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Tag: Paulo Guedes

  • LULIZAÇÃO DE BOLSONARO?

    LULIZAÇÃO DE BOLSONARO?

    A comparação entre Lula e Bolsonaro não é nenhuma novidade no debate político nacional. É que Lula e Bolsonaro são as mais carismáticas lideranças políticas da história recente brasileira. Nos últimos 20 anos, somente Lula e Bolsonaro tiveram um “ismo” pra chamar de seu.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Lula e Bolsonaro são muito diferentes.

    Lula nunca atentou contra as instituições da República. Lula foi condenado pela justiça em processo flagrantemente manipulado. Ficou preso mais de ano. Viu a família ser devassada. Mesmo assim, em nenhum momento, jogou sua militância contra o Poder Judiciário. Lula se submeteu a todos os ritos do direito penal, mesmo sabendo que estava sendo injustiçado.

    Já Bolsonaro, até bem pouco tempo atrás, dia sim e dia também vinha a público ameaçar a nação com golpe de Estado, atiçando sua malta raivosa contra nossa democracia.

    Lula só ganhou seu ismo depois de governar e conseguir construir aquilo que de mais próximo chegamos de um Estado de Bem Estar Social. Bolsonaro virou mito antes de subir a rampa do Planalto, alimentado tão somente pelo ódio coletivo à política institucional e pelos preconceitos que fazem do brasileiro médio um dos piores tipos sociais do mundo.

    Entre Lula e Bolsonaro, a comparação, se possível, se dá muito mais pelas diferenças do que pelas semelhanças.

    Mas de uns dias pra cá, parece que o próprio Bolsonaro vem se inspirando em Lula. Talvez ainda seja cedo para dizer que se trata de tendência, mas a novidade na crônica política é a aparente lulização de Bolsonaro.

    Junho de 2005, Roberto Jefferson (ó ele aí, minha gente!) denuncia o mensalão, esquema de compra de apoio parlamentar no varejo, que estaria sendo organizado a partir do gabinete do presidente da República. O governo quase acabou ali. Perdeu José Dirceu, cotado na época para ser o sucessor de Lula.

    Para sobreviver, Lula precisou se aproximar do PMDB, entregar três ou quatro ministérios gordos, de porteira fechada. Pouca gente lembra que a tão mal falada aliança entre o PT e o PMDB não foi projeto original. O PMDB disputou as eleições de 2002 com candidatura própria. A aliança foi produto das circunstâncias. Questão de sobrevivência mesmo.

    A esquerda raiz, mais ideológica, nem precisou da crise do mensalão e da aliança com o PMDB pra pular fora. Bastou a real politik, a realidade de ser governo, para os “companheiros” se desencantarem. Nasceu assim o PSOL, em junho de 2004.

    Poucas coisas são mais melancólicas, e caricatas, do que o militante de esquerda desencantado.

    Lula, sabido que só ele, fez dos limões uma limonada. Furou a bolha, ampliou sua base de apoio social. Depois do mensalão, Lula se tornou, de fato, líder popular. Catapultado pelo Bolsa Família e pela política de valorização do salário mínimo, Lula, finalmente, conquistou o subproletariado, que historicamente rejeitava o PT.

    Lula passaria a ser odiado pela esquerda ideológica e amado pelo povo. Foi bom negócio. A esquerda entende pouco de povo.

    Talvez esteja acontecendo algo semelhante com Bolsonaro neste exato momento. Por um capricho do destino, 15 anos depois, também em mês de junho, Bolsonaro viu a porca torcer o rabo. A prisão de Fabrício Queirós foi para Bolsonaro o que o mensalão foi para Lula. A diferença é que o mensalão era esquema de governabilidade, enquanto Queiros é o fio solto de esqueminhas de corrupção de baixo clero que enriqueceram o clã Bolsonaro.

    A solução encontrada por Bolsonaro está sendo semelhante à de Lula. Não duvido que Bolsonaro, que de burro tem nada não, esteja deliberadamente se inspirando em Lula.

    Aproximou-se do Centrão, se afastou dos aliados mais ideológicos e está investindo em políticas redistributivas, descobrindo como é gostoso, e importante, ser amado pelo povão. Depois das caneladas iniciais, o auxílio emergencial é um sucesso. Povão tá feliz da vida. A economia varejista nas regiões periféricas nunca viu tanto dinheiro circulando. Uma festa. Não consigo deixar de ficar um pouquinho feliz com isso.

    Meio que obrigado pela pandemia, contra a vontade, Bolsonaro está colocando os pobres no orçamento.

    Bolsonaro está tentando furar a bolha. A classe média bolsonarista raiz começa a fazer movimentos de desembarque.

    À direita e à esquerda, as bolhas são mimadas, agressivas quando contrariadas. Costumam investir todas as suas energias na destruição dos “traidores”.

    Com Lula, já sabemos o que aconteceu: terminou dois mandatos com alto índice de aprovação popular e ainda elegeu a sucessora.

    Bolsonaro conseguirá fazer o mesmo? Será capaz de se tornar presidente, deixando de se comportar como agitador fascista? Deixará de lado os devaneios revolucionários para se tornar um conservador no sentido estrito do termo?

    Para isso, terá que romper com o bolsonarismo, o que envolve abandonar Paulo Guedes, o mais bolsonarista dos ministros da esplanada. O bolsonarismo é organicamente neoliberal. Sua utopia é a sociedade pré-moderna, clânica, onde a casa é grande e o Estado é mínimo. A casa é grande exatamente porque o Estado é mínimo. E vice-versa.

    O neoliberalismo radical de Gudes só sobrevive no bolsonarismo.

    Tá aí a escolha que Bolsonaro terá que fazer. Pra sobreviver, precisará abandonar o bolsonarismo e ser um tantinho lulista, fazendo a tal comparação ter algum sentido.

    Se tomar o lugar de Lula como encarnação do Estado provedor de direitos sociais, Bolsonaro deixará de ser apenas o representante do ódio, do caos, para se tonar líder popular.

    Bolsonaro é carismático, comunica bem com o povão. Conseguindo se reinventar, fica imbatível. Insistindo no radicalismo ideológico, não termina o mandato.

    Enquanto isso, a esquerda, assistindo da arquibancada o jogo ser jogado, se vê diante de um dilema existencial: torcer para que Bolsonaro continue sendo o agitador fascista, o que na prática significa torcer contra a própria democracia e contra o bem-estar da população mais pobre. Ou torcer para que Bolsonaro se acomode às instituições da República e, finalmente, trabalhe para o bem do povo, o que significaria ostracismo político que duraria pelo menos uma década.

    A ver se Bolsonaro luliza de fato, acontecendo, nos sobrará pelo menos o triunfo estético. Lula é muito mais bonito que Bolsonaro. Quem guenta com aquelas covinhas que se formam nas bochechas quando o rosto todo sorrir?

  • Com a corda no pescoço, Bolsonaro rifa planos de Guedes para tentar se salvar

    Com a corda no pescoço, Bolsonaro rifa planos de Guedes para tentar se salvar

    Os incautos, direitistas, desinformados pelas fake news e os simplesmente sequiosos de engordar seus cofres correram às urnas para votar numa fraude em 2018. Vestiram a fantasia de romper com a “velha política”, abater a corrupção, modernizar o Brasil. Lançaram mão da maior máquina de mídia já vista em operação no país. Dinheiro sujo a rodo que apenas o Tribunal Superior Eleitoral e o STF não enxergam. Para desespero destes vermes, a história não segue uma linha reta. O castelo de cartas marcadas despencou de vez com uma pandemia que abriu os olhos do planeta.

