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  • Doar a vida na luta pela terra: causa justa!

    Doar a vida na luta pela terra: causa justa!

    Dia 24 de outubro de 2020, no interior do Paraná, no Assentamento Ireno Alves dos Santos, no município de Rio Bonito do Iguaçu, Ênio Pasqualin, dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná, após ser sequestrado, foi assassinado a tiros. Mais um mártir da luta pela terra no Brasil. “Por causa de um pouco de terra, por uma fatia de pão, mataram mais um irmão…”.

    Por Gilvander Moreira*


    O latifúndio e o agronegócio matam, mas venceremos. Nosso abraço solidário à família de Ênio e ao MST. O sangue de Ênio continuará correndo em nossas artérias. Honraremos sua/nossa luta justa e necessária. A história demonstra que quanto mais repressão, mais a luta pela socialização da terra cresce. Eis um exemplo a seguir.

    Geralda Magela da Fonseca, carinhosamente chamada Irmã Geraldinha, das Irmãs Dominicanas, foi ameaçada de morte inúmeras vezes durante vários anos por causa da luta pela terra no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, em Minas Gerais. Quando identificadas, as ameaças eram sempre vindas de pessoas ligadas aos latifundiários do município. Em um único dia, ela chegou a receber três telefonemas no seu celular, de números não identificados. Depois as ameaças eram ouvidas por companheiros/as do acampamento ou por amigos/as na cidade de Salto da Divisa. No Acampamento Dom Luciano, do MST[1], Irmã Geraldinha tinha seu barraco de madeira e palha. Ela teve que passar a dormir em barracos diferentes a cada noite no acampamento para não ser pega de surpresa por jagunços. Companheiros/as da comissão de segurança do acampamento Dom Luciano Mendes conseguiram livrar a irmã Geraldinha de três emboscadas ao descobrir que ela estava sendo esperada em tocaia. Avisada, ela mudou o horário de passar no local e passou sob escolta dos companheiros.

    Em outra tentativa, quatro pessoas em automóvel cor preta, dia 29 de outubro de 2007, foram vistas próximas ao acampamento procurando por irmã Geraldinha e no dia seguinte, na cidade de Salto da Divisa, alguém em um automóvel cor preta procurava por ela.[2] Em uma das ameaças, a mensagem era: “Você vai parar de apoiar o MST e essa luta quando acontecer com você o que aconteceu com a irmã Dorothy Stang”.[3] Após visita ao Acampamento Dom Luciano, dia 17 de setembro de 2009, uma comissão de representantes da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República expediu um Parecer demonstrando a gravidade do conflito agrário instalado em Salto da Divisa e também a gravidade das ameaças à Irmã Geraldinha e a outros membros do Acampamento.[4] No Parecer se afirma: “É inconteste o fato de que tais violações têm sido causadas por fazendeiros da região e por policiais civis e militares, sendo que todas elas são decorrentes das atividades em defesa dos direitos humanos realizadas pela Irmã Geraldinha e por membros do Acampamento Dom Luciano. Faz-se necessário, ainda, que sejam feitas articulações com autoridades públicas estaduais e locais no sentido de que se tomem as providências legais para que as causas das ameaças sejam resolvidas pelos órgãos competentes” (MANIFESTO DA CPT/MG, 30/10/2009).[5]

    Irmã Geraldinha, mesmo após visitar sua mãe e saber que a notícia das ameaças de morte já tinham chegado a ela e aos seus 15 irmãos, reafirma sempre: “Estou disposta, sim, a entregar minha vida por essa causa justa dos movimentos populares se necessário for, se tiver que ser, para que o povo conquiste a terra e para que a reforma agrária aconteça no nosso país, pois sem a distribuição das terras devolutas e dos latifúndios improdutivos que não cumprem sua função social não haverá justiça, nem vida e nem paz na sociedade. É claro que não vou entregar de bobeira minha vida. Vamos tomar as precauções necessárias, mas estou disposta, sim, a entregar minha vida para que a luta pela terra possa continuar” (Irmã Geraldinha à TVC/BH no Programa Inconfidências Mineiras).[6]

    Orozimbo da Cunha Peixoto, o co­ronel Zimbu, avô do prefeito Ronaldo Cunha Peixoto, tinha vários jagunços para eliminar quem o incomodava. Uma testemunha que vive na região há várias décadas, que não aceita se revelar por temer ser assassinada, afirma: “Essas fazendas aqui do Baixo Jequitinhonha foram tomadas na marra. Eles man­davam os pistoleiros para matar os posseiros. Se algum deles vacilasse e não matasse, morria tam­bém”.

    Ênio Pasqualin (quinto da esquerda para a direita) era uma das lideranças do assentamento Ireno Alves dos Santos – Arquivo/MST PR

    A entrada do acampamento Dom Luciano Mendes passou a ser controlada por equipe de sentinelas 24 horas por dia, um grupo de mulheres se revezando durante o dia e um grupo de homens durante toda a noite, sempre com alguns foguetes para explodir e chamar todas as famílias em caso de alguma coisa estranha. Uma corrente forte foi colocada na entrada do acampamento para impedir a entrada de automóveis ou motocicletas estranhos, sem autorização. Além da entrada do acampamento, à noite, um grupo de companheiros mantém ronda em todo o acampamento e seu entorno com lanternas. Após cobranças do MST e da CPT[7], o comando da PM em Salto da Divisa foi trocado e uma viatura da PM passou a ir ao acampamento duas ou três vezes por dia. Isso também inibiu os ameaçadores. A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos ameaçados, a Defensoria Pública Estadual e a Defensoria Pública da União, entre outras organizações, contribuíram para que as denúncias e reivindicações das famílias acampadas em Salto da Divisa fossem ouvidas.

