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  • Ministro do STF e Procurador-Geral da República esconderam provas no “Mensalão”

    Ministro do STF e Procurador-Geral da República esconderam provas no “Mensalão”

    Imaginemos uma cena dantesca: um ministro do STF e um procurador-geral da República resolvem dividir um inquérito em dois e, conforme vão chegando certas “provas”, que favoreceriam os réus, eles as alocam no inquérito sigiloso, cujo acesso era negado a todos.

    Pois bem, como veremos, foi exatamente isso que ocorreu na Ação Penal 470, chamada de Mensalão pela imprensa tradicional: a defesa só teve acesso a certas provas, que inocentariam seu cliente. após a condenação.

    O jornalista Ricardo Melo escreveu, para a Folha de S. Paulo, em 03/03/2014, que o único caminho para o Supremo Tribunal Federal reaver o respeito dos brasileiros seria: “refazer, do começo ao fim, o julgamento do chamado mensalão petista”. No meio de diversas irregularidades, uma salta aos olhos: “Talvez a mais espantosa das ilegalidades, a ocultação deliberada de investigações. A jabuticaba jurídica tem nome e número: inquérito 2474, conduzido paralelamente à investigação que originou a AP 470”.

    Tudo começou quando uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a CPMI dos Correios, pediu ao Ministério Público o indiciamento de 126 pessoas. Em dez dias, o Procurador-Geral da República, Antônio Fernando de Souza, transformou 126 em 40 acusados e apresentou denúncia ao STF. Qual teria sido seu critério de seleção para esses 40 acusados?

    Mas deixemos Maria Inês Nassif contar os detalhes. Ela publicou este texto na Carta Maior em junho de 2013.

    Joaquim Barbosa e Antonio Fernando de Souza esconderam provas que poderiam mudar julgamento do “mensalão”

    São Paulo – O então procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, criaram em 2006 e mantiveram sob segredo de Justiça dois procedimentos judiciais paralelos à Ação Penal 470. Por esses dois outros procedimentos passaram parte das investigações do chamado caso do “Mensalão”.

    O inquérito sigiloso de número 2474 correu paralelamente ao processo do chamado Mensalão, que levou à condenação, pelo STF, de 38 dos 40 denunciados por envolvimento no caso, no final do ano passado, e continua em aberto. [Esse inquérito 2474 ainda está em segredo de justiça e foi remetido à Justiça Federal do Distrito Federal, em maio de 2018. O que justificaria esses 12 anos de inquérito?]

    E desde 2006 corre na 12ª Vara de Justiça Federal, em Brasília, um processo contra o ex-gerente executivo do Banco do Brasil, Cláudio de Castro Vasconcelos, pelo exato mesmo crime pelo qual foi condenado no Supremo Tribunal Federal (STF) o ex-diretor de Marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato.

    Esses dois inquéritos receberam provas colhidas posteriormente ao oferecimento da denúncia ao STF contra os réus do mensalão pelo procurador Antônio Fernando, em 30 de março de 2006. Pelo menos uma delas, o Laudo de número 2828, do Instituto de Criminalística da Polícia Federal, teria o poder de inocentar Pizzolato.

    O advogado do ex-diretor do BB, Marthius Sávio Cavalcante Lobato, todavia, apenas teve acesso ao inquérito que corre em primeira instância contra Vasconcelos no dia 29 de abril deste ano [2013], isto é, há um mês e quase meio ano depois da condenação de seu cliente. E não mais tempo do que isso descobriu que existe o tal inquérito secreto, de número 2474, em andamento no STF, também relatado por Joaquim Barbosa, que ninguém sabe do que se trata – apenas que é um desmembramento da Ação Penal 470 –, mas que serviu para dar encaminhamento às provas que foram colhidas pela Polícia Federal depois da formalização da denúncia de Souza ao Supremo. Essas provas não puderam ser usadas a favor de nenhum dos condenados do mensalão.

