Maquiavel dizia que o verdadeiro político é aquele que, na desordem e no tumulto, sabe discernir o momento oportuno para agir. O Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro” é uma convocação para agirmos no momento oportuno.
Seu acerto é duplo. Em primeiro lugar, por propor agir como uma frente nacional contra a irresponsabilidade criminosa de incitação ao homicídio feita por Bolsonaro ao se opor ao isolamento social (imaginando-se aliado e cópia de Donald Trump, acabou isolado pelo mundo inteiro) e sua demora em tomar providências mínimas para assegurar a vida de milhões de brasileiros, procrastinando a liberação de recursos com querelas sobre MPs e decretos.
Em segundo lugar, o Manifesto acerta ao propor a renúncia de Bolsonaro e não seu impeachment, pois este acrescentaria à crise atual mais uma crise (longa e de resultado imprevisível) que abriria espaço para divergências e lutas num momento em que a sociedade brasileira clama por clareza de objetivos e de ações.
Para não esquecer
Durante os últimos 35 anos, vimos surgir e agir uma personagem que, do Alto e à nossa revelia, decidia os rumos do planeta. Essa personagem foi batizada pelos meios de comunicação e pelos economistas de direita com o nome de “O Mercado”, dotado de onisciência e onipotência. Onisciência porque, tendo a extraordinária capacidade de auto-regulação racional, sabe sempre e de antemão os rumos corretos e necessários do capitalismo. Onipotência porque possui um poder incontestável de decisão sobre as ações dos Estados e das sociedades e sobre os corações e as mentes dos indivíduos. Como toda divindade fetichista, “O Mercado” tem reações psicológicas: “está nervoso”, “está calmo”, “está de acordo”, “não está de acordo”, “aprova”, “desaprova”, “recompensa”, “pune”. Em suma, o seu “estado de espírito” repercute nas políticas do planeta e na vida cotidiana dos cidadãos. “O Mercado”, como sabemos, é o apelido do capitalismo neoliberal.
Ora, algo curioso vem acontecendo nas últimas semanas com a expansão do coronavírus ou Covid-19. Nos meios de comunicação, nos debates políticos, nas falas de governantes e nas redes sociais a palavra “mercado” desapareceu como por um golpe de mágica. Jornalistas, políticos, governantes e cidadãos passaram a empregar duas palavras que haviam sido banidas do vocabulário: economia e Estado. Como conseqüência, de repente, não mais que de repente, o vocabulário da socialdemocracia – controle estatal da economia e políticas sociais – é retomado.
Exemplifiquemos com o caso do Brasil
Sem a menor vergonha na cara, agora é feito o elogio do Bolsa Família (aquele programa que era assistencialismo para os preguiçosos, lembram-se?), do SUS (aquele que Mandetta desativou quase por completo, lembram-se?) e muitos apregoam a necessidade da Renda Básica ou da Renda Mínima (sem que Eduardo Suplicy seja mencionado uma única vez nem entrevistado como o incansável campeão dessa idéia). Por sua vez, o “empresário de si mesmo”, os trabalhadores informais, os desempregados e os moradores de favelas e de rua passaram a receber uma nova designação: “vulneráveis”, como se sua vulnerabilidade tivesse surgido por conta do Covid-19 e não da aliança entre “O Mercado” e o governo neoliberal.
É espantoso o descaramento do uso da palavra “solidariedade” por aqueles que controlam ideologicamente a mídia e a política e que, até um mês atrás, se empenhavam do elogio irrestrito à competição e à “meritocracia”. Além disso, com igual descaramento, o governo federal exige que os cientistas das universidades públicas e dos centros públicos de pesquisa tragam rapidamente soluções para aquilo que deixou de ser “histeria” para ser considerado pandemia, sem que se diga que não houve investimento algum nas pesquisas públicas (lembram-se de Bolsonaro afirmando que pesquisa séria só é feita em universidades privadas e Weintraub cortando as bolsas de pesquisa do CNPq e da CAPES?). Exemplos não faltam se lembrarmos tudo o que foi dito e feito desde o golpe contra Dilma e a prisão de Lula.
Em suma, a referência à mudança de vocabulário e à relação com as políticas sociais é feita aqui no sentido de que é preciso resgatar e unificar por meio dos partidos de oposição as lutas e manifestações de movimentos sociais e populares em defesa de direitos que, desde o governo Temer, se espalharam pelo país, mas eram sempre fragmentadas, esporádicas e sobretudo criminalizadas. Insisto na figura dos chamados “vulneráveis” porque, a despeito da ideologia neoliberal sobre a “nova classe média brasileira”, são eles que constituem, na verdade, o que chamo de “nova classe trabalhadora brasileira”, fragmentada e isolada, carecendo de organizações de proteção, desprovida de uma visão social e política que lhe dê um lugar na luta democrática e socialista. Esse resgate de lutas e essa unificação de classe poderão, agora, encontrar eco na sociedade brasileira em sua rejeição a Bolsonaro.
Para nos ajudar a compreender
Penso que o artigo de Harvey “Política anticapitalista na época do Covid19”, é iluminador tanto sobre a situação planetária do capitalismo e da crise do neoliberalismo – combatido de Santiago a Beirute –, bem como sobre o lugar do Covid-19 na luta de classes, ponto que merece nossa maior atenção e pode guiar muitas das ações propostas pelo Manifesto. Harvey traça com firmeza o panorama planetário do neoliberalismo vitorioso, das lutas contra ele e dos efeitos do Covid-19 sobre ele, assinalando a ironia histórica do surgimento de uma perspectiva socialista no centro do mundo neoliberal.
