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  • “A Nossa Bandeira Jamais será Vermelha” é o filme da desgraça brasileira. E a culpa é da Globo!

    “A Nossa Bandeira Jamais será Vermelha” é o filme da desgraça brasileira. E a culpa é da Globo!

    O documentário “A nossa bandeira jamais será vermelha”, dirigido pelo jornalista Pablo Guelli, é mensagem na garrafa lançada no mar de desesperança em que se transformou o Brasil. Só daqui a anos, quando o País recuperar a capacidade de se indignar, será possível entender, em toda sua extensão, a gravidade das denúncias contidas no filme.

    Fraudes, empulhação, mentiras. O trabalho sujo da grande mídia brasileira. É essa a matéria-prima de que é feito o filme – todo ele dedicado a tentar explicar como chegamos a essa nauseante indiferença em relação à barbárie representada por Jair Bolsonaro (e daí essas 156 mil mortes por covid-19?); por fundamentalistas religiosos que preferem a morte de uma menininha estuprada a salvá-la de uma gravidez que não cabia nela; por incendiários do cerrado, da floresta Amazônica e do Pantanal, aos quais o sofrimento da natureza é apenas cena de videogame; e por fascistas em geral, que agora (Graças a Deus! Amém, Jesus!) podem comprar fuzis do Exército, cuja venda acaba de ser facilitada pelo governo federal.

    Não adianta a Rede Globo, a Folha, a Veja fingirem ser oposição a tudo o que aí está. Eles são parte do monstro bolsonarista. Foram elas, e a desmoralização que provocaram com seu turbilhão de mentiras, despejado 24 horas por dia, todos os dias, ao longo de 16 anos, que criaram a desconfiança na Democracia, na Política, na Imprensa, na Justiça, no País, nos Brasileiros. Só podia dar no que deu.

    Tornamo-nos um caso clínico de doença social, de fobia às diferenças, de maníaca disposição para o ridículo, de negação da realidade e da consequente denúncia dessa conspiração internacional chamada… Ciência.

    “A nossa bandeira jamais será vermelha” é como uma sala do Instituto Médico Legal. Está lá, esticado na mesa de autópsia, o corpo do Brasil alegre e inzoneiro, do Brasil lindo e trigueiro, do Brasil, samba que dá, bamboleio que faz gingar, da terra de Nosso Senhor – e de Lula também.

    O filme convocou uma junta de médicos legistas encarregados de investigar a causa-mortis daquele Brasil. Dos depoimentos consternados de Glenn Greenwald, Noam Chomsky, Luís Nassif, Xico Sá, Jessé Souza, Ricardo Melo, Ana Magalhães, Igor Fuser, Tales Ab’Saber e Rodrigo Vianna, emerge uma só conclusão. Foi a Rede Globo que matou o Brasil generoso que era o ideal de País saído da Constituinte de 1988. Foi a Rede Globo e seus comparsas menores, representados pela Editora Abril, pela Folha de S.Paulo, pela TV Record etc.

    “Eu nunca vi um país com uma mídia dominante tão fraudulenta quanto a mídia brasileira”, resumiu Glenn Greenwald, do alto de seu prêmio Pulitzer, a suprema glória da imprensa ocidental.

    Greenwald foi o jornalista responsável pelo desnudamento da Operação Lava Jato e do juiz Sérgio Moro, em reportagens publicadas pelo “The Intercept Brasil”, e o cara que tornou pública a imensa operação de espionagem global da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA). Ele mostrou que o Grande Irmão existe e a privacidade, não. Que ninguém está a salvo dos olhos do Império.

    Todos os depoimentos colhidos no filme tratam do caráter fraudulento da cobertura jornalística da grande imprensa brasileira, interessada antes de mais nada em assassinar as reputações dos integrantes do Partido dos Trabalhadores – e de Lula, em particular. E, depois, em criminalizar, processar, prender e, por fim, fazer desaparecer o maior partido de esquerda do Ocidente. E tudo bem que isso ocorresse ao arrepio da lei, em conchavos com o juiz Sérgio Moro e com os golden boys treinados por agentes americanos especializados na desestabilização de governos democraticamente eleitos.

    A Globo hoje resmunga que está sendo atacada por Bolsonaro. Tadinha! Isso acontece porque ela mesma cavou a imensa cratera em que sua reputação de “mídia profissional e isenta” foi enterrada. Cavou com manipulações, com desfaçatez, com âncoras fazendo caras e bocas de indignação, a cada vez que pronunciavam as palavras PT, Lula ou Dilma. Cavou quando orquestrou uma manipulação em massa que destruiu a confiança da população na imprensa tradicional e jogou o país em direção ao fascismo.

    Bolsonaro, que de bobo não tem nada, não perderia a oportunidade de solapar o incontrastável poder que a Globo tem sobre o Brasil (por que se manteria sob o tacão, podendo livrar-se dele?). E o presidente fascista também engrossou o coro brizolista: “O Povo Não é Bobo. Abaixo a Rede Globo!”

    Não deixa de ser irônico: Bolsonaro, o maior beneficiário de todas empulhações, fraudes, falsificações, ardis, desonestidades e tapeações cometidos pela grande imprensa brasileira, agora se transforma no maior algoz do algoz do PT, de Lula e de Dilma.

    E o resultado está aí: A Globo demitindo suas maiores estrelas do noticiário e da teledramaturgia, pra fazer caixa! O agravamento da crise eterna do SBT, a circulação decrescente dos grandes jornais e revistas. A falência da Editora Abril. Sobram a TV Record e o lumpesinato em forma de televisão, que é a RedeTV ou a Bandeirantes.

