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  • Pior que a ditadura militar, só a ditadura miliciana

    Pior que a ditadura militar, só a ditadura miliciana

     

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Já é lugar comum associar o governo de Jair Bolsonaro à ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Como se a história fosse cíclica, muitos afirmam que o atual governo seria a repetição da experiência política autoritária de antes. Isso pode ser ouvido na boca dos apoiadores e dos críticos de Bolsonaro. Os apoiadores elogiam porque têm uma visão positiva da ditadura militar. Os críticos rejeitam Bolsonaro porque tem uma visão negativa da ditadura militar.

    Bolsonaro seria, então, o retorno daquele passado.

    A associação rápida entre o governo de Bolsonaro e a ditadura militar inspira alguns cuidados. Ė necessário diferenciar o Bolsonaro deputado do Bolsonaro presidente.

    Jair Bolsonaro ficou quase 30 anos no Parlamento sem relatar projetos ou presidir comissões. A vida funcional do deputado se resumia, basicamente, a subir à tribuna para elogiar a ditadura e criticar a democracia. Como percebeu com astúcia o professor Daniel Pinha (do Departamento de História da UERJ), o deputado Bolsonaro era um outsider da democracia, ainda que fosse deputado eleito em exercício de mandato, legitimado pela própria democracia.

    Bolsonaro não fazia parte do jogo democrático. Era a fenda autoritária que trincava o chão da democracia brasileira. A rachadura era pequenininha, quase imperceptível. Ninguém deu importância.

    Não à toa, Bolsonaro passou a ter maior projeção quando a democracia começou a colapsar, em junho de 2013. Bolsonaro era um dos poucos políticos que conseguiam andar confortavelmente nas ruas conflagradas, exatamente porque podia bater no peito e dizer “Nunca fiz parte disso, sempre critiquei”. E tinha razão.

    O deputado Bolsonaro foi saudosista da ditadura. O presidente Bolsonaro não é, apesar dos elogios frequentes aos ditadores. O presidente Bolsonaro não pretende replicar a ditadura militar. Seus propósitos são ainda mais nefastos.

    Primeiro porque a relação de Bolsonaro com as Forças Armadas não é harmônica. Bolsonaro saiu do Exército em 1988 em condições ainda não esclarecidas. Na época, ele tinha 33 anos e contava apenas 15 anos de serviços militares prestados. Bolsonaro passou mais tempo no Congresso Nacional como deputado de baixo clero do que nos quartéis como capitão de artilharia.

    Militar de baixa patente com fama de arruaceiro e indisciplinado, sem vínculos de camaradagem com outros militares. Se tivesse que escolher alguém para liderar um governo militar puro sangue, o generalato não escolheria Bolsonaro. Escolheria Mourão, Santos Cruz, Flávio Macedo ou qualquer outro oficial de altíssima patente e mais identificado com as forças armadas.

    Mas como foi Bolsonaro o eleito, os generais embarcaram, achando que conseguiriam pautar o presidente. Deram com os burros n’água. No primeiro ano de governo, os generais com cargos no primeiro escalão foram constantemente humilhados pelos príncipes presidenciais e pelo guru Olavo de Carvalho.

    Santos Cruz, respeitadíssimo dentro do Exército, foi demitido em junho. Mourão tentou exercer algum protagonismo e foi abertamente escanteado. Apenas o aloprado Augusto Heleno, outro com reputação pra lá de questionável, parece circular com algum conforto pelo primeiro escalão do governo.

    Somente na quarta versão do decreto das armas e depois de muita pressão dos militares, Bolsonaro reconheceu a autoridade técnica das Forças Armadas em definir quais armamentos poderiam ou não ser comercializados para pessoas físicas. Por três versões, o texto do decreto liberava para porte privado armas consideradas de uso exclusivo das Forças Armadas sem prever consulta às Forças Armadas. É ofensa institucional gravíssima.

    Bolsonaro ignorou solenemente a orientação dos generais na ocasião da crise com a Venezuela.

    Bolsonaro não é presidente militar.