    Essa inusitada fórmula jurídica, segundo a qual foram selecionados 40 réus entre 126 apontados por uma Comissão Parlamentar de Inquérito e decidido a dedo para qual dos dois procedimentos judiciais (uma Ação Penal em curso, pública, e uma investigação sob sigilo) réus acusados do mesmo crime deveriam constar, foi definida por Barbosa, em entendimento com o procurador-geral da República da época, Antônio Fernando, conforme documento obtido pelo advogado. Roberto Gurgel assumiu em julho de 2009, quando o procedimento secreto já existia.

    A história do processo que ninguém viu

    Em março de 2006, a CPMI dos Correios divulgou um relatório preliminar pedindo o indiciamento de 126 pessoas. Dez dias depois, em 30 de março de 2006, o procurador-geral da República, rápido no gatilho, já tinha se convencido da culpa de 40, número escolhido para relacionar o episódio à estória de Ali Babá. A base das duas acusações era desvio de dinheiro público (que era da bandeira Visa Internacional, mas foi considerado público, por uma licença jurídica não muito clara) do Fundo de Incentivo Visanet para o Partido dos Trabalhadores, que teria corrompido a sua base aliada com esse dinheiro. Era vital para essa tese, que transformava o dinheiro da Visa Internacional, aplicado em publicidade do BB e de mais 24 bancos entre 2001 e 2005, em dinheiro público, ter um petista no meio. Pizzolato era do PT e foi diretor de Marketing de 2003 a 2005.

    Pizzolato assinou três notas técnicas com outro diretor e dois gerentes-executivos recomendando campanhas de publicidade e patrocínio (e deixou de assinar uma) e foi sozinho para a lista dos 40. Os outros três, que estavam no Banco do Brasil desde o governo anterior, não foram mencionados. A Procuradoria-Geral da República, todavia, encaminhou em agosto para a primeira instância de Brasília o caso do gerente-executivo de Publicidade, Cláudio de Castro Vasconcelos, que vinha do governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso. O caso era o mesmo: supostas irregularidades no uso do Fundo de Incentivo Visanet pelo BB, no período de 2001 a 2005, que poderia ter favorecido a agência DNA, do empresário Marcos Valério. Um, Pizzolato, que era petista de carteirinha, respondeu no Supremo por uma decisão conjunta. Outro, Cláudio Gonçalves, responde na primeira instância porque o procurador considerou que ele não tinha foro privilegiado. Tratamento diferente para casos absolutamente iguais.

    Barbosa decretou segredo de Justiça para o processo da primeira instância, que ficou lá, desconhecido de todos, até 31 de outubro do ano passado, quando a Folha de S. Paulo publicou uma matéria se referindo a isso (“Mensalão provoca a quebra de sigilo de ex-executivos do BB”). Faltavam poucos dias para a definição da pena dos condenados, entre eles Pizzolato, e seu advogado dependia de Barbosa para que o juiz da 12ª Vara desse acesso aos autos do processo, já que foi o ministro do STF que decretou o sigilo.

    O relator da AP 470 interrompera o julgamento para ir à Alemanha, para tratamento de saúde. Na sua ausência, o requerimento do advogado teria que ser analisado pelo revisor da ação, Ricardo Lewandowski. Barbosa não deixou. Por telefone, deu ordens à sua assessoria que analisaria o pedido quando voltasse.

    Quando voltou, Barbosa não respondeu ao pedido. Continuou o julgamento. No dia 21 de novembro, Pizzolato recebeu a pena, sem que seu advogado conseguisse ter acesso ao processo que, pelo simples fato de existir, provava que o ex-diretor do BB não tomou decisões sozinho – e essa, afinal, foi a base da argumentação de todo o processo de mensalão (um petista dentro de um banco público desvia dinheiro para suprir um esquema de compra de votos no Congresso feito pelo seu partido).