    Por Ricardo Melo*

    Nunca em um século as desigualdades emergiram com tanta força. Centenas de milhares de cadáveres tingem de sangue as maravilhas do “neo-liberalismo” auto considerado vitorioso. A destruição dos sistemas públicos de saúde em prol da ganância privada cobra seu preço na forma de caminhões frigoríficos para transportar o povo pobre rumo a covas.

    Bolsonaro é a imagem desta época. Queria “30 mil mortos” para limpar o país. Já conseguiu quase o triplo disto –já são mais de 80 mil. Não como ele gostaria, à bala e sangue frio. Usou as circunstâncias para sabotar providências contra uma pandemia. Pior: ao estimular o desprezo diante dos perigos da doença, o facínora deve estar vibrando com os resultados.

    Ocorre que a corda está apertando muito depressa. O novo partido do militar expulso do Exército não conseguiu nem sequer 3% das assinaturas necessárias para se viabilizar. Entre elas, centenas de mortos transformados em eleitores. Mais uma fraude entre tantas. Especialidade da casa.

    Mas Bolsonaro mostra mais uma vez que é o que sempre foi. O defensor da “nova política” agora articula alianças com o que há de mais indigente no Congresso. Seu objetivo é claro como a luz do sol. Impedir que as dezenas de processos de impeachment evoluam no Parlamento. Para isso, destaque-se, conta com a complacência de Rodrigo Maia, na verdade um aliado que de vez em quando finge ser adversário. O bom e velho “Botafogo” das planilhas da Odebrecht sempre mata no peito.

    Quem quer se iludir, que se iluda. Não estou entre estes. Bolsonaro balança no cadafalso. Até Donald Trump, o deus do capitão expulso do Exército, percebeu que sua leniência diante da pandemia derrete suas chances eleitorais. Num giro de 180 graus, o americano resolveu até defender o uso de máscaras frente ao avanço do coronavírus.

    Bolsonaro agora fala em liberar verbas e mais verbas de auxílio emergencial, engordar soldos de militares, afagar políticos e juízes desmoralizados, embora seu posto Ipiranga só pense em privatizar de estatais a creches. Por uma razão muito simples: entre sua sobrevivência e de sua família miliciana e o chicaguismo de Guedes, adivinhe de que lado ele estará? “Para os meus filhos, sempre vou separar o filé mignon”, já disse o militar desterrado.

    A primeira votação do Fundeb impôs uma derrota acachapante aos planos de Bolsoguedes, A dupla queria esvaziar o fundo e usar recursos da educação para manobras assistencialistas atrás de votos. Mexer na farra do capital financeiro, nem pensar. Pelo menos este crime foi contido. Bolsonaro esqueceu que, se ele quer votos, o centrão, sua nova paixão, também quer. Os deputados não iriam cometer o suicídio de tirar dinheiro de estados e municípios que compõem sua base eleitoral para alimentar as manobras assistencialistas do capitão. Política é um pouco mais complicado que planejar a explosão de quartéis e adutoras como fazia o capitão expulso do Exército.

    *Ricardo Melo, jornalista, foi editor-executivo do Diário de S. Paulo, chefe de redação do Jornal da Tarde (quando ganhou o Prêmio Esso de criação gráfica) e editor da revista Brasil Investe do jornal Valor Econômico, além de repórter especial da Revista Exame e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Na televisão, trabalhou como chefe de redação do SBT e como diretor-executivo do Jornal da Band (Rede Bandeirantes) e editor-chefe do Jornal da Globo (Rede Globo). Presidiu a EBC por indicação da presidenta Dilma Rousseff.

    Leia mais Ricardo Melo em:

    HTTPS://JORNALISTASLIVRES.ORG/QUEM-CONFIA-EM-MILTON-RIBEIRO-O-MINISTRO-DA-EDUCACAO-ESCOLHIDO-POR-BOLSONARO/

    JAIR BOLSONARO É UM ASSASSINO —AGORA DE PAPEL PASSADO

    ENEM: BOLSONARO QUER DESTRUIR OS SONHOS DA JUVENTUDE POBRE DO BRASIL

    ATÉ QUANDO ESTES BANDIDOS VÃO DESGOVERNAR O BRAZIL?

    BOLSONARO EM PELE DE CORDEIRO. QUEM ACREDITA NISSO, ACREDITA EM TUDO

    AGORA COM A AJUDA DO GENRO DE SILVIO SANTOS, BRASILEIROS SÃO LEVADOS AO MATADOURO

    MANIFESTAÇÕES MOSTRAM QUE BOLSONARO DESLIZA SEM VOLTA PARA O PRECIPÍCIO

    PANDEMIA: 1% MAIS RICO DO PAÍS NÃO ESTÁ NEM AÍ PARA AS MORTES DOS POBRES

    RICARDO MELO: BRASIL À DERIVA, SALVE-SE QUEM PUDER!

    PAULO MARINHO COMPROVA QUE O BRASIL ESTÁ NAS MÃOS DE UM FACÍNORA: JAIR BOLSONARO

    BALANÇO E PERSPECTIVAS: 2019 FOI RUIM? PREPARE-SE PARA 2020

    LULA ESTÁ SOLTO, MAS AINDA NÃO LIVRE

  • MÍDIA, MENTIRAS E INTERVENÇÃO MILITAR

    MÍDIA, MENTIRAS E INTERVENÇÃO MILITAR

    ARTIGO

    Angela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

     

    O Queiroz finalmente foi preso. Estava em Atibaia, na Grande São Paulo, em uma residência, disfarçada como escritório, de propriedade do advogado do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente da República.
    A prisão aconteceu nesta quinta-feira (18/6) depois de um fim de semana marcado por atos antidemocráticos, que tentaram colocar em xeque a autoridade do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, exigiam intervenção militar e a volta da ditadura.
    Em qualquer país do mundo, que se pretenda minimamente democrático, atos assim são considerados terroristas e tratados como tal. O agravante, no caso brasileiro, é que esses atentados foram cometidos por apoiadores do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e, pior ainda, estimulados por declarações que ele vem fazendo em meio ao caos econômico e à pandemia de covid-19.
    No domingo (14/6), um dos acusados de soltar rojões em frente ao STF, em Brasília, Renan Sena também foi preso. Seu celular será periciado, mas já se sabe que o teor das trocas de mensagens é bombástico, porque demonstra sua ligação com figuras de peso do governo federal.

    Nesse mesmo dia, o agora ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, aquele que durante reunião ministerial disse que “tinha que botar todos os vagabundos na cadeia, começando pelo STF”, não só estava entre os manifestantes, como se encontrava em lugar público sem máscara para proteção contra o covid-19. Em função do cargo que ocupa, não foi preso, mas terá que pagar multa. Sua permanência na equipe de Bolsonaro, que já era muito complicada, tornou-se quase impossível.
    No dia anterior, um grupo de 78 militares reformados (entre os signatários estão 12 brigadeiros, cinco almirantes e três generais) havia lançado manifesto contra o ministro do STF, Celso de Melo, relator das investigações que apuram as acusações feitas pelo ex-ministro Sérgio Moro de que Bolsonaro estaria interferindo politicamente na Polícia Federal. O manifesto, com pesadas críticas a Celso de Melo, parece ter garantido ânimo aos manifestantes.

