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  • Beth Carvalho, a voz que cantou a luta do povo brasileiro

    Beth Carvalho, a voz que cantou a luta do povo brasileiro

    Morreu hoje a sambista Beth Carvalho. Grande artista popular, genial intérprete da MPB e que ganhou centenas de prêmios no Brasil e no mundo, incluindo um Grammy pelo conjunto da obra.

    Seu falecimento foi confirmado, aos Jornalistas Livres, pelo Diretor da TV Comunitária de Brasília – da qual Beth era presidente de honra -, o jornalista e amigo de longa data, Beto Almeida, que estava com ela em seus últimos momentos. Beth faleceu depois de dois meses de internação, aos 72 anos, no Rio de Janeiro, cercada de amigos, familiares e ouvindo seus sambas preferidos.

    Foto: Emilio Rodriguez / Jornalistas Livres

     

    “Ela segurava minha mão, quando partiu, e foi embalada pelo som que percorreu toda sua vida, o samba” contou Beto, sob forte emoção, ainda no hospital logo depois do ocorrido. Segundo Beto, e não é segredo no mundo samba, Beth também era generosa e abriu as portas para inúmeros artistas no palco, em suas gravações, no meio musical. Ajudou a revelar artistas como Zeca Pagodinho, Jorge Aragão e Arlindo Cruz. Percorreu em sua discografia de sambista inveterada, também outros gêneros, como a bossa nova e a MPB. Foi parceira, no ritmo que a consagrou, de Nelson Sargento, Noca da Portela e Carlos Cachaça.

    Mas Beth, era muito mais do que uma inegável e refinada artista. Mulher de opinião política sempre clara, ela fazia questão de dizer com todas as letras que era defensora sim, do socialismo.

    “Eu só acredito no modelo socialista, é o único que pode salvar a humanidade. Não tem outro”

     

    E nessa trajetória em que a vida, a arte e a luta estavam sempre se encontrando, Beth Carvalho foi amiga de Brizola, de Lula, de Fidel Castro, de Hugo Chávez.

    Beth Carvalho, com Lula desde a luta por Diretas Já!

    De opinião política clara, defendeu sempre, em todo lugar, a reforma agrária, os sem-terra e os sem-teto, defendeu as causas nobres da humanidade, o fim da exploração do homem pelo homem. Valores que aprendeu em casa, ainda menina, com o pai, advogado e admirador da obra de Lênin e que pagou, durante a ditadura militar no Brasil, o preço por defender suas ideias.

    A sambista de voz rouca cantou, algumas vezes, como convidada do programa “Alô Presidente” do ex-mandatário venezuelano Hugo Chávez. Em uma dessas ocasiões, quem tocou o violão para que ela soltasse sua voz, foi quem hoje, segurava sua mão, o jornalista Beto Almeida.

    “Beth levou Hugo Chávez, em sua primeira visita ao Brasil, ao morro da Mangueira. Lembro que ele tocou surdo a noite toda, feito um menino”. A Telesur, TV criada por Chávez e que hoje exerce a função de canal democrático de comunicação para toda a América Latina, recebeu a cantora inúmeras vezes, em programas especiais que homenageavam sua obra musical, mas também sua disposição em colocar sua arte em favor das causas que considerava importantes.

    “Cuba não precisa ter mais que um partido. É um partido contra todo o imperialismo norteamericano”

    Visitou Cuba inúmeras vezes e costumava defender com paixão o fim do bloqueio “os EUA dormem e acordam pensando em como acabar com Cuba, fazem sacanagem com um país que só tem cana de açúcar e tabaco”. E lamentou, em 2016, a perda do amigo e líder revolucionário “é muito difícil nascer outro Fidel”.

    Guerreira do povo, Beth Carvalho, apoiou a ex-presidenta Dilma Rousseff até o último momento, cantando em várias manifestações contra o golpe. E estava com Dilma, quando ela saiu de cabeça erguida do Palácio, levando seu abraço. Também esteve, em sua cadeira de rodas, em Curitiba, cantando na Vigília e no Festival Lula Livre.

    Em especial publicado pelo Jornal Brasil Popular em 2016, a sambista carioca falou sobre seus 50 anos de carreira artística destacando sua missão em fazer do samba a música que embala a luta do povo por justiça social. Na entrevista, ela fez críticas à “fúria das elites brasileiras que sempre se posicionaram contrárias à governos que fazem da população mais pobre sua prioridade”. Fez elogios às escolas de tempo integral e ao Sambódromo, criados por Leonel Brizola no Rio de Janeiro, destacou seu “orgulho em ver o Brasil sair do mapa da fome da ONU durante o governo de Dilma Rousseff” e ainda defendeu a manutenção da Petrobras como patrimônio do povo brasileiro.

    Beth Carvalho em sua última viagem à Venezuela

    Mangueirense, botafoguense, essa rainha do samba deixa um legado de peso para a cultura brasileira. E nós, claro, deixamos aqui nossa homenagem a essa guerreira, com uma das canções mais consagradas da querida e eterna, Beth Carvalho, a histórica Vou Festejar.

