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  • Cadê o Queiroz? Braço direito de Bolsonaro tem a senha pra derrubar o presidente

    Cadê o Queiroz? Braço direito de Bolsonaro tem a senha pra derrubar o presidente

    Por Dacio Malta*

    Não resta dúvida que a entrevista do lobista Paulo Marinho à Monica Bergamo, e mais as 8 horas de depoimentos que ele prestou à Polícia Federal e ao Ministério Público, abalam o senador Flávio Bolsonaro mas, principalmente, o seu pai  — o presidente da República.

    Como o inquérito corre em segredo de justiça, não se sabe o que Marinho apresentou aos investigadores. Ele diz apenas que mostrou “provas” da ligação de um delegado com os Bolsonaros, e “ampliou as denúncias”.

    O lobista tem se mostrando excessivamente confiante em relação a esses depoimentos. Mas o que teria de novo? Seriam vídeos, gravações, fotos? Ninguém sabe.

    Se forem apenas fatos — mesmo com nomes, datas, locais e horários—  será difícil a investigação ganhar musculatura. Será a palavra de um contra o outro.

    O fato de Fabrício Queiroz  — e sua filha—  serem demitidos em uma mesma data, entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018, já foi respondido, no passado, pelo próprio capitão.  Queiroz foi demitido porque Flavio foi eleito senador, e precisava exonerar seus assessores na Assembleia Legislativa do Rio.

    A filha de Queiroz foi pra rua pelo mesmo motivo. Como candidato a presidência da República, o capitão não voltaria para a Câmara dos Deputados.

    É claro que todos poderiam continuar ganhando seu dinheirinho até dezembro, e não ter os proventos suspensos no início de outubro.

    Mas, tecnicamente, a argumentação faz sentido.

    A verdade é que o imbróglio que envolve a famiglia Bolsonaro só será esclarecido quando Queiroz for localizado e preso — para prestar o depoimento que ele deve desde dezembro de 2018.

    Já se passaram 18 meses.

    Como é sabido, Queiroz tem enorme intimidade com milicianos, mas esses, como bons mercenários que são, não garantem a sua segurança.

    Hoje vivemos uma pandemia. E se Queiroz for infectado e morrer?

    Toda a narrativa da rachadinha, do envolvimento da família com milicianos, da lavagem de dinheiro, da compra e venda de imóveis, da franquia de uma marca de chocolates e outros crimes, irão para o lixo.

    Durante os 14 meses em que Sergio Moro foi ministro da Justiça, ele não moveu uma palha para que Queiroz fosse localizado. O ex-juiz, considerado traidor pelos bolsonaristas, prestou enorme serviço ao chefe, a partir do momento em que não se interessou pelo caso. Ou guardou as informações para ele.

    Agora que o presidente tem a Polícia Federal na mão, e mais a superintendência do Rio de Janeiro, a localização de Queiroz torna-se ainda mais difícil.

    E assim como pergunta-se “Quem mandou matar Marielle?”, a indagação “Cadê o Queiroz?” continuará sem resposta.

    Ele sabe que os procuradores têm “uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente”. Por isso sumiu.

    Ninguém sabe onde vive, com que recursos, onde está sua mulher e sua filha. Até mesmo os oito funcionários do gabinete — que mensal e candidamente entregavam parte dos salários para a caixinha do então deputado—  estão desaparecidos.

    Se a investigação contra Flavio Bolsonaro for para valer, é preciso saber cadê o Queiroz.

     

     

    *Dacio Malta trabalhou nos três principais jornais do Rio – O Globo, Jornal do Brasil e O Dia – e na revista Veja.

    Leia mais Dacio Malta em:

     

    Paulo Marinho apavora Jair Bolsonaro porque conhece os podres do presidente

     

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  • Rachadinha de Flávio Bolsonaro financiou prédios ilegais da milícia no Rio, mostra investigação do MP

    Rachadinha de Flávio Bolsonaro financiou prédios ilegais da milícia no Rio, mostra investigação do MP

    The Intercept Brasil por Sérgio Ramalho

     

    FLÁVIO BOLSONARO FINANCIOU e lucrou com a construção ilegal de prédios erguidos pela milícia usando dinheiro público. É o que mostram documentos sigilosos e dados levantados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro aos quais o Intercept teve acesso. A investigação preocupa a família Bolsonaro – os advogados do senador já pediram por nove vezes que o procedimento seja suspenso.

    O investimento para as edificações levantadas por três construtoras foi feito com dinheiro de “rachadinha”, coletado no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, como afirmam promotores e investigadores sob a condição de anonimato. O andamento das investigações que fecham o cerco contra o filho de Jair Bolsonaro é um dos motivos para que o presidente tenha pressionado o ex-ministro Sergio Moro pela troca do comando da Polícia Federal no Rio, que também investiga o caso, e em Brasília.

    Trecho da denúncia do Ministério Público que tornou o capitão Adriano Magalhães da Nóbrega foragido da Justiça. Essa denúncia serviu de base para o inquérito das rachadinhas

    O esquema funcionaria assim:

    • Flávio pagava os salários de seus funcionários com a verba do seu gabinete na Alerj.