    No dia 17 de dezembro, quando o STF fazia as últimas reuniões do julgamento para decidir a pena dos condenados, Barbosa foi obrigado a dar ciência ao plenário de um agravo regimental do advogado de Pizzolato. No meio da sessão, anunciou “pequenos problemas a resolver” e mencionou um “agravo regimental do réu Henrique Pizzolato que já resolvemos”. No final da sessão, voltou ao assunto, informando que decidira sozinho indeferir o pedido, já que “ele (Pizzolato) pediu vistas a um processo que não tramita no Supremo”.

    O único ministro que parece ter entendido que o assunto não era tão banal quanto falava Barbosa foi Marco Aurélio Mello.

    Mello: “O incidente [que motivou o agravo] diz respeito a que processo? Ao revelador da Ação Penal nº 470?”
    Barbosa: “Não”.
    Mello: “É um processo que ainda está em curso, é isso?”
    Barbosa: “São desdobramentos desta Ação Penal. Há inúmeros procedimentos em curso.”
    Mello: “Pois é, mas teríamos que apregoar esse outro processo que ainda está em curso, porque o julgamento da Ação Penal nº 470 está praticamente encerrado, não é?”
    Barbosa: “É, eu acredito que isso deve ser tido como motivação…”
    Mello: “Receio que a inserção dessa decisão no julgamento da Ação Penal nº 470 acabe motivando a interposição de embargos declaratórios.”
    Barbosa: “Pois é. Mas enfim, eu estou indeferindo.”

    Segue-se uma tentativa de Marco Aurélio de obter mais informações sobre o processo, e de prevenir o ministro Barbosa que ele abria brechas para embargos futuros, se o tema fosse relacionado. Barbosa reitera sempre com um “indeferi”, “neguei”. (Clique aqui e veja trecho da sessão)
    O agravo foi negado monocraticamente por Barbosa, sob o argumento de que quem deveria abrir o sigilo de justiça era o juiz da 12ª Vara. O advogado apenas consegui vistas ao processo no DF no dia 29 de abril do mês passado.

    Um inquérito que ninguém viu

    O processo da 12ª Vara, no entanto, não é um mero desdobramento da Ação Penal 470, nem o único. O procurador-geral Antonio Fernando fez a denúncia do caso do Mensalão ao STF em 30 de março de 2006. Em 9 de outubro daquele ano, em uma petição ao relator do caso, solicitou a Barbosa a abertura de outro procedimento, além do inquérito original (o 2245, que virou a AP 470), para dar vazão aos documentos que ainda estavam sendo produzidos por uma investigação que não havia terminado (Souza fez as denúncias, portanto, sem que as investigações de todo o caso tivessem sido concluídas; a Polícia Federal e outros órgãos do governo continuavam a produzir provas).

    O ofício é uma prova da existência do inquérito 2245, o procedimento paralelo criado por Barbosa que foi criado em outubro de 2006, imediatamente ganhou sigilo de justiça e ficou sob a responsabilidade do mesmo relator Joaquim Barbosa.

    Diz o procurador na petição: “Por ter conseguido formar juízo sobre a autoria e materialidade de diversos fatos penalmente ilícitos, objeto do inquérito 2245, já oferecia a denúncia contra os respectivos autores”, mas, informa Souza, como a investigação continuar, os documentos que elas geram têm sido anexados ao processo já em andamento, o que poderia dar margens à invalidação dos “atos investigatórios posteriores”. E aí sugere: “Assim requeiro, com a maior brevidade, que novos documentos sejam autuados em separado, como inquérito (…) ”.

    Barbosa defere o pedido nos seguintes termos: “em relação aos fatos não constantes da denúncia oferecida, defiro o pedido para que os documentos sejam autuados em separado, como inquérito. Por razões de ordem prática, gerar confusão.”