Também considero importante para nossa reflexão e ação, o artigo de Paulo Capel Narvai, “A estratégia da pinça”. Narvai salienta que o que está em jogo não é a pandemia, mas as eleições de 2022. É particularmente significativa sua análise sobre a luta do grupo bolsonarista contra os governadores, que serão responsabilizados pelo péssimo desempenho da economia (o “pibinho” e o “dolão”), e sobretudo sua analise do papel de Mandetta nesse jogo, isto é, do discurso técnico aparentemente oposto ao discurso psicótico de Bolsonaro.
Uma proposta para discussão
Algumas pesquisas, mencionadas por articulistas de A Terra é Redonda e pelo site Brasil 247 indicam que, no Brasil, os mais penalizados pelos efeitos do Covid-19 (tanto do ponto de vista da saúde quanto da subsistência) são exatamente os eleitores dos partidos de oposição, particularmente os de esquerda. Em outras palavras, são aqueles de cujas organizações e lutas nasceram os projetos e programas dos partidos de esquerda, e também aqueles, destroçados pela economia e política neoliberais, que hoje buscam o caminho que define a essência da democracia, qual seja, a criação e garantia de direitos. Os partidos de oposição (esquerda e centro) devem a eles sua presença na política brasileira e por isso faço aqui uma proposta.
O Manifesto, como frente nacional de oposição, apresenta uma lista de ações necessárias a serem exigidas do governo federal, mas essa frente nacional também pode agir diretamente no atendimento emergencial dos que foram os mais atingidos pela destruição dos direitos sociais e por isso são também os mais atingidos, no curto e no longo prazo, pelo Covid-19, pois são os que mais dependem dos serviços públicos e das garantias trabalhistas. Proponho que se considere a possibilidade de dirigir os fundos partidários para ações emergenciais, de maneira a deixar claro que o Manifesto é político e social. Isso configuraria uma espécie de governo paralelo? Que assim seja.
*Marilena Chaui é Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
A Venezuela vive hoje a maior crise política desde a tentativa de deposição do presidente Hugo Chávez em 2002, por meio de um Golpe de Estado. Desde que os protestos contra o governo de Nicolás Maduro começaram, convocados pela oposição agregada na MUD (Mesa da Unidade Democrática), mais de uma centena de pessoas morreram, gerando alvoroço internacional. Greves, prisões de líderes opositores e crise de abastecimento ocupam espaço nos mais diversos veículos de imprensa. Como resposta à crise, o presidente da República Bolivariana da Venezuela convocou uma Assembleia Constituinte a fim de pacificar os ânimos políticos e redefinir os rumos do Estado. A reação foi imediata na Venezuela. Maduro tem sido acusado de golpista e ditador por vozes que ecoam por todo mundo, inclusive no Brasil.
Este artigo pretende contribuir com o debate se debruçando na seguinte questão: a Assembleia Constituinte é constitucional? A pergunta, em que pese seu caráter técnico jurídico, é essencial para uma compreensão política do que é o governo Maduro: se a resposta for “não”, entenderemos que é uma ditadura despótica; se “sim”, é um governo constitucional submetido a leis. Este autor recorrerá às lições de Hans Kelsen (1881 – 1973), maior jurista do século XX, cuja importância no direito jamais foi superada. Para responder à pergunta formulada acima, consultei a “Constituição” da Venezuela e o livro “Teoria Pura do Direito”, de Kelsen (Ed. Martins Fontes, tradução de João Baptista Machado).
Como pretendo fazer um juízo de valor baseado no Direito é preciso estabelecer o que é o direito, livre de interpretações ideológicas estranhas à ciência jurídica. Sem isto, não podemos saber o que é ou não legal nesta celeuma. Vejamos como o austríaco Hans Kelsen define o “direito”:
“Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira”. (Pág. 5).
Ora, é direito um “Sistema de normas” e não uma série de exigências políticas feitas pela oposição venezuelana. Parece óbvio, e deveria de fato ser! Mas quando se trata da Venezuela, o que se vê é a reprodução de narrativas políticas e ideológicas (à direita e à esquerda) que forçam uma ideia de que o que é justo para uns deve ser compreendido como direito vigente. Se a ordem neoliberal é tida como a mais justa, isto nada tem a ver com o direito. O mesmo poderia ser dito sobre uma ordem socialista. Quando se trata de “justiça”, o debate se torna mais político, moral ou teológico, que efetivamente jurídico. Se a Constituinte é legal ou não, não se pode avaliar em termos de “justiça”. Se Nicolás Maduro gosta ou não de Leopoldo López, isto não importa para uma análise estritamente jurídica.
Neste caso, vale dizer, que o que importa aqui são as normas venezuelanas, e não brasileiras ou americanas. Temos valores diferentes e isto não pode contaminar a nossa noção de direito a respeito do país vizinho. O que é legal aqui pode ser ilegal lá, e o que é legal lá pode ser ilegal aqui, sem que nenhum cidadão de um ou outro país possa dizer que o outro não tem uma “ordem” constitucional vigente.