    • A partir daí, Queiroz – apontado no inquérito como articulador do esquema de rachadinhas – confiscava em média 40% dos vencimentos dos servidores e repassava parte do dinheiro ao ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, apontado como chefe do Escritório do Crime, uma milícia especializada em assassinatos por encomenda.

    • A organização criminosa também atua nas cobranças de “taxas de segurança”, ágio na venda de botijões de gás, garrafões de água, exploração de sinal clandestino de TV, grilagem de terras e na construção civil em Rio das Pedras e Muzema.

    • As duas favelas, onde vivem mais de 80 mil pessoas, ficam em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio, e assistiram a um boom de construções de prédios irregulares nos últimos anos. Em abril do ano passado, dois desses prédios ligados a outras milícias desabaram, deixando 24 mortos e dez feridos.

    • O lucro com a construção e venda dos prédios seria dividido, também, com Flávio Bolsonaro, segundo as investigações, por ser o financiador do esquema usando dinheiro público.

    Condecorado por Flávio Bolsonaro com a Medalha Tiradentes, principal honraria do Rio, o ex-caveira Adriano da Nóbrega foi morto a tiros em fevereiro em um controverso cerco policial no interior da Bahia com indícios de queima de arquivo. Foragido da Justiça, o ex-capitão estava escondido no sítio de um vereador bolsonarista. Os diversos celulares do miliciano ainda aguardam por perícia.

     

    As investigações do MP revelaram que os repasses da rachadinha chegavam às mãos do capitão Adriano por meio de contas usadas por sua mãe, Raimunda Veras Magalhães, e sua esposa, Danielle da Costa Nóbrega. As duas ocupavam cargos comissionados no gabinete do deputado na Alerj entre 2016 e 2017. Ambas nomeadas por Queiroz, amigo do ex-capitão dos tempos de 18º batalhão da Polícia Militar, Jacarepaguá.

    Segundo o MP, a mãe e a mulher de Adriano movimentaram ao menos R$ 1,1 milhão no período analisado pela investigação, amealhado com o esquema de rachadinha por meio de contas bancárias e repasses em dinheiro a empresas, dentre as quais dois restaurantes, uma loja de material de construção e três pequenas construtoras.

    Com sede em Rio das Pedras, as construtoras São Felipe Construção Civil Eireli, São Jorge Construção Civil Eireli e ConstruRioMZ foram registradas, segundo o MP, em nome de “laranjas” do Escritório do Crime. O dinheiro então chegava aos canteiros de obras ilegais por meio de repasses feitos pelo ex-capitão aos laranjas das empresas.

    Trecho de interceptação detalha registro da construtora em nome de laranja.

    O papel de “investidor” nas construções da milícia ajudaria a explicar a evolução patrimonial de Flávio Bolsonaro, que teve um salto entre os anos de 2015 e 2017 com a aquisição de dois apartamentos: um no bairro de Laranjeiras e outro em Copacabana, ambos na zona sul do Rio. Os investimentos também permitiram a compra de participação societária numa franquia da loja de chocolates Kopenhagen.

    Flávio entrou na vida política em 2002, com apenas um carro Gol 1.0, declarado por R$ 25,5 mil. Na última declaração de bens, de 2018, o senador disse ter R$ 1,74 milhão. A elevação patrimonial coincide com o período em que a mãe e a mulher do ex-capitão estavam nomeadas em seu gabinete.

    O papel de Adriano

    A ligação do ex-capitão com as pequenas empreiteiras envolvidas no boom da verticalização em Rio das Pedras e Muzema foi levantada em meio à investigação sobre as execuções da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018. Foi a partir das quebras de sigilos telefônicos e telemáticos dos integrantes do Escritório do Crime que os promotores descobriram que o grupo paramilitar havia evoluído da grilagem de terras à construção civil, erguendo prédios irregulares na região e, assim, multiplicando seus lucros.

    Adriano da Nóbrega e dois outros oficiais da PM integrantes do grupo – o tenente reformado, Maurício da Silva Costa, e o major Ronald Paulo Alves Pereira – usaram, segundo os promotores, nomes de moradores de Rio das Pedras para registrar as construtoras na junta comercial do Rio de Janeiro. A estratégia de usar “laranjas”, segundo o MP, foi adotada para tentar dar legitimidade às atividades do Escritório do Crime na construção civil.

    A descoberta foi usada pelos promotores como base para a abertura do inquérito que resultou na Operação Intocáveis – nome escolhido numa referência às patentes de oficiais da Polícia Militar ostentadas pelos chefes da organização criminosa. A ação contra a milícia foi coordenada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do MP, o Gaeco, e desencadeada, em janeiro de 2019, como forma de fechar o cerco à milícia suspeita de arregimentar os assassinos da vereadora do PSOL. Na ocasião, o ex-capitão Adriano e outros 12 suspeitos tiveram as prisões decretadas.

    Trecho da denúncia cita a milícia de Adriano, construções e empresas em nome de laranjas.

