Historiadores da Matemática afirmam que a invenção dos números foi estimulada por necessidades contábeis. Seria o caso dos famosos tokens escavados em Uruk, na Mesopotâmia: cerca de três mil anos antes de Cristo, objetos de argila com diversos formatos (cones, discos, cilindros, etc.) eram usados para expressar quantidades.
Professor Alexandre Santos de Moraes[1] Professora Caroline Lacerda de Deus[2]
Ignoramos a correspondência exata, mas o método funcionava mais ou menos assim: um token cônico poderia servir de símbolo para representar três sacos de cevada, ao passo que um cilíndrico representaria dez. Dispostos lado a lado, três cones e dois de cilindros representariam algo como 29 sacos de cevada. Esses objetos, portanto, faziam um processo de substituição conceitual: um escriba minimamente treinado poderia reconhecer, num átimo, a quantidade de produtos que eventual soma de tokens indicasse.
O sistema se tornou mais sofisticado com a invenção da escrita e passou a dispensar o uso desses objetos. Bastava anotar (em papiros, pedras, tabletes de argila etc.) um símbolo que cumpria a função dos antigos tokens mesopotâmicos. Existiram inúmeros sistemas de numeração, mas o que se firmou globalmente foi o que utiliza algarismos indo-arábicos. Ele exige apenas dez símbolos (0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9) para expressar qualquer quantidade, razão pela qual é também chamado sistema decimal. O método é simples e eficiente, sobretudo por manejar as quantidades em função da posição que esses números ocupam. O valor do número “1” é diferente em “15” e “2001”: no primeiro caso, indica “10”, ao qual é apensando o “5” para formar “15”; no segundo, indica apenas uma unidade que foi adicionada ao “2000”.
Mesmo o leitor pouco habituado ao universo da matemática deve conhecer a quantidade insofismável de questões que se desdobram com o refinamento desse processo de abstração. Não nos referimos apenas às famosas operações que são feitas a partir deles e que não precisam, para existir, de qualquer referente no mundo material. Assim, na base de tudo quanto é soma e equação, integral e divisão, derivada e multiplicação, há um “real matemático” que se impôs como resultado do desenvolvimento científico. Ele nos privou da exigência de buscar, em todo número, o objeto ou quantidade correspondentes. Se, para a Ciência, foi uma necessidade que se deu ao longo de seu desenvolvimento, para a vida em sociedade esse movimento se tornou fonte de possíveis e perigosos enganos.
Letargia na pandemia
Essa pode ser uma das explicações possíveis para a letargia diante dos números da pandemia. Números menores parecem chocar mais do que números maiores. Especialistas em etnomatemática devem discorrer sobre esse fenômeno com mais competência, mas arriscamos dizer que essa percepção se desenvolve com as práticas cotidianas. Em nossa rotina, não estamos habituados a manipular números muito grandes. A quantia que se lê no extrato da conta corrente não exige grande familiaridade com a casa dos milhares; não nos programamos para comprar três toneladas de feijão ou a beber 758.432 litros d’água além dos dois recomendados por dia. Números de telefone não expressam quantidade, assim como os dos canais de TV. Um litro faz mais sentido que mil mililitros. Quando se olha o relógio e vê que são 15h, deduz-se a posição que estamos no curso do dia, e não que se passaram 54.000 segundos desde 0:00h.
Em suma, há certa tendência de que a abstração matemática aumente com a quantidade. Quando se lê que 30 pessoas morreram, temos mais facilidade em imaginar o significado e impacto da morte do que quando lemos que morreram 50 mil. Convivemos facilmente com 30 pessoas. Podemos fechar os olhos e imaginá-las lado a lado, produzindo uma imagem mental bem acurada do espaço que ocupam em uma superfície. A tarefa se torna mais difícil diante da cifra de 50 mil. Imaginar 30 sepulturas dispostas uma do lado da outra é tarefa simples; imaginar 50 mil é bem mais complicado.
A cilada que essa situação provoca é tão curiosa como trágica: quanto mais mortos, mais se caminha em direção a essa abstração que dilui os números em símbolos amorfos e pouco eloquentes. Quanto mais mortos, mais distantes ficamos da realidade material traduzível pela quantificação e mais nos aproximamos desse “real matemático”, marcado pelo valor do número em si, e não pelo que ele traduz.
Muita gente percebeu esse fenômeno. Nas redes sociais e nas mídias hegemônicas, busca-se estratégias para aquecer a frieza dos números. A comparação é uma delas. No dia 8 de agosto de 2020 atingimos o número assustador de 100 mil mortos, que é simbólico, em parte, porque exige a utilização de novo dígito. Cem mil é muita gente, tanta que é difícil imaginar. Cem mil é, por exemplo, o número de brasileiros e brasileiras que se reuniram no Rio de Janeiro em 26 de junho de 1978 para protestar contra a ditadura-militar. Cem mil é o número aproximado de mortos com a explosão da bomba atômica em Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945. Cem mil foi o número de torcedores num Maracanã lotado que assistiram a vitória de 2 x 0 do Brasil sobre o Uruguai nas Eliminatórias de 1993. Cem mil é, enfim, o número de mortos em apenas cinco meses de epidemia do novo coronavírus no Brasil. De cada 7,3 mortos pela doença no mundo, um é brasileiro.
Tragédias históricas
Se esses números não são suficientes para dimensionar o terrível cenário que vivemos, comparemos com o número de vítimas de tragédias que chocaram o país e que não podem cair no esquecimento. Incêndios, por exemplo. Um dos mais famosos deve ser o incêndio do Gran Circus Norte-Americano, em Niterói (RJ). Morreram 503 pessoas nessa tragédia ocorrida em 1961. Um cemitério teve de ser ampliado e outro integralmente construído para sepultar as vítimas. No estádio Caio Martins, dezenas de carpinteiros fabricavam caixões para acomodar os cadáveres. Também foi muito conhecido o incêndio do Edifício Joelma, em São Paulo, ocorrido em 1º de fevereiro de 1974 e que deixou 187 mortos. Dois anos antes, também em São Paulo, o incêndio no Edifício Andraus fez 16 vítimas fatais. Em 1984, o incêndio na Vila Socó, em Cubatão, vitimou 93 pessoas. Outro incêndio recente que produziu enorme comoção nacional ocorreu em 2013, na Boate Kiss, em Santa Maria (RS). Foram 242 mortos.
Somados, esses incêndios totalizam 1.041 vítimas fatais. São 17 mortos a menos do que o coronavírus levou de nós apenas no dia 7 de agosto de 2020.
Convém não esquecer também os acidentes aéreos, acontecimentos que provocaram enorme repercussão. Em 2009, a queda da aeronave da Air France matou 228 pessoas. Em 1973, o acidente com boeing da Varig em Paris matou 123 pessoas. O acidente com o Fokker 100 da TAM, ocorrido em 1996, provocou 99 mortes. Em Congonhas, acidente aéreo em 2007 deixou 199 mortos. O mais recente, que vitimou 71 pessoas, foi a queda do avião da Chapecoense na Colômbia, ocorrido em 29 de novembro de 2016.
Esses acidentes aéreos provocaram ao todo 720 óbitos. O total representa menos da metade do número de mortos pelo novo coronavírus em 5 de agosto de 2020, quando morreram 1.469 brasileiros e brasileiras.