Por falar em “Ordem”, vale a pena se debruçar nesta palavra. Nosso país vizinho teria ainda uma ordem, em meio a tantas mortes e depredações? A resposta é afirmativa, por mais contraditório que possa parecer. O fato de existirem pessoas contrárias a uma ordem não significa que esta não exista. O “ser” (fato) nem sempre está associado ao “dever ser” (norma). Se Leopoldo López é ou não um criminoso que deve ser preso, isto tem a ver com uma determinada “ordem” posta que é ou não contrariada. Nada tem a ver com a opinião de Maduro ou Capriles. Alguém pode ser um criminoso a depender da vigência de leis no tempo e espaço. Recolher gravetos para se aquecer no frio não é crime no Brasil (espaço) do Século XXI (tempo), mas era na Alemanha do século XIX. Ordem não tem a ver com o quanto determinado grupo político acha que a “casa está arrumada”, usando uma metáfora doméstica. Para o jurista austríaco é o seguinte:
“Uma ‘ordem’ é um sistema de normas cuja unidade é constituída do fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade”. (Pág. 33)
O chavista Orlando José Figuera, queimado vivo por oposicionistas, em 4/6
Derrubar o governo Maduro não é este “fundamento de validade” de que fala o texto. Incendiar alguém ou arremessar bombas contra a Suprema Corte não pode ser considerado válido, por mais que os opositores assim entendam, em nome do imperativo da “democracia” e “liberdade”. Serei direto: o fundamento de validade das normas e das ações na Venezuela é a Constituição promulgada em 1999. Qualquer juízo que passe disto não é jurídico.
Mas quanto ao governo de Nicolás Maduro, agiu de forma válida ao convocar uma Assembleia Constituinte que serve para criar outra Constituição que vai se colocar no lugar desta que é o “fundamento de validade” da ordem venezuelana? Seria possível propor uma nova ordem que suceda a presente sem feri-la? Sim, é possível. E não sou eu que digo, mas a própria Constituição venezuelana:
Artigo 347. O povo da Venezuela é o depositário do poder constituinte originário. No exercício de tal poder, pode convocar uma Assembleia Nacional Constituinte com o objetivo de transformar o Estado, criar um novo ordenamento jurídico e redigir uma nova Constituição.
Artigo 348. A iniciativa de convocar a Assembleia Nacional Constituinte poderá tê-la o Presidente ou Presidenta da República no Conselho de Ministros; a Assembleia Nacional, mediante acordo de dois terços de seus integrantes; os Conselhos Municipais em cabildos, mediante o voto de dois terços dos mesmos; e 15% dos eleitores inscritos e eleitoras no registro eleitoral.
Artigo 349. O Presidente ou Presidenta da República não poderá contestar a nova Constituição. Os poderes constituídos não poderão de forma alguma impedir as decisões da Assembleia Constituinte. Para efeitos da promulgação da nova Constituição, esta se publicará na Gazeta Oficial da República de Venezuela ou na Gazeta da Assembleia Constituinte.
Artículo 350. O povo da Venezuela, fiel à sua tradição republicana, à sua luta pela independência, pela paz e pela liberdade, desconhecerá qualquer regime, legislação ou autoridade que contrarie os valores, princípios e garantias democráticas ou menospreze os direitos humanos.
Em quatro artigos compreendemos que (art. 347) o povo é depositário do poder Constituinte Originário, que é a capacidade de criar nova Constituição, ( Art. 348) o presidente da República tem o poder de convocar uma Assembleia Constituinte, (Art. 349) sem que ele ou qualquer poder constituído (legislativo ou judiciário) possa se opor. O art. 350, por sua vez, determina a permanência de valores democráticos e direitos humanos na Constituição.
Alguém poderia objetar que Maduro poderia ter escolhido outro caminho para a paz, como a renúncia, já que a constituição não o obriga a seguir o caminho que ele escolheu. Mas “uma norma pode não só comandar, mas também permitir e, especialmente, conferir a competência ou o poder de agir de certa maneira” (pág. 6).
Juízos de Valor – Maduro é “bom”
Kelsen, em sua teoria, estabelece dois tipos de juízo de valor: o objetivo e o subjetivo. Por questão de prudência é importante identificar em qual dos dois grupos se encaixa o nosso juízo, e dos outros, neste delicado debate.
“Quando o juízo segundo o qual uma determinada conduta humana é boa traduz que ela é correspondente a uma norma objetivamente válida, e o juízo segundo o qual uma determinada conduta humana é má traduz que tal conduta contraria uma norma objetivamente válida, o valor “bom” e o desvalor “mau” valem em relação às pessoas cuja conduta assim é apreciada ou julgada, e até em relação a todas as pessoas cuja conduta é determinada como devida (dever ser) pela norma objetivamente válida, independentemente do fato de elas desejarem ou quererem esta conduta ou a conduta diversa”. (Pág. 22).
Kelsen prossegue ainda:
“A sua conduta tem um valor positivo ou negativo, não por ser desejada ou querida –ela mesma ou a conduta oposta -, mas porque é conforme uma norma ou a contradiz”.
Em termos práticos: afirmar que Maduro cumpriu a Constituição ao convocar a Constituinte é um juízo de valor objetivo, pois seu ato é analisado tendo por base a norma constitucional que lemos acima. Dizer que Maduro é um ditador por ter convocado a Constituinte para se “perpetuar no poder” é um juízo de valor subjetivo, cuja importância para o direito se compara ao julgamento estético de seu bigode, ou seja, não tem o menor significado jurídico. Deste modo, o que fez é “bom” do ponto de vista jurídico. Você discordar disto seria um valor subjetivo, baseado em sua vivência, ideologia, religião ou moral.