    Dados do inquérito a que tive acesso comprovam que Adriano, Costa e Pereira eram os “donos ocultos” das construtoras ConstruRioMZ, São Felipe Construção Civil e São Jorge Construção Civil. As três empresas foram registradas na junta comercial no segundo semestre de 2018, respectivamente, em nome Isamar Moura, Benedito Aurélio Carvalho e Gerardo Mascarenhas, conhecido como Pirata. Os três “laranjas” foram presos na operação policial, juntamente com os oficiais da PM Costa e Pereira.

    Numa das interceptações, o miliciano Manoel de Brito Batista, que atuava como uma espécie de gerente das obras, alerta em tom ameaçador a um interlocutor que o questiona sobre um prédio recém erguido na favela Rio das Pedras: “Eu tenho oito apartamentos naquele prédio, o resto é tudo do Adriano e do Maurício. Entendeu? Você procura eles e fala com eles, entendeu? Não adianta ficar me mandando mensagem”. Batista também foi preso na Operação Intocáveis.

    Manoel era o síndico dos negócios no ramo imobiliário.

    Na denúncia do MP, Batista é citado como responsável pela supervisão dos canteiros de obras e pela negociação de imóveis. Numa das escutas telefônicas, ele oferece um andar inteiro num prédio recém erguido por 60 parcelas de R$ 4 mil. Valor previamente acertado com o ex-capitão Adriano, ora tratado por “Gordinho”, ora por “Patrãozão”, apelidos captados nas investigações da rachadinha e das execuções de Marielle e Anderson.

    Trecho de conversa entre Manoel e Adriano.

    Era Adriano que definia preços, condições de pagamentos e, em muitos dos casos, fazia a cobrança dos valores diretamente aos compradores e inquilinos. Não há na investigação uma estimativa dos lucros obtidos pela milícia no ramo imobiliário, mas o preço médio dos apartamentos, com dois quartos, sala, banheiro e cozinha nas duas favelas gira em torno de R$ 100 mil.

    Planilhas apreendidas durante a operação policial num imóvel usado como sede do Escritório do Crime, o Moradas do Itanhangá, indicavam retiradas semanais feitas pelo ex-capitão e também pelo tenente reformado Maurício e pelo o major Ronald, também amigo de Flávio Bolsonaro. Além de ser o responsável pela contabilidade do grupo, Ronald também foi homenageado por Flávio Bolsonaro com uma menção honrosa em 2004. Em várias conversas gravadas pelo MP, o major aparece combinando de se encontrar com Batista para “bater” as contas no fim da semana.

    Major Ronald mantinha planilhas contábeis, com repasses de dinheiro para Adriano, plantas de prédios e outros documentos relacionados às construções ilegais.

    ‘O MP está preparando uma pica do tamanho de um cometa para empurrar na gente’

    A frase de Queiroz foi dita em áudios de Whatsapp divulgados pelos jornais O Globo e Folha de S.Paulo em outubro. Desde então, muito se especulou a que ele se referia. Investigadores ouvidos pela reportagem acreditam que Queiroz sabia que o inquérito tinha identificado o uso do dinheiro desviado no esquema de rachadinha para financiar o boom de construções ilegais na Muzema e em Rio das Pedras, comunidade onde Fabrício Queiroz se refugiou em dezembro de 2018, como revelam as quebras de sigilos telefônicos e telemáticos.

    Na opinião de envolvidos na investigação da rachadinha, a conclusão do cruzamento de dados financeiros dos 86 citados no inquérito, dentre eles o atual senador Flávio Bolsonaro, vai ser capaz de comprovar os crimes, entre eles lavagem de dinheiro. E, assim, explicar a suspeita evolução patrimonial do primeiro-filho e, sobretudo, justificar a movimentação do senador para tentar a todo custo paralisar o trabalho dos promotores.

    Item 29 revela que o crime de lavagem de dinheiro está sendo apurado em procedimento específico no inquérito da rachadinha do então deputado Flávio Bolsonaro.

    Nas redes sociais e nas poucas entrevistas em que falou sobre o esquema de rachadinha, Flávio Bolsonaro afirma ser vítima de perseguição da imprensa e critica o vazamento de informações do processo, que está sob segredo de justiça. O político também afirma não ter conhecimento sobre o fracionamento de salários de seus funcionários. Procurado pelo Intercept, o senador não se manifestou.

    O filho 01 chegou a atribuir a responsabilidade das supostas irregularidades a Queiroz, que teve identificados 438 transferências e depósitos em suas contas, totalizando cerca de R$ 7 milhões entre os anos de 2014 e 2017.

    Queiroz também fez depósitos regulares de cheques e em dinheiro em contas do primeiro-filho e da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que numa das operações recebeu R$ 24 mil. Na ocasião, o presidente disse que o valor era parte de um empréstimo de R$ 40 mil que teria feito ao ex-assessor parlamentar e amigo. Para os investigadores, apenas a conclusão do inquérito permitirá o esclarecimento do fluxo de dinheiro, mas a decisão sobre o prosseguimento da investigação depende dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio, que suspenderam os julgamentos devido à pandemia de coronavírus.