    O jornalista Pablo Guelli, diretor de "A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha" - Foto Divulgação
    O jornalista Pablo Guelli, diretor de “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha” – Foto Divulgação

    Foi o jornalista Pablo Guelli quem me chamou a atenção para o nome do documentário que o inspirou a realizar o filme que acaba de apresentar. Era um filme produzido pela britânica BBC, chamado “Muito Além do Cidadão Kane”, de Simon Hartog, exibido em 1993 pelo Channel 4, emissora pública do Reino Unido. O documentário mostra as relações entre a mídia e o poder do Brasil, focalizando a figura de Roberto Marinho e comparando-o a Charles Foster Kane, personagem criado em 1941 por Orson Welles para o filme “Cidadão Kane”, drama baseado na trajetória de William Randolph Hearst, magnata da comunicação nos Estados Unidos.

    O nome escolhido para o documentário sobre Roberto Marinho foi “Muito Além do Cidadão Kane”. A chave está no “Muito Além…”, ressaltando que o poder de manipulação e controle de Marinho sempre foi muito maior do que o do próprio Cidadão Kane. E foi, já que Hearst viveu em um país com milhares de jornais, revistas, TVs e rádios, competindo entre si, enquanto Marinho tornou-se o maioral entre apenas seis outros chefões da mídia brasileira – um caso espetacular de hiper-concentração da propriedade de meios de comunicação.

    Mas talvez os herdeiros de Roberto Marinho tenham exagerado na fórmula, tornando-a antieconômica, algo que nunca ocorreu com Hearst. Os jornais de Hearst eram sensacionalistas? Eram. Mentiam? Mentiam. Manipulavam? Sim. Mas todo o espetáculo que propiciavam tinha como objetivo aumentar as tiragens, a receita publicitária e, ao final, a margem de lucro do negócio.

    No Brasil, a espetacularização do linchamento da esquerda e do PT, de Lula e de Dilma, se foi eficiente para arrancar do poder o partido vencedor em quatro eleições consecutivas, ao mesmo tempo rasgou as relações de confiança que precisam existir entre mídia e consumidor. E isso foi feito a um ponto em que o negócio, tendo-se tornado deficitário, está em xeque.
    Ou seja, a continuidade até o limite da exaustão do espetáculo farsesco destruiu boa parte da credibilidade da grande mídia. E a culpa é dela mesma.

    Do filme de Pablo Guelli só sobra a mídia independente, multifacetada, carente de equipamentos, pobre. São os pequenos veículos-quixotes, que sobreviveram à indiferença do PT para com a centralidade das narrativas na definição do projeto coletivo de País. Sobram blogs e sites de esquerda, que sobrevivem hoje às redes de ódio mantidas pelo fascismo bolsonarista. Sobra a vontade desesperada de deixar para o futuro uma explicação generosa com o povo brasileiro, que não acabe depositando mais uma vez sobre os ombros desses milhões de homens e mulheres pobres, oprimidos e manipulados, a responsabilidade por sua própria desgraça. Não, não é culpa do povo. É dos mentirosos compulsivos e poderosos, em primeiro lugar a TV Globo. Por isso, mais uma vez: “O Povo Não é Bobo! Abaixo a Rede Globo!”

    Serviço: O filme “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha” estreou no dia 22 de outubro, nas plataformas NOW, iTunes, Vivo, Microsoft e Looke.

    Avaliação: Imprescindível

    Veja aqui a entrevista exclusiva feita com o diretor do filme “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha”. Pablo Guelli:

  • O que de fato importa? As vidas negras ou as mortes negras?

    O que de fato importa? As vidas negras ou as mortes negras?

    Porque os corpos negros só se tornam relevantes quando alguma tragédia acontece?
    A imagem consegue por si só contar inúmeras histórias, que nos ensinam e nos forjam dentro de uma estrutura social. Pensar o modo que temos vivido se dá em uma busca constante por conteúdos visuais, somados a uma defasagem educacional gigante e proposital em nosso país. Desde o fim de maio, circulam por todo o mundo imagens do assassinato de George Floyd, causando uma grande onda de denúncias de violência policial e ações de promoção de causas ligadas ao assunto. A questão que se levanta com tal movimento é o que de fato importa: as vidas ou as mortes negras?

    Por Marcelo Rocha e Matheus Alves*

    Durante os meses de junho e julho, vários veículos de mídia expandiram os debates sobre as questões raciais em seus editoriais, capas e artigos, na busca de suprir violências de mais de 400 anos de extermínio. Fato que tem sua importância no contexto histórico, porém se dá mais uma vez após momentos de violência, repetindo uma estrutura de banalização do mal, pois os casos seguintes se tornaram apenas virais na internet, como na cidade de São Paulo, o caso da comerciante de 51 anos que teve seu pescoço pisoteado pelo soldado da Polícia Militar João Paulo Servato, durante uma abordagem.

    Sabemos que uma das bases da nossa educação é a imagem. Partindo disso, essa construção imagética da violência produz narrativas que por muitas vezes reduzem as ações do povo preto às violências sofridas, enquanto processo de documentação. A pesquisadora norte americana bell hooks, em seu livro “Olhares Negros, Raça e Representação”, faz uma síntese de como essas imagens reforçam a violência, pois não criam outras possibilidades concretas para esse povo e o condicionam à violência, fato que a repercussão da imagem no Brasil, causa um efeito reverso, reproduzindo as ações praticadas. Pensar que a imagem de um policial sufocando um homem negro nos EUA fora reproduzida quase que integralmente por um outro policial no Brasil, nos deixa com a reflexão de que isso pode ser uma demonstração de identidade com a violência praticada contra corpos negros. 