    O repúdio de setores dos militares reformados começou depois que o ministro do STF disse que os generais que ocupam cargos no Palácio do Planalto deveriam depor como testemunhas no inquérito. Caso não comparecessem, poderiam ser conduzidos “debaixo de vara”, termo jurídico que significa serem obrigados a comparecer. A tentativa de intimidação dos militares reformados não surtiu efeito. Entre segunda e terça-feira, a Polícia Federal prendeu seis pessoas e cumpriu 21 mandados de busca e apreensão solicitados pela Procuradoria-Geral da República e autorizados pelo ministro do STF, Alexandre de Morais. Entre os presos estão a militante de extrema-direita, Sara Giromini, que usa o pseudônimo de Sara Winter em homenagem a uma espiã nazista.
    Já entre os alvos de busca, apreensão e quebra de sigilo bancário estão além de 11 parlamentares (dez deputados e um senador), blogueiros e youtubers, o publicitário Sérgio
    Lima e o empresário Luís Felipe Belmonte, ligados ao Aliança pelo Brasil, partido que o
    presidente da República pretende fundar, desde sua saída do PSL, no final do ano passado.
    Todos são bolsonaristas de carteirinha. Possuem fotos e imagens ao lado do “Mito” e estão
    sendo acusados de financiamento e/ou envolvimento com redes de fake news.

    Na noite de terça-feira, através de uma sequência de tweets, Bolsonaro postou que irá tomar “todas as medidas legais” para proteger seus aliados investigados pelo Supremo. Ele frisou também que não vai “assistir calado” enquanto “direitos são violados e ideias são
    perseguidas”. Na manhã de ontem (17/06), respondendo a pergunta de uma apoiadora no
    jardim do Palácio da Alvorada, disse que houve abuso na operação autorizada pelo STF contra
    seus aliados e que “está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”.
    Não por acaso, o governo Bolsonaro foi o único num total de 132 países de todo o mundo que
    não aderiu a uma iniciativa para estabelecer o compromisso de não difundir desinformação
    em meio à pandemia de covid-19. Até aliados de Bolsonaro como Israel, Hungria e Estados
    Unidos assinaram. Na América do Sul, só o Brasil ficou de fora desse compromisso.
    Enquanto a temperatura entre Bolsonaro e os demais Poderes sobe, a popularidade do
    presidente derrete de forma acelerada. A soma dos que consideram seu governo ruim ou
    péssimo já está em torno de 50%, ao mesmo tempo em que piora acentuadamente a
    expectativa para o restante do seu mandato.

    O caos em que Bolsonaro e seus apoiadores transformaram o Brasil não aparece como tal na mídia corporativa, também autodenominada grande mídia, mas tem sido alvo de frequentes reportagens e comentários em jornais, revistas e TVs de todo o mundo. Com exceção de veículos do Grupo Globo, os demais têm feito de tudo para transmitir a imagem de que “as instituições estão funcionando”, e que os problemas, quando não há como sonegá-los da população, são atribuídos aos “inimigos do Brasil”, aos que querem atrapalhar o governo, enfim aos “esquerdistas e comunistas”.
    Depois de 18 meses à frente do Palácio do Planalto, Bolsonaro não tem nada, mas exatamente nada, para apresentar como obra ou ação de seu governo a não ser criar todo tipo de problema interno (com mulheres, negros, índios, LGBTs, ambientalistas, professores, estudantes, cientistas, aposentados, pequenos e médios empresários, artistas) e externamente transformar o Brasil, de um protagonista respeitado, em pária mundial.
    Sem qualquer explicação a não ser o alinhamento e a subserviência aos interesses dos Estados Unidos, o governo Bolsonaro passou a hostilizar a Argentina, quase declara guerra à Venezuela, criticou a França, Alemanha e Noruega e não tem medido estocadas contra a China. Detalhe: China e Argentina são, respectivamente, o primeiro e o terceiro parceiros
    econômicos do Brasil.

    Ao contrário do que tenta argumentar o ministro da Economia, Paulo Guedes, não foi a
    pandemia que criou o caos em que o país se encontra. O caos já estava instalado. O Brasil
    fechou 2019 – o quarto ano após a deposição de Dilma Rousseff – com recordes históricos
    negativos: quase 12 milhões de desempregados, cerca de 40 milhões de pessoas trabalhando
    na informalidade, a doença e a fome voltando a se instalar entre os mais pobres e os novos
    pobres.
    O Brasil não quebrou ainda, devido às reservas de 390 bilhões de dólares deixadas pelos
    governos de Lula e Dilma. Reservas que Guedes e a própria mídia reconhecem como sendo a
    âncora do país. Só que tanto Guedes quanto a mídia se esquecem de acrescentar que elas
    foram fruto dos governos petistas, aqueles que, segundo essa mesma mídia, “quebraram o
    Brasil”.
    Há três meses, o covid-19 fazia sua primeira vítima fatal e de lá para cá o Brasil já se aproxima das 50 mil mortes e de um milhão de infectados. Isso, segundo dados oficiais. Como há uma enorme subnotificação, os números reais são muito maiores, podendo ser multiplicados por no mínimo seis. Em outras palavras, o Brasil já superou os Estados Unidos, transformando-se no epicentro mundial da pandemia e não há sinal de que a curva esteja prestes a começar a descer.
    Em plena pandemia, no entanto, o Brasil continua sem ministro da Saúde. O ocupante interino do cargo, cuja interinidade parece que será permanente, Eduardo Pazuello, é um general com especialização em logística. Os outros 22 militares que passaram a atuar na Pasta também não são do ramo. Os dois ministros que o antecederam nesse governo, ambos médicos, saíram, por discordâncias com Bolsonaro querer “receitar” cloraquina – uma droga no mínimo controvertida – para os tratamentos contra a covid-19, e ameaçar prefeitos e governadores que defendem o isolamento social.
    Por si só, o descaso de Bolsonaro para com o combate à pandemia seria motivo de sobra para que fosse aberto processo de impeachment contra ele. O presidente da Câmara dos
    Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já coleciona em seu poder 35 pedidos nesse sentido,
    oriundos de partidos políticos, entidades da sociedade civil e até de cidadãos comuns. Maia
    resolveu deixá-los na gaveta, por considerar que o momento “não é oportuno”.
    A mídia corporativa brasileira também não considerava o momento “adequado” para tratar do assunto. Talvez a prisão do Queiroz possa contribuir para que mude de ideia. Mesmo o Grupo Globo, que nos últimos meses passou a fazer críticas a Bolsonaro e à sua péssima atuação em relação à pandemia, não parecia nada disposto a colocar em pauta o  ]impeachment, ao contrário do que fez com Dilma Rousseff.
    Nas demais TVs, Bolsonaro continua nadando de braçadas e o apoio a ele nos telejornais pode
    até aumentar com a nomeação do deputado Fábio Faria (PSD-RN) genro de Sílvio Santos, dono
    do SBT, para o ministério das Comunicações. É importante lembrar que o ministério das
    Comunicações foi recriado para abrigar um integrante do “Centrão” e contemplar a mídia
    “chapa branca”, sempre de olho nas verbas oficiais de publicidade, que, apesar da crise, não
    param de crescer.

    Quem se lembra que Sílvio Santos mandou tirar do ar o Jornal do SBT, principal telejornal de sua emissora, no sábado, dia 23/05? Motivo: o Planalto não havia gostado da cobertura do dia anterior sobre a reunião ministerial que teve o sigilo levantado pelo STF. A truculência da ação de Santos, sem paralelos na história da mídia brasileira, revoltou até as emissoras afiliadas ao grupo, com vários “rebatizando” a sigla como Sistema Bolsonarista de Televisão.

    Mas se o apoio ao governo justifica o fato de que parte da mídia não abordava o tema impeachment, o que leva o Grupo Globo, que agora se coloca na oposição, a também, até agora, ter fugido do assunto? Será que a prisão de Queiroz e os desdobramentos que ela certamente trará vão alterar essa situação?
    O acompanhamento atento dos noticiários do Grupo Globo (O Globo, G1, CBN, TV Globo, GloboNews, Época, Valor Econômico) indica que os problemas da família Marinho com o governo se limitavam aos “excessos” de Bolsonaro e de alguns de seus ministros “terra plana” como Damares Alves, Abraham Waintraub e Ricardo Salles. Guedes continua sendo queridinho da família, que defende com unhas e dentes a sua agenda ultraliberal para o Brasil (redução de direitos sociais, estado mínimo, privatizações, submissão aos interesses dos Estados Unidos).