    No inquérito paralelo, o de número 2474, foram desovados todos os resultados da investigação conduzida depois disso. Nenhum condenado no processo chamado Mensalão teve acesso a provas produzidas pela Polícia Federal ou por outros órgãos do governo depois da criação desse inquérito porque todas todos esses documentos foram enviados para um inquérito mantido todo o tempo em segredo pelo Supremo Tribunal Federal.

    Notas

    1 A matéria da jornalista Maria Inês Nassif para a Carta Maior, 03/junho/2013, foi publicada em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Joaquim-Barbosa-e-Antonio-Fernando-de-Souza-esconderam-provas-que-poderiam-mudar-julgamento-do-%27mensalao%27/4/28145

    2 A matéria do jornalista Ricardo Melo para a Folha de S. Paulo, 03/março/2014, está em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ricardomelo/2014/03/1420220-comecar-de-novo.shtml

    3 Esse texto tem o selo 008-2018 do Observatório do Judiciário.
    4 Para ver a apresentação e o convite à participação no Observatório do Judiciário, veja: https://jornalistaslivres.org/observatorio-do-judiciario-convidamos-voce-para-participar/

  • O funcionamento aristocrático da Justiça paulista

    O funcionamento aristocrático da Justiça paulista

    O direito e a administração da justiça tanto são um produto das sociedades
    quanto são produtores das sociedades, ou seja,
    eles podem ter uma relativa autonomia para aprofundar a democracia
    ou para impedir o aprofundamento da democracia.
    Os tribunais podem ser parte de uma solução democrática
    ou parte de um problema democrático.
    Boaventura de Sousa Santos

    O Tribunal de Justiça e o Ministério Publico de São Paulo são politizados? São partidarizados? Contribuem ou atrapalham o aprofundamento da democracia? Essas foram as questões que Luciana Zaffalon buscou responder, em sua tese de doutorado de 2017, tendo como objeto de análise o Sistema de Justiça do Estado de São Paulo e os impactos sociais da administração da justiça nos campos da segurança pública e penitenciário.

    “O Poder Judiciário e o Ministério Público do Estado de São Paulo agem politicamente como se partidos políticos fossem. Isto é, representam e protegem uma fração da sociedade.” Essa é sua principal conclusão

    O estudo de Zaffalon nos ensina que Geraldo Alckmin teve papel destacado, no período analisado, entre 2012 e 2016, como o protagonista das reformas legislativas que beneficiaram as carreiras jurídicas. Diz o estudo: “São os atos de vontade do governador do Estado de São Paulo que tornam possível o funcionamento aristocrático da justiça local, viabilizando a evolução da organização corporativa do poder em detrimento da cidadania.”

    O parágrafo final da tese conecta os ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos com a realidade do Sistema de Justiça paulista: “Lembramos por fim, em diálogo uma vez mais com Boaventura de Sousa Santos, que ‘nunca as leis gerais e universais foram tão impunemente violadas e seletivamente aplicadas, com tanto respeito aparente pela legalidade’. Ao analisar as contribuições da justiça local para o aprofundamento democrático, concluímos que o Estado de São Paulo leva ao limite o postulado de Boaventura de Sousa Santos que afirma que “vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas”.

    Reproduzimos a entrevista que Luciana Zaffalon concedeu à jornalista Débora Melo da revista Carta Capital, em julho de 2017.

    “Há uma dinâmica que financia a atuação elitista da Justiça paulista”

    Pesquisadora da FGV revela como o Judiciário atua para blindar o Executivo e, assim, garante benefícios corporativos para além do teto constitucional

    Partindo da ideia de que o sistema de Justiça pode tanto favorecer o aprofundamento democrático quanto criar obstáculos ao aperfeiçoamento da democracia, a pesquisadora Luciana Zaffalon, da Fundação Getulio Vargas, se propôs a desvendar o que chama de processo de politização do Judiciário paulista em sua tese de doutorado em administração pública e governo.

