Jornalistas Livres

Tag: panelas

  • O DOCE SOM DAS PANELAS

    O DOCE SOM DAS PANELAS

     

    ARTIGO

    RODRIGO  PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Engana-se quem acha que o corona vírus, a covid-19, é apenas evento sanitário. É, antes de tudo, o fato político mais importante desde o final da guerra-fria. A pandemia desafia modelos de sociedade que se tornaram hegemônicos nos últimos anos.

    A pandemia está mostrando que a utopia liberal do Estado mínimo é catalisadora de barbárie, está transformando em keynesianos políticos liberais da estirpe de um Macron e até mesmo de um Trump. O mundo não será o mesmo depois do corona-vírus. O capitalismo não será o mesmo.

    No Brasil, a covid-19 está testando a liderança de Jair Bolsonaro e o projeto econômico que se sagrou vitorioso desde o golpe parlamentar que, em 2016, derrubou Dilma Rousseff.

    Uma coisa tem relação com a outra, mas não são necessariamente iguais. Ou para ser mais direto: o neoliberalismo avalizou Jair Bolsonaro pois viu nele a chance de, finalmente, se legitimar em governo eleito. Mas Jair Bolsonaro não é exatamente um projeto neoliberal.

    “Bolsonaro é liberal de véspera”, como disse Rodrigo Maia, esse sim, o grande líder do neoliberalismo brasileiro.

    O que estou querendo dizer é que os vínculos de Bolsonaro com a agenda neoliberal não são orgânicos. Muito pelo contrário. Já há algum tempo, o mercado financeiro desconfia que Bolsonaro não é o presidente dos seus sonhos. Temer era o presidente dos sonhos do mercado financeiro. Sem nenhum projeto populista, respeitador dos ritos institucionais e prudente o suficiente para não criar crises desnecessárias, Michel Temer, definitivamente, era perfeito para o mercado financeiro. João Dória também seria. Luciano Huck também.

    Bolsonaro não é. Se Bolsonaro cai, a marcha neoliberal continua firme, talvez até mais forte.

    Já nos primeiros dias de quarentena, Bolsonaro se viu diante de algo inédito. Os panelaços que marcaram a derrocada de Dilma Rousseff se voltaram contra ele, e em bairros ricos, onde o presidente costumava contar com eleitores leais.

    As pessoas estão assustadas, irritadas com o confinamento. Não gostaram de ver o presidente fazendo pouco caso da doença, convocando protestos de rua e tocando apoiadores quando ele mesmo era suspeito de ser portador do vírus. Bolsonaro esticou a corda na lacração, como percebeu o próprio Olavo de Carvalho.

    Seria a morte política de Bolsonaro? É sempre necessário evitar a tentação de transformar análise em torcida. Política não é futebol e muita ajuda quem é capaz de pensar coladinho na realidade, sem mutilá-la para fazer caber nos próprios desejos.

    Além disso, político vivo nunca morre.

    Ofuscado por ministros e desautorizado por governadores. De fato, esse é o pior momento da vida pública de Jair Bolsonaro desde que ele deixou de ser deputado de baixo clero para se transformar em uma das principais lideranças políticas do país.

    Bolsonaro reagiu e, para os seus interesses, reagiu bem.

    Como de costume, dobrou a aposta, apesar de ter adotado tom mais sóbrio, menos lacrador. Convocou a imprensa alinhada e no programa do Ratinho insistiu na narrativa de que a covid-19 é conspiração midiática e os governadores estão quebrando a economia, tirando a comida do prato de milhões de trabalhadores precarizados que dependem da circulação social para sobreviver.

    Mecânicos, cabeleireiras, flanelinhas. Bolsonaro está se apresentando como o defensor do subproletariado brasileiro, está monopolizando a preocupação com a defesa da economia.

    Enquanto governadores e o ministro da Saúde só falam em quarentena, em fechar lojas, Bolsonaro se mostra preocupado com aqueles que não terão o que comer.

    O colapso econômico é a única certeza que temos. Bolsonaro já está pensando no dia depois de amanhã. Se a covid provocar um genocídio, os sobreviventes estarão desesperados, desempregados, passando fome. Bolsonaro dirá que de nada adiantou quebrar a economia. Se as medidas adotadas até aqui funcionarem, Bolsonaro dirá “eu avisei que era só uma gripezinha, tá ok?” e acusará a mídia e os governadores de terem quebrado a economia por nada. Ele vence ou vence. A ver se vai funcionar, mas é certo que ele já tem uma narrativa para chamar de sua.

    Não é loucura. É método. Continuará equivocado quem insistir em tratar Bolsonaro como louco, como idiota. Não é possível ficar quase 30 anos no Congresso Nacional sem aprender algo. Bolsonaro está sendo orientado por gente muito poderosa, que há anos vem desestabilizando democracias ao redor do mundo.