    Em outras palavras, para a família Marinho, pouco importa quem seja o ocupante da
    presidência, desde que a agenda ultraliberal continue sendo adotada e aprofundada e que o
    PT não retorne ao poder. Foi para isso que ela teve participação tão intensa no golpe,
    travestido de impeachment, contra Dilma. Foi para isso que ela jogou pesado em 2018 para
    que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse preso e não pudesse disputar as eleições.
    O sonho da família Marinho e da “elite do atraso” da qual é parte, sempre foi emplacar na
    presidência da República um candidato de centro, que poderia ser desde o seu funcionário e
    apresentador Luciano Huck até o banqueiro João Amoêdo, passando por Henrique Meirelles,
    Álvaro Dias e Geraldo Alckmim. Como nenhum deles decolou nas pesquisas de opinião pública,
    a solução, para neutralizar Lula e o PT, acabou sendo apoiar Bolsonaro.
    Nesse processo de estimular e ampliar o ódio ao PT, a Globo, mas não só ela, também se valeu de fake news. Exemplos?
    A condenação, sem provas, de Lula, seguida por sua prisão é fruto, em grande medida das mentiras que a mídia, Globo à frente, pregou ao povo brasileiro. A tentativa de comparar Lula, um humanista, a Bolsonaro, um autoritário com nítidas inclinações fascistas, é outro exemplo dessas mentiras estampadas em jornais como o Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo.
    A mídia corporativa se aproveita do senso comum, que ela mesma difundiu, de que é independente e que apenas apresenta a verdade ou a realidade ao seu público, para divulgar, como notícia, os seus próprios interesses. Para essa mídia é muito confortável, agora, em que o caos está instalado, tentar jogar a responsabilidade por iludirem o povo brasileiro exclusivamente nas fake news, no “Gabinete do Ódio” e nos militantes bolsonaristas.

    Não resta dúvida que eles possuem enorme responsabilidade pelas mentiras que são contadas diariamente aos brasileiros. A título de exemplo, basta lembrar que relatório produzido a pedido da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News identificou mais de 2 milhões de anúncios pagos pela então Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República em sites de fake news e até de pornografia. Muitos deles são exatamente os que agora estão sob investigação.
    Só que essas mentiras não surtiriam efeito se não tivessem tido e não continuassem tendo o beneplácito ou mesmo o apoio da mídia corporativa, quando lhe é conveniente. Exemplos? Quando o grupo Globo, mesmo agora que se posiciona de forma crítica contra Bolsonaro e é ameaçado com censura e não renovação da concessão, fez alguma reportagem investigativa sobre o teor das fake news? Qual veículo da mídia corporativa teve a coragem de romper com a farsa do tríplex atribuído a Lula? Qual veículo dessa mídia resolveu ir fundo nas denúncias que o advogado Tacla Durán quer fazer contra a turma da Operação Lava Jato em Curitiba? Qual veículo se dispôs a investigar, para valer, as denúncias envolvendo o clã Bolsonaro? Qual veículo de mídia investigou a fundo o paradeiro de Queiróz e suas ligações com o clã Bolsonaro?
    Enquanto a mídia corporativa, inclusive a Globo, em última instância, passava pano para Bolsonaro, ele se sentia cada dia mais à vontade para fazer ameaças, aprofundar crises e tentar estabelecer clima para um golpe de estado, na realidade um autogolpe.
    Como não existe nenhuma força política interna ou externa ameaçando-o politicamente (corrupção é crime previsto no Código Civil), um possível golpe teria como objetivo apenas ampliar os seus poderes. Algo como governar de forma absoluta, livre dos freios e contra freios do Legislativo e do Judiciário, como acontece apenas nas ditaduras.
    É interessante observar como todas as crises no governo Bolsonaro são provocadas por ele,
    por seus filhos ou por gente muito próxima a eles. Crises quase sempre seguidas por ameaças
    autoritárias e insinuações de que, com o apoio dos militares, que já estão em seu governo,
    poderia haver um endurecimento “em nome da democracia” ou “em defesa da democracia”.

    Essa retórica propositalmente confusa acaba sendo reproduzida e amplificada pelas fake news.
    É ela que está na origem de termos como “intervenção militar constitucional” ou “ditadura
    militar democrática”, que povoam cartazes de apoiadores de Bolsonaro em manifestações.
    Como nenhum dos que gritam esses slogans consegue explicar o que seria uma ditadura
    militar democrática, acabaram sendo apelidados de “gado”, por apenas seguirem o berrante
    do dono. No caso, uma manada cada dia mais agressiva e reduzida.
    Os “300 do Brasil”, de Sara Giromini, não passam de uns 30 gatos pingados. Até no
    “curralzinho”, armado pelo governo na saída do Palácio da Alvorada, a militância bolsonarista
    dá sinais de desalento. Tanto que os gritos de “Mito” deram lugar a cobranças em relação ao
    número de mortos pela pandemia e à inação do governo.
    Irritado com as cobranças, Bolsonaro estuda por fim ao “curralzinho”, ao mesmo tempo em
    que vem redobrando as insinuações de que teria apoio dos militares para um endurecimento.
    Sintomaticamente, Bolsonaro ainda não falou nada depois da prisão de Queiroz.
    A exceção dos militares que ocupam cargos em seu governo – perto de 2.500 – e dos de pijama
    que assinaram o manifesto, não se tem notícia de postura inquieta nos quartéis. Ao contrário.
    Mesmo as informações sobre esse setor sendo poucas, o que se sabe é que os militares não
    demonstram entusiasmo para aderir a uma aventura antidemocrática como parece desejar
    Bolsonaro.
    Pesquisas divulgadas nos últimos dias apontam para um visível desgaste na imagem dos
    militares brasileiros junto à opinião pública, exatamente pela excessiva aproximação e
    participação no governo Bolsonaro. O caso do ministério da Saúde é o mais sintomático. Em
    outras palavras, as críticas ao governo Bolsonaro estariam contaminando a própria imagem
    dos militares enquanto instituição.
    Um autogolpe do capitão, respaldado pelos militares, teria ainda muitos problemas com os
    quais se defrontar. Como se sustentaria interna e externamente? Com a crise econômica se
    aprofundando, a saída da pandemia, que ainda parece distante, promete ser nada alentadora.
    Basta lembrar que a queda na venda do comércio, em maio, foi a maior nos últimos 20 anos, e
    os dados da produção industrial estão descendo ladeira abaixo.
    Donald Trump, em plena campanha eleitoral para a reeleição, não parece disposto a apoiar
    uma aventura desse tipo por parte de seu declarado “love”. As Forças Armadas dos Estados
    Unidos certamente não demostrariam simpatia por seus colegas brasileiros, especialmente