Não pretendemos dizer aqui que tudo vai bem na República Bolivariana. Não vai! Mas não é por causa da Constituinte. É prematuro acusar de ditador um cumpridor da Constituição, dado que faltaria um elemento fundamental para caracterizar Maduro deste modo: o despotismo, que é o desrespeito à lei. Se os países do Mercosul suspenderam a Venezuela, não é por romper com cláusula democrática ao convocar a Constituinte. O dispositivo legal está lá há anos: se este é “antidemocrático”, por que não repararam nisso antes?
Quanto aos brasileiros que gritam golpe “lá” e pediram golpe “aqui”, nada podemos esperar de coerência moral, política ou jurídica.
Quem há de dizer que a Venezuela é uma Ditadura? Se alguém sentia falta de uma consulta popular, o país realizou duas no mesmo dia! Uma foi convocada pelo governo do presidente Nicolás Maduro, na forma de uma simulação da eleição para os deputados da Assembléia Nacional Constituinte, que deverá ocorrer de verdade no próximo dia 30 de julho. A outra foi convocada pela Mesa de Unidade Democrática (MUD), a frente de partidos de oposição ao chavismo.
Foi um domingo alegre e iluminado em Caracas. Quente, como sempre. As ruas estavam cheias de famílias, já que 16 de julho é o Dia das Crianças venezuelano. Meninas e meninos com os rostos pintados como bichinhos, em roupas elegantes, viam-se por toda a cidade. As lojas estavam abertas. Nada havia que denunciasse a guerra civil ou os enfrentamentos dramáticos, cheios de sangue, ódio e ira, vistos todos os dias nas televisões e grandes jornais do Brasil. Mas a disputa renhida estava presente.
Ensaio da Assembléia Nacional Constituinte em Caracas, Venezuela
1º CAPÍTULO A ATIVIDADE DO POVO POBRE
Há semelhanças e dessemelhanças cruciais entre o golpe que ocorreu no Brasil há um ano e o que pretende se implantar agora na Venezuela. Em ambos os países, o poder econômico quer assumir o comando e impor uma cartilha neoliberal em que apenas os ricos rentistas podem se dar bem. A diferença está no povo pobre que, no país de Chávez, está organizado em comunas de bairros, em movimentos sociais e no PSUV (o Partido Socialista Unido de Venezuela).
É impossível conversar com os defensores da República Bolivariana inaugurada por Chávez há 19 anos, sem que apareçam nas falas os “interesses nacionais”, a “Pátria Grande”, o petróleo (um orgulho, já que nacionalizado), os “direitos dos trabalhadores” e o “imperialismo predador” a ser combatido.
Todos falam em luta de classes. Dizem que o núcleo político da oposição reside na defesa de interesses espúrios por parte da burguesia e de uma classe média que tem os olhos e o desejos postos em Miami. Bem informados, falam do golpe ocorrido no Brasil, da condenação de Lula pelo juiz Sergio Moro. Defendem Lula com emoção e gratidão.
A Constituinte proposta por Nicolás Maduro, o sucessor de Chávez, tem tudo a ver com esse povo politizado e dotado de profunda consciência de classe. Pretende “aperfeiçoar o sistema econômico, social e político” e realizar uma extensa reforma política no país. Na prática, deverá radicalizar na via de transformação do Estado Venezuelano, reformando a Constituição de 1999, criada por iniciativa de Hugo Chávez. O propósito é adequar o Estado, de modo a torná-lo mais e mais um espelho da maioria da população do país, que é pobre e mestiça.
Jornalistas Livres percorreram a fila formada diante do Liceu Andrés Bello, no centro de Caracas. Trata-se de colégio icônico, um dos primeiros do país, e representa o sonho republicano de uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos. Lá, diante de um gigantesco e lindo mural retratando a luta popular desde os tempos da colônia, uma fila animadíssima de cidadãos pobres e orgulhosos explicava porque participavam da simulação eleitoral convocada por Maduro.
A simulação foi organizada pelo Conselho Nacional Eleitoral, o CNE, que tem na Venezuela autoridade equivalente à do nosso Tribunal Superior Eleitoral. Tudo computadorizado, como acontece no Brasil, mas no final o eleitor retira seu voto e o deposita numa urna física, de modo a ser possível fazer recontagens de votos, em caso de suspeita de fraude.
Para Maduro, a Constituinte é a única possibilidade de levar paz ao país, porque criaria uma instância de poder para decidir os rumos do Estado venezuelano. Hoje, vive-se lá uma grave crise econômica, social e política decorrente da corrupção, da sabotagem econômica e do uso de táticas terroristas pelos que pretendem reimplantar um modelo neoliberal e privatista. As vitrines da loja de Departamentos Traki, no centro da cidade, por exemplo, exibem latas de conservas e embalagens de artigos de higiene e limpeza em arranjos caprichosos, como se jóias fossem. Nas farmácias faltam medicamentos e não se sabe quando eles estarão à disposição.
Para o chavismo, a Constituinte é a forma de resolver esses problemas da vida cotidiana, além de resgatar para o espaço da discussão política setores hoje descontentes com a adoção de táticas violentas por parte da oposição. Pacificar o país, que já conta mais de 112 mortos em conflitos e atentados de matriz terrorista, é um dos objetivos. É nisso que acreditam os partidários do governo que foram às urnas neste domingo para treinar o voto. Dia 30 de julho, o voto será para valer.