    Desde o início da investigação, em outubro de 2018, o trabalho dos promotores foi suspenso três vezes, atendendo à defesa de Flávio Bolsonaro. Ao todo, os advogados impetraram nove pedidos no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal de Justiça do Rio, alegando que as quebras de sigilo bancário e fiscal do então deputado estadual não poderiam ter sido concedidas por um juiz de primeira instância. Medo de que alguém descobrisse que nem só de chocolate é feito o milionário patrimônio do senador que entrou na vida política em 2002 com um Gol 1.0 e um sobrenome influente.

  • Nadine Borges: O poder perpendicular das milícias no Rio de Janeiro

    Nadine Borges: O poder perpendicular das milícias no Rio de Janeiro

    Nadine Borges

    Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ

     

    Enfrentar uma discussão sobre o poder da milícia é sempre uma árdua tarefa, pois a existência desses grupos organizados no Rio de Janeiro tem pelo menos 40 anos. Desde a década de 80 as milícias constituem o que comumente é chamado de um poder paralelo, o que não nos parece correto, porque esses grupos de extermínio, esquadrões da morte fazem parte de um crime organizado que ocupa as estruturas do poder público municipal de diferentes formas, ou seja, são parte do Estado e quem é parte não tem poder paralelo, tem poder que pode até ser central. O conceito de paralelismo implica não haver pontos de encontro. Diz-se que uma reta é paralela a outra justamente porque não se encontram, nem no infinito. Portanto, não se deve falar que o poder da milícia é um poder paralelo do Estado porque de alguma forma esse crime organizado profissionalizado se encontra com a estrutura estatal em diversos momentos e perpassa a vida política na cidade do Rio de Janeiro.

    A questão central é que esse encontro perpendicular acontece em um ângulo de 90 graus e cabe a nós identificar em que momentos essas práticas (retas) se encontram. Desde a ditadura militar os esquadrões da morte são conhecidos e reconhecidos na Baixada Fluminense e na Zona Oeste e foram sustentados pelo regime militar, como identificamos nas pesquisas desenvolvidas no âmbito da Comissão Estadual da Verdade do Rio. Muitos ou quase todos dos porta vozes da ditadura militar nessa região alcançaram postos de representação política em cidades da Baixada em uma aliança profissionalizada com o jogo do bicho e algumas escolas de samba, como nos mostra a obra Os Porões da Contravenção, dos jornalistas Aloy Jupiara e Chico Otávio.

    Se analisarmos as informações que constam na Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Mil%C3%ADcia_(criminalidade_no_Brasil)) sobre milícia veremos a cronologia somente a partir de 2007, mas essas ações vem de longa data. A prática de execuções sumárias por grupos privados com o aval do poder público no Rio de Janeiro durante a ditadura militar é algo notório e eis aqui o primeiro quadrante desse poder perpendicular das milícias. Com o fim do regime na década de 90 três locais do Rio de Janeiro apareceram como nascentes desses grupos: Rio das Pedras, Campo Grande ( onde a milícia é conhecida como “Liga da Justiça”) e Duque de Caxias . A ideia de normatizar, regular, fiscalizar o acesso à terra, a venda de lotes, o transporte “clandestino”, o acesso ao gás, a TV à cabo com os famosos “gatos” não é de hoje e há muito está nas mãos da milícia com o aval do poder público.

    Portanto, não se pode afirmar que a milícia tem poder paralelo, já que cada um desses exemplos são encontros dessas técnicas com a estrutura de poder do Estado estampados hoje com a ascensão da ultradireita, que sempre defendeu essas práticas. Os milicianos exercem poder sobre os territórios, combatem os inimigos (não necessariamente o tráfico, prova disso são os narco-milicianos), ajudam os aliados (moradores)  e obviamente cobram taxas pelos serviços prestados à população. O detalhe é que quem não paga, pode morrer. A institucionalização da execução penal extrajudicial, figura inexistente no ordenamento jurídico pátrio, se consolida nessas execuções sumárias sempre endereçadas para os mesmos nas regiões controladas por milicianos: negros e pobres.

    O fenômeno parece não enfrentar obstáculos, pois mesmo com a possibilidade ventilada no  debate anterior de criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) de indiciar os autores das graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar, o texto final do relatório da CNV não considerou essa perspectiva e esses algozes seguem anistiados, o que é uma autorização social, política e jurídica da matança pelo próprio Estado em todas as suas esferas de poder, já que ao não responsabilizar torturadores mantém a autonomia do crime organizado dentro ou fora das estruturas do poder público. Podemos comparar o fenômeno das milícias em outros locais do Brasil e até do continente sul americano, mas de fato o que se vê no Brasil e no Rio de Janeiro não nos deve causar estranhamento, já que em outros países os agentes do Estado adeptos da tortura, do desaparecimento e da ocultação de cadáveres foram processados, condenados e presos, menos no Brasil. Aqui as práticas seguem autorizadas, mesmo que tacitamente.