    depois que a maior autoridade militar do país, general Mark Milley, pediu desculpas por “sua
    presença em ato ao lado de Trump ter criado a percepção de envolvimento dos militares na
    política interna”.
    O discreto comandante do Exército brasileiro, general Edson Leal Pujol, certamente viu com interesse essa declaração do colega. É desnecessário lembrar a diferença que existe entre Pujol e, por exemplo, o general Luis Eduardo Ramos, que ocupa a Secretaria de Governo de
    Bolsonaro. Mesmo descartando golpe militar, Ramos não deixou de advertir a oposição para “não esticar a corda”. Foi com Pujol e não com Ramos que o ministro do STF, Gilmar Mendes,
    manteve um encontro reservado no fim de semana, no qual, obviamente, o enfrentamento aos atos antidemocráticos esteve em pauta.
    Uma aventura golpista traria ainda problemas extras como criar novas dificuldades para o
    Brasil junto à comunidade internacional, afastar investidores e condenar o país a um isolamento político e econômico maior e mais profundo do que o já experimentado. Em síntese: mesmo que um autogolpe ou algo no gênero se concretizasse, sua continuação seria pouco provável.
    Quanto ao futuro imediato, como lembra a ex-presidente Dilma, “parte da direita rompeu com
    o neofascismo, mas sustenta o neoliberalismo de Guedes”. O que explica o fato de os pedidos de impeachment contra Bolsonaro não andarem na Câmara dos Deputados e explica, também, como o próprio STF, antes tão complacente com todos os ataques à democracia, finalmente resolveu reagir.
    Paralelo a isso e tendo em vista o aprofundamento da crise econômica e sanitária, os verdadeiros manifestantes em defesa da democracia e contrários a Bolsonaro estão de volta às ruas. Espera-se igualmente que a Justiça mantenha a disposição de ir fundo no desbaratamento da rede de fake news e na criminalização de seus financiadores e divulgadores. Espera-se também que Queiroz não tenha nenhum infarto ou coisa que o valha e possa falar sobre tudo o que sabe. Se isso acontecer, dificilmente o coração do bolsonarismo não será atingido.
    Os próximos dias prometem muitas emoções.

     

     

  • Vem aí o Bolsonarismo 2.0?

    Vem aí o Bolsonarismo 2.0?

     

    ARTIGO

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana*

     

    Terça-feira, 9, o presidente realizou mais uma reunião ministerial, mas, dessa vez, aberta ao grande público. Quem assistiu a reunião e observou o presidente, talvez tenha percebido a sua expressão doentia. Qual seria o diagnóstico? Ao que todos dizem: psicopatia!

    Os fatos e as análises dos últimos 15 dias têm mostrado que o bolsonarismo também está enfermo. Mas, infelizmente, pode ser que para essa doença já se tenha a cura. É sobre isso que vamos falar nesse texto, mas, antes disso, vamos tentar organizar a infodemia que nos assola.

    Alguns fatos dos últimos 15 dias. 1) O vírus continua livre leve e solto e a COVID-19 mata sem freios no Brasil. Entramos em desconfinamento quando deveríamos estar em lockdown. 2) O governo federal quer reduzir o número de infectados e de mortos não cuidando das pessoas, mas fraudando os números. Não é preciso chamar os militares para matar dessa vez, o vírus já faz isso. Os militares estão “apenas” fraudando os números com sua celebrada fidelidade canina ao chefe. 3) O governo cancelou diversas anistias concedidas aos perseguidos políticos da Ditadura Militar. 4) Não é mais apenas a direita e extrema-direita que furam a quarentena e vão às ruas protestar. 5) Movimentos antirracistas explodem nos EUA e podem ajudar a definir os rumos da eleição americana.

    Algumas hipóteses e especulações que circularam nos últimos 15 dias: 1) O bolsonarismo é a atualização do fascismo à brasileira com lastro no integralismo e na Ditadura. 2) Bolsonaro busca apoio nas Polícias Militares e na liberação das armas para dar um golpe, pois não teria forças suficientes nas Forças Armadas para bancar o golpe. 3) A possibilidade de impedimento de Bolsonaro ou mesmo de toda a chapa volta ao radar, seja por iniciativas no Congresso, STF ou STE. 4) A crise política, econômica e sanitária atingiu um limite e agora será administrada e o governo poderá ter certa estabilidade, já que se aliou ao Centrão. 5) O bolsonarismo é pior que o fascismo, pois representa um laboratório de novas formas de governança do capitalismo global na periferia, a exemplo da Hungria e da Turquia. Assim, esse novo inominável aponta para o aprofundamento da barbárie, da opressão e da destruição do país, provavelmente com Bolsonaro, ainda que esse projeto possa se aprofundar, mesmo sem ele.

    Para muitos analistas, haveria uma brecha aberta, uma crise, uma possibilidade de derrotar essa real ameaça às nossas vidas e à democracia brasileira.

    É possível que um dos equívocos dessas análises é continuar subestimando a força do bolsonarismo, o seu “parasitismo” e a sua possível “regeneração”, repetindo o mesmo erro de análise já ocorrido ao longo da maior parte da campanha eleitoral. É provável que o bolsonarismo, e, em especial, a energia ligada a ele, seja uma doença que, como a COVID-19, veio para ficar mais tempo do que imaginávamos! Negar esse fato pode ser similar a negar a pandemia. Mas, confessemos, esperamos estar enganados, apesar das evidências em contrário.

    Como explicar que o apoio ao governo ainda se mantém entre 25 a 30%? Como explicar essa suposta estabilidade? Nossa hipótese é que, sem entender o fenômeno das fake news é impossível compreender a força do bolsonarismo.

    Como afirmou Jorge William em uma reportagem de O Globo: “Muita ficção científica foi produzida no passado, especulando sobre robôs usurpando empregos e até postos de comando humanos, mas pouco se imaginou sobre robôs usurpando o debate público humano, o debate sobre a própria forma de uma sociedade humana se organizar e se deixar liderar.” Mas, não se trata apenas de robôs, trata-se de uma complexa engrenagem de simulação da verdade, como tentamos mostrar em diversos textos publicados aqui nos Jornalistas Livres.

    Em livro que lançaremos em breve pela editora Milfontes intitulado “Almanaque da Covid-19, 150 dias para não esquecer: a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real” argumentamos que para alguns líderes atualistas, como Bolsonaro e Trump, o passado e o futuro são mobilizados em discursos e prátic

    Charge de Cláudio Duarte

    as como dispositivos para a agitação política. O aspecto atualista desse fenômeno não significa uma ausência de remissões ao passado e ao futuro, mas que elas são subordinadas ao objetivo maior de garantir a agitação e a mobilização permanente de seus apoiadores, daí a aparente blindagem desses líderes. Antigas verdades que se revelaram mentiras podem ser apenas esquecidas e substituídas pela “verdade mais recente”, antigos aliados que pareciam cônjuges tornam-se do dia para a noite os mais ferozes inimigos. Como diz o mote de um canal de notícias, em 20 minutos tudo pode mudar.

    O caos, a confusão e a distração assentada numa complicada manipulação de eventos e personagens históricos são apenas um ingrediente a mais na receita. Uma de suas consequências é a mobilização política em prol de presentes-passados, passados-presentes e presentes-futuros autoritários, na maioria das vezes sustentada pela negação, nostalgia e ressentimento. O principal projeto de futuro desses movimentos talvez seja a destruição ou, pelo menos, o enfraquecimento das bases da Democracia e do Estado Liberal para o aprofundamento de certas dimensões do capitalismo contemporâneo, que alguns poderiam chamar de anarco-capitalismo. Agora não basta reduzir o tamanho do Estado, não basta privatizar; o objetivo é destruir mesmo a função mediadora do Estado, desregulamentando e retirando qualquer tipo de proteção social construída nos estágios anteriores do capitalismo: passar a boiada, na infame expressão do titular que simula ser o ministro do Meio Ambiente.

    A nossa hipótese, portanto, é a de que, em certas dimensões da temporalidade atualista em que vivemos, a verdade que mais importa é aquela que nos chega na forma de notícia, de news. A maior parte das pessoas tomam decisões orientadas por um ambiente de notícias em fluxo contínuo, consumido como entretenimento, embaladas pela crença de que quanto mais recente e atual é a notícia, mais relevante se torna para nossas vidas.