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Compreender a importância da valorização das vidas negras se faz necessário não apenas quando uma delas é perdida ou colocada em situação de vulnerabilidade. É algo que precisa ser construído cotidianamente através da promoção da cultura e da diversidade do povo, da inserção destes em espaços de criação de narrativas e decisão política e editorial. A construção da documentação do povo preto precisa considerar os mais diversos pontos de vista, inclusive sua própria história, como nos provoca a filósofa Sueli Carneiro sobre essa urgente tarefa de manter o pensamento negro vivo. 

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Há de lembrar que as imagens desde o período colonial têm um papel de manutenção da supremacia branca no Brasil, que apesar de sempre ter existido, agora demonstra sua faceta de forma mais explícita através de ações de extermínio. Ao olharmos toda a história brasileira nos museus e galerias, as únicas formas de representação negra ainda reproduzem essas violências estruturais. Se fazem necessárias alternativas que ultrapassem este lugar de denúncia, mas que construa também narrativas de futuro para as pessoas pretas, vide o trabalho e esforço que tem sido levantado pelos movimentos negros, como o MNU e o Ilê Aiyê, nos anos 70, com a apropriação e ressignificação de termos e figuras para a promoção da autoestima negra nos mais diversos segmentos da sociedade, como na arte e na política.

    Mortes negras: quantas mais?

    Façamos memória das potências negras que já nos deixaram, e que seguem construindo narrativas de transformação, como a própria vereadora Marielle Franco nos alertou pouco antes de ser assassinada: “Quantos mais têm que morrer pra essa guerra acabar?”. Esta frase não fala apenas sobre contar corpos, mas sobre a construção de um projeto de manutenção das vidas negras, onde a necropolítica que a supremacia branca nos determina não seja condicionante da forma que vivemos.

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    É necessário um processo de ruptura com a normalização dessas mortes, que não partam apenas do lugar momentâneo, mas da construção efetiva de processos de reestruturação social, que sejam interseccionais, como tem sido a Lei Federal de nº 10.639/2003 para a educação brasileira, em todos outros espaços de poder, uma derrubada das estruturas coloniais que ainda se mantém de pé.

    A falácia da democracia racial é grande responsável por promover este sentimento de cooperação e exclui a necessidade de entender a importância dos olhares pretos estamparem de forma positiva os espaços de mídia e os imaginários da sociedade. Por isso, é essencial que haja investimento e reconhecimento, para que sejam efetivados os esforços promovidos por artistas, ativistas e tantas outras figuras negras. Onde possam ocupar espaços na sociedade durante suas vidas. Aqui podemos citar trabalhos como do jovem fotógrafo alagoano Marcelino Melo “Nenê”, 25, que tem documentado de outra forma territórios marcados pela violência na região do Campo Limpo, ou mesmo o do antropólogo Hélio Menezes, 34, através de suas curadorias em espaços das artes, buscando ressignificar as identidades negras em exposições de obras produzidas por artistas negros. Ou, como os dois jovens negros que assinam este artigo – que facilmente poderiam ser manchetes sobre mais um extermínio do estado.

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Texto originalmente publicado pela coluna PerifaConnection, na Folha de S.Paulo.

    Marcelo Rocha, 22, é fotógrafo, ativista em educação, negritude e mudanças climáticas, graduando em Ciências Sociais, foi curador das mostras “Humano Cidade: Olhares além da medida” e “QUEBRADA: São Paulo, na visão dos cria”. Cria da cidade de Mauá, São Paulo.

    Matheus Alves, 22, é fotojornalista freelance baseado em Brasília (DF). Tem seu trabalho dedicado a documentar Movimentos Populares de luta pela terra e direito à cidade. Premiado pelo Concurso Fotográfico “Combater os Retrocessos: Existir e Resistir à Retirada de Direitos”, promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos em 2019. Colabora com a rede Jornalistas Livres.

  • A oposição conservadora da mídia da ‘Casa Grande’ e as fake news

    A oposição conservadora da mídia da ‘Casa Grande’ e as fake news

     

    Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

    Por falta de segurança para realizarem seu trabalho, os repórteres das TVs Globo e Band, da Folha de S. Paulo e do portal UOL não vão mais cobrir a entrevista matinal de Bolsonaro, na saída do Palácio da Alvorada. A decisão foi tomada por essas empresas, uma vez que o “cercadinho” destinado à imprensa fica colado ao local de onde os apoiadores do “Mito”, alguns extremamente exaltados, ameaçam os jornalistas.
    O próprio Bolsonaro já ameaçou cassar a concessão da TV Globo e cortar a publicidade do governo federal na “Folha”. A cada dia, Bolsonaro vem subindo mais o tom das críticas aos profissionais e aos veículos que divulgam notícias que o desagradam. Enquanto isso, a reação da mídia brasileira, quando acontece, se mantém tímida e circunscrita a alguns poucos assuntos.
    A título de exemplo, enquanto a mídia internacional, há meses, chama Bolsonaro pelo
    que ele realmente é – um presidente fascista que está destruindo o Brasil – aqui, a mídia hegemônica, também conhecida como mídia da “Casa Grande”, insiste em tratá-lo por presidente. A mídia da “Casa Grande”, por exemplo, não faz qualquer menção à eleição fraudada de 2018. Fraudada por fake news e também pelas matérias tendenciosas e distorcidas por ela publicadas ao longo de anos.
    Nas redes sociais e em inúmeros grupos de Whatsapp, as questões envolvendo Bolsonaro e essa mídia estão cada dia mais polarizadas. De um lado, os apoiadores do capitão reformado insistem em afirmar que a Rede Globo e qualquer outro veículo que o critica “é comunista” e, de outro, os que defendem que essa mídia mudou.
    Já em locais sombrios da internet, continuavam sendo produzidas e divulgadas fake news sobre os mais diversos assuntos. Estavam em alta as “fakes” dando como certa a intervenção militar, as que insultavam os ministros do STF e as que desacreditavam a ciência e a quarentena em se tratando do combate ao covid-19.