Para quem achava que o jogo estava em vias de terminar na Venezuela, a professora universitária Nilze Almendraz, 62 anos, vestida com camiseta negra em que se vê o rosto imenso de Simon Bolívar, garante: “Estamos apenas começando! E estamos dispostos dar nossas vidas para defender o sonho de nosso comandante máximo, Hugo Chávez. Porque é o nosso sonho também. ”
Oposicionistas ateiam fogo nas cédulas e nas atas eleitorais, ao fim de seu “plebiscito informal”
A ATIVIDADE DA OPOSIÇÃO
Jornalistas Livres acompanharam a atividade oposicionista em dois pontos de Caracas: em Sabana Grande e na praça Carabobo, na região central. Concentrações da classe média branca, cem pessoas em cada uma delas, organizavam o seu “plebiscito” como se fosse a eleição do representante de classe na escola. Em vez de listas de votantes, folhas de papel sulfite A4, que cada “eleitor” preenchia mediante a apresentação de sua cédula de identidade –válida ou vencida, diga-se.
A pessoa podia votar fora de seu domicilio eleitoral, como constatamos ao entrevistar a jovem estudante de letras da Universidade Central de Venezuela, Susan Ovalle, 26 anos. Moradora de Catia, periferia pobre de Caracas, perto do aeroporto de Maiquetía, ela votou em Sabana Grande. Como evitar que pessoas votem várias vezes?, perguntamos. “Confiamos na honestidade dos nossos”, respondeu ela. Sei.
O plebiscito organizado pelos oposicionistas tinha três perguntas, todas em aparente defesa da Constituição de 1999, que esses mesmos setores combateram antes, quando Chávez a promulgou. Na prática, o objetivo era inviabilizar politicamente a convocação da nova Assembléia Nacional Constituinte, iniciativa de Nicolás Maduro, conforme garante a própria Constituição de 1999:
1. Você rechaça e desconhece a realização de uma constituinte proposta por Nicolás Maduro sem a aprovação prévia do povo da Venezuela? 2. Você pede à Força Armada Nacional e a todo funcionário público que obedeça e defenda a Constituição de 1999 e respalde as decisões da Assembléia Nacional? 3. Você aprova que se proceda à renovação dos Poderes Públicos de acordo com o estabelecido na Constituição e à realização de eleições livres e transparentes, assim como a conformação de um governo de União Nacional para restituir a ordem constitucional?
A idéia dos oposicionistas era recolher um número significativo de respostas “Sim” às três questões, de modo a deslegitimar a presidência de Nicolás Maduro e derrubar o que eles chamam de “Ditadura Chavista”. Nenhuma negociação, nenhum plano a não ser a explosão do atual governo.
Interessante o conceito de “Ditadura”, já que é ampla a liberdade de manifestação e expressão dos opositores, inclusive na televisão e nos meios impressos, em que fizeram abertamente campanha para chamar à participação no “plebiscito informal” deste domingo. Também é curioso que chamem de “ditador” a um presidente que, como Maduro, foi eleito pela maioria do povo venezuelano em eleições das quais a oposição participou e às quais convalidou. Ressalte-se que Maduro está ainda a um ano de ter seu mandato encerrado.
Incongruências à parte, o problema principal da oposição foi a total desorganização da consulta que realizou sem o apoio logístico do Conselho Nacional Eleitoral, o CNE, que tem na Venezuela autoridade equivalente à do nosso Tribunal Superior Eleitoral.
Piorando o que já estava precário, em vez de urnas, os votos foram recolhidos em caixas de sabão e de enlatados. Não havia lacre.
A deputada Tamara Adrian, deputada da Assembleia Nacional pelo partido Vontade Popular, de oposição a Maduro, explicou pela manhã que todos os votos recolhidos pelos oposicionistas seriam incinerados “por questões de segurança”. Foi o que de fato aconteceu, e logo deu para entender o porquê.
Tratava-se de evitar que alguém tivesse a inconveniente idéia de contar os votos ou checar a lista de votação para evitar fraudes. E foi assim: nacionalmente, a oposição combinou que, tão logo se apurasse o resultado de cada urna, todo o registro da votação –as cédulas inclusive—seriam queimadas. Isso aconteceu já na noite de domingo. Sem condições de checagem, a oposição disse que obteve mais de 7 milhões de votos, dos quais 98,4% rejeitando a Assembleia Nacional Constituinte proposta pelo presidente Nicolás Maduro. Na realidade, mesmo com todas as fraudes que possam ter ocorrido e que jamais poderão ser investigadas, o número de votantes ficou bem aquém dos 11 milhões que eram a meta da oposição. Mas isso não impediu o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Julio Borges, antichavista ferrenho, de proclamar ao final da votação neste “plebiscito” de fancaria: “O mandato de Nicolás Maduro está praticamente revogado”.
Na praça Carabobo em que a oposição realizava sua “consulta”, cerca de 10 homens portando paus sentaram-se sobre a sinalização do Metrô de Caracas. Batiam fortemente no metal, avisando que não estavam para brincadeiras. Enquanto isso, mulheres agitavam bandeiras para os veículos que passavam na rua. Carrões SUV e caminhonetes saudavam o protesto oposicionista, enquanto a turma que passava de ônibus nem se dignava a olhar para o que ocorria no espaço dominado pela direita.