Também não se pode esquecer de tragédias ambientais, provocadas pela exploração desmedida com a anuência negligente e cúmplice das autoridades competentes. Em Brumadinho (MG), no dia 25 de janeiro de 2019, uma barragem sob responsabilidade da Vale rompeu e vitimou 270 pessoas. Quatro anos antes, na também cidade mineira de Mariana, rompimento de barragem com características similares ceifou 19 vidas. Em 2011, deslizamentos na região serrana do Rio de Janeiro ocuparam a mídia nacional e internacional. Ao todo, calcula-se que 917 pessoas tenham morrido com a tragédia. Em abril de 2010, na cidade de Niterói (RJ), um deslizamento ocorrido no Morro do Bumba deixou 48 pessoas mortas. Em 2008, inundações em Santa Catarina mataram 135. Em Caraguatatuba (1967), enchentes e deslizamentos mataram 436 pessoas. Outras tantas poderiam e deveriam ser lembradas, mas essas parecem representativas do longo inventário de desastres brasileiros.
Esses acontecimentos totalizam 1.824 mortes, quase o mesmo número de novos casos do coronavírus registrados em 14 de abril de 2020.
Massacres
Por fim, não se pode ignorar os massacres ocorridos pela sanha autoritária do Estado. Também são muitos. Recordemos apenas de três. Em 1993, policiais militares atiraram contra jovens em situação de rua que dormiam na escadaria da Igreja da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro. Foram oito mortos. Sete pessoas foram condenadas e suas penas, somadas, ultrapassaram 700 anos de reclusão. Todos estão em liberdade. Um ano antes, em São Paulo, também policiais militares praticaram o que ficou conhecido como Massacre do Carandiru. No total, 111 pessoas morreram. O responsável pela operação, coronel Ubiratan Guimarães, foi inicialmente condenado a 632 anos de prisão. A sentença, no entanto, foi revogada e ele permaneceu em liberdade até 2006, quando foi morto com um tiro no abdômen. Por fim, e não menos importante, é necessário recordar os mortos pela ditadura militar brasileira (1964-1985). Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, 434 vidas foram ceifadas pela repressão. Os responsáveis seguem morrendo sem pagar pelos seus crimes.
Apenas nesses três casos, soma-se 553 mortos, o mesmo número de pessoas vitimadas pelo novo coronavírus em 6 de abril de 2020, ou seja, bem no início da pandemia.
O engano dos números parece melhor resolvido quando colocado em perspectiva, mas nada acontece sem risco. Um leitor com inteligência abaixo da média poderia acompanhar os exemplos acima e pensar não que a pandemia está sendo tragicamente subestimada, mas que nossas tragédias anteriores não foram tão expressivas assim. O Brasil já não nos permite colocar mau-caratismo em dúvida, tampouco o desapreço sádico pela vida de quem, quase sempre, se diz seu defensor antes mesmo do nascimento. Mas há também quem não apoia genocídios e permanece refém do engano dos números, e isso acontece por uma razão que excedente a matemática: números simbolizam quantidades, mas não é sua vocação registrar o luto e sofrimento do referente a que fazem menção.
A realidade da vida não é a realidade da matemática. Na vida, muitas coisas são explicáveis em termos matemáticos, mas os termos matemáticos são demasiado pobres para traduzir toda a complexidade da vida. Do ponto de vista comunicacional, não parece existir tarefa mais importante nesse momento do que a de demonstrar a dor que os números escondem. É preciso traduzi-los em gráficos, fazer comparações e mobilizar todo recurso didático disponível para gerar a sensibilidade que conforta, a disciplina que contém o avanço da doença e a indignação que nos anima a enfrentar a anestesia moral que também nos contamina. Sabe-se, muito naturalmente, que nada que é humano tem uma explicação monocausal.
Na base de nossa letargia não mora apenas o engano dos números, mas os esforços que o governo federal tem feito para disseminar ainda mais a doença, os discursos genocidas alinhados ao de Bolsonaro que ecoam das redes sociais ao púlpito de algumas igrejas, o negacionismo científico, a indiferença patológica com a morte, a dura capacidade de conviver com desgraças e, não menos importante, o impulso eugenista que grassa em tempos de fascismo. Para combater esses inimigos, a Matemática entrega suas armas à Política.
O mundo material, onde pessoas morrem e sofrem, não é o mundo dos cálculos diferenciais. Caso fosse, poderíamos expressar esse mundo em uma equação que, resolvida, solucionaria todos os nossos problemas ou que, no limite, permaneceria insolúvel, como fascinante mistério que um dia chegaria ao fim e nos conduziria a um futuro redentor. Mas a realidade da vida não é, definitivamente, a realidade da Matemática.
[1] Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
[2]Professora de Matemática da Fundação Municipal de Educação de Niterói (RJ) e da Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo (RJ).
É muito comum associar o bolsonarismo ao negacionismo científico. O bolsonarismo seria eticamente repulsivo, entre outras coisas, porque nega os consensos científicos, porque rejeita os fundamentos da ciência cartesiana, porque desobedece a comunidade científica. Implícita está a ideia de que a ciência sempre é humanista, é sempre virtuosa. Como se não fosse possível ser, ao mesmo tempo, perverso e seguidor dos protocolos científicos.
Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Essa relação imediata entre entre ciência e virtude é algo ingênua e facilmente desmentida pela própria história da ciência. A ideia de que o bolsonarismo é necessariamente negacionista também não se sustenta na crônica política, especialmente no que se refere ao enfrentamento à pandemia da covid-19.
A forma como governo de Jair Bolsonaro está enfrentando a pandemia da covid-19 não tem nada, absolutamente nada, de negacionista, de anticientífica. Pelo contrário, é perfeitamente coerente com o pensamento científico. Está correta do ponto de vista técnico.
Desde o primeiro dia de pandemia, as autoridades sanitárias nacionais e internacionais recomendaram: o isolamento social é o único jeito de combater a pandemia. Fecha tudo, esvazia as ruas, dá um tapa na curva pra preservar o sistema de saúde, enquanto os cientistas trabalham num medicamento ou numa vacina.
Este é a solução científica eticamente adequada para combater a pandemia. Mas não é a única saída cientificamente possível. Como nem tudo são flores nesta vida, há também a solução científica eticamente repulsiva.
O científico eticamente adequado é tão científico quanto o científico eticamente repulsivo. Por isso, a discussão jamais, sob hipótese alguma, pode ser apenas científica. Tem que ser também políticamente normativa, um tantinho filosófica.
O governo de Bolsonaro escolheu a estratégia científica eticamente repulsiva. Foi coerente com sua própria essência. Não podemos negar.
Não é incompetência. Não é negacionismo científico. É pior!
Quando Bolsonaro boicotou as medidas de isolamento, fritou dois ministros da saúde, vetou a lei que decretava a obrigatoriedade do uso de máscaras e gastou apenas 1/3 do orçamento previsto para o combate à pandemia, estava escolhendo um método cientificamente autorizado para lidar com o problema.
Deixa o vírus correr, infectar as pessoas, até o momento em que a populacao estiver naturalmente imunizada, custe o que custar, morra quem morrer.
Num país de 210 milhões de habitantes, de proporções continentais, qual será o custo da estratégia? Quanto tempo leva?
0,1% de mortos? Parece pouco, né? Em números absolutos são 210 mil pessoas. Se for 0,2%? Ainda assim será pouco? 420 mil pessoas! E vamos somando, de 0,1 em 0,1%. Até onde vai? Será que chega em mim, no meu pai, na minha mãe? A cada, 0,1%, a chance aumenta. Vale pra você também, leitor e leitora. É uma bomba relógio. Tic, tac, tic, tac.