    Razões que levaram o ministro do STF, Alexandre de Moraes, no âmbito do processo
    aberto naquela Corte em 2019 para investigar o uso de fake news e a disseminação de
    discursos de ódio, ter determinado, na quarta-feira (27/5), a busca e apreensão de
    material junto a 29 suspeitos – entre empresários e blogueiros -, ter quebrado os sigilos
    fiscal e bancário deles (de agosto de 2018 a maio de 2020) e determinado que sete
    parlamentares prestem esclarecimentos.
    Entre os suspeitos que tiveram seus sigilos fiscal e bancário quebrados estão o
    empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan, o dono da rede de academias Smart
    Fit, Edgard Gomes Corona, Wiston Rodrigues, que coordena o Bloco Movimenta Brasil,
    e a blogueira Sara Winter. Os quatro, bolsonaristas de primeira hora. Todos devem ser
    ouvidos pela Polícia Federal nos próximos dias.
    O resultado disso tudo tem sido uma enorme confusão na cabeça do cidadão comum.
    E não é para menos. Daí a importância de se entender esse aparente novo
    posicionamento de parte da mídia corporativa brasileira, o impacto das fake news
    nesse contexto e o que isso tem a ver com os interesses da oposição conservadora.

    Racha das TVs

    Essa é uma das poucas vezes, em mais de três décadas, que as seis famílias que detém concessões de TVs no Brasil (Marinho, Macedo, Santos, Saad, Dallevo Jr. e Carvalho) apresentam divergências e estão rachadas. A Globo, mesmo apoiando a agenda ultraliberal do governo (Estado mínimo, retirada de direitos sociais, privatizações, subserviência aos Estados Unidos) tem sido crítica a determinadas posturas de Bolsonaro em especial agora, no que diz respeito à pandemia. Já as demais têm feito de tudo para se manterem numa boa com o governo.
    O espaço de emissora “chapa branca”, do qual a Globo foi titular durante tanto tempo, passou a ser ocupado pela TV Record, do empresário e autointitulado bispo, Edir Macedo. O apoio explícito de Macedo e de sua igreja a Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018 lhe valeu as boas graças e gordas verbas oficiais desde a posse do ex- capitão. Foi para a Record que Bolsonaro deu a primeira entrevista depois de eleito, desbancando um privilégio sempre concedido à Globo.

    As brigas entre os Marinho e Edir Macedo não são de agora e antes se pautavam mais
    por questões específicas do que por problemas políticos. Os Marinho sempre tiveram
    uma relação espúria com o poder público, e Macedo, uma relação promiscua com a
    Igreja Universal do Reino de Deus. Os ataques que uns faziam aos outros não eram
    mentirosos, mas o problema é que expunham milhares de telespectadores aos interesses privados desses dois grupos, valendo-se de uma concessão pública, como são os canais de TV.
    Essa guerra, onde não há “mocinhos”, acabou chegando à política e tem atingido a Globo e a própria saúde da população brasileira. Um exemplo disso aconteceu com a série que o Jornal Nacional estreou há poucos dias, na qual apresenta depoimentos de médicos e profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate ao coronavírus no país.

    Em um desses depoimentos, houve uma confusão por parte do JN, ao apontar um dos hospitais no qual uma médica trabalha como não possuindo condições adequadas de atendimento aos pacientes. Foi o que bastou para que a TV Record lançasse críticas à série. Críticas replicadas por muitos internautas como sendo prova de “fraude” e de “mentira” por parte da Globo e que contribuíram para alimentar o submundo das fake news.

    A pressão foi tanta que a Globo, que raramente leva ao ar um “erramos”, em editorial lido por William Bonner, dois dias depois, explicou o que aconteceu e pediu desculpas à médica, ao hospital e aos telespectadores.

    O SBT vem em seguida à Record no quesito apoio ao governo. Como se não bastassem os elogios rasgados (pagos a peso de ouro) que Sílvio Santos tem feito dentro e fora de seu programa a Bolsonaro, no sábado (23/5) ele chegou ao cúmulo de cancelar a edição do principal noticiário de sua emissora, o “SBT Brasil”, depois de ouvir reclamações do governo após a edição do telejornal do dia anterior, quando foi mostrado o execrável vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, aquela onde sobraram palavrões e ameaças e faltou um mínimo de espírito público.

    No lugar do telejornal, sem qualquer aviso prévio de mudança, o SBT exibiu a reprise do programa “Triturando”. A descarada censura empresarial de Sílvio Santos é um caso único mesmo em se tratando da mídia da “Casa Grande” e está sendo criticada até pelas emissoras afiliadas ao SBT, que a consideraram “vergonhosa”.
    Já a TV Bandeirantes e Rede TV vêm alternado elogios e críticas a Bolsonaro, conforme as verbas publicitárias que recebem. Isso ficou nítido na fala do presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, durante a reunião ministerial do dia 22 de abril, em que afirmou que a Band “queria dinheiro”.
    A frase dá a entender que o banco havia recusado um pedido de ajuda da emissora, pois Guimarães emendou dizendo que “acho que a gente tá com um problema de narrativa. Hoje de manhã, por exemplo, o pessoal da Band queria dinheiro. O ponto é o seguinte: vai ou não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Ah, não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Passei meia hora levando porrada, mas repliquei”.
    Considerado porta-voz informal de Bolsonaro, o apresentador do programa policialesco “Brasil Urgente”, José Luiz Datena, de maior audiência na Band, reagiu com indignação e criticou as palavras do presidente da Caixa. Chegou mesmo a anunciar que “nunca mais” entrevistaria Bolsonaro, atitude que, para muitos, não passou de jogo de cena, certo de que os brasileiros têm memória curta.