    Com um discurso palatável de enfrentamento ao tráfico, os milicianos ampliaram rapidamente seu poder construindo narrativas e se colocando como guardiões da segurança para não terem seus negócios prejudicados. O lucro sempre dependeu da construção desses inimigos que oscilam conforme o momento. A lógica do “se não é possível vencê-los, junte-se a eles” justifica a figura dos narco-milicianos. Aquele perfil inicial das milícias da década de 90 e dos anos 2000 foi se adaptando para ampliar a conquista de territórios e hoje os símbolos existentes nas portas das casas para dizer quem paga e quem não paga a milícia são marcas deste poder perpendicular. O Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro já identificou que aproximadamente 180 localidades na cidade são exploradas pela cobrança ilegal de serviços de segurança com o apoio dos pontos de vendas do tráfico de drogas, as “ bocas de fumo”. A expansão não é apenas na cidade do Rio de Janeiro, mas em todos os municípios da Baixada Fluminense e em cidades próximas, como São Gonçalo, Maricá, dentre outras.

    Outro quadrante deste cruzamento é com representantes no Parlamento e no Poder Executivo, fato que ocorre desde a década de 80, como é o caso de um torturador confesso da ditadura militar entrevistado durante os trabalhos da Comissão da Verdade do Rio. Além de ser um dos mentores e cuidadores da Casa da Morte em Petrópolis, um centro extraoficial de tortura em Petrópolis, que matou e desapareceu com lideranças políticas contrárias ao regime militar durante a ditadura, o torturador foi incorporado ao jogo do bicho após o fim da ditadura em 1985. Paulo Malhães era coronel da reserva e trabalhou no jogo do bicho. Sua atuação na Baixada chefiando a segurança de empresas de ônibus e sua aproximação com o bicheiro “Anísio” é outra prova dessa perpendicularidade de poder. Essa migração da ditadura para o jogo do bicho o levou a ser alguém com poder na Baixada. Não é por acaso e nem algo recente que as narco-milícias possam contar com o apoio dos políticos.

    Como o negócio envolve dinheiro e poder, a prática de alugar bocas de fumo e a autorização de alguns roubos são formas de sustentar economicamente os grupos milicianos que buscam cada vez mais aprimorar seus mecanismos para fortalecer lideranças e ter uma gestão financeira e administrativa desses territórios. Portanto, a ideia de que os milicianos enfrentam o tráfico é facilmente desmontada. A existência de policiais nas folhas de pagamento dos traficantes nas investigações do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro confirma essa hipótese.

    Há que se considerar também o suposto envolvimento do Escritório do Crime (grupo miliciano de Rio das Pedras) na morte da vereadora Marielle Franco, assassinada em Março de 2018, quando estava à frente de investigações sobre a Milícia na cidade e atuando ativamente durante a Intervenção Militar do mesmo período, além das lentas investigações sobre o caso.

    Diante das interseções demonstradas entre milícia, tráfico, poder público e instituições remanescentes da ditadura militar, fica claro que o poder miliciano está longe de ser paralelo, senão que é perpendicular ao Estado. É imprescindível que se investigue minuciosamente as estreitas conexões entre esses grupos a fim de eliminar a possibilidade de que estes criminosos cheguem aos poderes legislativo, executivo e judiciário e, ainda, que corrompam as corporações e instituições de segurança, cujo papel único é proteger a população, ainda que atue de maneira, aí sim, paralela a este propósito.

     

    Referências:

    https://oglobo.globo.com/rio/narcomilicias-traficantes-milicianos-se-unem-em-180-areas-do-rio-segundo-investigacao-24007664

    https://www.plural.jor.br/documentosrevelados/wp-content/uploads/2015/12/cev-rio-relatorio-final.pdf

    http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/587500-as-milicias-crescem-velozmente-por-dentro-do-estado-entrevista-especial-com-jose-claudio-alves

     

  • O golpe na Bolívia é racista, religioso e ultraconservador e pode assanhar as milícias evangélicas no Brasil

    O golpe na Bolívia é racista, religioso e ultraconservador e pode assanhar as milícias evangélicas no Brasil

    Por Yuri Silva*, do Mídia 4P

    O golpe de Estado a que foi submetido o povo boliviano, por meio da pressão das Forças Armadas para que o presidente Evo Morales e seu alto escalão renunciasse ao governo, expõe o avanço acelerado das milícias religiosas conservadores na América Latina e o racismo delas contra os povos originários indígenas e os negros latinos.

    Qualquer paralelo com o momento vivido atualmente no Brasil, com ataques a templos de religiões de matriz africana e perseguição aos povos indígenas que vem tendo seus espaços de culto incendiados e seus direitos sociais vilipendiados, não é mera coincidência. Trata-se de uma ação articulada, e em violenta escalada, em todo o continente.

    As cenas que se sucederam no roteiro de consumação do golpe militar na Bolívia — que ainda está em curso até o momento em que ficará mais nítido quem será o ditador a ocupar o comando do país — apontam que o ódio aos povos andinos é o combustível que faz mover a deposição de Evo.