O governo brasileiro está disposto a pagar o preço, seja ele qual for. Estamos com quase 85 mil mortos. E contando. E o vírus circulando, e as pessoas morrendo. Em algum momento, virá a tal imunidade natural do rebanho. É o que a ciência diz.
Os que sobreviverem ficarão imunes. Os que morreram, em sua maioria pessoas mais frágeis, não voltam mais. Óbvio! A ciência também diz isso. Sobram os mais fortes, aptos e saudáveis. Na história da ciência, a estratégia bolsonarista tem nome: eugenia, darwinismo social. Na história politica tem nome também: genocídio!
Nomear as coisas com os nomes que elas têm é, antes de tudo, ato político desestabilizador, como percebemos na reação histérica dos generais à entrevista de Gilmar Mendes.
Dizer que o bolsonarismo é obscurantista, negacionista, ignorante, significa ser indulgente. Não se trata de nada disso. É pior. É muito pior.
Quando Osmar Terra participou do programa da Globo News, no começo de maio, e disse que as pessoas não deveriam ficar trancadas em casa, que tinham que ir mesmo pra rua se infectar, ele estava cientificamente correto, certinho.
A máxima “obedeçam a ciência”, tão ventilada no início da pandemia, pode ser muito perigosa. Não é tudo que a ciência manda que a gente tem que obedecer não. Carece de ter cautela, de selecionar repertórios, caso a caso, com lupa ampliada em cada situação.
Há no meio disso tudo apenas duas certezas, que podem ser provadas, cientificamente: 1°) Bolsonaro e seus cumplices são genocidas. 2°) A ciência não detém o monopólio da virtude.
Uma inquietação profunda de mulheres filósofas em relação ao momento pelo qual a humanidade passa deu origem à publicação de Reflexões sobre uma pandemia. Em formato digital, o livro de ensaios filosóficos aborda os impactos das ondas de Covid 19 sobre o pensamento contemporâneo e sobre a própria crença na permanência da humanidade na Terra. Quinze pesquisadores de quatro universidades públicas brasileiras assinam essa coletânea de artigos proposta e organizada por três pensadoras da Universidade Federal de Santa Catarina: Maria de Lourdes Borges, professora do Departamento de Filosofia, a pós-doutoranda Evânia Reich e a doutora Raquel Cipriani Xavier. “O pensamento filosófico foi sacudido não só pela gravidade da pandemia, mas pela forma como o Brasil vem tratando essa tragédia, o que nos obriga a parar para compreender o que há por trás das alterações no valores e sentidos sobre a vida que estão sendo produzidos pelos Estados autoritários”, diz a professora Maria Borges, em entrevista aos Jornalistas Livres.
Escrita no calor dos acontecimentos, em pleno devir da história, ao modo de Nietzsche, a obra traz, contudo, o rigor intelectual recomendado por Hegel ao voo da ave noturna que simboliza a filosofia. Embora os dilemas sejam dos mais cabeludos, os 15 ensaios preservam a clareza e a beleza estética da boa literatura filosófica. Os autores compartilham com o público reflexões sobre os abalos éticos trazidos pelo coronavírus para a vida em sociedade. Publicado em formato digital pelo Núcleo de Ética e Filosofia Política (Néfipo) da UFSC, que atua há quase dez anos com a divulgação do conhecimento acadêmico filosófico, o livro pode ser acessado e baixado gratuitamente por qualquer pessoa neste link.
“A história da humanidade já vivenciou outros episódios de epidemias, talvez tão graves quanto a atual, tais como a peste que assolou a Europa nos séculos XIII e XIV, dizimando quase um terço de sua população, ou o desaparecimento de grande parte da população ameríndia entre o século XVI e XVIII através dos vírus trazidos pelos colonizadores europeus. Nossa geração, contudo, jamais havia passado por esta experiência, a não ser assistindo filmes ‘distópicos’ ou de ficção científica. Embora alguns grandes epidemiologistas têm dito que fomos muito ingênuos em não termos previsto a possibilidade de um contágio em massa por um vírus letal, a bem da verdade, ninguém levava a sério esta possibilidade. Tampouco os primeiros casos na China despertaram, nos outros continentes, um medo em relação a uma possível pandemia. Fez-se necessário que seus países fossem massivamente infectados para que a realidade caísse nua e crua diante de seus olhos”.
(Apresentação da obra: Maria de Lourdes Borges, Evânia Reich e Raquel Cipriani Xavier)
Maria Borges
Evânia Reich
Raquel Cipriani Xavier
Os ensaios reunidos mostram que o vírus escancara a vulnerabilidade social e revira todos os conceitos estabelecidos pela história da Filosofia, abalando a própria confiança das pessoas em geral na permanência da humanidade no Planeta. Cada filósofo traz à baila uma análise deste tempo de pandemia, revelando, ao mesmo tempo, questões filosóficas próprias muito singulares. A obra é marcada por um profundo questionamento seguido da busca de respostas em torno de temas como a ética médica diante da necessidade de selecionar os pacientes que serão priorizados no tratamento de Covid por conta da precariedade dos sistemas de saúde. Também merece investigação dos autores a dificuldade de garantia das liberdades individuais diante das imposições de condutas coletivas, assim como a assimilação das mortes dos excluídos pelo estágio neoliberal do capitalismo e mesmo o combate das medidas preventivas pelo Bolsonarismo. Abordam ainda o sentimento inconsciente de traição das promessas do iluminismo de domínio da ciência, gerado com a ausência de vacina e remédios contra o coronavírus, abrindo campo para entrada do negacionismo do conhecimento . O retorno do conceito do mal aplicado à doença em contraposição à maldade política também se desdobra em vigorosas análises, e da mesma forma as incertezas sobre as possibilidades de reorganização da vida em sociedade no trabalho, na escola, no lazer, no transporte.
Protesto contra o racismo nos EUA: capitalismo absorve as mortes das minoridades políticos para perpetuar-se na história
Tensionamentos gerados pela pandemia sobre a presença do Estado e do seu papel na manutenção do bem-estar dos cidadãos compõem as discussões salutares no campo da filosofia política. No ensaio de abertura, intitulado “Fraqueza do Estado e elitização da cidadania na América do Sul: Lições políticas da pandemia”, Alessando Pinzani analisa a reação dos governos nacionais, mostrando que a crise de COVID-19 recolocou no centro da cena política um ator que desde a crise econômica de 2008 e 2009 tinha sido esquecido como protagonista: a figura do Estado. Perseguindo o objetivo de analisar a responsabilidade que os diferentes Estados têm assumido, Pinzani mostra como um Estado que permite o aprofundamento das desigualdades sociais provoca um resultado mais dramático da pandemia.
Fazendo uma linha de comparação dos países da América do Sul com a maioria das nações da Europa, Pinzani levanta o grande problema da desigualdade social que é exacerbada nos países em que os Estados sempre foram menos presentes na distribuição de renda. Em contrapartida, nos países em que os indivíduos sempre foram deixados à própria sorte, sem qualquer amparo oficial, a situação pouco mudou com a pandemia. E o Brasil torna-se um dos grandes exemplos do descaso do governo atual, que se intensificou com a atual política de ideologização das ações públicas.
“Até hoje, o governo brasileiro continua a negar a gravidade do problema, ainda que o número de mortos aumente diariamente, o Brasil se torna velozmente um dos países mais infectados do mundo”.