    Dos veículos da “Casa Grande”, apenas a Folha de S. Paulo, durante a campanha eleitoral de 2018, com uma série de reportagens de Patrícia Campos Mello, chegou a fazer críticas ao processo. A série dava conta de que dezenas de empresários brasileiros, que apoiavam Bolsonaro e haviam comprado pacotes de disparos de mensagens contra o PT no WhatsApp às vésperas do primeiro turno, se preparavam para repetir a prática no segundo turno das eleições. A prática é ilegal, pois se trata de doação de campanha por empresas, o que é vedado pela legislação eleitoral. Some-se a isso que o conteúdo dessas mensagens era mentiroso. O que constitui crime.

    A grave denúncia da “Folha” acabou caindo no vazio, pois não teve repercussão nos
    demais jornais como Globo e Estado de S. Paulo e menos ainda nas TVs. O próprio
    Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que havia se comprometido publicamente a combater
    e punir as fake news durante as eleições, não tomou qualquer providência.
    Os chamados “jornalões” que tanto combateram os governos petistas, por sua vez, foram unânimes ao apoiar a retirada de direitos da população brasileira, a exemplo das reformas Trabalhista e da Previdência, nos governos Temer e Bolsonaro, apresentadas por eles como “fundamentais e necessárias” para a “geração de empregos e retomada do crescimento”.
    Esses mesmos jornais, na maioria das vezes, fizeram vistas grossas não só às declarações como as próprias ações do governo Bolsonaro no que diz respeito à destruição da Amazônia, à perseguição aos índios, mulheres, negros, LGBTs, professores, artistas, cientistas, aposentados e funcionários públicos. Perseguição às quais se somam agora as contra governadores e prefeitos que criticam Bolsonaro e resistem ao “retorno às atividades normais” em plena pandemia. O que esses jornais e a própria Globo não imaginavam é que poderiam ser a próxima vítima.
    Como a perseguição chegou também a alguns veículos da “Casa Grande”, era de se esperar que, finalmente, passassem a fazer jornalismo. Vale dizer: divulgar o que está acontecendo e ouvir sempre os vários lados envolvidos na questão. Mas não é o que se vê. Nesse sentido, os casos da TV Globo, do Estado de S. Paulo e da própria “Folha” são emblemáticos.
    Na edição de quarta-feira (27/5) o Jornal Nacional trouxe uma longa reportagem sobre a decisão do ministro Alexandre de Moraes no que diz respeito ao combate às fake news e aos discursos de ódio. Os mandados de busca e apreensão atingiram em cheio apoiadores de Jair Bolsonaro e têm tudo para chegar ao Palácio do Planalto.
    Para repercutir a decisão, sem dúvida muito importante para o futuro da democracia
    brasileira, o JN ouviu quase uma dúzia de pessoas: entrevistou os presidentes da Câmara e do Senado, além de parlamentares de diversas agremiações e de especialistas.
    Ficou de fora dessa repercussão, no entanto, o nome mais importante: o do candidato
    Fernando Haddad, do PT, que disputou com Bolsonaro o segundo turno das eleições em 2018 e foi derrotado exatamente pelo discurso de ódio e pelas fake news. Excluir o PT e os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff do noticiário não só da TV Globo como de todos os demais veículos do Grupo Globo – O Globo, CBN, G1, Valor Econômico, Época, GloboNews – tem sido uma prática. Além de jamais entrevistá-los, até em comparações são excluídos. Já se transformou em bordão os repórteres da Globo, por exemplo, ao fazerem comparações entre o governo atual e os de Lula e Dilma, citá-los apenas como “governos anteriores”. O nome dessa técnica em jornalismo é silenciamento e tem como objetivo impedir que recordações positivas voltem à memória das pessoas.