    Após ameaças, dia 28 de julho de 2009, quatro pessoas chegaram às proximidades do acampamento em um automóvel e atearam fogo no pasto ao redor do acampamento. O incêndio foi detectado a tempo pelos acampados e não se propagou. Dentro do automóvel, estavam Ilton Ferreira Guimarães, Paulo Roberto Inácio da Silva, seu filho Daniel Salomão Silva e Genilton Menezes Santos, cunhado de José Alziton da Cunha Peixoto, primo do prefeito eleito extemporaneamente em eleição dois dias antes, Ronaldo Athayde da Cunha Peixoto, e presidente da Fundação Tinô da Cunha Peixoto na época, que alegava ser proprietária das terras da Fazenda Manga do Gustavo e da Fazenda Monte Cristo. Policiais demoraram a atender ao chamado dos acampados e, pior, ao chegarem ao local do incidente lavraram Boletim de Ocorrência acusando irmã Geraldinha e os acampados de cárcere privado dos quatro agressores que estavam no automóvel. Irmã Geraldinha teve que viajar até a Cidade de Jacinto – cidade vizinha – para, na delegacia, lavrar um Boletim de Ocorrência relatando os fatos verdadeiros sobre a tentativa de incendiar o acampamento.

    Para inibir as investidas dos latifundiários e jagunços ameaçando irmã Geraldinha e outras lideranças do Acampamento Dom Luciano Mendes organizamos uma significativa Rede de Apoio, inclusive, internacional. O bispo Dom Tomás Balduíno, fundador e presidente honorário da CPT por muitos anos, visitou o acampamento e, ao lado do bispo da Diocese de Almenara, na época, Dom Hugo Maria Van Steekelenburg, e de outras freiras e freis, fez missão na cidade de Salto da Divisa hipotecando irrestrito apoio à causa da luta pela terra. Isso contribuiu para frear a ira assassina contra irmã Geraldinha.

    Com a postura aguerrida de Irmã Geraldinha de não arredar o pé da luta, mesmo sob ameaças de morte, a luta cresceu e hoje, em Salto da Divisa, MG, já foram conquistados dois assentamentos – Assentamento Dom Luciano Mendes e Assentamento Irmã Geraldinha – e a Comunidade Quilombola Braço Forte. Enfim, eis um sinal de que as ameaças e os assassinatos não barram a luta, ao contrário, fazem a luta se multiplicar. Se fazem sexta-feira da paixão, façamos domingos de ressurreição com terra partilhada e socializada, convictos de que o sangue dos/as mártires e o suor da luta fecundam o chão… Porvir de ressurreição!

    27/10/2020.

    (*) Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Live Campanha pelo DESPEJO ZERO: pelo direito à vida. Despejar na pandemia é matar, é cruel. 05/8/20

    2 – “A VALE preparou uma armadilha para matar o povo de Brumadinho, MG.” Justiça! Vídeo 7 – 13/12/2019

    3 – VALE e Estado mataram o rio Paraopeba, peixes e pescadores na miséria. Vídeo 1. 19/4/2019

    https://www.youtube.com/watch?v=05SJrl6DAH8

    4 – Dona Zinha, da Ocupação Vitória/Izidora/BH: “despejo matará todos os idosos das Ocupações.” 19/11/2016

    5 – Dia 25 de julho: Dia da/o trabalhador/a rural, Mulher Negra, Pai Nosso dos Mártires/1,6 ano de crime

    6 – Padre Ezequiel Ramin: Mártir da Opção pelos Pobres (Documentário Verbo Filmes). 24/7/2020: 35 anos

    7 – Mártires vivos na IV Romaria das Águas e da Terra da Bacia do ex-rio Doce. Vídeo 5 – 02/6/2019


    [1] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br

    [2] Denúncia feita por irmã Geraldinha em Boletins de Ocorrência e a muitas autoridades, inclusive no Programa Inconfidências Mineiras, da TV Comunitária de Belo Horizonte, em 60 minutos de entrevista, dia 09/11/2009,  disponibilizada no You Tube em seis partes. Na 3ª parte está a denúncia das ameaças, acima, descritas. Cf. o link https://www.youtube.com/watch?v=Ek3e-ECzGCQ

    [3] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha no link https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY em 7’08ss

    [4] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha no link https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY

    [5] Cf. http://www.ecodebate.com.br/2009/10/30/manifesto-da-cpt-mg-conflito-agrario-em-salto-da-divisa-vale-do-jequitinhonha-causa-ameacas-de-morte-a-irma-geraldinha/ 

    [6] Cf. a 4a e a 5ª parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha nos links  https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY , e https://www.youtube.com/watch?v=UuLxq8v64M4

    [7] Comissão Pastoral da Terra – www.cptnacional.org.br

  • Líder do MST é sequestrado e assassinado no interior do Paraná

    Líder do MST é sequestrado e assassinado no interior do Paraná

    do site do PT

    “Há tempo a violência no campo é realidade no Paraná. Com a eleição de Bolsonaro e Ratinho Jr as coisas só pioraram”, afirma a presidenta do PT, Gleisi Hoffmann. O MST divulgou nota denunciando e cobrando o esclarecimento dos fatos, a investigação e prisão dos envolvidos

    Bolsonarismo estimula violência no campo

    Neste final de semana, mais um militantes do MST foi assassinado, desta em Rio Bonito do Iguaçu, no interior do Paraná. Ênio Pasqualin foi executado a tiros, depois de ter sido retirado de casa por sequestradores. O MST divulgou nota cobrando o esclarecimento dos fatos, a investigação e prisão dos envolvidos. A presidenta do PT e deputada federal (PR), Gleisi Hoffmann repudiou o bárbaro crime também cobrou apuração.