Vírus não é democrático: desigualdades sociais agravam consequências do coronavírus para as comunidades socialmente vulneráveis
VÍRUS E CAPITAL SE ALIAM NO
COMBATE AO CONFINAMENTO
Em “COVID-19 e ubupoder-19”, Leon Farhi também deflagra sua reflexão de filosofia política com uma pergunta: “Em que grau a morte entrava o dinamismo do capital?” Ao analisar as ligações entre a crise da pandemia e a crise atual do capitalismo, Farhi investiga, ao fundo, a existência de um projeto de extermínio passivo dos mais fracos que interessa à sobrevivência do sistema de mercado. Mostra como a dinâmica do capital absorve, sem grandes abalos ao sistema, a maior parte das vítimas da letalidade da COVID-19, que já se aproximam neste fim de semana a 500 mil mortos no mundo e 60 mil no Brasil.
Esses mortos são, em sua maioria, idosos, doentes crônicos, pobres, negros, indígenas, trabalhadores avulsos, que vivem em condições precárias e desfavoráveis ao isolamento. Por outro lado, as medidas tomadas pela maioria dos países favoráveis à suspensão parcial das atividades econômicas, abalam, sim, a existência do capitalismo atual. Esse dilema leva o autor a uma reveladora conclusão: o problema não é o vírus em si, mas as medidas de combate e proteção aos trabalhadores que acabam alcançando a população mais vulnerável. Nesse aspecto, vírus e capital se alinham no combate ao confinamento, o que explica a lógica das carreatas e protestos de bolsonaristas no Brasil contra a permanência da quarentena nos grandes centros. A questão que subjaz dessa reflexão é a de saber por que o isolamento social, que levou à suspensão da rotina econômica, foi aceito pelos Estados e por grande parte da população, mesmo sofrendo consequências imprevisíveis. Na busca de respostas, o autor se aprofunda na crise que aparentemente assola o capitalismo e na crise política brasileira produzida pelo que ele chama de “ubupoder”.
O ensaio “Vários mundos para uma só pandemia: contra a universalidade do discurso filosófico”, assinado por Érico Andrade, encara de frente o problema das diferenças sociais relacionadas à crise da pandemia e destrói de vez a ilusão inicial de que o vírus seria democrático. Pelo contrário, o coronavírus muito mais acentua do que elimina a desigualdade social, o que se agrava em países como o Brasil. Tanto na forma de contágio quanto nas consequências para as pessoas e para os países, o vírus afeta de maneira desigual. “Não existe o mundo pós-pandemias. Existem mundos”, escreve Andrade, acentuando que esses mundos são afetados em tempos e em espaços distintos. Daí vem uma importante conclusão do autor destacada pelas organizadoras do livro: o tempo, assim como o espaço, é relativo à classe, à raça e ao gênero. Se a circulação do vírus pode ocorrer de forma indiscriminada, a possibilidade de controlar essa circulação e de proteger as pessoas depende do contexto social.
“Longe de ser uma doença democrática, no sentido de que todas as pessoas estariam igualmente submetidas a ela, a letalidade da COVID-19 incide nas populações mais carentes e mais precarizadas”. (Érico Andrade)
Fossas coletivas para dar conta dos mortos de Covid em cemitérios de Manaus
O desrespeito às medidas de proteção por muitos Estados levam Cristina Foroni a analisar também o papel das instituições internacionais no mundo globalizado diante do processo galopante de dispersão do coronavírus pelo mundo. Em “A soberania dos Estados e os limites das instituições internacionais na pandemia do coronavírus”, ela discute, à luz da obra de Habermas, a necessidade de adoção de medidas de proteção à vida que ultrapassam as fronteiras nacionais. No caso brasileiro, a autora defende que a garantia dos direitos humanos autorizaria uma intervenção de instituições internacionais nas decisões dos Estados. A autora discorre a respeito da “forma que poderia assumir uma estrutura político-jurídica internacional capaz de tomar decisões vinculantes e obrigatórias em casos nos quais estão em jogo a vida, a integridade física e os direitos dos indivíduos submetidos ao poder soberano dos Estados”, conforme as apresentadoras. Habermas oferece à filósofa elementos norteadores para refletir sobre conflitos muito importantes causados pela doença, como a restrição da soberania dos Estados em contraposição aos direitos humanos.
As implicações éticas da pandemia no mundo globalizado retornam no capítulo “Ética global, direitos humanos e a pandemia da COVID-19”, assinado por Milene Tonetto. A autora defende a realização de acordos internacionais para o acesso de todos a medicamentos, vacinas e tratamento médico, de modo a corresponder a esse caráter globalizado da ética. Também salienta a importância da ciência para justificar e fundamentar os argumentos morais e jurídicos em consonância com o aspecto multidisciplinar da mesma ética. Num terceiro ponto, advoga a participação de especialistas em ética nas decisões sobre o controle da pandemia de modo a garantir soluções práticas justas e respaldadas em fundamentos teóricos.
Finalmente, Milene Tonetto examina as diferentes violações éticas no Brasil sob a pandemia, mostrando que houve nos últimos anos uma substantiva precarização da estrutura da saúde pública, tanto na redução da oferta de hospitais e leitos, quanto na disponibilidade de profissionais. Através de dados quantitativos, enfatiza a situação de vulnerabilidade social da população brasileira, agravada pela crise sanitária. A autora conclui apontando os crimes éticos de natureza ambiental com impacto na saúde humana, como a destruição da biodiversidade e do habitat de espécies da flora e da fauna que podem influenciar no surgimento de novas doenças como a COVID-19.
PENSAMENTO VIVO DA UNIVERSIDADE OFERECE SOLUÇÕES PARA DILEMAS ÉTICOS
Mais do que trazer para as pessoas comuns, filósofos, historiadores, cientistas, pesquisadores em geral, discussões vicinais sobre o momento exasperante que vivemos, Reflexões sobre uma pandemia é uma prova cabal de que a universidade vive e respira na pandemia, produz e faz ciência. Todos os artigos evidenciam esse vínculo pulsante do pensamento filosófico com o tempo presente no seu sentido mais prático, que é trazer respostas às pessoas e atores sociais envoltos em crises, sofrimento e dúvidas com os passos futuros da humanidade.
Os autores indagam o papel da Ética no combate à COVID-19 e assumem as tarefas prioritárias dos filósofos nesse cenário que são, segundo Darlei Dall’Agnol, no capítulo “Reflexões bioéticas sobre a COVID-19”, reforçar o papel da ciência no enfrentamento do novo coronavírus, refletir sobre as novas formas de relacionamento e discutir os inúmeros dilemas éticos que se apresentam. Nesse sentido, seu ensaio mostra particularmente a concretização de um serviço da filosofia à sociedade. Relata a criação de um grupo denominado “Dilemas COVID-19 Bioética”, formado por quatro professores brasileiros que foram pesquisadores do Center for Practical Ethics da Universidade de Oxford, incluindo o autor. Mostra o esforço desse grupo para oferecer respostas a alguns dilemas trazidos pela COVID-19, como os critérios éticos para o uso de recursos escassos num sistema de saúde e uso de medicamentos que não foram suficientemente testados.
A apresentação do capítulo, as organizadoras destacam algumas conclusões: sobre o primeiro problema, o grupo elaborou uma proposta que aperfeiçoa a diretriz do CFM, priorizando a alocação pela maior probabilidade de recuperação terapêutica. Conforme o autor, esse seria um critério equitativo, ainda que não igualitário, que permitiria salvar um maior número de vidas. Sobre a segunda questão, do tratamento da COVID-19, o texto reforça que no momento não há medicamentos especialmente desenvolvidos e que não recomendaria o uso indiscriminado de remédios off label, sem a devida comprovação de sua eficácia por testes clínicos.
