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  • “Do portão pra dentro é dos presidiários”, diz ex-detento em Manaus

    “Do portão pra dentro é dos presidiários”, diz ex-detento em Manaus

    João (nome fictício utilizado para preservar o entrevistado), era usuário e também vendia maconha. Tinha 21 anos e trabalhava como office boy quando, em 2007, foi preso sob acusação de ”tráfico de drogas”. Portava 12 cigarros de maconha.

    João começou a vender maconha para sustentar seu próprio consumo. Não tinha pretensão de enriquecer com a venda da planta e tampouco tirava seu sustento das vendas. Não era vinculado a organizações criminosas e, até então, não tinha antecedentes criminais. João entrou para as estatísticas da população prisional brasileira.

    Segundo dados de dezembro de 2014, divulgados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo (622.202). O líder do ranking são os Estados Unidos (com 2,2 milhões de presos). Dos 622.202 detentos brasileiros, 28% estão enquadrados na Lei de Drogas. A maioria da população prisional é composta por negros (67%) e por indivíduos de baixa escolaridade (53%).

    Quem é o responsável pelo massacre que ceifou as vidas de 60 homens no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj)? Seria da terceirizada Umanizzare, empresa privada que administrava a penitenciária, tendo recebido do governo do estado do Amazonas o equivalente a R$ 686 milhões entre os anos de 2013 a 2016? Ou o responsável seria o Estado, que deveria fiscalizar a terceirizada contratada para que cumprisse com os serviços inclusos no contrato, entre os quais se contam: prezar pela limpeza e conservação do complexo penitenciário, pela manutenção dos equipamentos que integram o sistema de segurança eletrônica, como câmeras de vídeo e pela alimentação dos detentos entre outros serviços.

    Lado mais fraco

    João é um exemplo dos milhares de detentos não só do Estado do Amazonas, mas também do Brasil. Esses que são esquecidos pelo Estado, responsável por eles enquanto estes estiverem sob sua custódia. João poderia ser um dos mortos no massacre.

    Por causa de 12 cigarros de maconha!

    E tem muita gente fora das cadeias pedindo mais mortes. “Morram todos!”

    O triste é que a maioria desses que gritam “bandido bom é bandido morto” quer uma sociedade mais justa –mas a solução imediatista que propõe só pune exatamente o lado mais fraco.

    O relato de João, um ex-detento do Compaj, nos leva a analisar a necessidade da descriminalização do consumo de todas as drogas, a analisar a omissão do Estado frente ao sistema penitenciário brasileiro e também, a refletir se estamos perdendo nossa humanidade ao difundir o ódio nas redes sociais.

    Jornalistas Livres foram ao encontro do ex-detento que é filho de uma diarista moradora da periféria de Manaus. O relato de João é sobre tudo que viveu enquanto esteve preso. Sobre sua história, sobre tudo o que viu, o que sentiu, e como é a vida atrás das grades. A entrevista a seguir foi feita pelos repórteres Macarena Mairata e Christian Braga de Manaus (AM), dos Jornalistas Livres.

    Vídeo: Christian Braga / Jornalistas Livres

  • Vídeo mostra polícia atirando em presídio

    Vídeo mostra polícia atirando em presídio

    Uma das grandes obscuridades em relação aos recentes massacres nos presídios em Manaus e em Boa Vista é a participação da Polícia Militar. Quando acontecem rebeliões nos presídios, os batalhões de choque da PM são os responsáveis por atuar para acabar com os motins. Até agora não se sabe como a polícia atuou no momento das mortes, durante as negociações ou quando acabou a briga entre facções (o que obviamente aconteceu, ainda que o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, queira negar).

    As informações oficiais de Manaus, por exemplo, dão conta de que a Polícia Militar entrou “pacificamente” no Compaj após o fim das negociações. A versão dos familiares é outra: a polícia teria matado – à queima roupa e na frente de qualquer um que passasse pela cena – os presos que fugiram do complexo penitenciário. Dos cerca de 200 foragidos (podem ser muitos mais), apenas 63 foram recapturados com vida. Os agentes penitenciários também contam outra história. Dizem que a polícia entrou para matar. “Quando os policiais entraram, não queriam saber se era agente ou bandido. Eles atiravam. Ainda bem que a polícia de choque não entrou logo de início, se não a gente ia morrer”, contou à Folha um agente penitenciário feito refém. Um vídeo divulgado neste sábado mostra a polícia de Roraima atirando nos presos depois do final da rebelião com bala de borracha a uma distância que, dependendo de onde acerte o tiro, é letal. Isso é tortura.