    Controlar a produção incessante das news – pouco importa se verdadeiras ou simuladas (fakes) – tornou-se a mais importante fonte de poder político, até mais relevante do que partidos e outros sujeitos tradicionais. Esse universo paralelo, da simulação da notícia como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos a história da COVID-19 no Brasil. Esses ambiente de universos simulados é o hospedeiro que o bolsonarismo, e também o trumpismo, parasitam em simbiose.

    E, nesse sentido, uma das coisas mais interessantes da reunião ministerial pode ter sido uma possível atualização do discurso do Paulo Guedes. O projeto (agora apoiado por ele?) de expandir, renomear e ampliar o Bolsa Família pode apontar para o futuro do bolsonarismo. Uma atualização do Bolsa Família pode significar uma recomposição da base do bolsonarismo, a exemplo do que ocorreu no primeiro governo Lula, como mostra a tese do lulismo de André Singer?

    Improvável de acontecer de novo? Tomara que não aconteça. Mas, em história o improvável vive acontecendo e os estrategistas militares do Planalto sabem disso muito bem.  Aliás, eles já devem ter acesso a diversas pesquisas indicando esse caminho de sobrevivência na base da sociedade. Uma delas, divulgada pelo jornalista José Roberto Toledo, apontava que Bolsonaro perdeu apoio entre a elite durante a pandemia e a queda de Moro.

    Mas, que a avaliação em ótimo e bom do governo continuava na casa dos 25 a 30% divididos, mais ou menos, assim: 8-10% bolsonaristas raiz (olavistas, emprededores reais e ficcionais, armamentistas, policiais e militares); 6-8% religiosos, em especial, neopetencostais; 5-7% ultraliberais, guedistas; 5% pobres que receberam o auxílio emergencial de 600 reais. Ampliar ou não esses novos 5% passa a ser um das escolhas políticas do governo. Em política, por vezes, a sobrevivência é mais forte do que qualquer ideologia.

    A pandemia possibilitaria conciliar a agenda anarco-liberal, o ataque ao Estado, ao funcionalismo, a qualquer tipo de garantia ou proteção social com um projeto de renda mínima ou básica? Ao que parece, sim. O governo aliou-se ao centrão para sobreviver e isso foi amortecido junto à sua base de forma relativamente eficiente, mesmo representando uma ruptura com o discurso de campanha.

    O reagrupamento de boa parte da base de apoio pós-queda de Moro é um fenômeno que precisa ser visto com muita atenção. Foi muito rápido e parcialmente eficiente. Talvez haja uma atualização do discurso econômico tendo em vista a conjunção das crises que vivemos. A reunião de terça-feira aponta para isso. Em poucas palavras: pode estar sendo gestado o Bolsonarismo 2.0. Afinal, o projeto econômico de Guedes é não ter projeto algum, apostar no caos e na capacidade dos poderosos revertê-lo em benefício privado.

    A máquina de fake news rapidamente pode contribuir para ajustar o discurso para a base já consolidada. E o novo grupo que poderá chegar pode ser, também, rapidamente introduzido no interior dessa verdadeira máquina de guerra de simulação da verdade. Mesmo que se perca uma parte do apoio ultra-liberal, ele poderá ser compensado com o ingresso de novos membros nessa torcida fanática e perigosa.

    O número de avaliação regular está diminuído e migrando para o ruim e péssimo. Mas, tudo tem limite. Podemos supor uma unidade, que não existe, entre os 70%. Mas, não seria impossível que sejamos traídos, isto é, que a médio prazo, apesar de tudo, a avaliação de Bolsonaro aumente. Não significa que vai acontecer, mas é um cenário possível, ainda que improvável neste momento.

    Talvez o cálculo seja que o Bolsonarismo 2.0 ajude a brecar a queda de popularidade e também mantenha a base. Impeachment sem grande insatisfação não passa. E Rodrigo Maia sabe. Ele pode dar um bote ainda? Aparentemente foi neutralizado.

    Enfim, a ideia básica que pode fazer surgir o Bolsonarismo 2.0 é: não basta comprar o Centrão, é preciso comprar também base popular.

    E a boa notícia? Quem é um dos maiores fiadores do bolsonarismo? Trump! Talvez a boa notícia que tanto esperamos esse ano possa vir não daqui de dentro, mas da eleição americana. A derrota de Trump seria como a tão esperada vacina. Não depende de nós.

    Assim, o que podemos fazer nesse momento é contribuir para a desaprovação do governo continuar a crescer por meio da militância nas redes e nas ruas. As duas ações exigem de nós novas sabedorias práticas, o que significa novas atualizações em sentido positivo. Além disso, toda e qualquer ação de combate e controle das fake news são necessárias no plano micro e macro de nossa vida social.

     

    (*) Autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem.

    Esse artigo contou com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em História pela UFOP

  • A DOUTRINA BOLSONARISTA

    A DOUTRINA BOLSONARISTA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    22 de maio de 2020. Por ordem de Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, partes do vídeo da reunião de governo realizada em 22 de abril foram divulgados. Todos assistimos. Sérgio Moro afirma que há no vídeo provas de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir politicamente na Polícia Federal.

    Quero aqui examinar o vídeo, buscando entender como os valores fundamentais do bolsonarismo atravessam as manifestações de Bolsonaro e de seus ministros. O vídeo é o documento mais completo que temos para tentar entender a doutrina bolsonarista.

    Fica evidente que o bolsonarismo se considera um projeto político revolucionário. Não é cortina de fumaça. Não é simples retórica usada para esconder os interesses do capitalismo internacional. É genuíno. É sincero. Bolsonaro e seus seguidores estão mesmo convencidos de que estão promovendo uma revolução. O revolucionário é o tipo social mais perigoso que existe. Na ética revolucionária vale tudo para acelerar o processo histórico rumo à utopia. O revolucionário não tem limites.

    Qual é a utopia bolsonarista?

    Diferente das utopias modernas, a utopia bolsonarista não aponta para um futuro inédito, para o novo a ser construído. Trata-se de uma utopia reacionária, com o objetivo de reconstruir o mundo perfeito que já teria existido no passado. Na temporalidade bolsonarista, o passado é a matriz da utopia. O futuro é a regeneração. O presente é a decadência a ser superada pela ação revolucionária.

    Seria equivocado dizer que a utopia bolsonarista é conservadora. Conservadores, hoje, são aqueles que tentam salvar as instituições democráticas da revolução bolsonarista.

    Qual é o passado que serve como objeto de desejo para a utopia reacionária bolsonarista?

    Não é a ditadura militar instituída no Brasil em 1964. E aqui temos aspecto muito importante para a compreensão do bolsonarismo. O deputado Jair Bolsonaro ficou quase 30 anos no parlamento elogiando a ditadura. O objeto da nostalgia do deputado era a ditadura militar. A nostalgia do presidente Bolsonaro é outra. Em algum momento aconteceu o encontro do deputado Bolsonaro com a crítica da modernidade desenvolvida por Olavo de Carvalho ao longo da década de 1990. Esse encontro, que ainda precisamos descobrir como aconteceu, quando aconteceu, é o berço do bolsonarismo como projeto revolucionário.

    O presidente Jair Bolsonaro idealiza um mundo pré-moderno, anterior à invenção do Estado, onde os patriarcas pegam em armas, se organizam em milícias para proteger sua propriedade e sua família, para dominar sua propriedade e sua família. Esse é o núcleo duro do projeto bolsonarista, manifestado não apenas nas falas do presidente na tal reunião, mas nas diversas tentativas do governo em flexibilizar as regras de controle do comércio de armas de fogo, quase sempre à revelia das Forças Armadas, que legalmente têm autoridade técnica sobre a matéria.