O autor realiza, assim, uma profunda discussão filosófica sobre o critério que deve ser utilizado para preenchimento preferencial de leitos em hospitais, dentro da propalada ética médica. Por trás desses critérios Dall’Agnol percebe que está embutida uma disputa entre duas visões destacadas pelas prefaciadoras da publicação: a deontologia da profissão, que pauta a ética médica pelo princípio da vida, e a visão consequencialista, que calcula o desdobramento das possibilidades de sobrevivência do paciente salvo, dentro de uma aplicação de certa forma utilitarista dos investimentos públicos no tratamento dos doentes.
PANDEMIA ESCANCARA FRAGILIDADE DA CIÊNCIA E ABRE PORTAS PARA O OBSCURANTISMO
A coletânea discute a ameaça à permanência dos ideais do Iluminismo, como fundantes de uma ordem dos valores de igualdade, fraternidade e liberdade, estabelecidos por grandes eventos como a Revolução Francesa. Essa questão está no cerne do artigo “A COVID-19 e o Iluminismo”, no qual o autor Delamar José Volpato Dutra examina o que chama de “iluminismo de quarentena”. Por muito tempo, as ideias do chamado “Século das Luzes” foram profundamente questionadas por traduzirem a pretensão das elites de difundir os frutos do progressos e do conhecimento científico às grandes massas, a fim de libertá-las da escuridão medieval.
Dentro da estratégia da “dialética do esclarecimento”, duramente criticada pelos teóricos marxistas, os iluministas democratizaram o acesso ao conhecimento às custas da mercantilização da vida, do massacre dos valores e da tradição e da imposição de uma cultura industrial alienadora e voltada ao consumo de massa. Hoje, contudo, em função do negacionismo da história e da ciência, mais do que denunciar o caráter eurocêntrico e colonizador desse projeto, se trata de defender os ideais básicos do humanismo e até o direito à vida.
Volpato identifica no Brasil atual a existência de grupos anti-intelectualistas e anti-iluministas e propõe que, contra essa ideologia, é necessário fazer uma crítica moral, técnica e científica, como destaca as apresentadoras. Mostra ainda que a própria pandemia coloca nossas ideias iluministas à prova. Hegeliana e kantiana, Maria Borges ajuda a destrinchar no ensaio do autor o que nos levou a esse impasse. Mostra que carecemos de meios para deter cientificamente, através de remédios e vacinas, o avanço do vírus, restando-nos apenas o isolamento das pessoas. Esse fato contribui para abalar a certeza do iluminismo na ciência e na capacidade do homem de dominar a natureza.
“Frente aos desígnios da natureza, ficamos como menores de idade, sendo por ela dominados”.
O abalo não é menor no que se refere à garantia da proteção jurídica e legal a todo cidadão, postulada pelos pensadores do século XVIII que lançaram as bases filosóficas do chamado “espírito das leis”, como Montesquieu, Voltaire, Diderot, e fundamentaram os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos. “No aspecto jurídico-científico, os Estados se viram incapazes de garantir o bem-estar das pessoas e a liberdade individual”, ressalva Maria Borges. Aliás, a pandemia coloca em xeque o próprio modelo do Estado Democrático e de Direito, à medida que Estados que não se enquadram nesse modelo foram mais eficazes para combater a doença. Por fim, o víros exporia, segundo a organizadora, as falhas do iluminismo econômico-social, escancarando as péssimas condições de vida da população.
ENTRE A CRUZ DA CONTAMINAÇÃO E A ESPADA DO CONFINAMENTO
“Entre a cruz e a espada”, ensaio de Evânia Reich, discute o dilema ético das ações de controle da pandemia servirem de pretexto para estados autoritários aproveitarem o necessário monitoramento biomédico da população para impor limites às liberdades individuais. Apoiada no conceito de biopolítica de Agamben e de psicobiopolítica do filósofo coreano Chul Han, ela discute os mecanismos pelos quais esses governos usam o controle sanitário dos indicadores de saúde, de circulação, de deslocamento ou de consumo, por exemplo, para fortalecer sistemas de vigilância eletrônica que potencializam a dominação política do Estado sobre a vida e a subjetividade dos indivíduos.
Emblema da morte mais do que nunca impacta nossas certezas na longevidade do homem na Terra
A filósofa assinala que os Estados mais autoritários da Ásia foram os que melhor conseguiram controlar a pandemia, enquanto países da Europa apresentaram números de contaminações e de mortes bem mais elevados. É aí que mora o grande perigo, aponta Evânia: de os Estados tidos como democráticos incidirem na vida e na psicologia de seus cidadãos de maneira semelhante no período pós-pandemia. Evânia avalia, por exemplo, o risco de Estados controlarem ainda mais a entrada de estrangeiros em seus territórios, mas da mesma forma autoritária regularem a vida de seus cidadãos, controlando-os em seus passos e ações. Em última instância, esse controle forjado na pandemia levaria ao fim da vida na esfera privada.
A incerteza do futuro e o terror do presente. Por esse mote, Janyne Sattler elabora um instigante ensaio, intitulado “Suspensão”, no qual raciocina a partir de um encadeamento de perguntas essenciais, no melhor modo filosófico:
“Imagina como será a nova vida com a presença do vírus. Como serão nossas aulas? Voltaremos a elas? O que podemos esperar de um mundo tomado pela pandemia?”
Daí ela reflete sobre a política higienista em relação à cor e à classe social dos que morrem primeiro, da ojeriza à velhice, das políticas neoliberais que agora nos mostram o estrago daquilo que não foi feito. Ela reconhece o pânico da verdade:
“Daqueles que sempre morreram primeiro, e para os quais sempre houve a ‘vala comum’, inominada e sem lembrança, cujo luto nós nunca fizemos no país da interminável, irreparável, escravidão. Que escancara o mal-estar dos vulneráveis aptos pela política pública do sacrifício em nome do mercado e das portas abertas do mercado. Esse é o pânico de verdade, até para aqueles que serão sacrificados.”
O MAL DA PANDEMIA E O MAL NA POLÍTICA
Maria Borges delimita o mal da natureza e o mal humano na pandemia
Três autores abordam o conceito de mal e de alegria maligna em relação aos riscos e à letalidade da pandemia. Declarações de escárnio de algumas autoridades brasileiras diante do pânico gerado pela gravidade da doença evidenciam esse comportamento. Presidente da Sociedade Kant Brasileira e doutora em Hegel, Maria de Lourdes Borges delimita em “Sobre o mal da natureza e o mal humano” o que seria o mal inerente à doença e o mal relativo às posturas e discursos das autoridades de recusa aos cuidados devidos para proteger a população da COVID-19. Numa remissão histórica inicial, ela mostra que a filosofia deixou de empregar o conceito de mal para as catástrofes naturais, passando a usá-lo apenas no sentido de mal moral, quando há um sujeito dessa ação a quem ela pode ser imputada. A autora vai buscar nas categorizações do mal em Kant fundamentos para definir o mal moral que pode ser imputado ao ser humano.
Em analogia a Kant, que estabelece três níveis para o mal, ela, da mesma forma, divide o mal relacionado à pandemia em três eixos principais. Em primeiro lugar, aponta a crença arrogante do homem no domínio total da natureza, fruto da ilusão iluminista internalizada nos cidadãos contemporâneos sobre a confiança na centralidade e na eternidade da raça humana. “O otimismo iluminista fez com que ignorássemos as possibilidades de sermos assolados por um vírus, ou mesmo que desconsiderássemos a ausência de remédios eficazes para contê-lo”, ela explica, em entrevista aos Jornalistas Livres. Como fruto dessa incredulidade inicial, as medidas necessárias de isolamento foram tomadas com atraso em vários países.