    A atuação da Polícia Militar matou pelo menos 111 presos no Massacre do Carandiru, o maior extermínio de pessoas sob custódia do Estado da América Latina – e o segundo maior do mundo. O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e o presidente da República, Michel Temer, vêm, a cada dia, negando o óbvio: houve massacre (não foi acidente); o período de tensão era conhecido pelas autoridades federais; o rompimento entre as facções era sabido pelo governo federal; as condições degradantes das cadeias foram amplamente estudadas e divulgadas para a União. Querer que a população acredite que autoridades e polícia não tiveram participação nas mortes, seja por ação ou por omissão, é acreditar que o brasileiro não pensa e que não tem memória.

    Cenas de tortura

    O vídeo mostra policiais mascarados entrando na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista Roraima, enquanto atiram com escopetas calibre 12 municiadas com bala de borracha.

    Os alvos: presos a poucos metros de distância.

    A distância considerada segura para o disparo de balas de borracha – munição de elastômero – é de 20 metros. Disparos de distâncias menores do que esta aumentam consideravelmente o risco de ferimentos graves, inclusive levando ao óbito.

    “‘Bora, caralho, ‘bora”. “Vai, vai, filho da puta!”, gritam os policiais para os presos, já dominados e desarmados.

  • O Massacre e a demagogia

    O Massacre e a demagogia

    São dois tipos de homem: um é o papa Francisco; o outro é o governador José Melo, do Amazonas. Escolha o seu!

    Por Jornalistas Livres (com informações da Ansa, do UOL e do “Valor Econômico”)

    O papa Francisco fez orações pelas vítimas da rebelião no presídio de Manaus na primeira audiência geral de 2017, realizada nesta quarta-feira (4). Ao todo, 60 pessoas morreram no complexo penitenciário Anísio Jobim após uma rebelião.

    O massacre… (segundo Francisco)

    “Ontem, chegaram notícias dramáticas do Brasil sobre o massacre ocorrido no presídio de Manaus, onde um violentíssimo confronto entre grupos rivais causou dezenas de mortes”, disse o Pontífice nas mensagens finais da audiência.

    “Exprimo dor e preocupação pelo que aconteceu. Convido a todos para rezar pelos mortos, pelos seus familiares, por todos os presos daquele presídio e por aqueles que lá trabalham. E renovo meu apelo para que os institutos penitenciários sejam locais de reeducação e de reinserção social e as condições de vida dos presidiários sejam dignas de pessoas humanas”, falou o Pontífice.

    Após um momento de silêncio, ele pediu para que os presídios de todo o mundo “sejam locais de reinserção, que não sejam superlotados” e concluiu solicitando para que todos rezassem uma Ave Maria.

    O Papa Francisco tem um especial apreço pela questão dos encarcerados, pedindo condições dignas e humanas para gestores do sistema prisional de todo o mundo. Ele, inclusive, visita prisões ao redor do mundo – sempre que possível – quando faz viagens internacionais.

    O governador José Melo, do Amazonas, preferiu o discurso da hipocrisia.

    No cemitério, onde se enterravam as primeiras vítimas do massacre, mandou entregar às famílias desesperadas com tamanha violência várias coroas de flores com os dizeres: “Homenagem do Governo do Estado do Amazonas”.

    Melo é um tipo inesquecível. Seja pela irresponsabilidade, seja pela covardia.

    O juiz da Vara de Execuções Penais encarregado do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, Luis Carlos Valois, disse em entrevista à repórter Macarena Mairata, dos Jornalistas Livres, que havia um sistema de câmeras de vídeo escondido dentro da cadeia, e que pelas imagens as autoridades conseguiam ver a chacina dos membros do PCC — em tempo real.

    Como voyeurs da desgraça, as autoridades policiais assistiram cabeças sendo cortadas, corações sendo arrancados de dentro do peito, presos sendo queimados vivos. E nada fizeram durante as 17 horas (repita-se: de-zes-se-te longas horas) de duração do massacre.

    O secretário de Segurança Pública do Amazonas, Sérgio Fontes, justificou a omissão, dizendo que a entrada da PM no Complexo Penitenciário Anísio Jobim poderia ter causado um “Carandiru 2”.

    “Não entramos no presídio para evitar um Carandiru 2”, disse Sérgio Fontes em entrevista ao UOL.

    Quer dizer: a polícia assistiu a tudo, sádica, sem fazer nada!

    E o governador manda coroas de flores…

    Foto Christian Braga

    Para piorar, José Melo afirmou na manhã desta quarta-feira (4) que “não tinha nenhum santo” entre os 56 presos mortos durante a rebelião.