    Além da imagem aberrante do opositor Fernando Camacho, líder da extrema-direita, de joelhos defronte a uma bíblia dentro do Palácio de Governo, relatos e vídeos publicados ainda dão conta de atos de incêndio contra a bandeira Whipala, símbolo das nações originárias, os quíchuas e os aimarás, para os quais tal representação é a expressão do pensamento filosófico andino.

    O golpe, que tenta se justificar com base em ilações de fraudes no percentual da vantagem obtida por Morales no primeiro turno das eleições bolivianas, é edificado, contudo, nesse sentimento de fundamentalismo religioso, de destruição de tradições e de “conversão” de todo um povo.

    A ultradireita – que fortalece-se em todo mundo, vide o resultado das eleições espanholas deste final de semana com um crescimento enorme do ultraconservador Vox nas urnas – segue em marcha para dar respostas às recentes vitórias das forças de esquerda, como triunfo do kichnerismo e do lulismo na Argentina e no Brasil e a revolta do povo chileno nas ruas.

    As Forças Armadas da Bolívia, prontamente apoiadas pelo governo Bolsonaro e pelos generais que compõem as fileiras do bolsonarismo (atual instrumento de atuação da ultradireita brasileira), iniciaram logo cedo a perseguição aos governistas, com prisões, violência, saques e ameaças veladas. Também estão, até a finalização desse texto, em perseguição a Evo, que tenta chegar até o México para receber lá asilo político.

    Situação grave? Imaginemos, então, que o Brasil, possuidor das mesmas características de avanço do conservadorismo evangélico neopentecostal, e com a assunção a passos largos de um Estado miliciano, já tem tido que lidar com declarações dos filhos do presidente Jair Bolsonaro a favor de “um novo AI-5”.

    Os fatos que se desenrolam na vizinhança atestam que tais discursos não são desarticulados. E geram uma reflexão importante de se responder: O que será de nós caso a tendência que emerge de forma concreta da Bolívia consolide-se também por aqui?

    A aliança conservadora-religiosa-paramilitar já está formada e em atuação no Brasil, infestando a estrutura do Estado e vencendo algumas batalhas todos os dias.

    Sem mostrar-se com nitidez, e ainda às sombras do patrimonialismo que domina o Brasil, essa coalizão ultraconservadora já foi capaz de matar a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, de destruir templos de candomblé e umbanda na Baixada Fluminense numa combinação igreja-tráfico, de incentivar a morte da população LGBTQI+, de pregar a catequização violenta dos povos indígenas em pleno ano de 2019, de defenestrar o direito dos quilombolas ao território, de apostar nas queimadas na Amazônia, por meio do qual ataca os povos tradicionais da floresta, entre outros golpes diários.

    Resta saber qual impacto o avanço de um grupo golpista de características idênticas na Bolívia terá sobre a nossa conjuntura política.

    Terão coragem de escancarar ainda mais a disposição que possuem para o golpismo, o autoritarismo e o genocídio? Sairão definitivamente do armário em que tentam se esconder mesmo com a porta entreaberta?

    É difícil saber, mas sem dúvida o incentivo à radicalização ultraconservadora nunca foi tão excitante para os cães que entram no cio ao menor sinal de coturnos por perto.

     

    *Yuri Silva é jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado – Unijorge, coordenador nacional do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e membro do Conselho Editorial 4P. Foi repórter de Cidade, Política, Economia e outras editorias no jornal A Tarde durante quatro anos e meio, especializando-se na cobertura de temas relacionados à pauta negra e das religiões afro-brasileiras. Também trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo, o Estadão, como correspondente na Bahia durante as eleições presidenciais e estaduais de 2018. Atualmente, atua como consultor na área de comunicação política, para meios digital e offline, além da paixão que mantém pela reportagem

