    Estes números traduzem a triste realidade desse 7 de abril para o Brasil e os brasileiros. Significam o tempo decorrido entre a libertação do último preso político da ditadura militar em nosso país e a detenção do primeiro preso político da ditadura do Judiciário e da grande mídia que se instaurou entre nós, depois de golpe desferido em 2016, por um parlamento corrompido, contra uma presidente legitimamente eleita pelo povo.

    Em 7 de outubro de 1980, era solto, em Fortaleza, José Sales de Oliveira, que havia sido condenado à prisão perpétua e mais 84 anos, por crime contra a segurança nacional. Com a Anistia, a pena foi reduzida para 16 anos, 8 meses e 16 dias. Com a metade já cumprida, Oliveira deixou o cárcere, aos 38 anos de idade. Os dados estão na edição de 8 de abril de 1980 da Folha de São Paulo, em sua página 8.

    Em 7 de abril de 2018, é preso, em São Paulo, o maior presidente da história do Brasil, condenado a 12 anos e um mês, por contrariar interesses das elites dominantes, em particular do capital financeiro, temerosas de seu retorno ao governo. O desmonte de direitos sociais adquiridos pelos mais pobres, a entrega de nossas riquezas para os estrangeiros, a mitigação de uma já combalida democracia, nada disso pode ser desafiado com o risco de as esquerdas empalmarem de novo a fatia de poder que lhes foi roubada. Assim, mobilizaram seus agentes, no Judiciário, no Ministério Público, no Parlamento, na mídia, em particular no império da Globo, tendo a retaguarda das Forças Armadas, para impedir uma nova virada.

    A aposta, agora, é no tempo que a nova ditadura vai conseguir manter preso Luís Inácio Lula da Silva e no tempo que ela própria será capaz de sobreviver. A resposta, com certeza, está nas ruas, nas fábricas, nas escolas, na periferia, nas comunidades negras, LGBT e indígenas, nos movimentos dos sem terra e sem teto, nas lutas sociais, enfim.

    (*) Jornalista e advogado em Belo Horizonte, especial para os Jornalistas Livres