    “Não tinha nenhum santo. Eram estupradores, matadores (…) e pessoas ligadas a outra facção, que é minoria aqui no Estado do Amazonas.”

    Canalha, a gente vê por aqui!

     

    As covas são rasas, o barro é novo, as cruzes são simples, o vazio é nos homens, a vergonha é das flores, as coroas são falsas. (Helio Carlos Mello)

    Foto Christian Braga
    Foto Christian Braga
  • Massacre em Manaus: ministro da Justiça e secretária de Direitos Humanos se contradizem

    Massacre em Manaus: ministro da Justiça e secretária de Direitos Humanos se contradizem

    O ministro da Justiça e Cidadania, Alexandre de Moraes, e sua secretária de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, entraram em contradição ao fazer declarações sobre o massacre de Manaus.

    O ministro, defensor da linha punitivista de segurança pública – que encarcera em massa e expõe os presos à superlotação nas celas (consequente morte em vida) -, afirmou à rádio Jovem Pan que a solução para a violência nos presídios é “construir mais presídios de segurança máxima”. Ele disse também que a ação correta do Estado é “separar presos por periculosidade”, e não por facções: “não podemos permitir que um grupo tenha domínio de um presídio.” Como se já não tivessem.

    Nessa linha de pensamento, não há nenhuma preocupação acerca das condições de vida dos mais de 607 mil encarcerados no País.

    A superpopulação carcerária e a violência policial são as condições que fizeram possível o Massacre do Carandiru, há quase 25 anos. Foi naquela matança que surgiu o PCC, e os presos passaram a se organizar em facções. O que aconteceu agora tem, portanto, total relação com o que houve no Carandiru: o viés punitivista das políticas de segurança só ajudou a incrementar o cenário para a carnificina de Manaus.

    O Estado é totalmente responsável.

    Mais informada e experiente sobre Direitos Humanos, a secretária da pasta, Flávia Piovesan, declarou ao jornal O Estado de S.Paulo que justamente o fato de não separar as facções rivais foi “explosivo” no caso de Manaus. Ela também afirmou que o encarceramento em massa precisa ser rompido. É o contrário do que propõe seu ministro.

    De quem seria a responsabilidade pelas mortes no Compaj? Para Piovesan, do governo do Amazonas. “Quando há facções rivais, estudos apontam que é preciso separá-las.”

    Mas o ministro que ela apoia costuma falar que é preciso “menos pesquisa em segurança e mais equipamentos bélicos”. Ele também avisou, em outubro passado, que não fala “de criminosos”. E limitou-se a dizer que “às vezes há mera bravata entre as pessoas que fazem a rebelião”, ao se referir às brigas entre facções.

    Mera bravata… Lá se vão pelo menos 56 vidas no Compaj, 4 no presídio da zona rural de Manaus, além das 10 mortes na penitenciária agrícola de Boa Vista (RR), que aconteceram em outubro.

    Flávia Piovesan pondera e se contrapõe ao chefe. “O Estado tem dever de assegurar a integridade física, psíquica e moral dos presos, que só têm cerceada a liberdade, mas permanecem com o direito de terem as vidas resguardadas. O que ocorreu em Manaus foi um desperdício evitável de vidas humanas”, disse a secretária ao Estadão. Para ela houve omissão, além de uma política pública “desacertada, insuficiente e ineficaz para prevenir”.

    Ao que parece, para o ministro da Justiça o que menos importa são as vidas encarceradas.

    Como a secretária Flavia Piovesan vai lidar com um chefe que pensa tão diferente dela e ao mesmo tempo vai preservar sua trajetória acadêmica?

     

  • O horror, o horror. E era um presídio administrado pela iniciativa privada

    O horror, o horror. E era um presídio administrado pela iniciativa privada

    O ano de 2017 mal começou e começou mal. Depois de 17 horas de terror, abrem-se as portas do Complexo Penitenciário, com 1.072 detentos, localizado na Rodovia BR 174, Km 8, em Manaus. E o que se vê é indescritível. São corpos desfigurados, cabeças cortadas, corações arrancados –uma violência sem limites, que destruiu as vidas de pelo menos 60 homens.

    (Não publicaremos nenhuma foto disso em respeito às vítimas e seus familiares.)

    Logo, o governo do Amazonas, cujo titular é José Melo, do Pros, veio com a narrativa que o isenta de qualquer responsabilidade. Tudo seria resultado de uma guerra entre facções criminosas –de um lado, a FDN (Família do Norte), que teria atacado membros do PCC (Primeiro Comando da Capital).