    Moro

    Ao mesmo tempo em que buscam apagar a memória positiva associada aos governos Lula e Dilma, a Globo não mede esforços para expor seus “heróis” como é o caso do ex-juiz da Operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, e do governador de São Paulo, o tucano João Dória, possivelmente já de olho nas eleições de 2022.
    O pedido de demissão de Moro rendeu uma cobertura digna dos mais importantes fatos da República. Presente com destaque em todas as edições do JN desde então, Moro foi alvo de uma entrevista de 20 minutos no Fantástico, no domingo 24/5.
    Entrevista que se assemelhou muito a um processo de mídia training, no qual os
    “pontos positivos” de Moro (implacável contra a corrupção, determinou a prisão de Lula) foram destacados e os “negativos” apresentados de maneira que ele pudesse, desde já, neutralizá-los. Algo como: permaneci no governo Bolsonaro por 16 meses, porque queria defender a independência da Polícia Federal e deixei o governo, por me sentir traído.
    Quanto a João Dória, ele tem sido presença constante no JN, que tem deixado sua câmera e microfone abertos para falar sobre o combate à pandemia e quaisquer outros assuntos do seu interesse. O curioso é que São Paulo, o estado mais rico da federação, é o que tem também o maior número de contaminados e mortos pelo covid-19.
    São Paulo vem sendo governado pelos tucanos há mais de 20 anos, mas isso não vem ao caso. Como não vem ao caso que todos os partidos conservadores – MDB e PSDB à frente – com o entusiástico apoio da mídia da “Casa Grande” aprovaram o congelamento por 20 anos dos gastos com saúde e educação. Deu no que deu. Já o “Estadão” que no segundo turno das eleições presidenciais havia considerado, em editorial, “uma escolha muito difícil” entre o candidato do PT, Fernando Haddad, e Jair Bolsonaro, então filiado ao PSL, voltou a insistir na mesma tecla.
    Um dia depois de ver parte da mídia determinar que seus profissionais abandonassem o “cercadinho”, o matutino conservador paulistano fez outra comparação para lá de esdrúxula, entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula, dizendo que “nasceram um para o
    outro” e “enxergam o mundo e seu papel nele da mesmíssima perspectiva”.
    Além de vergonhoso e não corresponder minimamente à realidade (Bolsonaro é um
    fascista e Lula, um humanista) um texto como esse tem tudo para entrar para a história da mídia da “Casa Grande” como prova da má-fé e subserviência de um punhado de redatores aos seus patrões. Não por acaso, o próprio Haddad, fazendo uma paródia do editorial do “Estadão”, publicou, em suas redes sociais, que entre o jornal conservador paulistano e Bolsonaro, a “escolha ficou muito difícil”.
    Já a “Folha”, como esses outros dois veículos, quer a saída de Bolsonaro do poder, mas
    está longe de admitir, por exemplo, que fez campanha contra Dilma; que defendeu a
    condenação e prisão, sem provas, de Lula; que a eleição de 2018 foi fraudada e que a
    restauração da democracia no Brasil passa por novas eleições. Uma pista do que ela e
    os demais veículos da “Casa Grande” pretendem foi dado pelo artigo do professor de
    Direito Internacional da USP, Pedro Dallari, publicado em sua edição de 28/5.
    Sob o título de “A hora do vice-presidente. A gravidade da situação atual não admite
    outra solução para o país”, o também matutino paulistano deixa claro os limites e os
    interesses da oposição que passou a fazer ao governo Bolsonaro. Essa oposição, por
    exemplo, exclui o campo progressista, a começar pelo maior partido político brasileiro,
    o PT.

    É nesse sentido que, guardadas as proporções, a mídia da “Casa Grande” tem lá suas
    semelhanças com a turma das fake news e da disseminação do ódio. Foi no caldo da
    sistemática desconstrução dos governos petistas – e, no passado, no de todos os governos progressistas como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart – que as fake news prosperaram: combate ao comunismo, denúncias sem provas de corrupção, linchamento midiático de adversários etc.
    Ao tomar partido contra o PT, a mídia corporativa brasileira passou a apoiar tudo o que pudesse significar a sua derrota. E foi aí que veio Bolsonaro. E foi aí também que essa mídia, que já não gozava de muita respeitabilidade, perdeu a condição de fonte confiável de informação, se é que algum dia a teve. Condição que agora luta para recuperar e até mesmo para sobreviver.
    A TV Globo – que tem visto sua audiência aumentar, mas ao mesmo tempo, vem sendo
    obrigada a um drástico enxugamento em sua folha de pessoal e reestruturação de seus
    veículos – trabalha para sair por cima não só desse racha, mas para voltar a dar as cartas na política brasileira. Quem não se lembra que o patriarca Roberto Marinho se considerava um “fazedor de presidentes” e realmente o foi mesmo após o fim da ditadura de 1964?
    Daí o dilema que vivem no momento Globo, Folha e Estadão. Ao contrário dos demais veículos e da turma das fakes news, que parecem dispostos a ir com Bolsonaro até o fim (qualquer que seja ele), os três tendem a calibrar essas críticas. Dificilmente, no entanto, elas atingirão a agenda ultraliberal do governo, que defendem com unhas e dentes. Daí, cada dia mais, a oposição que fazem assumir a postura de “conservadora”, com nome e sobrenome para quem apoiam: Hamilton Mourão.
    A Globo sabe que Bolsonaro não tem como cassar-lhe a concessão, pois exigiria o apoio de dois terços dos membros do Congresso Nacional, que ele não tem. Mas ele pode adotar medidas como colocar a Receita Federal para analisar a situação da empresa. Várias no setor da mídia são devedoras contumazes. Toda essa situação é inédita no Brasil. É a primeira vez que parte dessa mídia se vê
    afrontada por quem ela mesma ajudou a eleger. O fato, por si só, deveria propiciar uma profunda reflexão e mudança de comportamento por parte dessa mídia e de quem a faz.
    Como dificilmente isso acontecerá, a democracia no Brasil continua precisando de outra mídia. Mas isso é assunto para outro artigo.

  • Lula pede desculpas por usar “frase infeliz” para defender o SUS

    Lula pede desculpas por usar “frase infeliz” para defender o SUS

    “Eu tentei explicar que o SUS, depois de tão menosprezado no Brasil desde a sua criação pela Constituição de 1988 é, no auge da crise, que a gente tá começando a descobrir a importância de uma instituição pública que cuida da saúde pública. Foi isso o que eu tentei dizer e utilizei uma frase totalmente infeliz, uma frase que não cabia. (…) A palavra desculpa foi feita para usar. E eu peço desculpas se algum dos 210 milhões de brasileiros se sentiu ofendido por essa frase.”

    Foi assim o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se desculpou hoje (20/5) por declaração feita ontem em entrevista ao jornalista Mino Carta, da revista “Carta Capital”.

    Ao fazer a defesa do SUS, tão atacado pelos neoliberais, pelos cortes de gastos e pelo sucateamento do Estado, Lula disse:

    “Ainda bem que natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus, porque esse monstro está permitindo que os cegos enxerguem, que os cegos comecem a enxergar, que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises.”