    Temo que o som animador das panelas seja algo ilusório.

    Ontem, em 23 de março, o Datafolha publicou pesquisa sobre a avaliação popular do governo. Nela, 35% dos entrevistados definiram como “ótimo e bom” a atitude de Bolsonaro diante da crise sanitária, o que sugere que a base social do bolsonarismo raiz continua relativamente intacta. Outros 26% avaliaram como “regular” a liderança do presidente.

    Já 61% consideram pelo menos aceitável o comportamento de Bolsonaro na crise sanitária!

    Imaginem quando os precarizados começarem a passar fome. O mecânico, o flanelinha, a cabeleireira. Vão culpar quem? Aqueles que forem identificados como responsáveis pela quarentena? Pode ser que sim. A aposta de Bolsonaro é essa.

    “Mas isso é mentira! Bolsonaro retira direitos, ataca a classe trabalhadora”.

    Sim, mas a realidade não é auto-evidente. Esse talvez seja o preceito político mais importante de todos. Precisamos de política pra viver, justamente, porque a realidade não é auto-evidente.

    Não à toa as igrejas estão abertas e a máquina de fakenews está operando. A narrativa de Bolsonaro já está circulando no submundo do Whatsapp.

    Sei que é desopilador chegar à janela, bater com força a colher de pau no fundo da frigideira e gritar “Fora Bolsonaro”. Mas não é suficiente. É necessário mostrar para as pessoas que a crise sanitária é potencializada pelo desmonte do Estado em curso no Brasil desde 2016.

    É necessário contar para as pessoas que a crise institucional da qual o governo de Bolsonaro é resultado é a manifestação da radicalização da disputa pelo controle do Estado. Nessa disputa, o capital financeiro quer transformar o Estado em fiador da especulação, quer Estado máximo pra si. Nós queremos que o Estado cumpra sua missão civilizatória, o que, entre outras coisas, significa oferecer à população saúde pública de qualidade.

    Esse é o núcleo duro da história recente brasileira. Nessa história, o bolsonarismo é parte do nosso drama nacional, é doença social que não será curada do dia pra noite. Não existem atalhos, canetadas capazes de derrubar o bolsonarismo.

    A cura é a boa política, é o investimento de energia política na narrativização da realidade. Repito, correndo risco de ser redundante: a realidade não é auto-evidente. Se fosse, Bolsonaro ainda estaria no buraco de onde jamais deveria ter saído.

    Tal como o corona vírus, o bolsonarismo não desaparecerá do dia pra noite. Vai levar tempo, vai matar muita gente ainda. É que o bolsonarismo não é apenas fenômeno político. É fenômeno cultural. É algo entranhado na alma da nossa geração.

    É doce, e ilusório, o som das panelas.

     

     

  • Não aposentem suas panelas, por favor!

    Não aposentem suas panelas, por favor!

    Acordei indignada. Sensação que me trouxe esperança novamente, pois achei que o caos que se tornou o Brasil pós-impeachment tinha matado minha capacidade de indignação por asfixia.

    Não! Eu estou profundamente preocupada e irritada com o “salve-se quem puder” que nosso país se tornou. Condição iniciada e estimulada pelos “lava-jatistas” que assaltaram o poder por meio de um processo de impeachment absolutamente inconstitucional e fomentado por um ódio coletivo a um único partido – que de santo não tem nada – porém, disfarçado de “combate à corrupção”.

    – “Primeiro, a gente tira a Dilma! Depois, a gente tira todos os corruptos”, berravam.

    Pois bem, arrancaram uma presidenta legítima e democraticamente eleita, sem nenhum crime de responsabilidade e colocaram um “vice” – que está inelegível pela lei Ficha Limpa – que, por sua vez, nomeou para os ministérios um bando de “lava-jatistas” corruptos e engajados em salvar o próprio rabo. Tanto é que Temer já amargou a “queda” de mais de meia dúzia de seus ministros, todos envolvidos em escândalos, um pior que o outro.

    Embora muitos poderosos desejem que a população seja uma massa de manobra apática e estúpida, ela não é. (Ao menos, não sempre.) As pessoas estão assistindo, no camarote de seus smartphones, que as regras fundamentais que deveriam sustentar nossa sociedade não valem mais nada. Basta ter empáfia suficiente para fazer o que quiser e tirar proveito para si. Ok, não sejamos ingênuas de acreditar que isso não acontecia antes. Infelizmente, sempre fez parte da cultura brasileira e do hábito daqueles que podem comprar a “justiça”. No entanto, existia o temor geral de que, se pego em flagrante, teria que responder e ser punido de algum modo, mesmo que “apenas” simbolicamente, com a própria reputação falida.