    Na doutrina bolsonarista, o cidadão de bem, homem, proprietário, deve ser livre para matar, se entender que é necessário para defender seus interesses. O regime de força que o bolsonarismo tenta implantar no Brasil não tem o objetivo de reeditar a ditadura militar. O objetivo é transformar o país num continente feudal, onde cada lote de terra é guardado pelo patriarca armado, senhor da vida e da morte de todos aqueles que vivem sob sua tutela/proteção. Essa é a liberdade que Weintraub e Bolsonaro querem defender, dizem estar dispostos a tudo para defender.

    Na utopia bolsonarista, os filhos devem ser criados à imagem e semelhança dos pais, sem nenhuma interferência externa à casa. A educação pública seria, então, ato de tirania, a tentativa do Estado em corromper os filhos do patriarca. Por isso, tudo que Weintraub fez desde que assumiu o Ministério da Educação foi tentar desmoralizar a educação pública. Desmoralizar os professores, as universidades, o ENEM. Não é incompetência administrativa. É projeto. É ideologia. É a doutrina bolsonarista.

    E Paulo Guedes? O chicago boy tão incensado pela imprensa liberal, definido como a reserva técnica dentro do governo do capitão aloprado. Lembro de Eliana Catanhede dizendo que Bolsonaro havia feito um “golaço” ao convidar Guedes para comandar a fazenda. Ah, essa “direita democrática” brasileira. Ou são cínicos ou são burros. Talvez as duas coisas.

    Guedes é tão militante como Weintraub. Sua adesão ao bolsonarismo também é ideológica. A utopia reacionária bolsonarista cai como uma luva no neoliberalismo religioso de Paulo Guedes. “Nunca briguei com Guedes”, disse Bolsonaro. Por que brigaria? Eles foram feitos um para o outro.

    Guedes não é um infiltrado do mercado que tenta disciplinar Bolsonaro. Guedes não é a concessão feita por Bolsonaro para agradar o mercado e se sustentar no governo. Guedes é escolha ideológica, é prova de que o capitalismo especulativo não tem nenhum compromisso com a civilização.

    “Tem que privatizar a porra toda!”, disse Guedes. Somente na utopia bolsonarista, o fanatismo de Guedes é viável. Somente em um mundo dominado pela casa, o Estado pode ser mínimo, quase inexistente, como professa a religião de Paulo Guedes. O Estado é mínimo porque a casa é grande. Definitivamente, Paulo Guedes é militante bolsonarista.

    O bolsonarismo também evoca certo conceito de democracia e de representação política, mas numa chave muito diferente daquela que caracteriza o experimento democrático liberal-burguês. Na democracia liberal, o Estado é dividido em três poderes, que estabelecem entre si relação de controle recíproco, naquilo que costuma ser chamado de “sistema de freios e contrapesos”. Na democracia liberal, a participação política do cidadão é indireta. Periodicamente, o sujeito vai às urnas escolher seus representantes, para quem delega sua soberania.

    O bolsonarismo altera o conceito de democracia e redimensiona a ideia de representação política, se aproximando muito da lógica fascista. Para o bolsonarismo, toda e qualquer mediação é corrupta em si. Nesse sentido, Legislativo e Judiciário nada mais fariam do que se locupletar do dinheiro público e criar dificuldades para o poder Executivo, único legítimo, o único verdadeiramente capaz de representar o cidadão.

    O bolsonarismo não tolera negociar com os outros poderes, não aceita nenhum tipo de interferência. A representação política bolsonarista se dá pela projeção direta, sem mediação, de soberania no chefe, o único considerado verdadeiramente honesto. Existiria entre o chefe e o cidadão um vínculo afetivo, de confiança, de cumplicidade. O chefe representaria o cidadão porque também é homem honrado, pai de família em luta contra a corrupção sistêmica. O fascista é sempre um homem comum.

    A representação liberal é pragmática, é movida pelo interesse do cidadão em delegar sua responsabilidade cívica a outro, garantindo, assim, o ócio necessário para se dedicar a seus assuntos privados. A democracia liberal é desmobilizadora. Já a representação fascista é afetiva, emocional, depende de constante agitação. O fascismo é mobilizador.

    A democracia bolsonarista significa uma sociedade organizada em clãs, cada qual protegido por um patriarca armado, homem de bem, representado diretamente pelo chefe maior, entendido como um deles.

    O bolsonarismo opera com conceitos que são constitutivos da tradição política ocidental, como liberdade, democracia e representação política. Conceitos que são elásticos o suficiente para permitirem a leitura fascista. O fascismo não é fruto estranho no terreno da tradição política ocidental. É possibilidade política aberta por essa tradição. De alguma forma, o fascismo é parte daquilo que somos, que todos nós somos. Por isso, ora ou outra o ovo da serpente dá cria. Por isso, é necessário estar sempre vigilante. Quando menos esperamos, o fascismo brota do chão, sem aviso prévio. Simplesmente chega, de mansinho, enquanto tudo estava normal, enquanto as instituições “estão funcionando”. Funcionam até o exato momento em que não funcionam mais.

    Não sei se o vídeo da fatídica reunião comprova as acusações de Sérgio Moro. O processo legal, que Moro nunca respeitou quando era juiz, dirá. Fato mesmo é que o vídeo é o tratado de definição da doutrina bolsonarista. É o texto que Olavo de Carvalho não escreveu.

     

  • Sem ‘bala de prata’, com cloroquina do Paulo Guedes

    Sem ‘bala de prata’, com cloroquina do Paulo Guedes

    ARTIGO

    Daniel Pinha, professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

     

    A divulgação do vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro não foi a “bala de prata” para derrubar o governo, muito menos enfraquecer o bolsonarismo. E o problema não está no conteúdo do material divulgado, mas na expectativa gerada em torno dele: nem o presidente nem a ideologia que lhe sustenta caem com uma “bala de prata”. Para cair o governo por meio de impeachment, como sabemos, o caminho é longo e depende do procurador Geral da República e do Congresso, um um processo que é jurídico e político. Para a queda do bolsonarismo, o percurso é ainda mais longo e tortuoso, algo que nem a circunstância hipotética do impeachment será capaz de derrubar.

    Contraditoriamente, o vídeo enfraquece o governo e fortalece o sentimento político que o sustenta. O ponto central que levou à divulgação do vídeo é a acusação de Moro, mas há outros aspectos laterais que nos ajudam a entender a lógica e o funcionamento do governo, para além da exposição dos lunáticos olavistas, como mostrou o artigo de Valdei Araujo e Mateus Pereira aqui no Jornalistas Livres.

    Dois aspectos, no entanto, aparecem de maneira “lateral” na contenda com Moro, mas são fundamentais para o nosso contexto atual: enfrentamento da pandemia de Covid (1) e crise econômica dela decorrente (2). A ausência do primeiro e a presença do segundo na reunião nos ajudam a entender os próximos passos e é um termômetro decisivo para o enfraquecimento do governo.

    Sem bala de prata, com provas

    O vídeo não deixa dúvidas de que a acusação de Moro é procedente. Bolsonaro queria usar a Polícia Federal para proteger a si, seus amigos e sua família. Mais grave ainda, como ferramenta de polícia política para perseguir e atacar adversários, como fica claro nos momentos em que ele reclama de falta de acesso a sistema de investigação e informação. Assistindo a reunião completa, fica claro que a fala de Bolsonaro sobre a necessidade de substituição do “chefe, do diretor e do ministro” é, na verdade, a conclusão de uma longa “bronca”, toda ela direcionada a Moro, que já contava cerca quase dez minutos.