    Lave as mãos, Poncio Pilatos!

    Mas o governo de Manaus tem responsabilidade total pelo acontecido. Presos são homens e mulheres mantidos sob a tutela do Estado, que assume assim a total responsabilidade pela integridade física e moral deles.

    O que se vê, como regra, é que em vez de integridade física e moral, o Estado opera como uma máquina de triturar gente. É assim em todas as cadeias do Brasil.
    Mesmo assim, alguns cuidados mínimos são tomados.

    É por isso que não se misturam membros de facções rivais num mesmo cárcere; que não se pode colocar mulheres com homens. Que pessoas juradas de morte são isoladas. De outro modo, seria fácil acabar com a população carcerária. Bastaria jogar inimigos na mesma cela. Preferencialmente superlotada, para que o desespero fizesse a “limpeza”.

    E foi isso o que aconteceu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, inimigos jurados de morte colocados de forma perigosamente próxima. Quase juntos.

    Tragédia premeditada

    A tragédia consumou-se, entretanto, com um elemento a mais, a provar a desresponsabilização total do Estado frente aos Direitos Humanos.

    Em 2015, depois de criar uma secretaria específica para cuidar dos presídios (a Secretaria de Administração Penitenciária), o governador José Melo contratou um consórcio, através de contrato de parceria público-privada, para administrar os presídios do Amazonas. O extrato do contrato foi publicado no Diário Oficial do Estado do dia 9 deste mês. Trata-se de um contrato de R$ 205,9 milhões para concessão de cinco unidades prisionais por 27 anos, prorrogáveis até o limite de 35 anos.

    Pelo contrato, o Consórcio Pamas – Penitenciárias do Amazonas, a Umanizzare Gestão Prisional e Serviços e a LFG Locações e Serviços Ltda, se responsabilizariam pelos serviços de gestão, operação e manutenção, precedidos de obras de cinco unidades prisionais no Estado do Amazonas.

    A Umanizzare, que em 2014 recebeu do governo amazonense R$ 137.284.505,62, prometia, como o seu nome já diz em italiano, “Humanizar” os detentos. Em seu site, a empresa assim descrevia sua missão no Complexo Prisional Anísio Jobim (Compaj), onde aconteceu a barbárie nesta madrugada:

    “Em 01 de Junho de 2014, a Umanizzare assume a gestão do Compaj com o intuito de empregar diversas práticas e ações já desenvolvidas em outras unidades prisionais geridas por ela e que amenizam a condição de cárcere do detento.”

    Seguindo como exemplo instituições em países onde até 80% dos detentos podem ser reabilitados, a Umanizzare acredita que para reabilitar, além de boas condições físicas, o detento precisa de atividades que ofereçam um futuro de volta à sociedade.”

    Os mais de 60 detentos destrinchados como animais no abate, enquanto estavam sob a guarda do Estado no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, sabem que essa “humanização” é podre.

  • Existe crime depois da prisão?

    Existe crime depois da prisão?

    Por Natália Martino e Leo Drumond | Projeto Voz para os Jornalistas Livres

    Nos primórdios, ela era um mero lugar de espera para o cumprimento da pena, que podia ser de enforcamento, fogueira ou suplício em praça pública, por exemplo. Evoluímos como sociedade e hoje a prisão é a pena em si – o suplício saiu das praças e passou a ser escondido por muros altos. No caminho trilhado pelas sociedades ocidentais, o discurso oficial amenizou o caráter repressivo do encarceramento e criou para ele objetivos educacionais. Está lá, na Lei de Execução Penal brasileira em seu primeiro artigo: “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Não se trata de vingança, e sim do que é chamado de ressocialização – conceito esse bem mais controverso do que parece, mas essa discussão vai ficar para outro momento. A pergunta é: funciona? “É ruim, mas é bem melhor do que acreditamos” é a resposta da socióloga Roberta Fernandes, que recentemente concluiu sua dissertação de mestrado sobre reincidência criminal em Minas Gerais.