    A mídia tradicional, que nunca publica uma só frase do Lula, em acintosa atitude de boicote ao maior líder da oposição ao desgoverno de Jair Bolsonaro, agora vem posar de arauto da solidariedade, dando grande destaque à frase infeliz, da qual ela reproduziu apenas um trecho, em clara demonstração de má-fé. Está nas manchetes de toda a grande mídia que Lula disse: “Ainda bem que natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus”. Como se Lula estivesse homenageando o vírus.

    Trata-se de estelionato vergonhoso, cometido contra Lula, o cara que tirou 30 milhões de brasileiros da condição de miséria, e que pode ser acusado de tudo, menos de indiferença ao sofrimento do povo.

    Mas o Lula errou mesmo na declaração que deu. Não há nada de bom na Covid-19, que já matou mais de 18.000 brasileiros. E hoje (menos de 24 horas depois) Lula admite esse erro e pede desculpas. Humildemente, como convém aos grandes homens que são conscientes de seu papel na História.

    Só para lembrar, a Rede Globo, o jornal O Globo, a Folha de S.Paulo e outros órgãos da imprensa corporativa demoraram décadas para reconhecer que erraram ao defender a Ditadura Militar que prendeu, torturou e matou milhares de brasileiros.

     

     

  • “Seita que ameaça levar o Brasil para o abismo”, diz mídia alemã sobre o bolsonarismo

    “Seita que ameaça levar o Brasil para o abismo”, diz mídia alemã sobre o bolsonarismo

    Cada vez mais, Bolsonaro, ao lado de Trump, se transforma no grande vilão global no combate à pandemia Covid-19. Ignorando a ciência, Bolsonaro vem incentivando as pessoas a voltarem a vida normal, além de promover, pessoalmente, aglomerações em seus passeios por Brasília.

    Depois do Washington Post afirmar que Bolsonaro é o pior presidente do mundo no combate à pandemia, desta vez foi uma das mídias mais importantes da Europa atacar o capitão corona e a seita que o apoia.

    Via DW em português

    Por Philipp Lichterbeck

    Charge: Aroeira

    A seita que ameaça arrastar o Brasil para o abismo

    O típico bolsonarista é como alguém que anda na contramão na autoestrada e ouve no rádio que há um motorista na contramão e depois grita: “A mídia mente! Não é um motorista, são milhares!”

    Bolsonaro com apoiadores em protesto em contra o Congresso e o STF, em 15 de março

    A extensão da irracionalidade é aterrorizante e ameaça arrastar o Brasil para o abismo. Para a sua disseminação, há um motivo: o bolsonarismo. Esse nome se deve a um homem cujo livro favorito foi escrito por um torturador. Por conseguinte, o bolsonarismo tem correspondentes ideias para a sociedade: violentas, autoritárias, sem empatia, anti-intelectuais e pseudorreligiosas.

    O bolsonarismo assumiu agora todas as características de uma seita cujos membros estão dispostos a seguir seu líder incondicionalmente, até a morte. Esse culto à morte está se tornando cada vez mais evidente nas manifestações dos bolsonaristas. Um caixão é carregado alegremente; no meio de uma pandemia, expõe-se a si mesmo e a outros ao perigo de um contágio e se grita: “A covid-19 pode vir. Estamos prontos para morrer pelo capitão.”

    Como em todos os cultos religiosos, as contradições são ignoradas. O bolsonarista sempre acha que sabe mais que os outros ‒ mesmo que os outros sejam o mundo inteiro. Ele não segue as estrelas da razão e do conhecimento que fizeram a humanidade avançar ao longo dos séculos (apesar dos inúmeros retrocessos). O norte na bússola do bolsonarista é a satisfação de seu ego insultado.

    O bolsonarista odeia o conhecimento quando este contradiz sua visão de mundo. Ele é como um motorista que anda na contramão na autoestrada e ouve no rádio que há um motorista na contramão e depois grita: “A mídia mente! Não é um motorista, são milhares!”

    Inicialmente, o bolsonarismo negou a existência da covid-19. Tratava-se de uma “fantasia” e uma “invenção da mídia”. Então, a doença se tornou uma “gripezinha” que não poderia afetar “atletas”. Quando ficou claro que a covid-19 poderia muito bem fazer isso, seguiu-se o próximo passo na infalível lógica bolsonarista: cloroquina! Existe um remédio para a cura da covid-19, mas os poderes das trevas não permitem que ele seja usado.

    Os mesmos bolsonaristas que há cinco minutos haviam negado a existência da covid-19 se tornaram, de repente, especialistas em curar a doença viral altamente complexa. Infelizmente, seus conhecimentos não podem ser aplicados. E por quê? Porque, segundo eles, os governadores e prefeitos do Brasil teriam concordado em implementar medidas de quarentena e introduzir o comunismo.

    É típico: no momento que a situação não transcorre segundo a vontade deles, já que o Brasil é um Estado federalista, os bolsonaristas gritam: “Ditadura!” São como crianças que se jogam no chão gritando no supermercado para que suas mães comprem doces. Evidencia-se também a completa falta de princípios desse movimento. As mesmas pessoas que hoje alertam histericamente sobre uma ditadura defendiam ainda ontem uma ditadura, na qual seu herói disse uma vez ter sido um erro apenas torturar e não matar. O que essas pessoas querem agora?

    O bolsonarismo segue uma lógica primitiva, criando sempre opostos simplistas. Isso inclui, por exemplo, achar que saúde e economia são contradições. Segundo essa lógica, os brasileiros deveriam preferir se expor ao risco de infecção para não cair na crise econômica. O bolsonarista parece não estar ciente dos custos econômicos (e sociais) de milhões de pessoas doentes e dezenas de milhares de mortes. Cálculos com mais de duas variáveis não são seu ponto forte.