    Para “Bozo”, Moro não usava seu prestígio social e jurídico para defender aguerridamente o governo em meio aos ataques de todos os lados. Na hora de colher os louros, Moro colhia; na hora de defender o governo de ataques, se escondia. Bolsonaro cita o episódio de sua participação nas manifestações antidemocráticas de 19 de abril, e suas repercussões negativas na Imprensa e no Judiciário. Pedindo mais engajamento político de seus subordinados, insinuou que era o momento de ministros, com bom trânsito no Judiciário e na Opinião Pública, se apresentarem para a luta. Era óbvio que ele falava de Moro, um bolsonarista de última hora que, tal e qual um bom lava-jatista, apoiou o projeto sem fechar com um “pacote completo” que incluía “terra-planismo”, negacionismo científico, gestos milicianos e ataque ao STF.

    Moro foi para o governo com nome próprio e histórico de parceria com o núcleo lava-jatista do STF – sobretudo Barroso, Carmem Lúcia, Fachin e Fux (In “Fux we trust”, lembram?). Ao seu modo, autoritário e esbravejante, Bolsonaro pedia a Moro que submetesse sua imagem ao bolsonarismo. Se tivesse consciência democrática, Moro sequer aceitaria o convite de Bolsonaro, depois de condenar à prisão o principal líder de oposição ao governo; tampouco aceitaria continuar se subordinando a um presidente que se soma a manifestações políticas que pedem retorno do AI-5. Isso para citar apenas dois exemplos.

    Não é este o Sérgio Moro, mas dessa vez ele apresentou provas concretas: está lá, na voz de Bolsonaro, que exigia acesso a investigações de órgãos de inteligência. Que fique claro: ele não reivindicava a prerrogativa constitucional de demitir ministro nem nomear diretor, mas, sim, o acesso às investigações. Prometeu e fez. Demitiu Moro, Valeixo e o superintendente do Rio. Queria tornar oficial o que já é sua prática oficiosa (e criminosa), e ele esbravejou isto para quem quisesse ouvir no último dia 22, após a divulgação do vídeo. Se o governo cairá, diante de tantas provas e confissão, não sabemos. Dilma caiu por pretensas “pedaladas fiscais”; Temer não caiu, mesmo depois de ter sua voz exposta consentindo com crimes praticados por empresário corrupto (para dizer o mínimo). O processo de impeachment é político e juridico.

    Cloroquina de Paulo Guedes

    Paulo Guedes é uma das figuras mais representativas da mudança política que conduziu Bolsonaro da Câmara dos Deputados ao Planalto. Enquanto deputado, defendia um programa econômico nacional desenvolvimentista, alinhado ao modelo implementado pela Ditadura Militar. Orgulhava-se das obras monumentais, do padrão de desenvolvimento ancorado no Estado. Como candidato, já no quadriênio 2014-2018, enquanto exercia seu mandato, se alinhou ao discurso neoliberal como forma de agradar aos mercados e de polarizar com o governo Dilma, disputando o eleitorado de Aécio Neves, que em 2014 somara 49% no segundo turno.

    Paulo Guedes era o nome ideal, com a experiência de quem atuou no regime ditatorial chileno de Augusto Pinochet. No governo, tal como Sérgio Moro, o “Posto Ipiranga” virou um elo entre governo e grande imprensa. Como forma de diferenciar Guedes e sua agenda econômica do restante do governo, comentaristas da Globo News cunharam o termo “ala ideológica”, como se Guedes não estivesse nela, mas, um quadro “técnico”, distante da política. Assim impôs-se um consenso em torno da necessidade da reforma da previdência como único caminho possível para uma modernização econômica. Paulo Guedes foi bastante poupado pela grande imprensa na cobertura sobre o vídeo e a reunião. Ali ele defendeu o turismo sexual em nome do livre mercado e a privatização da “porra” do Banco do Brasil, só para citar dois exemplos. Lamentou que o governo seja obrigado a subsidiar pequenas empresas para saída da crise – estas, as maiores geradoras de empregos do país.

    Não há motivos, portanto, para não considerarmos ele também um lunático. Mais do que isso. Na reunião ficou claro que há dois programas econômicos em disputa no governo. Um encampado pelos generais, Rogério Marinho e Tarcísio Freitas; e outro defendido pelo Posto Ipiranga. O motivo central daquela reunião, aliás, era apresentar e discutir o “Pro-Brasil”, coordenado pelo general Braga Netto, ministro Chefe da Casa Civil. O programa recebeu o apelido de novo Plano Marshall (prontamente atacado por Guedes) pela injeção de investimento público na economia em contexto de reconstrução, comparando o pós-pandemia ao pós-guerra. Nada muito diferente da tendência mundial atual, entre países de economia neoliberal, como França, Alemanha e Estados Unidos.

    Para Paulo Guedes, a saída continua sendo a radicalização das reformas neoliberais, privatizações (inclusive da “porra” do Banco do Brasil), cortes de direitos e retração econômica. Rogério Marinho, ministro da Integração Nacional, ressaltou que a crise econômica gerada pela pandemia não admite a reafirmação de dogmas, destacando a tendência internacional de maior intervenção econômica do Estado. Em resposta, Guedes reafirmou seu dogma: a saída para a crise da Covid é, ainda, a solução neoliberal, estreita e unilateral. Esta não conhece contexto, circustância, conjuntura internacional. Paulo Guedes revelou ali a sua própria cloroquina. Haverá um antídoto anti-bolsonarismo?

    Um governo como este não cai por meio de uma “bala de prata”. A geração da expectativa da “bala de prata” é motivada pelo ritmo temporal acelerado e ansioso que caracteriza o público de internet (de esquerda e de direita). Um tempo atualista, como denominam Valdei Araujo e Mateus Pereira em suas pesquisas. Acompanham a cena política nacional como se estivessem assistindo uma série de Netflix em final de temporada. O tempo real da política, entretanto, é outro, conhece outros ritmos. O bolsonarismo, enquanto fenômeno político e cultural mais amplo, não termina com o governo Bolsonaro, como gosta de lembrar o historiador Rodrigo Perez. Ele se alimenta das manifestações golpistas de Weintraub, da fala de Damares sobre as feministas do Ministério da Saúde, da exaltação armamentista do presidente da Caixa, da fala de Ricardo Salles que vê na crise do corona ótima oportunidade para passar projetos anti-ambientais.

    No vídeo, o bolsonarista-raiz reafirma o seu próprio modo de ver o mundo, a besta fascista que carrega em si. É o público que hoje se diz muito satisfeito com a atuação de Bolsonaro na pandemia, girando em torno de 25 a 30% pelas últimas de opinião. Para eles não há remédio a curto prazo; a solução imediata é colocá-los em minoria, diminuindo sua capacidade de capilarização no seio da sociedade. Infelizmente a pandemia de Covid atinge a todos. E a população brasileira está sentido na pele o que é ter um governo sem compromisso com as vidas. Países com situação sócio econômica como a nossa, como Argentina, tem números muito menores de infectados e mortes.

    A reunião ministerial retratou, pela ausência, este descaso. Sobre as vítimas e ações de combate ao virus, nada. Em meio a maior epidemia dos últimos cem anos, a reunião deixou claro para qualquer brasileiro que o enfrentamento da pandemia e das vítimas não é prioridade neste governo. Uma política de morte posta a prova. A cloroquina de Paulo Guedes, por sua vez, aponta para uma política econômica “anti-povo” e altamente destrutiva para os mais pobres. Não é necessário ser de esquerda para chegar a essas conclusões. Não haverá bala de prata, mas há crise. Há mito capaz de sobreviver a ela?