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  • Dia da Visibilidade Lésbica e a luta por dignidade no ambiente de trabalho

    Dia da Visibilidade Lésbica e a luta por dignidade no ambiente de trabalho

    O Dia Nacional da Visibilidade Lésbica foi escolhido durante a realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), que ocorreu em 29 de agosto de 1996. A funcionária pública Marcelle Fonseca esteve presente em algumas edições do seminário que, posteriormente, se tornou um encontro. Ela explica que as discussões eram pensadas de acordo com a conjuntura política. 

    Publicada originalmente no Brasil de Fato

    “Cada SENALE teve uma programação própria, construída de acordo com o cenário atual, mas de forma geral, sempre houveram debates sobre saúde lésbica; direitos civis (a questão do casamento e da adoção, inclusive quando a Cássia Eller morreu e teve aquele acordo entre a Eugênia e o pai da Cássia, nós tivemos uma mesa apenas para falar sobre judicialização); violência estatal em razão da imensa resistência/dificuldade de gerar números sobre casos de estupros corretivos e de lesbocídio no país”, conta. 

    Ela explica que o fortalecimento do feminismo e o enfrentamento da lesbofobia, em suas diversas faces, também eram pautas fixas. “Tínhamos também uma preocupação com o registro das nossas histórias, de não permitir que nossa memória fosse apagada. No final, fazíamos uma grande plenária, com todas as participantes, para apresentar as propostas produzidas pelos grupos, para votar qual seria a próxima cidade e outras questões que acabavam surgindo, como por exemplo, a votação para alteração do nome de SENALE para SENALESBI”, finaliza.  

    Ainda hoje, um ambiente em que essa violência é vivenciada constantemente é o profissional. O Brasil de Fato conversou com quatro mulheres que sofreram diretamente essa violência em seus ambientes de trabalho e, para protegê-las de uma sociedade que já despreza lésbicas, seus nomes serão fictícios nesta publicação. 

    Rosangela se assumiu lésbica aos 23 anos, mesmo tendo consciência da própria sexualidade há quase uma década. Na infância, ela foi vítima de um estupro por um amigo da família e, após a saída do armário, foi novamente estuprada, desta vez de forma “corretiva”, com a promessa de que “o estupro iria curá-la desses pensamentos de macho de querer beijar e namorar meninas”. Já adulta ganhou uma bolsa de estudos no exterior e só então pode se descobrir e viver sua sexualidade sem medo dos julgamentos. Quando retornou ao Brasil, acabou cortando laços com a família, mantendo contato apenas com a mãe hoje. 

    Os conflitos no ambiente familiar também foram experimentados por Lourdes. Por ser uma lésbica que, de acordo com os padrões patriarcais impostos pela sociedade, se veste com roupas que são consideradas masculinas e que não adere aos estereótipos da feminilidade – como o uso de maquiagem, saias, saltos, ter o cabelo comprido, se comportar de forma doce, submissa-, Lourdes conta que sofreu muito com esse processo de auto-aceitação por causa dos conflitos vivenciados no ambiente familiar. 


    Ilustração especial Visibilidade Lésbica / Sophia Andreazza / @sophiandreazza

    Larissa Caroline Silva de Souza, psicóloga clínica, integrante dos coletivos Psicopretas e Visibilidade Lésbica Campinas, diz que a experiência da lesbianidade impacta todos os âmbitos da vida da mulher. “Nós sofremos lesbofobia quase todos os dias e em diferentes ambientes, isso significa estar de cara com a não aceitação e negação dos nossos corpos pela sociedade, e consequentemente isso impacta de diferentes formas e em todos os âmbitos da nossa existência enquanto ser lésbica. Impacta, por exemplo, na forma como nos vemos e como somos enxergadas, na invisibilidade das nossas pluralidades (negras, pobres, gordas, pessoas com deficiência, mais velhas, mais novas, etc), impacta em como nos portamos frente às dificuldades e possibilidades, impacta na forma como nos relacionamos afetiva e sexualmente entre nós e, principalmente, impacta na nossa saúde mental e na maneira de sentir e existir no mundo”, explica. 