    O fato é que, pós-impeachment, nem sequer precisa-se esconder o delito. A exceção virou a regra. E por que não dizer que, para muitos, virou moda.

    Ora, se o Renan Calheiros pode ignorar uma ordem do STF e não ser punido;

    Se um áudio de Romero Jucá, no qual ele admite que o impeachment foi, na verdade, um grande pacto para salvar os “lava-jatistas” e nada aconteceu;

    Se o juiz Sergio Moro autoriza vazamento de uma gravação totalmente ilegal da Presidência da República, mas coloca em sigilo listas com nomes de lideranças partidárias envolvidas no esquema de propinas da Odebrecht (que, curiosamente, não mencionam Dilma e nem Lula, mas implicam, por exemplo, Aécio, Alckmin, Serra & Cia, e tudo fica por isso mesmo, pior, o tal Moro continua sendo tratado como herói pela grande mídia… Por que haveríamos de nos preocupar com as consequências da lei em nosso cotidiano?

    Cadê a panela?

    Quando se misturam a impunidade escancarada e o ódio coletivo, explode uma sociedade violenta, sem empatia e preocupação com o bem comum. Ou seja, um campo de guerra. Não à toa, estamos testemunhando tragédias nas ruas de Espírito Santo e Rio de Janeiro; nos presídios de Rio Grande do Norte, Roraima e Amazonas; perseguições e assassinatos com motivação de aversão ao que é entendido como fora do “padrão aceitável”; declarações de ódio, racismo, misoginia, lgbtfobia, xenofobia nas redes sociais e reuniões familiares… Essa lista poderia se estender quase que infinitamente, mas acredito que foi suficiente para entender com o que estamos lidando.

     

    Comecei dizendo que estou indignada. E minha indignação não se restringe ao que nosso país tem se tornado depois do impeachment. Também não me conformo que a população que bateu panela e saiu às ruas gritando “Fora PT”, esteja inerte perante tudo que tem acontecido. Muitos estão dizendo que desistiram, pois é uma luta perdida, que não há esperança…

    Cadê a panela 2?

    Como assim? Então, acenderam o incêndio que está devastando nossa democracia, nossas instituições e direitos básicos duramente conquistados; e, simplesmente, vão desistir? Irão, sem qualquer escrúpulo, se refugiar em seus condomínios fechados, em suas escolas e previdências privadas? Era mesmo apenas um ódio irracional contra Lula e o partido que ele ajudou a criar? Foi uma manha infantil para extravasar desgostos desconexos, muitos deles inventados pela Rede Globo e afins?

    Ninguém pode negar que operação Lava-Jato tem sido essencial para lançar luz à podridão estrutural em nosso sistema político. Porém, é necessário admitir que ela tem alguns problemas sérios, como a parcialidade descarada de seu manda-chuva, o juiz Sergio Moro. Sua última cartada foi defender Temer das acusações feitas por Eduardo Cunha, as quais afirmam que o grande chefe do esquema de vantagens e propinas da Petrobras é o atual presidente. Tese que destrói o mantra difundido – e retratado por meio de um powerpoint ridículo – de que tal posição pertence a Lula, por mais que não existam provas mas sobre convicção.

    A questão fundamental não é inocentar ou culpar o PT, pode ficar tranquila. Não se trata disso e nunca, de fato, se tratou. O que está em jogo é a conservação do velho jeito de se fazer política. Os “lava-jatistas” estão se digladiando para, primeiro, se safarem da punição que merecem e, segundo, para manter os esquemas escusos que os tornaram milionários e cada vez mais poderosos à custa do dinheiro público que deveria ser investido no bem comum dos brasileiros.

    Eu realmente acredito que a maioria das pessoas, que são chamadas de “coxinhas”, fez o que fez com boa intenção. Elas acreditaram que estavam lutando por um país melhor. Quem pode dizer que nunca se enganou? Quem nunca foi manipulado? Acontece.

    Entretanto, há um abismo entre ter agido de modo sinceramente enganado e fingir que nada aconteceu. Não é possível que o ímpeto que fez tais pessoas se vestirem com a bandeira nacional e saírem pelas ruas tenha desaparecido por completo. Em algum lugar de suas consciências e dignidade deve haver um resquício dele. Não desistam, por favor.

    Libertem-se das rédeas manipuladoras de movimentos como Movimento Brasil Livre (MBL), Vem Pra Rua e Movimento Contra Corrupção (MCC); e assumam a responsabilidade do que começaram. Não deixem para seus netos o legado de que bradaram “Primeiro, a gente tira a Dilma!” e sussurraram “Depois… a gente abandonou a causa, deixando o Brasil despencar no abismo da nossa incoerência, hipocrisia e covardia.”