    “Há tempo a violência no campo é realidade no Paraná. Com a eleição de Bolsonaro e Ratinho Jr as coisas só pioraram”, afirma Gleisi. “As ameaças de despejo são frequentes na Justiça e contra a vida de militantes, por parte de fazendeiros”, denuncia Gleisi. “O governo do PR tem obrigação de manifestar sobre o crime, apurá-lo e garantir segurança aos militantes da Reforma Agrária”, advertiu Gleisi em suas redes sociais.

    De coordenador de base a dirigente estadual do MST Paraná, Ênio participou de diversas atividades e ocupações de terra na região de Rio Bonito do Iguaçu, segundo o MST. Líder dos assentados na região, Ênio comemorou seus 48 anos de vida junto a sua família, no dia 15 de outubro. “Tiraram a vida de um pai de um marido, deixando suas duas filhas, o filho e a esposa com uma dor inexplicável e inaceitável”, diz a nota da Direção Estadual do MST-PR.

    NOTA DO MST

    É com profunda tristeza que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná comunica o falecimento do companheiro Ênio Pasqualin. O militante foi executado a tiros no município de Rio Bonito do Iguaçu, onde vivia com a família, no assentamento Ireno Alves do Santos. Ênio foi retirado de sua casa por sequestradores na noite deste sábado, e seu corpo foi encontrado na manhã deste domingo nas proximidades do assentamento, com claras evidências de execução.

    O companheiro iniciou sua militância no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no ano de 1996, em Saudade do Iguaçu/PR. No mesmo ano, mudou-se para o acampamento Buraco, em Rio Bonito do Iguaçu/PR, fazendo parte de uma das maiores ocupações de terra do MST, em 17 de abril de 1996, quando três mil famílias Sem Terra ocuparam o latifúndio da Giacomet Marodin, atual madeireira Araupel.

    De coordenador de base a dirigente estadual do MST Paraná, Ênio participou de diversas atividades e ocupações de terra na região de Rio Bonito do Iguaçu. Ênio Pasqualin sempre foi um camponês aguerrido na luta.

    Em Rio Bonito do Iguaçu, Ênio e sua família criaram raízes, assentados no Assentamento Ireno Alves dos Santos no final de 1996. Ele continuou ajudando a construir a luta por Reforma Agrária, seja no âmbito da produção e na organização dos assentados quando foi Presidente da Central de Associações Comunitárias do Assentamento Ireno Alves dos Santos (Cacia), ou quando ajudou os filhos e filhas dos assentados e assentadas a se organizarem para continuar a luta pela terra na extensa área da Araupel.

    No dia 15 de outubro, Ênio comemorou seus 48 anos de vida junto a sua família e hoje, 10 dias após seu aniversário, deixa sua família de forma inaceitável. Tiraram a vida de um pai de um marido, deixando suas duas filhas, o filho e a esposa com uma dor inexplicável e inaceitável.

    À família e aos companheiros e companheiras enlutados os mais profundos sentimentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

    Cobramos o esclarecimento dos fatos, a investigação e prisão dos envolvidos.
    Aos nossos mortos nenhum minuto de silêncio, mas uma vida toda de luta!

    Rio Bonito do Iguaçu/PR, 25 de Outubro de 2020.
    Direção Estadual do MST-PR

  • Há dois meses, uma escola e seus sonhos foram ao chão

    Há dois meses, uma escola e seus sonhos foram ao chão

    Por Lucas Bois e Raquel Baster*

    A escola popular Eduardo Galeano foi o primeiro local a ser destruído durante despejo violento que começou no dia 12 de agosto deste ano, pela Polícia Militar, e que se seguiu por três dias, no acampamento quilombo Campo Grande, município de Campo do Meio, em Minas Gerais. Após dois meses do despejo, é lançado o curta documentário “Sonhos no chão, sementes da educação” com depoimentos de educandos, educadores e representantes do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) sobre a situação atual do acampamento.

    “Ser analfabeto é a gente ficar no escuro e uma pessoa no escuro, ela não é ninguém”. Essa frase dita no documentário por Adão Assis Reis, explica a importância do acesso à educação contextualizada para alcançar a luz do conhecimento. Aos 59 anos, ele se mostra pronto para voltar à sala de aula assim que a escola for reconstruída. Muitos outros trabalhadores e trabalhadoras rurais poderiam ter a chance de seu Adão, mas os dados vem demonstrando o contrário. Um levantamento de dados do Censo Escolar de 2019, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), sobre o número de estabelecimentos de ensino na Educação Básica apontou que, entre 1997 e 2018, foram fechadas quase 80 mil escolas no campo brasileiro. A Escola Popular Eduardo Galeano entra para a estatística não só como mais uma, mas como exemplo de uma política de fechamento de escolas do campo que acontece há anos no país. 

    Desenho de uma criança do acampamento Quilombo Campo Grande, ao relembrar o dia do despejo e derrubada da Escola Eduardo Galeano. Frame do documentário “Sonhos no chão, sementes da educação” (2020).

    O MST chegou a lançar uma campanha de denúncia em 2011, intitulada “Fechar escola é crime”. E em 2014 foi aprovada a lei (12.960/2013) que obrigou a realização de consulta às comunidades antes do fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas. Mas parece que não surtiu muito efeito. A própria escola Eduardo Galeano foi fechada pelo governo de Minas Gerais no início de 2019, logo após outra tentativa de desejo no assentamento quilombo Campo Grande em 2018 e reaberta pela resistência do Movimento. “Quando começou o governo de Romeu Zema (Novo) nós recebemos a triste notícia que a Escola seria fechada. E a justificativa era poucos educandos. Eram duas salas aonde chegamos a ter 75 pessoas matriculadas. E, na maioria das vezes, nós mesmos que mantivemos a escola funcionando com nossos recursos porque mesmo sendo uma escola reconhecida, não era garantida pelo Estado”, explica Michelle Capuchinho do setor de Formação do MST.  