    Sobre a questão familiar, Larissa explica que é um dos primeiros ambientes em que as lésbicas enfrentam o preconceito e vivenciam a violência, seja ela física, verbal ou psicológica. “Impacta na invisibilização do ser mulher, pois muitas vezes a nossa sexualidade é interpretada como uma tentativa de ser homem, e isso impacta na forma como somos tratadas, principalmente quando não se é reproduzida a feminilidade. E ainda impacta na tentativa de aniquilamento da nossa existência através da morte desses corpos, feito em sua maioria por homens, sendo eles da família ou não”, acrescenta.

    Valéria conseguiu contar para a família que estava em um relacionamento com uma mulher apenas depois de se formar na faculdade. Segundo ela, a saída do armário aconteceu depois que ela fez “tudo que havia sido projetado para si”. A reação familiar não foi das melhores e ela chegou a ter que sair de casa para poder viver o relacionamento. 

    A lesbofobia foi experimentada muito cedo por todas as entrevistadas e se expressava desde apelidos masculinos até o isolamento. “As outras meninas não queriam ficar perto da ‘sapatão’, me tratavam com desprezo, com nojo. De um dia para o outro pessoas que eu achava que eram minhas amigas não queriam mais nem me dar oi, não queriam ser vistas comigo porque tinham medo que outras pessoas achassem que elas também eram lésbicas”, contou Lourdes.

    A lesbofobia no mercado de trabalho 

    Rosa não enfrentou conflitos no contexto familiar, mas no ambiente de trabalho. “Entrou uma funcionária nova na empresa e tínhamos interesses em comum. Começamos a trocar dicas de livros e logo surgiram piadinhas sobre a ‘sapatão não perde tempo e já está em cima da menina’. Eu respondi à altura na hora, mas nada foi feito pela direção da empresa”, contou.

    “Sou jornalista e uma vez fui acusada, em um dos meus trabalhos, de entrevistar apenas mulheres lésbicas para as minhas reportagens. Que eu soubesse, nunca tinha entrevistado uma mulher lésbica, até porque quando fazemos entrevistas não perguntamos a sexualidade se não for a pauta, mas a acusação veio porque duas pessoas que eu havia entrevistado no dia anterior tinham o cabelo curto ou colorido”, finaliza. Na ocasião, ela foi advertida, mas se recusou a assinar.  

    No início de 2019, um caso de lesbofobia em Campinas tomou conta dos noticiários. Thais Cyriaco foi impedida de usar o banheiro feminino em seu ambiente de trabalho por cinco meses até conseguir liminar favorável na Justiça. Ela trabalhava como auxiliar de limpeza da rede de supermercado atacadista Makro. Depois de três meses trabalhando, foi comunicada pela empresa que a contratou, a Elofort Serviços, que, a partir daquele momento, estava proibida de usar e limpar os banheiros femininos da unidade. O motivo era o lesbianismo e sua aparência, já que não performava feminilidade. Hoje, Thais não trabalha mais nesta empresa e deixou a cidade. 


    Thais se veste com roupas que são consideradas masculina de acordo com os padrões patriarcais impostos pela sociedade / Arquivo pessoal

    Rosangela e Valéria trabalham na área da educação. Elas contam que a lesbofobia nesse ambiente acontece de uma forma sutil, mas muito violenta. Rosangela conta que uma mãe pediu para que sua filha fosse trocada de turma porque “ter uma professora machinho não seria bom para o desenvolvimento da criança”. Valéria conta que, mesmo quando se relacionava com homens, não comentava sobre a vida pessoal na escola em que dava aulas, mas que depois que começou a namorar uma garota foi procurada pela direção com o pedido de que não deixasse transparecer a lesbianidade e não comentasse sobre isso com as crianças. Um ponto importante levantado por ela sobre como as lésbicas são vistas como ameaça é que, nesta mesma escola, há um professor gay assumido e isso é visto como algo incrível pela direção, enquanto ela precisa se calar e esconder a sexualidade. “Tenho medo de estar na rua andando de mãos dadas com a minha namorada e cruzar com alguma aluna ou com sua mãe e isso não é justo”, explica Valéria.