  • Guerra da mídia com a milícia pode ser a antessala do Brasil distópico

    Guerra da mídia com a milícia pode ser a antessala do Brasil distópico

    Por Gabriel Rocha Gaspar*
    A mídia liberal declarou guerra ao bolsonarismo com a cobertura da prisão dos assassinos da Marielle. E é uma guerra que a mídia dificilmente tem condições de ganhar.
    Essa cobertura pode decretar o fim da mídia como conhecemos e pavimentar o caminho de um estado policialesco fascista de verdade. Uma guerra aberta Mídia x Milícias será feia de ver. E talvez a mídia não esteja levando em conta que o império está com as milícias. Não existe mais império liberal. Se a Globo, por exemplo, conta com uma aura de liberalismo vindo ao resgate, vai dar ruim.
    Os Estados Unidos não têm qualquer compromisso com democracia em colônia e sempre se colocaram ao lado de milícias. Foi assim na Nicarágua, na Colômbia, no Iraque, no Afeganistão, na Líbia. Vai ser assim na Venezuela. E se o passado condena, a perspectiva de futuro do complexo industrial militar é ainda mais assustadora.
    No final de 2016, o Intercept vazou um vídeo interno do Pentágono, que fazia um prognóstico da guerra do futuro. Neste vídeo, países em desenvolvimento – e obviamente ricos em recursos naturais, como Brasil, Venezuela, Angola, Congo etc. – aparecem como Estados falidos pós-institucionais (tipo a Líbia), onde gangues e milícias oferecem as únicas oportunidades de emprego e estabelecem à força regras básicas de controle social.
    As guerras locais acontecem por conta das desavenças e da própria estrutura extra-institucional destes grupos. E as guerras internacionais são operações de ocupação, o que  escancara sua intencionalidade extrativista. Serão provavelmente assaltos militares constantes aos recursos, mirando a manutenção do fluxo de exportação do sul para o norte em meio ao caos.
    É guerra constante, amparada por drones e armamentos robóticos autônomos – o que, por si só, prevê a obsolescência do direito internacional e de organismos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas. Basicamente, o que o império antecipa para o futuro – cuja inexorabilidade faz questão de deixar clara, com o uso cínico da máxima thatcheriana “there is no alternative” (não há alternativa) – é capitalismo cru, sem qualquer máscara ideológica.
    Quanto mais desorganizado o Estado subalterno, melhor o funcionamento deste nível de exploração. Basta ver a quantidade de Estados que foi absolutamente destruída pelo império nos últimos anos. Alguém no norte perdeu dinheiro? Só quem já não tinha.
    É uma perspectiva de futuro que escancara o quão desimportantes para o centro do capitalismo são escândalos regionais, infrações de direitos humanos e outras bobagens. Escândalo regional dá trabalho do ponto de vista simbólico, mas o caos facilita o extrativismo – o que é fundamental num cenário de escassez sistêmica de recursos.
    Este panorama de reorganização do capitalismo em sua fase distópica deixa poucas esperanças para postulados liberais como a pluralidade midiática. Aliás, as velhas instituições liberais não são sequer tratadas como algo digno de conservação pela face publicitária da distopia. Donald Trump, por exemplo, chama o conjunto da imprensa de “fábrica de fake news”; Bolsonaro ganhou a eleição com o mesmo discurso.
    Por isso, nesta guerra com a milícia, a balança não é tão favorável aos conglomerados midiáticos quanto parece ser. Até porque, vale lembrar que esta briga parece ter sido instigada pelo lado miliciano: o fato do Jair Bolsonaro ter ameaçado jornalista na véspera da prisão dos suspeitos (em um tuíte que, por sinal, tem a cara do mentor do neofascismo, Steve Bannon) pode bem ter sido uma isca, que a imprensa mordeu. Em 140 caracteres, Bolsonaro atiçou os ânimos para a mídia bater com força total e criar um cenário de animosidade que bem pode aprofundar o ódio de que se alimenta o fascismo.
    Ao invés de assimilar a ofensiva midiática a um iminente desmoronamento do governo Bolsonaro, se empolgar com as capas da Veja e da Istoé ou com a ampla cobertura da Globo News aproximando o assassinato de Marielle do Planalto, a esquerda deveria olhar para cima. As bases do fascismo não estão abaixo da administração, estão acima. Mesmo que o presidente tenha sido respaldado pelo voto, a estrutrura do fascismo é aristocrática e não democrática.
    Talvez essa declaração de guerra seja a deixa que se esperava pro descortinamento de um governo de fato autoritário e a destruição completa das instituições liberais. A tendência é de derrota do liberalismo tupiniquim, porque ele é uma entidade de fachada em um mundo que não precisa mais de máscara. Hoje, o capitalismo não tem nenhuma necessidade de fingir humanismo.
    Para quem acha que milícia não é suficientemente sofisticada para capitanear esta trama, é preciso atentar para o fato de que a questão fundamental não é o nível de organização das milícias, mas de oposição global a essa perspectiva distópica de imperialismo, que vem se consolidando pelo mundo em uma velocidade extraordinária.
    Temos que olhar de perto a reação do governo e de seus asseclas formais e informais a essa cobertura. E, ao mesmo tempo, analisar as ações e reações do judiciário no processo, tanto em questões processuais quanto de narrativa. E, sobretudo, devemos fazer a mais profunda e decidida oposição a uma invasão armada da Venezuela, que configuraria a consolidação deste projeto distópico em um país vizinho, cercado por dois Estados reacionários com forte presença miliciana (Colômbia e Brasil).
    O momento é volátil. E a esquerda, como campo político, tem que se preparar para o pior cenário possível.
    Vídeo do Pentágono:
    *Gabriel Rocha Gaspar é jornalista e mestre em literatura pela Sorbonne Nouvelle
  • “Show de injustiças” contra dezenas de pagodeiros pobres da periferia do Rio

    “Show de injustiças” contra dezenas de pagodeiros pobres da periferia do Rio

    Especial para os Jornalistas Livres

     

    As centenas de pessoas presas na operação em Santa Cruz têm apenas uma coisa em comum: curtem Swing&Simpatia e Pique Novo. São fãs de pagodes – no popular, pagodeiros.

    Era tudo normal. Show em uma das principais vias de Santa Cruz, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, o mais distante da região central da cidade. Anúncio no face, nas páginas da banda, áudio no zap e na rádio Costa Verde. Venda de ingresso individual. De camarote. Revista na entrada. Um sítio acostumado a receber eventos, de tudo que é tipo: festas de criança, cultos evangélicos e, como se sabe, shows de pagode. Não havia armas à vista. Cerveja no bar. Pagode no palco.