O segundo nível é o esquecimento do Estado, propagado pelas políticas econômicas liberais que defendem de forma inflexível o encolhimento da estrutura estatal de saúde, mesmo quando isso compromete o direito à vida e o dever de proteção à saúde pública. Essa depauperação das políticas públicas deixou vários países sem condições de atendimento à população atingida pela COVID-19. Por fim, a autora nos traz a figura da banalidade do mal, expressa em atitudes negacionistas, bem como no sadismo e escárnio de declarações sobre as vítimas da pandemia.
O RISO MACABRO DO BOLSONARISMO
Filósofos analisam o mal humano na política, que é o prazer de causar sofrimento ao outro, imputado ao Estado, nos casos de assassinatos de jovens negros pela PM
Numa perspectiva diferente, Vilmar Debona e Cláudia Dias mostram em “Alegria maligna” que o riso macabro, como concepção do mal ou da maldade, marca o cenário da pandemia no Brasil. Resgatando o conceito de Schadenfreunde em Schopenhauer, eles encontram a expressão do riso macabro em relação à pandemia no Bolsonarismo. À procura de razões para essa relação infeliz, eles trazem de Schopenhauer a formulação da motivação egoísta do indivíduo que quer o mal alheio ou mesmo vibra com ele. Esse desejo faz parte dos três princípios que servem como motivação para as ações humanas, segundo o filósofo francês: o egoísmo, a maldade e a compaixão.
Enquanto a compaixão quer o bem do outro, a maldade deseja o mal; enquanto a motivação egoísta como meio de atingir os fins do agente não mede a dor que pode causar a outrem, a motivação maligna vai mais além: ela leva a sentir prazer com a dor ou mesmo com a eliminação do outro, explicam as organizadoras da obra. “A alegria maligna é o sinal mais inequívoco de um coração mau”. Os autores percebem essa alegria macabra em sentenças célebres do presidente da República, como “eu não sou coveiro”, ou “fazer o quê? sou messias, mas não faço milagres”, ao ser questionado sobre as medidas governamentais para evitar os altos índices de mortalidade, num dia em que o Brasil contabilizava com assombro o número de vítimas alcançar mil mortes por COVID-19 em 24 horas.
O QUE A HUMANIDADE APRENDE COM A SEPARAÇÃO E O SOFRIMENTO?
A questão sobre se é possível aprender alguma lição a partir do sofrimento norteia o ensaio “A pandemia e o individualismo que nunca existiu”, de Bárbara Buril. Apesar dos exemplos históricos mostrarem que o sofrimento nos ensina muito pouco, a autora argumenta que o momento pandêmico tem um poder revelador sobre as diferentes formas de vidas, antes obscurecidas para a maioria das pessoas. Como esclarecem as filósofas que assinam a apresentação: “Éramos propensos a acreditar que nos bastávamos. Na incessante busca individual pela realização de nossos objetivos, fomos cegados a respeito de que o outro nos é vital. A pandemia nos revelou que a vida em sociedade nos é necessária no nível psíquico”.
“O social é uma necessidade profundamente nossa. Assim, o que esta pandemia nos revela é que aquilo que tentávamos “encaixar” como figurantes ou objetos decorativos, em nossa rotina insana de busca pela realização de nós mesmo, é justamente aquilo que a estrutura, de modo muito profundo, psiquicamente”. (Bárbara Buril).
No artigo “Tem Futuro a humanidade?”, Cinara Nahra alerta para a gravidade do momento e coloca em jogo os indícios mesmos de finitude da espécie humana que a COVID-19 traz para as pessoas, inclusive diante da possibilidade de novas pandemias futuras. Esse quadro cercado de previsões e sensações apocalípticas leva a filósofa a analisar a ideia de risco e de catástrofe existencial diante da ameaça ou já a destruição do potencial de longo prazo da humanidade na Terra. Escolhendo um caminho ético, a autora salienta a rede de solidariedade e altruísmo que se estabeleceu ao redor do mundo como um fator indicativo da capacidade humana para suplantar o egoísmo que ela própria cultivou. Ao mesmo tempo, ela aborda de frente a questão macroeconômica, ao alertar que o modelo de capitalismo atual mostra-se “totalmente incapaz de garantir condições mínimas de sobrevivência e menos ainda de lidar com a situação de desastre e risco”, como destacam as apresentadoras.
O pensamento filosófico desses estudiosos incide sobre os impactos da pandemia no campo das relações sociais, políticas, médicas, psicológicas, econômicas, mas também refletem sobre o papel da própria filosofia, numa espécie de autoquestionamento. Nesse caminho, Filipe Campello realiza no ensaio “De onde fala a filosofia” uma reflexão sobre o lugar de fala da filosofia a partir da análise de alguns artigos escritos pelo controverso Giorgio Agamben, um dos mais importantes da atualidade. E se alinha ao lado dos que criticam duramente o ultrapolêmico artigo em que o pensador italiano qualifica as medidas de contenção do vírus como excessivas e acusa os Estados de instaurar o pânico coletivo para aperfeiçoar os mecanismos de controle biopolítico da população. Agamben chama a pandemia de “invenção”, num estilo que poderia soar aos desavisados como típico de presidentes de extrema direita, como Bolsonaro e Trump, que apresentaram sérios entraves para as medidas sanitárias de proteção da saúde pública.
Diversos pensadores se ocuparam em detratar esse artigo publicado em Sopa de Wuhan, primeira coletânea marcante do pensamento filosófico sobre a pandemia, quando a Europa já aplicava lockdown para conter picos de Covid e o Brasil ensaiava os primeiros passos no isolamento social. Campello se concentra em questionar o argumento da invenção: “O que faz com que um filósofo ou filósofa se coloque nessa posição?” Ele atribui esse tipo de postura à persistência de um “resquício metafisico” em boa parte da produção filosófica contemporânea e a um “discurso de pretensões universais”, que o levam a qualificar o discurso filosófico de presunçoso e autoritário. Seu artigo faz um alerta contra o risco de a reflexão filosófica examinar o cenário da pandemia, aplicando conceitos já fixados, sem se dar conta das transformações e desafios da realidade emergente que exigem novos conceitos.
Mais do que uma crítica específica a Agamben, autor que tantas contribuições relevantes deu ao pensamento contemporâneo, o artigo de Campello deve ser lido como um alerta à filosofia e aos filósofos para que se abram diante do novo e intempestivo cenário para provocar novos insights sobre a vida em sociedade, em vez de empobrecê-lo com pressupostos antigos. É, portanto, um convite ao aprendizado e à perda da arrogância. Com um olhar que penetra nos detalhes do nosso cotidiano, os filósofos conseguem ao mesmo tempo descrever a realidade e refletir sobre as reentrâncias da nova e aterrorizante realidade. E têm, como Janyne Sattler, a coragem humilde de se colocar em condição de vulnerabilidade e de incerteza como qualquer cidadão: “Eu estou à espera, e não sei muito bem do quê, mas talvez de saber quanto tempo vai levar para que o abraço venha a ser permitido novamente.”
Por João Torrecillas Sartori, médico no SUS, psicanalista e doutorando em Ciência Política
Nos últimos dias, em meio à Pandemia da COVID-19, uma atitude negacionista tem sido comumente constatada, não somente em redes sociais, mas também no espaço público. Muitos estariam relativizando a gravidade da situação brasileira. Mais séria ainda seria outra constatação: entre os negacionistas, se incluiriam ainda profissionais de saúde; inclusive, médicos. O negacionismo de parte da população, consistindo em uma atitude de algum modo esperada em momentos de crise, não seria restrito ao Brasil, mas estaria ocorrendo mais frequentemente no País. O que motivaria uma coletividade a este negacionismo?