Definitivamente, na Venezuela, a cisão é de classes. E todos têm consciência disso.
Desde abril deste ano, a oposição venezuelana tem promovido protestos diários nas principais cidades do país, que invariavelmente terminam em violência e depredação. Já se conta em mais de uma centena os mortos em episódios de barbárie que incluem dois queimados vivos, um linchamento, um degolado, oito eletrocutados em saques, além de seis soldados e policiais das forças de segurança assassinados.
Mas não há mal que não possa piorar. O presidente Nicolás Maduro Moros, chefe do governo da Venezuela, enfrentará neste domingo (16/julho) mais um difícil desafio, colocado pela oposição organizada na Mesa Unida Democrática, o MUD. Trata-se de plebiscito organizado de modo a recolher um rotundo “Não” ao herdeiro político de Hugo Chávez e à sua proposta de realização, no próximo dia 30 de julho, de eleições para a nova Assembleia Constituinte da Venezuela.
Esta será uma consulta popular que o partido chavista não reconhece e da qual não participa, já que organizada, gerida e fiscalizada por um consórcio de cinco reitores universitários de oposição, em detrimento do CNE (Conselho Nacional Eleitoral), o Tribunal Superior Eleitoral venezuelano.
O governo acredita que o plebiscito deste domingo, por não ter garantia alguma contra fraudes, seja o espaço mais propício para a fabricação de uma impostura eleitoral amplamente desfavorável a Maduro e à continuidade do governo bolivariano. De posse dos “resultados” do plebiscito, a direita tentará deslegitimar o processo Constituinte convocado pelo presidente, ao mesmo tempo em que deverá fazer recrudescer a violência.
No Brasil, previsivelmente, os órgãos de imprensa tradicionais satanizam a Revolução Bolivariana, acusando-a de violência desproporcional, de ser uma Ditadura de tipo castrista, de ser responsável por uma guerra civil nos moldes da que toca a Síria sob o regime de Bashar Al Assad.
Raríssimas são as chances de escutar os argumentos chavistas –trata-se do velho recurso da invisibilização, sempre usado pela mídia convencional contra seus adversários políticos.
Neste encontro com o chavista Jesús Silva, 37 anos, advogado constitucionalista e professor da Universidade Central de Venezuela (UCV), os leitores brasileiros terão a possibilidade de conhecer a forma com que o governo bolivariano pretende aprofundar a Democracia Socialista do país e entender por que o chavismo chama de “terroristas” os movimentos encabeçados pela Direita.
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POR QUE O SENHOR CHAMA A OPOSIÇÃO DE “TERRORISTA”?
Não há um consenso entre especialistas para definir o que é terrorismo, mas eu me atrevo a propor um conceito breve. E me apoio na legislação venezuelana para isso. Trata-se basicamente do uso de violência com fins políticos. Isto é o que ocorre quando uma pessoa ou um grupo de pessoas comete atos violentos —que podem incluir o assassinato— com o objetivo de forçar o governo/Estado a fazer ou deixar de fazer determinados atos.
Aqui na Venezuela, os dirigentes oposicionistas convocam “manifestações pacíficas” entre aspas, já que sempre terminam com mortos e feridos, além da destruição. O objetivo é o de forçar o governo a aceitar suas exigências, entre as quais se contam a antecipação das eleições presidenciais e a renúncia do presidente [Nicolás Maduro], ainda que a ele reste mais de um ano de mandato… Ora, isto é terrorismo: uma violência letal, com a finalidade de submeter o Estado. Nossa Constituição, em sintonia com tratados internacionais, diz que a manifestação é um direito humano, que é um direito civil e político. Mas, evidentemente, essa manifestação deve ser sem violência e sem armas.
Nos últimos seis meses, todas as manifestações da oposição –que não são nem espontâneas, nem livres, ao contrário do que apregoa a mídia burguesa–, foram convocadas por uma unidade política, a Mesa de Unidade Democrática (MUD). Também ao contrário do que diz a grande mídia, essas manifestações não são “pacíficas” já que todas incluem violência e armas nas mãos dos manifestantes. Pois bem, na medida em que essas manifestações que se dizem “pacíficas”, mas encobrem terroristas, perdem o apoio popular, o núcleo terrorista, aquele composto por indivíduos mascarados e armados, se faz mais violento.
Recentemente vimos imagens que mostram essas pessoas usando explosivos contra sete guardas nacionais, que ficaram queimados. Então, não estamos em presença de manifestações pacíficas… não estamos em presença de um rio humano que é produto de uma grave crise econômica e social, que sai às ruas por fome, a reclamar que o governo tome providências. Não! Trata-se de uma estrutura complexa, que inclui uma unidade de mando, a Mesa de Unidade Democrática, que convoca, promove e faz a agenda. É a cabeça.
Conjuntamente com essa cabeça, há massas de pessoas, uma quantidade não desprezível —temos de reconhecer–, que são os verdadeiros manifestantes. É gente que odeia o chavismo, que odeia o governo, mas que não está armada.
Por fim, rodeados por esses manifestantes, estão os bandos armados. São pessoas que têm armas de fogo ou artesanais, são os que usam máscaras ou capuzes e são as pessoas que atacam nossos soldados, guardas nacionais e policiais. Também atacam manifestantes chavistas ou simples pedestres que eles identifiquem como um chavista ou partidário do governo. Geralmente são pessoas pobres, afrodescendentes, gente com camisas vermelhas. Os tais bandos armados atacam como terroristas, queimam, torturam, assassinam.