    Ciranda das crianças do acampamento Quilombo Campo Grande, Campo do Meio (MG).
    Frame do documentário “Sonhos no chão, sementes da educação” (2020).

    O curta documentário descreve como o despejo e a destruição da Escola impacta diretamente inúmeras famílias, sobretudo crianças e adolescentes. Isso somado a um período onde o isolamento social e medidas de proteção à saúde deveriam ser prerrogativas à gestão estadual no enfrentamento à Covid-19. O MST alega que o despejo foi feito de forma ilegal, já que o processo judicial abrangia 26 hectares inicialmente e depois, sem justificativa e transparência das informações, foi ampliada para 53 hectares no último despacho da Vara Agrária que culminou no despejo de 14 famílias. Cerca de 450 famílias permanecem na área da usina falida Ariadnópolis, da Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia), que encerrou as atividades em 1996.

    O filme completo está disponível no YouTube: https://youtu.be/iT1kP7jTO0E

    Ficha técnica
    Curta-documentário: “Sonhos no chão, sementes da educação”
    Imagens e edição: Lucas Bois
    Roteiro: Raquel Baster e Lucas Bois
    Duração: 22 minutos
    Ano: 2020

  • Dom Pedro Casaldáliga e o Quilombo Campo Grande do MST em Minas

    Dom Pedro Casaldáliga e o Quilombo Campo Grande do MST em Minas

    Diante de Dom Pedro Casaldáliga, precisamos “tirar as sandálias”, pois estamos diante de alguém sagrado, místico no verdadeiro sentido, porque se tornou profeta, bom pastor, além de poeta. Marcou-me muito as 12 vezes que tive a alegria e a responsabilidade de estar com “o bispo vermelho”.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Conheci Dom Pedro Casaldáliga em 1985, enquanto ele dava uma palestra no Studium Teológico, em Curitiba, PR. Fiquei impressionado com aquele homem franzino, mas que com língua afiada, dedo em riste, olhar vibrante, utopia da terra sem males no coração, profetizava dizendo: “Se eu tiver que escolher entre o amor e a justiça, ficarei com a luta pela justiça, pois em uma sociedade estruturalmente injusta não basta amar no sentido de solidariedade”.

    Marcou-me muito a segunda vez que estive com Dom Pedro Casaldáliga, no Memorial da América Latina, em São Paulo, SP. Dom Pedro, com amor infinito por todos os povos latino-americanos, bradava: “Temos que construir a Pátria Mãe, a América AfroLatÍndia, pois nossa América não é apenas latina, é principalmente indígena e afrodescendente. Somos povos irmãos. Não podemos ficar olhando para Europa e Estados Unidos e de costas para os povos da Pátria Grande, nossa América AfroLatÍndia. Somos povos irmãos, porque fomos vítimas de genocídio indígena e de escravização pelos opressores europeus. Que maravilha o esplendor cultural existente na nossa Pátria Grande e Mãe.”

    Em 1992, Dom Pedro, de surpresa, chegou a São Paulo, na celebração dos 60 anos de Frei Carlos Mesters. Chegou carregando um grande pote e, retirando de dentro do pote uma Bíblia da edição Pastoral, dizia: “Frei Carlos Mesters é presença do Deus da vida no nosso meio que retira do baú, do pote, coisas velhas que são coisas da vida e da caminhada. Carlos Mesters democratiza o acesso aos textos bíblicos ao nos ensinar a fazer leitura bíblica de forma comunitária, ecumênica, transformadora e militante. Quem não leu ainda deve ler todos os livrinhos do frei Carlos Mesters. Seus textos, frei Carlos, nos ajudam na caminhada de enfrentamento ao latifúndio, na Opção pelos Pobres, na luta pela terra e pelos direitos dos povos indígenas.”

    Inesquecível também o protagonismo de Dom Pedro Casaldáliga no 10º Intereclesial das CEBs, em Ilhéus, na Bahia, em julho de 2000. Irradiando espiritualidade, ecumênica e macroecumênica, Dom Pedro bradava profeticamente: “Nosso sonho, nossa utopia, é a terra sem males. Esse é o sonho de Deus, pois a terra é de Deus, pertence a Deus. Malditas todas as cercas …”

    Em 2015, a convite do bispo Dom Adriano Ciocca, tive a alegria de passar uma semana na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, assessorando um retiro da equipe de pastoral da prelazia, equipe composta por Dom Adriano, padres, freis, freiras e leigos/as da caminhada. Vi que a Prelazia de São Félix, sob a guia de Dom Pedro Casaldáliga, se tornou uma das locomotivas da profecia na Igreja dos Pobres não apenas no Brasil, mas na América AfroLatÍndia e em muitas regiões do mundo. Na Prelazia de São Félix, meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das irmãzinhas de Jesus, e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Foi na Prelazia de São Félix que iniciou a Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, uma das atividades da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizados nas lavouras vai para os cursos d’água. Morre muito peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.”

    Em Ribeirão Cascalheira, na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, visitei o Santuário dos Mártires da Caminhada. Emocionante caminhar onde o padre João Bosco Burnier, missionário jesuíta, foi martirizado de 11 para 12 de outubro de 1976. Ouvi que Dom Pedro Casaldáliga, ameaçado de morte na Prelazia, e o padre João Bosco Burnier, após celebrarem com o povo os festejos de N. Sra. Aparecida, incomodados pelos gritos de duas mulheres presas – Margarida e Santana – foram interceder por elas na delegacia-cadeia de Ribeirão Cascalheira. As mulheres estavam “impotentes e sob torturas: um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, sob as unhas; essa repressão desumana”, relata dom Pedro no livrinho “Martírio do Padre João Bosco Penido Burnier”, da Ed. Loyola.