Freud, criador da psicanálise, considerou que certas ideias do indivíduo, ao acessarem a sua consciência, causariam excessivo desprazer sendo por isso recalcadas, mantidas inconscientes. A ideia monstruosa de uma Pandemia, em si, já tenderia a compelir muitos a um mecanismo psíquico de defesa, a uma relativização negacionista de sua gravidade. Embora o recalcamento, relacionado com esta relativização, mantenha controlado o nível de tensão do indivíduo, também inviabiliza certas atitudes importantes deste no enfrentamento de uma crise. Assim como a febre de um indivíduo que, embora melhore as suas condições de combate a uma infecção, será nociva caso aumente acima de um certo nível. Embora esperado em alguma medida, o negacionismo não seria de modo algum a maior tendência dos indivíduos nesta situação. Contudo, no Brasil, esta reação tem sido mais comum entre os apoiadores de Bolsonaro. Como se explicaria esta sua atitude?
No início da Pandemia, ansiosos pelas declarações do Presidente, em um momento de apreensão, seus seguidores acríticos se acalentaram enormemente ao escutarem algumas de suas mentiras, tais como a consideração da COVID-19 como uma “gripezinha” e a consideração dos posicionamentos oficiais de sérias instituições internacionais de saúde como uma “histeria”. Freud considerou que o discurso do líder, enquanto a massa existisse, seria necessariamente considerado como verdadeiro pelos seus membros comuns. O negacionismo do líder resultaria no negacionismo dos liderados.
Além disso, não somente em rede nacional, mas também em vias públicas, Bolsonaro contrariou relatórios científicos, assim como orientações e recomendações das mais sérias instituições internacionais e nacionais no âmbito da saúde coletiva. Esta sua atitude, de modo algum inédita, embora indique desprezo pelas vidas dos não-membros de seu clã, reverbera em um contexto muito mais amplo, de expressiva ignorância coletiva sobre aquelas que viriam a ser as vantagens de se conceber a ciência como norteadora de Políticas Públicas.
Bolsonaro, como líder de uma massa, influenciaria muitos diretamente –sugestionando bolsonaristas em certos sentidos, condicionando seus pensamentos, seus sentimentos e suas atitudes– e indiretamente –como efeito de uma “rede de arrasto” relacionada com as identificações estabelecidas entre bolsonaristas. Em meio à Pandemia, o discurso mentiroso do líder acerca de seus opositores (entre os quais, neste momento, a ciência e as instituições científicas) estaria contribuindo para uma situação de alienação coletiva capaz de acarretar aumento de agravos e de óbitos.
Certamente, Bolsonaro não é o único agente da alienação acerca da importância da ciência e de suas instituições. Certos líderes religiosos, visando à manutenção de sua “indústria da fé”, vêm atacando a ciência. E, tendo sido idealizados pelos muitos membros de suas Igrejas – neste caso, sendo concebidos coletivamente como intermediários entre eles e sua divindade –, convenceram esses fiéis a ignorar recomendações científicas. Não raramente, inclusive, um deles tem utilizado os veículos midiáticos dos quais é dono para disseminar desinformação e mentiras em uma escala absurda. Reiteram –de modo perverso– a mencionada tendência, constituída na massa bolsonarista da idealização do Presidente. Por outro lado, quando o discurso de certos profissionais de saúde se alinha ao discurso de Bolsonaro, como resultado de seu apaixonamento pelo mesmo ou pela própria incapacidade momentânea de “encarar” a situação, os riscos são ainda maiores, se considerada a influência destes profissionais sobre a população.
Freud (1921) considerou que a idealização de um indivíduo, a seleção deste como um líder da massa, ocorreria sob certas condições, entre as quais, o reconhecimento de uma similaridade entre os membros desta massa e este líder. Comumente, esta similaridade consistiria no mesmo desejo inconsciente ou no mesmo ódio a certa entidade, indivíduo ou grupo social. Nos últimos anos, o estabelecimento e a ampliação de certos “ideais sociais” – tais como o antipetismo, o anticomunismo e o idealantissistema – contribuíram em muitos casos à idealização destes líderes religiosos ou políticos, os quais instrumentalizaram estes mesmos “ideais” estrategicamente, viabilizando seus negócios. Parte da população, alienada pelos seus líderes, seria norteada imaginariamente pelo delírio de que a suposta Pandemia seria uma narrativa comunista – ou, mais restritamente, petista – com o objetivo único de derrubar Bolsonaro.
Despreocupados pelo Presidente, certos negacionistas da Pandemia não somente aumentam o seu risco de infecção pelo vírus – e, indiretamente, também o risco dos demais –; mas, também, “contaminam” a sociedade, psiquicamente, em decorrência de uma “rede de identificações”. Mesmo os não-bolsonaristas, ao notarem que indivíduos amados estão agindo normalmente, não receando a Pandemia, estarão mais dispostos, inconscientemente, a um negacionismo. A gravidade da situação, em si, já compele o indivíduo a um complicado trabalho psíquico de elaboração, o qual poderia ser insuportável. Caso Bolsonaro, apoiado por cerca de 30% da população, mantenha mesmo que de modo suavizado atitudes relativizadoras da situação, o risco de “contaminação” coletiva – não somente psíquica, mas corporal –, aumentará. Consequentemente, os danos serão imensuravelmente aumentados.
Alguns dos efeitos de certas atitudes, tais como as presidenciais, contrárias à efetiva mobilização de esforços no combate à disseminação da COVID-19, serão irreversíveis. De outro lado, certamente, existem alternativas a serem realizadas no intuito de uma redução dos danos ocasionados pela COVID-19 no cenário nacional. Mas, caso o Presidente mantenha o seu discurso anti-científico e não se contenha imediatamente, este negacionismo certamente agravará a crise sanitária e as mortes decorrentes, em meio a uma situação que inclui as conhecidas limitações do sistema público de saúde e as complicadas condições de vida da maioria dos brasileiros. O enfrentamento da Pandemia no Brasil, que apresenta agora uma curva ascendente aproximadamente como a da Itália, depende não somente de um montante expressivo de recursos materiais, mas de uma ampla e coordenada capacidade de aceitar a realidade.
Uma docente da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), integrante do recém-nascido Docentes Pela Liberdade (DPL), causou um verdadeiro “climão” num debate sobre aquecimento global realizado na instituição na semana passada. Dois professores pesquisadores foram expulsos da palestra do climatologista e professor da Universidade de São Paulo (USP), Ricardo Felício, simplesmente porque demonstraram interesse em fazer perguntas ao final do evento. Os docentes expulsos destacaram que Felício faz parte de uma minoria científica chamada “negacionistas climáticos”. Notadamente financiados por grandes grupos econômicos, esses pesquisadores ganham muito dinheiro para contrapor a grande maioria de cientistas, que alerta para as transformações climáticas causadas pela exploração desenfreada do meio ambiente pelos seres humanos.