Esta é a estrutura do terrorismo na Venezuela. Um terrorismo de novo tipo, porque se fundamenta em uma aparência de “manifestação pacífica”, mas que termina com indivíduos fortemente armados atacando gente inocente e os efetivos de segurança.
Poder-se-ia argumentar que essas pessoas só estão se defendendo de uma repressão brutal de um suposto Estado Malfeitor Bolivariano. Mas, se assim fosse, estes senhores fortemente armados não atacariam as forças de segurança antes que se produzisse qualquer ato de contenção.
E aqui é necessário fazer uma diferenciação. Uma coisa é a contenção, que é fazer frente a uma violência aberta por manifestantes. Outra coisa é a repressão, que é quando um Estado Malfeitor e inimigo dos Direitos Humanos agride aqueles que não estão cometendo nenhum ato de violência.
Insisto nesta questão da violência, porque creio que a situação midiática internacional nos é negativa. Creio inclusive que em países que são nossos amigos há a crença de que o Estado venezuelano está se excedendo no uso da força para reprimir manifestações pacíficas. Morderam o anzol.
https://www.youtube.com/watch?v=TTqhdt0zzpU
Recentemente tivemos um helicóptero que disparou 15 vezes contra nosso Supremo Tribunal de Justiça. E isso não mereceu destaque e nem a condenação internacional. Mas um grupo de indivíduos não-identificados entra no Parlamento, enfrenta os deputados da oposição e, em menos de 20 minutos, a CNN em inglês apresenta o fato como uma grande notícia contra o governo bolivariano. A verdade é que eles têm aparatos de informações, têm redes que funcionam com maior velocidade do que as nossas –se é que nós temos essas redes.
O insignificante, nas mãos deles, torna-se grandioso. Já o ataque que sofremos, um ato claramente terrorista cometido por pessoa identificada e notório inimigo do governo, passa despercebido.
QUAL A POSSIBILIDADE DE SE RECUPERAR O DEBATE POLÍTICO NA VENEZUELA?
Perdemos o espaço do debate político na Venezuela, como produto da ação do inimigo. Estamos no plano do tudo ou nada. Estamos no plano das reações, das agressões. Não estamos no plano da discussão de ideias. Porque o inimigo político de nosso governo, de nosso povo e do socialismo quer uma discussão primitiva. Quer a polarização, a naturalização da violência como forma de fazer política.
As redes sociais, o Twitter, o Facebook, o Instagram, o Whatsapp etc. mostram que chegamos a uma etapa de naturalização da violência. Que é o ambiente mais cômodo para o terrorismo. Aqui se mata um guarda nacional e temos milhares e milhares de venezuelanos que celebram este ato. Por quê?
Porque a cúpula da oposição instalou suas idéias, seus sofismas, sua falsa racionalidade para induzir ao erro. Por exemplo: se um guarda é assassinado, está-se matando um esbirro, uma pessoa que se dedica profissionalmente a executar ordens violentas de uma autoridade, um agente a serviço do regime castro-comunista. Portanto, esse homicídio transforma-se em um ato de justiça do povo. Tinha de matar! Foi merecido!
Esta é a mensagem que os grandes meios repetem todos os dias: Sempre a violência do lado opositor é justa. Enquanto isso, a que é cometida pelos efetivos militares em legítima defesa será injusta.
Orlando Figuera, 22, foi queimado vivo durante ato da oposição. Com 80% do corpo atingido pelas chamas, o jovem morreu em 4/6
Eles mandam kamikazes para atacar as bases militares, provocam com violência os soldados, lançam bombas incendiárias para queimar os edifícios públicos… E, quando o efetivos militares respondem, bem, aí os grande meios dizem que ocorre um crime de Estado. Mas o que há é o legítimo direito de defesa! Em nenhum tratado internacional se estabelece que os soldados de qualquer parte do mundo devem se deixar assassinar por terroristas. O que se exige, na legítima defesa, é o uso proporcional da força, de acordo com o ataque que se recebe. Se você me ataca com um pau, eu não posso me defender com uma granada. Mas, se você me ataca com qualquer coisa que possa me matar, eu posso, seja militar ou civil, responder em legítima defesa.
Em 1989, houve manifestações na Venezuela [contra o governo de Carlos Andrés Perez], por causa de um pacote de medidas neoliberais que liberava os preços e promovia privatizações maciças. O povo saiu às ruas. Em aproximadamente três dias, a repressão aplicada pelo governo de então matou 3.000 pessoas, grande parte assassinada pelas costas. Eu acho que qualquer morte é lamentável; não há um número bom e um número mau. Mas precisamos ter as proporções exatas do que está ocorrendo. Estamos há 100 dias com confrontos diários por causa das provocações dos terroristas e temos 100 mortos.
O QUE É A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE CONVOCADA POR NICOLÁS MADURO?
Nove setores terão representação especial
A Assembléia Nacional Constituinte deve ser um grande fórum político em que participem setores da sociedade venezuelana de diversos âmbitos. Não é casualidade que o método eleitoral para escolher os membros da Constituinte inclua precisamente o que, no Direito Constitucional Espanhol, se conhece por “discriminação positiva”. Trata-se, por um lado de reconhecer que os grupos socialmente vulneráveis não têm igual possibilidade de participar de entidades políticas. De outro lado, trata-se de criar os mecanismos para que as diferentes classes e setores sociais possam ser representadas. Quer dizer, quanto mais desvantagem sofre um setor social, mais necessária é a discriminação positiva, dando-lhe mecanismos para ele se iguale.