    Aos 92 anos, com 52 anos sendo missionário profeta no Brasil, Dom Pedro Casaldáliga fez sua páscoa no dia 8 de agosto de 2020 e agora vive em plenitude e em nós na luta sempre, pela construção do reino de Deus a partir do aqui e do agora. Na Missa das Exéquias, celebrada em São Félix do Araguaia, no dia 12 de agosto, Dom Adriano Ciocca, atual bispo de São Felix do Araguaia, afirmou que “o sonho de Deus foi o sonho de Pedro também, o sonho do Reino”, porque “ele queria justiça, queria fartura, queria alegria, vida plena para todas e para todos.” E continuou Dom Adriano: “Ele sonhou, e sonhou com os pés no chão, porque não ficou só no sonho, mas ele procurou viver e lutar para que este sonho se realizasse.” E Dom Adriano lembrou a opção radical de Dom Pedro Casaldáliga pelo seguimento a Jesus de Nazaré, colocando-se ao lado dos oprimidos, injustiçados, marginalizados: “´Se fez peão com os peões, se fez índio com os índios, se fez solidário com quem Deus se solidarizou, os abandonados, os excluídos, os escravos.”

    O corpo de Dom Pedro Casaldáliga descansa no cemitério dos Carajás, onde eram sepultados os sem nome. Seu corpo lá está, debaixo da cruz, entre um peão e de uma mulher prostituída. Com os pobres, os preferidos de Deus, na beira do rio Araguaia, com paz inquieta, foi plantado o corpo de Pedro, semente de vida nova, de ressurreição! Que tenhamos a graça, a coragem e a sabedoria para honrarmos o imenso legado espiritual e profético que Dom Pedro nos deixou.

    Dom Pedro Casaldáliga, com paz inquieta, esteve vivo misticamente com todas as pessoas do Quilombo Campo Grande, do MST, no sul de Minas Gerais, e com todos/as que se somaram na resistência durante três dias e três noites. Certamente, Dom Pedro, com ira santa e profética, assina embaixo da denúncia que se segue, abaixo.

    Aconteceu uma tremenda injustiça, barbárie no Estado de MG dias 12, 13 e 14 de agosto de 2020. No Quilombo Campo Grande, do MST, em Campo do Meio, no sul de MG, há 22 anos, 453 famílias Sem Terra vivem dignamente dando função social para mega-latifúndio das terras da ex-Usina Ariadnópolis, de 4.900 hectares, que estava totalmente abandonado e ocioso, após a Usina falir deixando mais de 400 milhões de reais de dívida trabalhista.

    Quilombo bombardeado

    Enquanto o irmão sol voltava a brilhar dia 12 de agosto de 2020, vimos na cidade de Campo do Meio um cortejo de morte com dezenas e dezenas de viaturas, ambulâncias, caminhões do Corpo de Bombeiro, um aparato de guerra, a PM de MG, a mando do governador Romeu Zema (do Novo), com decisão liminar de reintegração de posse do TJMG, com mais de 200 policiais de vários batalhões, com caveirões, cachorros, helicóptero e pesado arsenal de armas, com tropa de choque, fazer despejo de várias famílias no Quilombo Campo Grande, do MST. Os Sem Terra do MST, com a militância de uma vasta rede de apoio, resistiram três dias e três noites, de 12 a 14/8/2020. Policiais atearam fogo em várias partes do Quilombo e no final bombardearam o Quilombo com chuva de bombas de gás lacrimogêneo, com voos rasantes do helicóptero da PM, com policiais apontando metralhadoras para o povo que resistia bravamente. Asfixiando os Sem Terra com gás lacrimogêneo e terror, a PM expulsou crianças e professoras e destruiu a Escola Popular Eduardo Galeano, destruiu setes casas e não ofereceu alternativa digna de moradia previamente.

    Uma das primeiras barreiras de resistência que a tropa de choque encontrou foi um grupo de crianças Sem Terrinha, do MST, que, de cabeça erguida e muita coragem, segurando cartazes, bloqueavam a estrada por onde a tropa de choque deveria passar para fazer o infame despejo. Uma das cenas mais emocionantes e eloquentes: crianças Sem Terrinha, na luta, resistindo à investida de um imenso aparato bélico. Diziam: “Não derrubem nossa escola!” “Não derrubem nossas casas!”

    Em meio à pandemia, esse despejo é genocida. A Liminar de reintegração de posse cumprida com repressão e violência policial é injusta, inconstitucional, cruel e uma ação genocida do Governador Romeu Zema. A decisão do TJMG, que expediu a liminar de reintegração e se negou a cassá-la, mesmo diante de “mil” argumentos da Defensoria Pública, do Ministério Público e de Advogados Populares, é inconstitucional, porque viola e pisoteia no principal princípio e básico da Constituição de 1988: RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Além do terror espalhado, da Escola Popular Eduardo Galeano, de várias casas, sonhos e direitos destruídos, quantas pessoas terão contraído ou disseminado o coronavírus durante os três dias de megaoperação de despejo durante a pandemia, violando todas as regras sanitárias recomendadas pela OMS e por médicos infectologistas?

    A Ocupação do mega-latifúndio das terras da ex-usina Ariadnópolis, em Campo do Meio, aconteceu em 1998, 22 anos atrás, como fruto do combate ao trabalho escravo no sul de MG e como fruto dos mártires de Eldorado dos Carajás. Todos os presidentes do Brasil, de 1998 até hoje, poderiam e deveriam ter desapropriado o latifúndio que estava abandonado sem cumprir a função social, mas nenhum presidente nos últimos 22 anos assentou as 450 famílias Sem Terra do MST que já sofreram seis cruéis despejos, mas não arredam o pé da terra. “Essa terra é nossa”, bradam heroicamente os Sem Terra do MST.