    Há alguns anos, Rosangela trabalhou em uma grande empresa multinacional, fora da área da educação. Ela conta que as mulheres se incomodavam de usar o banheiro se ela estivesse no ambiente. “Houve um episódio com a minha chefia direta, em que eu estava saindo e ela entrando no banheiro, ela tomou um susto com a minha imagem e se desviou. Estilo Matrix, com uma cara muito assustada, quando percebeu que era eu, se desculpou, e disse que achava que era um homem”, relembra. 

    A mesma sensação foi vivida por Lourdes. “Reparo também que as mulheres heterossexuais parecem ter medo de ficar sozinhas numa sala com uma lésbica, como se a gente fosse pular em cima delas a qualquer momento. Mantêm distância, ficam de longe”, conta. 

    A “aparência profissional” também é lembrada como algo usado contra as lésbicas. “Se você não se feminiliza, não se maquia, não usa salto, etc, você leva chamada de atenção por ser ‘desleixada’ e ‘mal-vestida’, mesmo que os homens do local possam trabalhar de jeans e camiseta sem nenhum problema”, explica Lourdes. 

    “A lesbofobia impacta no nosso não acesso ao mercado de trabalho (muitas de nós estão desempregadas) ou apenas a trabalhos subalternos e que não necessita interação com público. Então, quando estamos inseridas no mercado de trabalho, é despertada e reforçada a insegurança, o medo de rejeição, o não-lugar, o silenciamento e o tratamento diferenciado entre as mulheres héteros. Isso tudo pode e geralmente impacta em como nos sentimos em outros âmbitos da nossa vida, seja na vida social, amorosa ou familiar”, explica a psicóloga que trabalha diretamente com essa população.  

    Quando o assunto é inclusão por parte das empresas, as entrevistadas acreditam que pouco é feito na prática. “Muitas empresas fazem um ‘showzinho’ sobre o quanto são diversas e inclusivas, mas você vai ver os cargos de chefia e só têm homens brancos. Você vai ver o quadro de funcionários e é todo mundo parecido, as mulheres todas de saltinho, de cabelo alisado, embonecadas. Você vai fazer uma entrevista e eles ainda esperam que você seja feminina, que esteja maquiada, ainda perguntam se você tem filhos ou pretende ter. Fiz entrevista onde perguntaram até a data da minha última menstruação para ‘confirmar que eu não estava grávida’. Se você [consegue a vaga e] tenta apontar algum caso de discriminação que acontece lá dentro, você é acusada de ‘não trabalhar bem com a equipe’”, conta Lourdes. 

    Rosangela vivenciou coisas parecidas. “Na prática pouco é feito para a educação e a mudança de comportamento de outros trabalhadores e das chefias. E, mesmo quando dizem que ensinam, é nítido perceber como existe um preconceito velado ainda, que não se expressa verbalmente, mas os comportamentos se expressam naquela cobrança maior em cima da lésbica. O tratamento masculinizado que nos oferecem, na forma como por vezes dizem que somos mais fortes, não somos delicadas. Já aconteceu de chefes e colegas me dizerem que comigo eles “mandam a real” sobre as coisas porque sabem que eu não sou tão delicada quanto outras colegas mulheres”.  