    Ao mesmo tempo em que atua de forma a blindar a política de segurança pública do governo do Estado –todo o período analisado diz respeito à gestão de Geraldo Alckmin (PSDB)–, o Judiciário paulista negocia formas de garantir a manutenção e a ampliação de seus benefícios corporativos. Não por acaso, a única situação em que o Executivo foi derrotado pelos desembargadores em 100% dos processos foi quando questionou a aplicação do teto remuneratório das carreiras do serviço público.

    “Os números demonstram que as verbas estão chegando e os pedidos do governo estão sendo atendidos”, disse Zaffalon em entrevista a CartaCapital.

    “Todo o espírito da tese é dizer de que maneira os interesses se confundem, de que maneira os interesses corporativos estão se sobrepondo às garantias de cidadania das pessoas mais vulneráveis do Estado, sejam as que estão privadas de liberdade, sejam as que estão nas periferias das grandes cidades e são afetadas por políticas de segurança dramaticamente cruéis”, continuou a advogada, que por quatro anos atuou como Ouvidora-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (2010-2014).

    Intitulada Uma Espiral Elitista de Afirmação Corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do sistema de Justiça paulista com as disputas da política convencional, a tese apresentada à FGV revela que a presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) é bastante solícita aos pedidos do Executivo do Estado. A suspensão de decisões que contrariam os interesses do governo é comum na Corte.

    A pesquisa leva em conta as duas últimas gestões do TJ-SP (de 2012 a 2015) e analisa os impactos sociais das decisões da Justiça na segurança pública e no sistema penitenciário. Uma das conclusões do estudo é que o Judiciário paulista atua de forma “antidemocrática”: representa e protege as elites por meio do corporativismo e reserva às classes populares as forças de segurança e o sistema prisional.

    CartaCapital: O que a levou a fazer essa pesquisa?
    Luciana Zaffalon: Eu sempre tive clareza de que o sistema de Justiça tanto pode favorecer o aprofundamento democrático como pode obstaculizar uma democratização mais profunda da nossa sociedade. E foi quando eu fui trabalhar como ouvidora externa da Defensoria Pública que eu passei a compreender dinâmicas que estavam, até então, completamente invisíveis para mim a respeito do funcionamento de uma instituição de Justiça e das relações que são mantidas com diferentes entes como, por exemplo, o Executivo do Estado.

    CC: Qual a principal conclusão a que você chegou sobre o funcionamento dos três Poderes em São Paulo?
    LZ: Há um imbricamento muito profundo entre os três Poderes, o que cria uma esfera de atuação elitista da Justiça, uma atuação mobilizada quase invariavelmente por interesses corporativos.

    CC: Que obstáculos você encontrou?
    LZ: Foi impossível trabalhar com as folhas de pagamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. As folhas de pagamento do Ministério Público estavam disponíveis em planilhas de Excel, facilmente manuseáveis. Com a Defensoria Pública, os dados estavam em PDF, o que contraria a Lei de Acesso à Informação, mas ainda assim foi possível baixar e converter os arquivos.
    Com relação ao tribunal, isso foi absolutamente impossível. Os arquivos foram disponibilizados em formato de imagem, com inúmeras páginas, e não estavam em ordem alfabética. Então eu acabei usando os dados publicados pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça].

    CC: O que isso representa?
    LZ: São decisões institucionais que demonstram onde está o compromisso e onde não está o compromisso. E o compromisso não está com a transparência.

    CC: Onde está o compromisso?
    LZ: O que fica claro é que, de fato, a gente observa uma espiral elitista de afirmação corporativa.