    O Poder Judiciário também, em 22 anos, se julgasse conforme os princípios da Constituição do respeito à dignidade humana, função social da propriedade e direito à terra poderia e deveria ter decidido, justamente, a favor dos Sem Terra do Quilombo Campo Grande, mas até hoje tem decidido para beneficiar empresários especuladores. Indignados com mais essa imensa sexta-feira da paixão promovida pelo Estado em MG, reafirmamos que não há despejo apropriado e nem oportuno. Todo despejo é maldito, cruel, desumano, execrável e desintegrador de sonhos e de direitos. Mas a história demonstra que a força mística e espiritual dos injustiçados é invencível. O mais profundo da história é construído pelos/as injustiçados/as.

    Os opressores e os violentos, mandantes e executores, serão jogados na lata de lixo da história. Vivem e viverão sempre em nós na luta por tudo o que é JUSTO e BEM COMUM: as profetizas e os profetas, Jesus Cristo, Che Guevara, Rosa Luxemburgo, Chico Mendes, Padre Ezequiel Ramin, Padre Josimo, os fiscais massacrados em Unaí, Irmã Dorothy, Margarida Alves, os Sem-Terra assassinados, Dandara, Zumbi, Antônio Conselheiro, Dom Pedro Casaldáliga … Enfim, uma multidão de mártires que nos impulsionam na luta obstinada pela construção de uma terra sem males.

    Exigimos que o Governador de MG, Romeu Zema, e/ou o presidente do TJMG, desembargador Gilson Gomes Lemes, suspendam esse despejo absurdo em tempo de pandemia e proíbam outros despejos durante a pandemia. Despejar não é atividade essencial. Exigimos Despejo Zero! E exigimos com urgência a DESAPROPRIAÇÃO DEFINITIVA do latifúndio das terras da ex-Usina Ariadnópolis. O MST iniciou o despejo do Zema.

    Pedimos em nome de Deus, das crianças e por respeito à dignidade da pessoa humana: Parem todos despejos no Brasil para salvar vidas!

    18/8/2020.

     Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Exigimos “Despejo Zero” para salvar vidas – Por frei Gilvander – 1ª Parte – 17/8/2020

    2 – “A luta não vai parar!” MST e Quilombo Campo Grande, em MG: Despejo é crime; na pandemia, genocídio

    3 – Lições da luta/resistência no Quilombo Campo Grande, do MST, sul de MG, após despejo genocida/cruel

    4 – Cenário de guerra no Quilombo Campo Grande, do MST, Campo do Meio/MG: Gov. Zema, TJMG, PM/MG/14/8/20

    5 – PM de MG bombardeando o Quilombo Campo Grande, do MST, em campo do Meio, MG: barbárie – 14/8/2020

    6 – Quilombo Campo Grande, do MST, resiste há 48 horas ao despejo, em Campo do Meio/MG. Caveirão na área

    7 – PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA – Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga – 08/8/2020

    8 – Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga: místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

  • Marmitas orgânicas da agricultura familiar beneficiam moradores em situação de rua

    Marmitas orgânicas da agricultura familiar beneficiam moradores em situação de rua

    Uma rede de voluntários e militantes que atuam da produção ao preparo de alimentos orgânicos, saudáveis e da agricultura familiar tem feito a diferença na vida e na saúde de moradores em situação de rua e em condição de vulnerabilidade da cidade de São Paulo, por meio do projeto Lute como quem cuida. Elaborado e colocado em prática de maneira coletiva pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) de São Paulo, o projeto distribui aproximadamente 300 marmitas todos os dias há mais de três meses.

    Por Nara Lacerda, do Brasil de Fato

    A ideia é criar uma rede de solidariedade contínua, que atenda essas populações em um momento delicado, com a crise causada pelo coronavírus. A falta de recursos e trabalho pode agravar ainda mais a insegurança alimentar e nutricional. No Brasil, o acesso a alimentos cultivados sem veneno ainda é limitado. Em parte, pelo preço que as grandes redes varejistas praticam, mas também pela falta de incentivo à agricultura familiar.

    A dirigente do MST no estado de São Paulo Daiane Ramos explica que a campanha teve início no âmbito da Brigada Estadual de Solidariedade Zilda Camargo, formada por militantes de diversos municípios, e cresceu com foco na coletividade. Segundo ela, a intenção é chegar à doação de 30 mil marmitas entre julho e agosto. 

    CLIQUE AQUI PARA CONTRIBUIR COM A CAMPANHA

    “Essa brigada está desde o dia 20 de abril participando desse trabalho intenso de solidariedade para a Rede Rua e o Prédio dos Imigrantes (que abriga pessoas de outros países em situação de vulnerabilidade). No fim ela se estendeu, na parceria com o MSTC. As organizações se unem por uma causa única, de trazer esse alimento saudável e orgânico para essas pessoas mais vulneráveis. Infelizmente, com a covid, vem aumentando esse número.” 

    Mais que a simples doação dos produtos, o projeto tem cuidado especial com a garantia de que essas pessoas vão receber o melhor da produção orgânica do país. Todo o preparo – da higienização ao embalo – segue normas sanitárias criteriosas, que ficaram ainda mais rígidas com a pandemia. O cardápio é definido entre os militantes, mas leva em consideração também as sugestões de quem recebe as marmitas.

    Moradores de rua do centro de São Paulo recebem os alimentos. / Arquivo Brigada Zilda Camargo Ramos

    Os mais de 200 quilos semanais de arroz, por exemplo, vêm de assentamentos do Rio Grande do Sul, que hoje são os maiores produtores do grão na América Latina. A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema (Região Metropolitana de São Paulo), fornece as hortaliças e o pão. Assentamentos e acampamentos de outros municípios enviam em média por semana 90 quilos de feijão, 30 quilos de macarrão, 230 quilos de carne, 120 dúzias de ovos e 150 quilos de legumes.