    O bolsonarista segue principalmente um impulso adolescente. Ele quer ser do contra e causar problemas. Ele sempre contradiz o que os adultos estão dizendo, neste caso: o resto do mundo. Ele fica satisfeito quando se opõe à maioria, vendo-se como um herói. E isso lhe dá a justificativa para agir como vítima.

    Como todos os movimentos fanáticos, o instinto de autodestruição é inerente ao bolsonarismo. Assim como Hitler acreditava que a Alemanha merecia ser devastada se não conseguisse vencer a guerra, o bolsonarista gostaria de destruir tudo. Não há outra explicação para a sabotagem do presidente e de seus apoiadores contra as autoridades do setor de saúde pública.

    Os bolsonaristas acusam a mídia e os governadores de torcer pela disseminação da covid-19. Na realidade, são o presidente e seus apoiadores que estão fazendo de tudo para provocar o desastre sanitário.

    Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais na Alemanha, Suíça e Austria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

     

  • Editorial: Conhecereis os fatos e a verdade aparecerá

    Editorial: Conhecereis os fatos e a verdade aparecerá

    O jornalismo, assim como a ciência, não se pretende detentor da “verdade”. Nossa matéria-prima são os fatos. E os fatos bem apresentados a leitores, ouvintes e telespectadores são fundamentais para cidadãos tomarem decisões políticas. Jornalistas sérios, como a colega Patrícia Campos Mello, apuram, documentam e relatam fatos importantes para a compreensão da realidade cotidiana. Foi exatamente isso que ela fez na premiada série de reportagens que demonstrou, com dados, fatos e documentos, a contratação de empresas de “marketing” para o ilegal e milionário disparo em massa de mensagens de WhatsApp destinadas a favorecer a candidatura de Jair Bolsonaro e outros políticos de extrema direita  nas eleições de 2018. Como atestaram entidades do porte da Organização dos Estados Americanos, o Brasil foi o primeiro caso documentado em que as fake news (MENTIRAS, em bom português) distribuídas massivamente por celulares tiveram papel decisivo nas eleições majoritárias de uma grande democracia. Mais tarde, reportagem do jornal britânico The Guardian trouxe uma pesquisa provando que 42% de mais de 11 mil mensagens virais utilizadas durante a campanha eleitoral no Brasil traziam conteúdo falso (MENTIRAS) que favoreciam o então candidato de extrema direita à presidência.

    Os fatos, portanto, são que campanhas de extrema direita por todo país, incluindo a presidencial, se utilizaram de recursos ilegais e fake news para eleger seus candidatos. Os fatos são que os órgãos de fiscalização das eleições, como o Tribunal Superior Eleitoral, viram isso acontecer e não tomaram, à época, as atitudes que deveriam tomar. Os fatos são que o homem que ocupa a presidência e seus asseclas se elegeram e governam por meio de mentiras e ilegalidades. O fato é que por meio dessas mentiras, o governo caminha rapidamente para um fascismo aberto e ataca diariamente todas as instituições democráticas brasileiras, especialmente as que trabalham com fatos, como o jornalismo. E os fatos são que, apesar de gostarem de usar um versículo bíblico associando verdade e liberdade, o que se tem são mentiras e agressões diárias contra pessoas que trabalham com fatos, como cientistas e jornalistas.

    Ontem, o Brasil viu estarrecido a escalada de um novo patamar nas mentiras, baixarias, calúnias e difamações, apoiadas e divulgadas pelo governo, contra uma jornalista e, portanto, contra toda a imprensa séria nacional. Patrícia Campos Mello foi alvo, em pleno Senado da República, não somente de mentiras sobre sua atuação profissional impecável no caso, mas também de calúnias de conteúdo sexual, o que demonstra, mais uma vez com fatos, que esse governo não apenas é fascista e mentiroso, como também machista e misógino. A Patrícia, toda a nossa solidariedade e apoio, tanto pessoal como profissional.

    É passada a hora de a imprensa brasileira dar um basta nas mentiras e agressões desse governo que tomou posse há mais de um ano num evento grotesco em que os jornalistas foram confinados longe dos políticos e ameaçados de serem baleados se tentassem se aproximar. Não é possível que os colegas da mídia hegemônica sigam aceitando as “coletivas” da porta do Palácio do Planalto em que o homem que ocupa a presidência os xinga, manda calarem a boca, destrata os veículos para os quais trabalham e foge cada vez que é feita uma pergunta diferente da que ele quer responder. É urgente que jornais, rádios, TVs e portais noticiosos PAREM de tratar esse governo como “normal” e usem as palavras corretas para designar os fatos. Mentiras são mentiras. Fascismo é fascismo. Extrema direita é extrema direita. Retirada de direitos é retirada de direitos. Autoritarismo é autoritarismo. Corrupção é corrupção. Milícia é milícia. E bandidos são bandidos.

    A sociedade e os democratas brasileiros devem exigir das autoridades que ainda não foram totalmente cooptadas por esse governo fascista que façam funcionar as instituições democráticas. Os mentirosos e caluniadores precisam ser processados. Os crimes, inclusive de morte como da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, precisam ser investigados e punidos. Os políticos que se beneficiaram de esquemas de corrupção, financiamento ilegal de campanhas e difusão em massa de mentiras precisam ser cassados, ainda que se faça necessário anular as eleições de 2018.

    Não é a mentira manipulada com o uso versículos bíblicos para enganar a população de boa fé que vai nos libertar. Nossa libertação como nação virá da VERDADE proveniente dos FATOS. E para isso, uma imprensa forte e independente é fundamental.