    Itauna_MG, 30 de janeiro de 2014. Modelos alternativos de presidios Na foto, a APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policias e armas Foto: LEO DRUMOND / NITRO
    APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policias e armas

    Essa é, em geral, a medida mais usada para avaliar o funcionamento de uma pena privativa de liberdade. Se alguém ficou preso e voltou a cometer crimes é porque a prisão não teria funcionado. Em sua dissertação, apresentada na PUC/MG em 2015, ela não deixa de relativizar esse indicador ao destacar que outras questões socioeconômicas são importantes e que acompanhar o egresso depois da saída da cadeia é essencial para aumentar as chances de reinserção social. “Você coloca o indivíduo em uma instituição total, que mortifica o ego e padroniza os comportamentos. Assim, você mata quem ele era antes da prisão e cria para ele uma nova identidade. Só que essa identidade não serve mais quando ele sai de novo da prisão”, explica. Distância da família, ausência de assistência do estado e estigma de ex-presidiário podem formar uma tríade que, em alguns casos, é capaz de inviabilizar o retorno à legalidade daquele indivíduo independentemente da sua experiência na penitenciária.

    Dito isso, vamos ao resultado da pesquisa. Depois de acompanhar por cinco anos inquéritos policiais em busca de 800 dos 2.116 condenados que saíram de penitenciárias mineiras no ano de 2008, Roberta concluiu que o índice de reincidência no crime em Minas Gerais é de 51,4%. O número é alto, sem dúvida, mas é bem menor do que se especula normalmente. “Há uma fala que ficou enraizada no discurso brasileiro de que esse índice chega a 85%, mas não existe nenhum trabalho que comprove isso empiricamente”, diz. Em sua dissertação, ela destaca que a prisão teve um efeito positivo em quase metade dos casos estudados. “Não consideramos uma taxa baixa e satisfatória, mas em relação à especulação midiática, do senso comum e da militância do abolicionismo penal, que se estima de 75% a 85%, a prisão demonstra um indicador ruim, mas não tão ruim quanto se fala”, avaliou em seu trabalho.

    APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policiais e armas
    APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policiais e armas

    Um dado, porém, chama atenção. No universo pesquisado estavam aqueles que ganharam as ruas por cumprimento total da pena e aqueles que conseguiram livramento condicional. De acordo com os resultados de Roberta, aqueles que cumpriram toda a pena estão 97,5% mais propensos a voltar a cometer crimes em relação aos outros. “A sociedade sempre quer que a pena seja o mais longa e o mais cruel possível, mas talvez esse excesso de prisão não funcione”, avalia. A socióloga explica que existem duas hipóteses principais para explicar a diferença. A primeira é a de que os condenados que cumpriram pena até o fim seriam aqueles de mau comportamento, o que teria impedido a progressão do seu regime. Portanto, seriam pessoas com menor predisposição para seguir regras. A segunda explicação possível é a de que o livramento condicional impõe uma série de regras, como não sair de casa depois das 22h, o que poderia reduzir as oportunidades de ação criminosa.

    Discurso ressocializador ainda está longe da realidade

    Na conclusão do seu trabalho, a socióloga diz que a “função ressocializadora” foi incorporada no discurso da prisão ao longo da história, mas não tem um efeito expressivo nas nossas prisões. Para ela, entre tantas necessidades de melhorias, uma é fundamental: valorizar o agente penitenciário. É precisar formar a identidade dos agentes penitenciários como educadores. O código que deve dirigir o trabalho dos membros dessa corporação, como explica Roberta Fernandes, é a Lei de Execução Penal, que tem caráter educativo. Ao contrário do Código Penal, uma lei altamente punitiva e que dirige o trabalho de outros órgãos da Justiça Criminal, a legislação que trata do funcionamento das penas visa o ensino e não a repressão. “Os agentes, portanto, teriam que ser educadores, essa teria que ser a identidade deles”, afirma.

    Ribeirao das Neves_MG, 10 de Janeiro de 2013. Revista Veja_PPP Presidio MG Na foto, imagens do presidio que sera inaugurado como modelo de gestao de PPP (Parceria publico Privada). Foto: LEO DRUMOND / NITRO
    Treinamento de agentes penitenciários no presidio PPP (Parceria publico Privada) em Ribeirão das Neves (MG).

    Vários outros são os problemas enfrentados pelas penitenciárias, como a dificuldade de individualizar a pena. “O indivíduo que cometeu um pequeno delito acaba cumprindo pena ao lado de um ‘criminoso de carreira’”, afirma Roberta, que atua em várias instituições que trabalham com o sistema prisional. Um dos indicativos de que estamos longe de resolvermos qualquer umas das questões é a quase ausência de dados e pesquisas na área. Não sabemos o tamanho do problema, suas causas e suas dinâmicas. E assim fica impossível achar uma solução.

    Mais conteúdo sobre sistema prisional você pode ver aquiaqui.

    Sobre modelos alternativos ao sistema carcerário tradicional temos este artigo. Para as críticas sobre os modelos veja aqui.