    O trabalho é totalmente coletivo e dividido. Cada voluntário tem a oportunidade de passar por diferentes etapas do processo, para ampliação da experiência e dos laços criados entre quem está na colheita e atrás do fogão e as pessoas que recebem os alimentos. Oscar do Nascimento Teles, militante do MST e morador do Assentamento Dom Tomás Balduíno, no Pontal do Paranapanema (SP), faz parte dessa rede. Ele relata o cuidado existente em todo o processo. 

    “Os companheiros estão fazendo isso com muito amor e carinho, porque a gente viu a realidade na rua de quem tá recebendo o alimento. Você ver as pessoas na fila, erguendo as mãos para pegar aquela comida. Isso fortalece demais nosso trabalho na cozinha, em fazer isso com amor, carinho e preparar os alimentos com todo um protocolo de higiene e cuidado. Nessa grandeza que é São Paulo, é um pouquinho que a gente está fazendo, mas de grande proporção. A gente sabe da importância”, finaliza.

    Pela “manutenção imediata da vida”, a iniciativa “Lute como quem cuida” convida a sociedade civil para também colaborar. As doações podem ser realizadas por meio do site da campanha na internet

    Saiba mais: Quem é Carmen Silva, a líder dos sem-teto que a (in)Justiça quer prender
     

  • Luta pela terra é também espiritual e profética

    Luta pela terra é também espiritual e profética

    ARTIGO

    Gilvander Moreira1

    Assim como há ciências, há também teologias que sistematizam a luta pelo bem comum a partir de uma fé emancipatória – fé no Deus da vida e no Evangelho de Jesus Cristo. Na realidade conflituosa e contraditória da sociedade capitalista em que vivemos, marcada por uma das maiores concentrações fundiárias do mundo e por um povo religioso, torna-se necessário analisar a luta pela terra também sob o ponto de vista da teologia bíblica. Em inúmeras passagens bíblicas, as profetisas e os profetas bradam, em nome do Deus da vida: “Queremos a justiça e o direito”! Isso não se mendiga, conquista-se na luta coletiva e organizada.

    Há na Bíblia muitos textos de denúncia da grilagem de terras como, por exemplo: “Não removerás os marcos de teu próximo do lugar em que os puseram teus pais para delimitar a herança familiar, no país que o Senhor teu Deus te dará em posse” (Deuteronômio 19,14); “Maldito aquele que remover os marcos da herança do seu próximo” (Deuteronômio 27,17); “Os maus removem os marcos dos terrenos” (Jó 24,2). Na Bíblia a terra aparece como sendo herança de Deus, algo que deve passar de pai para filha/filho, não pode ser vendida, pois não é mercadoria.

    Para os povos indígenas “a terra é sagrada, nela se baseia a organização tribal. Entre os tapirapé, os mortos são enterrados dentro das casas em que viveram e onde continuam vivendo os seus parentes” (MARTINS, 1983, p. 117). No livro Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político, José de Souza Martins recorda: “A um tapirapé a ideia de sepultar o morto fora da casa em que viveu causa o mesmo terror que causaria a nós a ideia de enterrar os nossos mortos dentro de casa. Seria sinal de abandono do morto por seus parentes, motivo para que viesse assombrá-los. Por isso, a troca ou venda da terra não faria nenhum sentido para um tapirapé, porque significaria, entre outras coisas, o abandono de seus parentes mortos e a quebra dos eixos de sustentação da sua sociedade” (MARTINS, 1983, p. 118).

    Na luta pela terra estão envolvidas não apenas questões políticas e econômicas, mas também questões religiosas. Exemplo disso foi que o Estado, por meio da Polícia Militar, assassinou o monge José Maria em 22 de outubro de 1912. Após sua morte, a guerra do Contestado cresceu muito e se alongou até 1916.

    As mulheres parteiras do Egito – a Bíblia registra os nomes de duas: Séfora e Fuá (Êxodo 1,8-22) -, diante de uma “medida provisória” de um faraó (semelhante a um Decreto-Lei) que mandava matar no momento do nascimento as crianças do sexo masculino, organizaram-se e fizeram greve e desobediência civil, política e religiosa. “Não vamos respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à dignidade da pessoa humana e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão”, devem ter dito em seus corações as Mulheres do ‘sistema de saúde’ sob o imperialismo egípcio. Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou numeroso e muito poderoso” (Êxodo 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade.

    Em meados do século IX antes da era cristã, época do profeta Elias, intransigente defensor dos camponeses, a monarquia reinante na Palestina estava reforçando a latifundiarização do país. As pequenas propriedades estavam sendo expropriadas pelos grandes proprietários, entre os quais os detentores do poder político monárquico. Nesse contexto, a Bíblia narra um episódio exemplar. O rei Acab e sua esposa Jezabel cometeram crime de usurpação investindo para açambarcar a pequena propriedade de um posseiro chamado Nabot, nome que significa, em hebraico, aquele que (se) doa. Nabot rejeitou trair os valores dos camponeses da época: “Javé me livre de ceder-te a herança dos meus pais!” (I Reis 21,3).

    O rei Acab se irritou com a resistência de Nabot. Jezabel, rainha adepta do ídolo Baal – deus da chuva e da fertilidade -, manipulou a religião e a justiça para roubar a terra do posseiro. Caluniou, criminalizou e demonizou Nabot que, com o beneplácito do sistema judiciário da época, foi condenado à pena de morte por apedrejamento. Porém, como a expropriação dos camponeses e o sangue dos mártires suscitam a atuação veemente de profetas, ao ouvir que o rei Acab estava invadindo a pequena gleba do posseiro Nabot, após tê-lo matado, apareceu o profeta Elias e, em alto e bom som, profetizou: “Você matou, e ainda por cima está roubando? Por isso, assim diz Javé (Deus solidário e libertador): No mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabot, lamberão também o seu. Farei cair sobre você a desgraça” (I Reis 21,19.21).