    CC: Quais foram as maiores surpresas que você teve durante a realização desse trabalho?
    LZ: A única surpresa positiva foi o fato de as planilhas remuneratórias do Ministério Público estarem no formato adequado. As mais dramáticas dizem respeito ao volume de suplementações orçamentárias recebidas pelo Tribunal de Justiça. Cabe à Assembleia Legislativa analisar a abertura desses créditos, mas, durante todo o período analisado, a Assembleia transferiu para o Executivo essa prerrogativa. Isso causa um prejuízo concreto, porque a suplementação orçamentária passa a ser negociada dentro do gabinete do governo, fugindo de qualquer possibilidade de controle público. Uma das principais surpresas que eu tive foi o fato de o tribunal ter recebido 21% do total de suplementações orçamentárias do Estado em um único ano, em 2015. É um volume muito grande de dinheiro para ser negociado dessa forma. Também chamou a atenção o fato de apenas 3% do Ministério Público não receber acima do limite do teto constitucional [33.700 reais].

    CC: E quais outros aspectos negativos você encontrou?
    LZ: A surpresa que me fez sentir um mal estar físico durante a execução da pesquisa foi o caso da “suspensão de segurança”, figura processual que garante que qualquer ente público possa pedir direto à presidência do tribunal a suspensão dos efeitos de uma decisão de primeira instância que lhe contrarie.
    Eu quis entender de que maneira a presidência do TJ, nas gestões [Renato] Nalini e [Ivan] Sartori, se posicionou diante dos pedidos do governo Estado no período analisado. O meu recorte de análise foi segurança pública e sistema prisional. Eu tomei o cuidado de ser o mais conservadora possível na definição da minha metodologia, para não correr o risco de ser acusada de qualquer enviesamento.
    Então eu analisei todos os casos, de todos os entes públicos que pediram para a presidência do tribunal suspender os efeitos de uma decisão de primeira instância que lhe contrariava. A média de suspensão observada no período foi de 41%, mas alguns casos fogem completamente dessa média. E o que me deixou abalada diz respeito à forma como a presidência do tribunal atendeu aos pedidos do governo do Estado com relação à garantia de direitos mínimos para as pessoas privadas de liberdade.
    Do que eu estou falando? Eu estou falando da observância do Estatuto da Criança e do Adolescente, de problemas de superlotação na Fundação Casa, problemas com banheiros e com ventilação, de garantia de banho quente para presos com tuberculose, por exemplo, de garantia de atendimento médico e de instalação de equipe mínima de saúde. Em uma unidade prisional morreram 60 pessoas, por questões de saúde, em um único ano. É disso que eu estou falando.
    De todos os casos analisados, em apenas um caso que dizia respeito à garantia de direitos para pessoas privadas de liberdade a presidência do tribunal não atendeu ao pedido do governo.

    CC: A que você atribui isso?
    LZ: À negociação de orçamento, à suplementação orçamentária. Todo o espírito da tese é justamente dizer de que maneira os interesses se confundem, de que maneira os interesses corporativos estão se sobrepondo às garantias de cidadania das pessoas mais vulneráveis do Estado, sejam as que estão privadas de liberdade, sejam as que estão nas periferias das grandes cidades e são afetadas por políticas de segurança dramaticamente cruéis.
    Enquanto isso, as instituições de Justiça estão em negociações que garantam os seus benefícios corporativos, independentemente de isso representar um passo atrás na luta pela garantia de direitos das pessoas que mais precisam delas.
    Como eu disse, o Tribunal de Justiça chegou a receber 21% das suplementações orçamentárias do Estado. Os números demonstram que as verbas estão chegando e os pedidos do governo estão sendo atendidos. Então há uma dinâmica que financia a atuação elitista do sistema de Justiça e que está, na outra ponta, representando o abandono da sua função primordial, que é garantir o Direito e funcionar como uma parte apartada do Executivo no mecanismo de execução de peso e contrapeso.