    Se nas últimas semanas, os militares ganharam mais espaço no governo com a nomeação de Walter Souza Braga Netto para o comando do Ministério da Casa Civil, não foi por gesto espontâneo do presidente. Bolsonaro está isolado institucionalmente, pressionado pelos outros poderes da República. Os generais ainda são aliados estratégicos, ainda.

    Mas se Bolsonaro não é presidente militar, é o quê?

    É presidente miliciano, o que é muito pior, muito pior mesmo, do que ser presidente militar.

    O projeto de médio prazo do bolsonarismo é infiltrar milicianos nas polícias militares estaduais, desestabilizando governos de oposição e construindo a base armada que sustentaria o golpe contra os outros poderes da República. A recente greve da PM cearense foi apenas ensaio.

    Se acontecer golpe no futuro próximo, não será exatamente golpe militar, como em 1964. Será golpe miliciano. Por isso, Bolsonaro insistiu tanto no decreto das armas. A justificativa de que se tratava de uma questão de segurança pública, de que o “cidadão de bem tem o direito de se proteger contra os bandidos”, é conversa pra boi dormir. O interesse é armar uma base social disposta a ir às últimas consequências para remover a resistência que as instituições democráticas ainda impõem ao projeto bolsonarista.

    Não à toa, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal derrubaram o decreto das armas. O Congresso derrubou na política. O STF declarou inconstitucionalidade. Não à toa, a malta fascista que irá às ruas em 15 de março exige o fechamento do STF e do Congresso.

    O que aconteceria se o decreto tivesse se tornado lei e essas pessoas estivessem armadas?

    Se a história do Brasil for novamente sangrada por uma ditadura, tudo indica que não será uma ditadura militar. Será uma ditadura miliciana, o que é muito pior, muito pior mesmo que uma ditadura militar. 

    Militar é submetido à hierarquia, a projetos institucionais. Traja farda com nome bordado no peito. 

    Longe de mim elogiar a ditadura militar, mas precisamos lembrar que grande parte da infraestrutura que o Brasil tem hoje (que está sendo destruída pelo atual governo), foi erguida pelos governos militares. O sistema universitário brasileiro (que está sendo destruído pelo atual governo) foi construído pelos governos militares. Em diversos aspectos, os militares deram continuidade ao projeto de desenvolvimento nacional idealizado na década de 1930 sob a liderança de Getúlio Vargas. 

    Já o miliciano é capanga vulgar, rasteiro, que sai às ruas mascarado ordenando que os comerciantes fechem as portas. É jagunço armado sem nenhum compromisso com nada além da vontade do seu patrão, daquele que contratou seus serviços. 

    Pior que a ditadura militar, só a ditadura miliciana.

  • O PUNHAL DE BRUTUS

    O PUNHAL DE BRUTUS

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Simanca 

     

     

    A crise brasileira acaba de entrar numa nova fase: em apenas 20 dias, o bolsonarismo perdeu a narrativa da moralidade. O esquema de corrupção envolvendo lavagem de dinheiro por meio da apropriação de salário dos assessores fantasmas é nitroglicerina pura e tem potencial para comprometer diretamente o presidente da República.

    Já é possível visualizar no horizonte o colapso do bolsonarismo. Os aliados começam a fazer gestos de abandono. O governo vai ficando cada vez mais isolado. Em política, ninguém sobra sem apoio. Ninguém cai sem ter sido traído antes.

    O risco maior está na dupla Mouro e Morão, com apoio valioso da Globo e de setores do Ministério Público.

    Na verdade, a Globo nunca quis Bolsonaro. Não é novidade para ninguém que a Globo ajudou a desestabilizar os governos petistas para pavimentar a volta dos tucanos ao Palácio do Planalto. O objetivo era eleger Geraldo Alckmin e assim lavar nas urnas o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff. Aconteceu o que poucos previam. Bolsonaro foi eleito. A operação saiu do controle.

    Em um primeiro momento, perdido e confuso, o departamento de jornalismo da Rede Globo se dividiu entre a crítica cautelosa e a tentativa de aproximação com o novo governo. O famoso “morde e assopra”.