    Canção aliás, que chegou a sofrer tentativa de usurpação por alguns dos autores do golpe recente brasileiro, mas que Beth reivindicou energicamente: “Tal movimento está em dissonância absoluta tanto com os meus posicionamentos políticos, mas também com o que esta música representa historicamente. Não poderia ser usada em hipótese alguma. Minha voz e meu samba, não os representa”.

    Com firmeza, Beth ainda enfatizou: “Para que fique bem claro, eu, Beth Carvalho, sempre me posicionei ao lado de líderes como Che Guevara, Fidel Castro, Hugo Chávez, Leonel Brizola, João Pedro Stédile. Inclusive, ‘Vou Festejar’, gravada primeiramente em 1978, sempre representou movimentos de esquerda e de abertura política como as Diretas Já e o segundo turno de Lula contra o Collor em 1989”.

    Essa era Beth Carvalho, rainha do samba, da luta por justiça social, uma mulher sem medo de ser e de defender aquilo em que acreditava. Como ela mesma dizia: “Minha vida é o samba. E o samba é resistência”

     

  • Ava Rocha: Artista-Mulher-Brasileira-Antropofágica

    Ava Rocha: Artista-Mulher-Brasileira-Antropofágica

    Ava Rocha mostrou em 2015 o poder de suas canções e a força que tem a sua voz, suas letras e sua presença como uma artista-mulher-brasileira que se posiciona diante de uma sociedade ainda muito machista. Essa demonstração ocorreu por conta do seu novo álbum Ava Patrya Yndia Yracema, que apareceu nas listas de melhores discos do ano dos sites Miojo Indie e New Yeah Music, além de a cantora ter ganho o prêmio Multishow 2015 nas categorias ‘Melhor hit’ e ‘Artista Revelação’.

    No disco a cantora consegue dar vazão aos sentimentos femininos tão além de casamentos, relacionamentos eternos, e imagens de uma mulher ideal que a sociedade patriarcal construiu e ainda objetifica até hoje. A artista traz para a música a força da mulher com “cara de índia/ amazonina/ filha de branca/ filha de preta”, como canta em “Uma”.

    Para a artista essa construção política do disco aconteceu de forma orgânica. “São fluxos naturais de uma mulher contemporânea ainda vítima natural do machismo, do capitalismo, do colonialismo, de mil ismos, artista, mãe, latinoamericana, metade brasileira, metade colombiana. Uma mulher criada dentro de uma formação religiosa que passa pelo ateísmo, judaísmo, protestantismo, umbandismo, espiritismo, budismo etc. Então tô impregnada de tudo e devorando tudo também”, conta.

    O próprio nome do álbum, que é o nome de batismo da cantora dado pelos pais cineastas Glauber Rocha e Paula Gaitán, já sugere o que Ava quis, ou mirou, com esse trabalho. “Fala de uma índia, de uma mulher, de um território. Yracema anagrama de Améryca. Yracema índia dos lábios de mel. Patrya aqui, ali, em cada lugar. Fragmento e unidade. Ava homem e mulher. Ava rio. Ava nação”, explica a cantora, que acrescenta dizendo que a escolha pelo nome foi, de antemão, as ideias que ela quis transmitir de empoderamento, no sentido de identificar uma singularidade conectada com todo um universo.

    A voz de Ava somada com a percussão, as composições (de Domênico Lancelotti, Negro Leo, Pedro Sá, Joana Queiroz, Bruno Di Lullo, Marcelo Callado, Thomas Harres e Gustavo Benjão) e a construção da sonoridade do disco resultam num trabalho sensorial e ritualístico.  

    Sensorial porque em seu disco Ava transforma a linguagem musical, que é comumente associada ao abstrato, numa relação que vai além da vontade de dançar. Na música que inicia o disco “Boca do céu”, por exemplo, é possível relembrar os banhos de chuva da infância e da brincadeira de abrir a boca para pegar as gotas de água. A música não só permite uma lembrança imagética como uma percepção olfativa do cheiro de terra molhada.

    O ritualístico aparece no disco na marcante percussão e pelos  instrumentos que contribuem com o som intenso, como o caxixi e o vibrafone. Ava diz que foi incentivada pelo desejo de um som ritualístico construído durante o processo após a conexão com o produtor Jonas Sá, os compositores e os músicos. “Tanto a partir de um desejo como a partir da essência, toda a invenção do disco está na verdade antes disso, começando em mim no caso e nas pessoas que se jogam no abismo da imaginação”, explicou.

    Longe que tenha sido uma fórmula calculada e se trate de uma obra fechada, mas Ava traz em seu disco o sentir-se mulher no paladar de lembrar que “doce é o amor”; no tato de que a cela “é o abraço ao me deixar”; na visão “das costas lisas para o mar”; do olfato que ” arrasa teu perfume pelo ar”; e na audição d”esse som cabeça oca, miolo mole”.

    Junto com todas as experiências relatadas e as influências de Ava, pode-se dizer que seu último disco há uma atmosfera de uma mulher antropofágica que procura, através da música, realçar seus valores culturais que são reprimidos desde o processo de colonização, que busca (e consegue) mostrar a força das mulheres índias-negras-amarelas-brancas-brasileiras.