É preciso reconhecer que é ficcional a igualdade em uma sociedade que é profundamente desigual. Não têm a mesma possibilidade de ser membro da Constituinte (caso ela seja eleita pelo voto universal, burguês, classicamente conhecido) o operário e o patrão; o dono dos meios de comunicação e o trabalhador da fábrica, por exemplo.
A direita venezuelana diz que a Assembleia Nacional Constituinte convocada pelo presidente Nicolás Maduro tem um método eleitoral desigual, que está a serviço do partido do governo, que seria uma afronta ao voto universal, direto e secreto. Mas eu reivindico essa metodologia porque, no passado, nosso parlamento, nossa assembleia nacional, nosso congresso, foram claramente órgãos políticos com uma hegemonia de empresários, de donos de meios de comunicação, de proprietários dos meios de produção e obviamente esses parlamentos do passado (me refiro ao período que antecedeu à chegada de Hugo Chávez ao poder) foram parlamentos a serviço do capitalismo, da privatização, do neoliberalismo.
Esta metodologia proposta por Maduro tem embasamento jurídico na Carta Magna vigente, já que aprofunda a possibilidade de participação dos setores excluídos – operários, indígenas, camponeses, pescadores, estudantes, pessoas com deficiências, aposentados e membros de conselhos comunais, que são formas de organização popular para uma democracia direta.
Trata-se claramente de uma igualdade por diferenciação. Dará a possibilidade de disputar uma vaga na Constituinte aos setores que historicamente foram preteridos por sua condição sócio-econômica. Este é o enfoque favorável ao proletariado, favorável à classe social do trabalho, frente ao enfoque clássico, liberal e burguês de que todos pode se eleger e todos têm uma igualdade automática para concorrer nas eleições.
Sabemos que todas as democracias classicamente conhecidas são plutocráticas, já que sempre favoráveis a quem tem mais dinheiro para fazer mais propaganda. Já se sabe que quem é mais pobre perde a possibilidade de fazer mais propaganda e, portanto, de alcançar votos.
A assembleia constituinte com esta ampla oportunidade de participação conferida a todos os setores da sociedade venezuelana servirá para esse grande reencontro nacional dos 30 milhões de venezuelanos e não apenas aqueles que serão eleitos em diferentes setores sociais. Uma vez instalada a Constituinte, é preciso que se estabeleça um regime de trabalho de modo a que diferentes grupos e movimentos sociais participem, proponham, discutam, critiquem e reclamem. E que, nestes seis ou 12 meses que dure essa Constituinte, haja um grande encontro nacional. Isso não pode ser feito por um partido, mas sim por uma constituinte que seja a máxima representação do povo.
E, se a cúpula da oposição quer se auto-excluir, bem, que se auto-exclua. O importante é que fique isolada. Sem povo que a siga. Porque, quando os terroristas têm um povo que os segue, temos um problema político. Quando os terroristas ficam sem o povo, então o problema se converte em um problema policial, militar. São coisas diferentes.
A Constituinte não pode funcionar como o escritório do partido, senão como órgão que convoca todas as pessoas a participar, inclusive a oposição. E que isso apareça em cadeia nacional. Que critiquem, que opinem , e que se oponham, que exijam. que proponham suas idéias, que se mostrem. E que o povo julgue.
COMO O SR. AVALIA O PLEBISCITO DE DOMINGO (16/07)?
Se fosse simplesmente uma pesquisa da oposição, estaria tudo ok, seria o exercício de um direito. Mas, no contexto de 100 dias de mortes violentas, é evidente que ante a perda de respaldo popular a toda esta violência, a oposição quer um ato pseudo-jurídico que justifique um reimpulso de sua violência.
Explico: eles celebrarão seu plebiscito ou sua suposta consulta popular sem a fiscalização da autoridade eleitoral. O resultado será que, dos 20 milhões de inscritos para votar na Venezuela, 19,999 milhões “vão querer”, entre aspas, que o governo caia. Isso é o que vão declarar. Os votos serão eles que contarão, dando um amplo espaço para a fraude. O suposto resultado do plebiscito vai ser a exigência de que não se faça uma Assembléia Nacional Constituinte. Que se desaplique nossa Constituição. Então, trata-se de um ato privado, de agentes privados, para exigir dos agentes públicos que deixem de aplicar a nossa constituição e apliquem a lei desses grupos. Obviamente, o Estado legitimamente constituído dirá que não. E a palavra de ordem para os seguidores da oposição será “Saiam às ruas, porque o tirano faz ouvidos moucos para o que está sendo exigido por 20 milhões de venezuelanos”. Não é uma consulta popular. É um episódio que servirá para justificar mais terrorismo, mais marchas, mais ações violentas com pessoas armadas.
Deram-nos golpes muito sérios. Em 2014 nos mataram 43 pessoas, com essa modalidade de terrorismo oculto sob a falsa máscara das “manifestações pacíficas”. Hoje, nos matam 100 pessoas e podem ser muito mais, já que acredito que o conflito está longe de acabar. Não se pode usar a Democracia para delinquir e nem para burlar a legalidade revolucionária. O Estado não pode ser ingênuo e tem de estabelecer um marco de tolerância zero contra o terrorismo.