    Míriam Leitão representou esse impasse. Ora criticava o autoritarismo, o obscurantismo e a incompetência do governo. Ora lambia as botas do general Santos Cruz, Secretário de Governo, em entrevista chapa branca.

    Excitado com a vitória eleitoral, Bolsonaro não quis saber de conciliação e resolveu chutar o pau da barraca. Foi afobado o inexperiente capitão, que sem nenhuma cautela tentou refundar, do dia pra noite, a geopolítica do sistema de comunicação brasileiro.

    A vingança chegou rápido. Contando com o apoio do Ministério Público, a Globo declarou guerra ao governo.

    Globo e Ministério Público. Tá aí a coligação mais poderosa no ecossistema político brasileiro. Juntos, Globo e MP formam um predador faminto e perigoso. A aliança foi firmada lá em 2013, na campanha midiática de destruição da PEC 37. Vocês lembram?

    Neste momento, na altura em que escrevo este texto, os diretores da Globo têm nas mãos material suficiente para derrubar Bolsonaro. Devem ter o sigilo bancário de todos eles: dos filhos, de Michele, da Wal do açaí e do próprio presidente da República. Carece de ser mais que ingênuo para acreditar que só o Flavinho teve a ideia genial de enricar roubando o salário dos assessores fantasmas.

    Como se a família presidencial já não tivesse problemas demais, apareceram indícios que apontam para o envolvimento dos Bolsonaro com milicianos suspeitos de terem assassinado a vereadora carioca Marielle Franco. Perto disso, a “rachadinha” com os assessores fantasmas vira travessura de criança.

    O que a Globo fará com todo esse material?

    Por enquanto, tá liberando gota a gota, num cerco implacável e constante. Não dá pra saber se o objetivo é derrubar ou tutelar o governo. Se o governo cair, os próximos candidatos ao cargo de moralizador geral da República são Moro e Mourão.

    A situação de Sérgio Moro também não é das mais fáceis. Se não romper com o governo, ele corre o risco de sair chamuscado, de perder o capital político que acumulou nos anos em que foi o antagonista de Lula. Se romper, pode perder espaço e condições para disputar, de dentro, o pós-bolsonarismo. O grande desafio de Moro é acertar esse cálculo.

    Moro tem o controle do COAF e da PF. Se quiser, ele implode com o governo num piscar de olhos.

    A situação de Mourão é mais confortável. Militar orgânico, sem vínculos com a política profissional na biografia, Mourão tem mais potencial que Mouro para encenar o enganado e capitalizar o sentimento coletivo de desilusão que virá no pós-bolsonarismo. Enquanto Bolsonaro estava em Davos, Mourão distribuía sorrisos e simpatias no Rio de Janeiro.

    Desde a campanha está claro que Mourão tem uma agenda própria para o Brasil que não é a mesma de Bolsonaro. A vaidade da caserna não permite que o General seja subordinado do Capitão.

    Ainda tem a bancada do PSL, que começa a ganhar vida própria. Durante a visita não oficial à China, os parlamentares mandaram vários recados a Bolsonaro: exigiram apoio oficial à comitiva, pediram um posicionamento na polêmica com Olavo de Carvalho e deixaram claro que a liderança de Flávio Bolsonaro não é natural. Como o presidente ficou calado, os aliados ameaçaram não apoiar a reforma da Previdência.

    A base aliada ameaçou o governo assim, publicamente. Definitivamente, esse não é um governo normal.

    Dias depois, Joice Hasselmann apareceu bem à vontade em entrevista com João Dória. Os dois atacaram a estabilidade do funcionalismo púbico e firmaram uma “aliança em defesa do Brasil”. Dória corre por fora na disputa pela hegemonização da direita brasileira. Ele tem dois trunfos na manga: o governo de São Paulo e o talento para trair antigos aliados, como bem sabe Geraldo Alckmin.

    Em assunto de traição, know how é fundamental.

    Cedo ou tarde, Bolsonaro será esfaqueado novamente. Dessa vez, o agressor será mais competente que Adélio. Basta saber quem carregará o punhal de Brutus.