    O profeta Elias foi veemente na condenação da ação do chefe da monarquia (I Reis 21,17-26). A compreensão da terra como pertencente a Deus permeia e perpassa toda a Bíblia. Por exemplo, no livro de Levítico se afirma: “Assim disse Javé, o Deus da Vida: A terra não será vendida, pois que a terra me pertence” (Levítico 25,23).

    O profeta Miqueias nasceu no interior de Judá, sul da Palestina, e atuou entre os anos 725 e 696 antes da era cristã. Miqueias foi provavelmente um camponês empobrecido, marginalizado e vítima de processo de expropriação pela falta de apoio à agricultura camponesa. Miqueias denunciou a cobiça e as injustiças sociais que os dirigentes políticos e religiosos estavam cometendo sobre o campesinato da época. Ele condena a riqueza como fruto da exploração.

    Profeta dos sem terra, Miqueias defendeu a partilha e a socialização da terra. Vindo do campo, ao chegar à capital Jerusalém, ele se defronta com os enriquecidos – políticos profissionais, especuladores e religiosos funcionários do sagrado -, denuncia a exploração e a expropriação dos camponeses do sul da Palestina. Miqueias, de forma intrépida e contundente, profetiza: “Ai daqueles que, deitados em seus leitos de marfim, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos, e os roubam. Tomam as casas do povo, oprimem o homem, sua família e sua comunidade; roubam a herança deles, a perspectiva de futuro” (Miqueias 2,1-2).

    Para Miqueias, ‘a herança deles’ é a terra, que é roubada. Com o dedo em riste, o profeta acusa os exploradores: “São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o manto, vocês exigem a veste” (Miqueias 2,8). “Vocês expulsam da felicidade de seus lares as mulheres do meu povo” (Miqueias, 2,9a). “Vocês tiram dos filhos a liberdade que eu lhes tinha dado para sempre” (Miqueias 2,9b). Ele ameaça e condena Israel (o reino do norte da Palestina) e seus chefes exploradores como “aqueles que comeram a carne do povo, arrancaram-lhe a pele…” (Miqueias 3,1-3) e aponta como culpados os militares, os falsos profetas, os chefes, os comandantes, os juízes, os sacerdotes; enfim, a classe dominante da época. Denuncia ainda o profeta Miqueias: “Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou: agora é a ruína deles” (Miqueias 7,3-4).

    Apesar da opressão e das injustiças contra os camponeses, o profeta Miqueias (e/ou suas/seus discípulas/discípulos), não perde a esperança e anuncia também a utopia que está sendo produzida nas entranhas da luta coletiva pelo bem comum: “Em um campo em ruínas, na Samaria, uma plantação de vinhas – lavouras – será feita.” (Miqueias 1,6). “De suas espadas vão fazer enxadas, e de suas lanças farão foices” (Miqueias, 4,3).2 Como herdeiro da fina flor libertária da caminhada dos povos da Bíblia, passando pela sabedoria do povo – “Os pobres possuirão a terra” (Salmo 37,11) -, Jesus Cristo ecoa no discurso da montanha a utopia da terra partilhada e socializada com quem precisa: “Felizes os humildes, porque herdarão a terra” (Mateus 5,4). Portanto, a luta pela terra não é apenas uma questão política, mas também uma questão de fé, espiritual e profética. Feliz quem dela participa3.

    Referências

    MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

    MOREIRA, Gilvander Luís. Profeta Miqueias, um camponês que clama por Justiça (Mq 1-3). p. 37-42. In: AMARAL DA COSTA, Julieta (Org.). Em tempos difíceis, o profeta Miqueias aponta saídas: uma leitura do livro de Miqueias feita pelo CEBI-MG. São Leopoldo/RS: CEBI, 2016.

    07/7/2020.

    Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Acampamento Dênis Gonçalves, do MST, em Goianá, MG – luta pela terra. Frei Gilvander – 26/8/2010.

    https://www.youtube.com/watch?v=vKJpT-dC5fo

    2 – Acampamento Eloy Ferreira, do MST, Engenheiro Navarro/MG: luta pela terra. Frei Gilvander. 02/9/2010

    https://www.youtube.com/watch?v=YeuMetz-Sqk

    3 – MST na luta pela terra no sul de MG – Grito dos Excluídos – Frei Gilvander/luta por direitos/07/9/10

    https://www.youtube.com/watch?v=cT553hUQaeU

    4 – Palavra Ética: Luta pela terra e por moradia em Pirapora e em Santa Luzia, MG. E Leonardo Boff.

    https://www.youtube.com/watch?v=8xIZIw_-m3I

    5 – 160 famílias na luta pela terra em Pirapora, MG, há 20 anos. Despejar é injusto/violência. 17/2/2020

    https://www.youtube.com/watch?v=PkrCA8VV48Q

    6 – CEBs na luta pela terra com o MTC em Córrego Danta, MG: Fé e luta por direitos. Vídeo 3 – 16/8/2019

    https://www.youtube.com/watch?v=p2agyVkQq9U

    1  Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

    2 Cf. também MOREIRA, Gilvander Luís. Profeta Miqueias, um camponês que clama por Justiça (Mq 1-3). p. 37-42. In: AMARAL DA COSTA, Julieta (Org.). Em tempos difíceis, o profeta Miqueias aponta saídas: uma leitura do livro de Miqueias feita pelo CEBI-MG. São Leopoldo/RS: CEBI, 2016.

    3 Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.