    As centenas de testemunhas (ou sobreviventes) daquela noite contam a mesmíssima história: 3h30 de sábado dia 7, auge da lotação da festa, polícia entrou, rajadas de fuzil, tiroteio, mortos, todos os demais no chão, todos os homens para um lado, cara no chão, todas as mulheres para outro (sob gritos de piranha e vagabunda). Alguns fogem pelo muro de trás da festa. Banda, garçons, funcionários da festa liberados. Chegam mais policiais. Carros estacionados começam a ser arrombados. Armas, inclusive fuzis, são encontradas nos veículos. Pessoas com mandado de prisão expedidos escapam. Pessoas sem qualquer mandado ou investigação são presos. Cerca de 20 são liberados. Não cabem todos em dois ônibus. 159 são levados: encarregado de supermercado, administrador de empresa, funcionário da Michelin, gari da Comlurb, metalúrgico, estudante do ensino médio, motorista de uber, DJ, empregado doméstico, técnico em radiologia, concurseiro da Marinha, camelô de Santa Cruz, um artista de circo, um jovem autista. Tem preso de 18 anos que foi numa festa pela primeira vez. Tem preso de quase 60, que foi comemorar os 60 anos da irmã.

    Delegado fala em dois anos de investigação. Pede a prisão de todos, diz que estavam em “festa da milícia”, que fazem parte da milícia. Secretário de Segurança vai à Cidade da Polícia poucas horas depois. Festeja com 159 medalhas na mão: “operação mais exitosa”. Interventor comemora. Ministro da Segurança Pública ameaça: “precisam explicar o que estavam fazendo em festa de bandido”. Presidente comemora operação “exemplo”. Pronto: a intervenção, finalmente, alcança a manchete que sonhava. No momento de pressão sobre as milícias, tcharaaaan a maior prisão de milicianos da história. Falou-se muito em mandado de busca e apreensão coletivo. Não se autorizou. Na prática, o que se viu foi um mandado de captura coletivo.

    O Judiciário (também em intervenção?) mantém a prisão. A audiência de custódia para avaliar a prisão de cada um é feita coletivamente. Desembargadora não ouve todos e expede prisão preventiva para todos. Habeas Corpus negados. Famílias, não podem ter contato com seus amores e mães se desesperam, se despedaçam e, com documentos nas mãos, pedem socorro em praça pública, na frente do Tribunal de Justiça no centro, no juizado de Santa Cruz, na sala da Defensoria. Avó de um preso morre. Famílias falam em “pesadelo”, “filme de terror”, “não consigo mais comer ou dormir”.

    Dentro da prisão, desesperados, presos dão carinho uns aos outros. O jovem acrobata, com viagem marcada para a europa, treina piruetas sobre os amigos no pátio de Bangu 9. O amor resiste, o grupo se une. Caetano Veloso, Wagner Moura e Marcos Frota se solidarizam com o artista. Justiça concede a liberdade.

    Ele sai. Agora a imprensa dos grandes canais aparece. Coletiva. O defensor público fala que nunca viu nada igual “um show de pagode que terminou num show de injustiça”. O jovem agora livre prova que não é bandido, que seus amigos não são bandidos, dezenas de pais fazem o mesmo, trazendo histórias coerentes e apresentando contradições constrangedoras: por que as mulheres não foram presas também? Por que liberaram a banda? Como alguém que precisou pedir para mãe R$10 para ir na festa é um miliciano? Como um sítio de milicianos realiza encontros da igreja?

    Muita coisa está em xeque e muitas perguntas ainda precisam ser respondidas nesta história de Santa Cruz, os primeiros ossos aparentes de uma caveira chamada intervenção. Talvez a maior de todas seja: é proibido existir em locais dominados por grupos criminosos no Rio de Janeiro? É proibido viver e ir num pagode na Rocinha? Isso significa ser da facção X? É proibido viver e ir num pagode em Santa Cruz? Isso significa ser da milícia Y? Qual a independência da Justiça depois da pressão das autoridades do projeto intervencionista? A Justiça Estadual irá peitar a Intervenção Federal para mostrar o óbvio? Ou a Justiça também está sob intervenção?

    Outras tantas perguntas ficam guardadas, para ser mais seguro.

    A cada dia que passa, oficializa-se a criminalização do viver no Rio de Janeiro. A criminalização da pobreza já ultrapassou as ruas e becos das favelas, agora está no centro dos grandes bairros pobres.

    Por fim, sempre ela. A Imprensa oficialesca. Mesmo 16 dias depois dos shows de Swing&Simpatia e Pique Novo, mesmo depois de tanto choro sincero derramado em nossas caras, mesmo depois das robustas contradições apresentadas, a manchete do maior portal de notícias do país, o G1, ainda se refere ao evento como “festa da milícia”. Vão se fuder.

     

    Leia mais sobre a prisão dos 159 pagodeiros de Santa Cruz aqui