    CC: Por que o recorte foi feito na segurança pública e no sistema penitenciário?
    LZ: Porque é a parte mais dramática. Há dois grandes campos abarcados na pesquisa. Um é a forma como sociedade controla o Estado, porque não podemos esquecer que as carreiras jurídicas são compostas por funcionários públicos, que têm que ser cobrados como tal.
    De outro lado, temos o controle que o Estado exerce sobre a população, e o elemento mais cruel disso, mais pesado, se dá por meio da atuação das forças policiais, pelo poder de força do Estado. Isso se dá tanto na atuação das polícias quanto na privação de liberdade.
    Uma questão em relação ao Ministério Público, por exemplo, é que a Constituição Federal atribui a esse órgão a competência para fazer o controle externo da atuação das polícias. Mas, ao olhar para o Estado de São Paulo, nós observamos que os últimos sete secretários da Segurança Pública são oriundos do Ministério Público. Ou seja, o órgão que deveria fazer o controle externo das polícias se converte no gestor da política de segurança pública.

    CC: Essa relação entre os três Poderes ajuda a explicar a permanência do PSDB no governo de São Paulo por mais de 20 anos?
    LZ: Eu acho que a falta de freios e contrapesos afeta o aprofundamento democrático e gera resultados como esse, como a falta de alternância.

    Notas

    1 A entrevista de Luciana Zaffalon, feita por Débora Melo, foi originalmente publicada em https://www.cartacapital.com.br/politica/ha-uma-dinamica-que-financia-a-atuacao-elitista-da-justica-paulista.

    2 A íntegra da tese “Uma espiral elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do sistema de justiça paulista com as disputas da política convencional”, de autoria de Luciana Zaffalon Leme Cardoso, está disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/18099.

    3 Esse texto tem o selo 007-2018 do Observatório do Judiciário.

    4 Para ver a apresentação e o convite à participação no Observatório do Judiciário, veja: https://jornalistaslivres.org/observatorio-do-judiciario-convidamos-voce-para-participar/

  • ABJD repudia aumento de 16,38% aprovado pelo STF e CSMP

    ABJD repudia aumento de 16,38% aprovado pelo STF e CSMP

    Em carta enviada aos membros do Congresso Nacional a ABJD manifesta repúdio acerca dos reajustes do Judiciário e do Ministério Público, exigindo a rejeição do projeto.

    Veja a integra abaixo:

    Excelentíssimos senhores membros do Congresso Nacional

    A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia- ABJD, entidade que congrega membros de todas as carreiras jurídicas, estudantes de direito e membros da academia, vem a público manifestar seu repúdio ao aumento de 16,38% no subsídio dos magistrados brasileiros e membros do Ministério Público, decidido pelo Supremo Tribunal Federal em sessão administrativa na última quarta-feira, dia 08 de agosto de 2018 e pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal no dia 10 de agosto de 2018.

    Enquanto o governo Temer faz  mais anúncios de corte de benefícios e de investimentos em saúde, educação, pesquisa e tecnologia, a pobreza extrema volta a ser uma realidade no Brasil e a reforma trabalhista produz seus efeitos nefastos sobre a vida das trabalhadoras e dos trabalhadores, o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal tomarem uma decisão que, por seu efeito cascata, terá impacto de mais de R$ 4 bilhões nas contas da União e dos estados, sendo 717,2 milhões por ano  apenas no Judiciário federal nas três instâncias, soa como deboche e descaso com o que está acontecendo no país.

    Neste sentido, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD que acompanha o comportamento do Poder Judiciário e do sistema de justiça, Incluindo o debate sobre remuneração de cargos das carreiras jurídicas, dirige-se aos membros do Congresso Nacional, exigindo um mínimo de coerência  do Poder Legislativo que, por sua maioria, aprovou os chamados “pacote de maldades” do governo Temer, para que diga não aos privilégios, rejeitando esse projeto injusto e indigno.

    Nota:

    1 Esse texto tem o selo 006-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ver a apresentação e o convite à participação no Observatório do Judiciário, veja: https://jornalistaslivres.org/observatorio-do-judiciario-convidamos-voce-para-participar/