“Fomos muito bem recebidos na entrada, falaram que não havia nenhuma restrição, podíamos entrar sem fazer a inscrição, sem assinar a lista. Então nós entramos e ficamos tranquilos, ouvindo a palestra, como em todo evento acadêmico que a gente vai. Em determinado momento, nós perguntamos para uma menina da organização se haveria espaço para perguntas, e ela respondeu que sim. Em questão de minutos veio essa professora, já com tom repreensivo, dizendo que não haveria espaço para perguntas, que seriam apenas três, destinadas a estudantes dos cursos de Zootecnia, Agronomia e Veterinária. Eu disse que era estudante do doutorado, mas ela se estressou, disse que não e perguntou se nós queríamos conversar com ela fora do evento”, contou um dos professores, egresso do doutorado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade da UFMT.
Um dos professores ignorou o ato repressivo e continuou assistindo a palestra, que, embora tenha sido anunciada como uma atividade da Semana de Agronomia da UFMT, constava também como parte da programação do Circuito Universitário promovido pela Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT) entre os dias 14 e 31/10. Pelo sexto ano seguido, a associação realiza o evento em inúmeras instituições de ensino superior. Este ano, o circuito, denominado “Aquecimento Global: mito ou realidade?” foi realizado em Diamantino, Nova Xavantina, Cuiabá, Várzea Grande e Campo Novo do Parecis e, na próxima semana, deverá ser apresentado também a futuros profissionais em Sinop, Lucas do Rio Verde, Nova Mutum e Tangará da Serra.
“Meu colega ficou no auditório, mas eu pensei um pouco e aceitei sair para conversar com a professora. Lá fora ela ficou ainda mais alterada, disse que estávamos tumultuando o evento. Eu respondi que nós estávamos numa universidade pública, e ela disse que a universidade é pública, mas nada é de graça, que ‘eles’ estavam pagando. Essa discussão durou entre cinco ou dez minutos. Mas como eu estava com meu filho, fiquei preocupado, peguei ele lá dentro e fui embora”, explicou o pesquisador censurado.
O colega, no entanto, permaneceu no evento, mas o “climão” estava instalado. “Nós fomos rechaçados pela organizadora principal da palestra, que é professora da Agronomia. Ela disse ‘aqui não terá debate, vocês não farão polêmica. Apenas estudantes da Agronomia, Zootecnia e Veterinária poderão fazer perguntas’. Eu ignorei, mas ela saiu e foi conversar com o meu colega. Quando a exposição do Felício acabou eu fui tentar dialogar com a coordenação, mas fui barrado na sala da organização por estudantes da Agronomia, que disseram que a professora estava ocupada. Aí retornei ao espaço para assistir às perguntas feitas pelos estudantes. Nesse momento eu ouvi várias pessoas da organização falando para chamarem a segurança e apontando para mim. Foi um conhecido da Aprosoja que impediu que isso fosse feito, porque ele nós trabalhamos em outras atividades no Ministério Público”, afirmou o segundo professor censurado.
Irresponsabilidade acadêmica
“Ricardo Felício tem uma dialética boa, mas o currículo não é bom. Por exemplo, ele usa um mapa interessante desenvolvido por um Laboratório da NASA, mas pegando apenas uma parte, o espaço que mostra a variação da quantidade de carbono na atmosfera. Esquece de incluir – esquece, entre aspas – o final do gráfico, a parte dos últimos anos, em que há um aumento abrupto da temperatura. É o finalzinho, só os últimos anos, mas ele não usa esse finalzinho do gráfico. Ele utiliza meios argumentos, não expõe toda a opinião da comunidade científica que está disponível em milhares de publicações”, afirmou um dos professores.
Para a comunidade acadêmica, a abordagem científica de Felício representa, antes de tudo, um risco. “Existem dados reais do Paleoclima [estudos e reconstituições do clima num determinado período da pré-história] que falam de temperatura mais altas do que as que enfrentamos hoje. Mas há várias contra argumentações. Não que a gente quisesse fazer todas elas na palestra, mas é muita irresponsabilidade dele vir aqui dizer que não precisa haver nenhuma preocupação por parte do setor produtivo, porque o clima vai esfriar. Nós filmamos o final da palestra. Ele diz ‘podem ficar tranquilos, vai esfriar’. Isso é uma irresponsabilidade acadêmica muito grande, porque não existe essa tranquilidade por parte da maioria da comunidade científica. Até porque, se a grande maioria que alerta para a questão climática estiver errada, não vai acontecer nada. Nós seremos, no máximo, mais eficientes na produção de alimentos, no uso de fontes energéticas. Mas e se ele estiver errado? Vai ser o caos! Isso é uma irresponsabilidade acadêmica, e esse é o ponto mais importante”, alertou o professor.
Há várias contra argumentações da comunidade científica às teorias utilizadas pelos negacionistas climáticos, não só nas revistas especializadas, mas também em outros dispositivos da web. O professor titular da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Alexandre Araújo Costa, por exemplo, doutor em Ciências Atmosféricas, fez uma série de vídeos no youtube respondendo ponto por ponto dos argumentos do Ricardo Felício. Clique aqui para assistir.
Que liberdade querem os “Docentes pela Liberdade”?
O conceito de liberdade é uma disputa política histórica. O fato é conhecido e discutido em diversos espaços, especialmente nas universidades, instituições que têm o objetivo de observar, antes de tudo, as relações sociais cotidianas. A questão é: “liberdade” não se materializa automaticamente quando alguém reivindica a palavra. Para que ela exista, de fato, é preciso diferenciar a aparência da essência, a teoria e a prática. E é preciso qualificar o que significa liberdade.
Para os liberais, a liberdade sempre foi um problema, a partir do argumento de que muita liberdade pode provocar “instabilidades no sistema”. Por isso, a necessidade do controle, da censura, de limitar a liberdade principalmente de participação nos espaços políticos. Por isso o medo da educação, das universidades públicas, dos movimentos organizados de estudantes e trabalhadores que, ao contrário, priorizam os debates, a contraposição de ideias, os direitos sociais, o coletivo, o bem estar de todos e não apenas o individual.
Os professores expulsos do evento sobre clima destacaram outras atitudes semelhantes de membros do DPL. “Um aluna residente do Hospital Veterinário está processando uma professora por agressão, saiu na imprensa. O nome não foi divulgado, mas todos sabem que a professora também é do DPL. Um outro professor conservador, que gosta de discutir crise moral e falência ética, é conhecido na universidade pelo perfil autoritário, chega a ser hipócrita. Ou seja, já são três docentes de um grupo minúsculo com esse perfil. Eu jamais iria a esse espaço fazer polêmica. Nós queríamos qualificar o debate, principalmente porque o público que estava lá será de grande importância como força intelectual-técnica da produção agrícola do Brasil nos próximos anos. Os questionamentos seriam mais dirigidos ao senso crítico do público. Que o Ricardo Felício trabalha para o grande capital nós já sabemos, mas nós achamos que é possível atrair jovens para um pensamento de sustentabilidade e preocupação com os limites ecossistêmicos em espaços como esses”, afirmou o segundo professor.
O caso, que parece isolado, ressaltou uma discussão acerca do perfil dos conservadores de direita que integram o DPL. Os docentes pela liberdade defendem uma liberdade parcial, restrita. Uma liberdade de mercado, reservada a indivíduos que podem pagar ou comprar o que querem. Assim, questionamentos, pontos de vistas diferenciados, pensar o coletivo antes do individual são perspectivas que não cabem.
Em julho deste ano alguns, quando o DPL foi lançado em Mato Grosso, alguns membros do grupo apareceram na foto oficial posicionando as mãos como se fossem armas. A apologia à violência gerou mais polêmica do que o anúncio da associação em si, pois os grupos liberais conservadores de direita mobilizam não só cursos e pesquisas com sua perspectiva ideológica, mas até grupos cristãos de orações dentro da universidade – que, em tese, é laica.