    Lourdes acabou deixando o trabalho presencial por conta das diversas situações enfrentadas. “Tenho bastante dificuldade de conseguir e manter emprego formal. Por causa da minha aparência, tendo a preferir trabalho remoto. Querendo ou não, as pessoas te tratam melhor quando não sabem que você é uma lésbica “butch“, “caminhoneira”. Você deixa sua aparência a critério da imaginação das pessoas, é mais fácil. Existe esse estereótipo de que a lésbica é agressiva, que é turrona, barraqueira, e as pessoas projetam isso em você.

    “Tudo que você fala é interpretado dessa forma. Quando você não é feminina, as pessoas interpretam isso como uma infantilidade ou rebeldia ou desleixo. Já perdi oportunidade de emprego porque o contratador achou que eu tinha “cara de que ia arrumar encrenca com os homens da equipe.”

    “A gente acaba caindo muito pra informalidade, pros freelas, pros bicos. Eu trabalho como [serviços através de Pessoa Jurídica] PJ faz muito tempo e a informalidade deixa a gente estressada, né. A gente nunca sabe quando vai ter dinheiro, morre de medo de quebrar alguma coisa em casa numa época de vacas magras e não poder substituir, de acontecer alguma emergência e não ter uma renda previsível. Eu vejo muitas lésbicas trabalhando na informalidade e passando esse mesmo stress constante de nunca saber como vai ser o dia de amanhã”, desabafa. “Se puder contratar ou escolher uma profissional lésbica para fazer algum serviço, tem muita mina por aí fazendo trabalhos super legais, de maneira autônoma. Vale a pena buscar”. 

    “Vivenciar esses episódios de lesbofobia me marcou de maneira muito negativa. Eu desenvolvi alguns problemas psicológicos que ainda hoje trabalho em terapia para superar. São lutas diárias para me entender como um corpo que não está errado, como alguém que merece ser feliz e ser bem tratada e até mesmo de refletir sobre quando eu sinto uma imensa gratidão ao ser tratada bem, o quanto isso é de fato gratidão e o quanto é a surpresa de, em um raro momento, ser tratada com dignidade. Hoje eu tenho a alegria de trabalhar em um ambiente de qualidade, com pessoas que me respeitam e me valorizam, mas infelizmente isso não é algo que está disponível para todas as lésbicas”, conta Rosangela. 

    A psicóloga explica que essas violências podem deixar impactos durante toda a vida das lésbicas. “As marcas deixadas pela lesbofobia podem ser consideradas um trauma pois tratam-se de lésbicas que experienciam ansiedade, depressão, baixa autoestima, insegurança, constante sentimento de culpa, inadequação, sensação de inferioridade, negação de si, medo de rejeição, abuso de álcool e drogas, distúrbio alimentares, idealização suicida. Isso pode impactar, mas não é determinante, na dificuldade de estabelecer relacionamentos afetivos e criar vínculos, dificuldade de pôr em prática os desejos e planos, reprodução e internalização de estereótipos para ser aceita, entre outros.” 

    “Considero o acompanhamento psicológico como uma das possibilidades de cuidado, assim como estar em coletivo com outras lésbicas, pois a grupalidade auxilia muito no fortalecimento de si e de outras lésbicas, no sentimento de pertencimento, na construção de identidade, pois é ter contato com outras referências de existir e, principalmente, na possibilidade de se enxergar enquanto um corpo político”, completa Larissa. 

    A lesbofobia é vivenciada por todas as mulheres lésbicas, mas pode se manifestar de diferentes formas. A não-feminilidade expressada por algumas mulheres pode ser um fator a mais para o alvo dessas violências.  “Estamos falando de uma sociedade machista e misógina que define qual o padrão aceitável de existência e classifica os seres a partir da dualidade (homem e mulher), já impondo as característica esperadas por essas duas possibilidade que eles mesmo definem e que exclui totalmente outras expressões de gênero e sexualidade. Então se a mulher não performa feminilidade, não tem seu afeto direcionado ao homem hétero, ela se torna uma ameaça a essa sistema todo que depende dos lugares sociais impostos para manter seu funcionamento”, explica a psicóloga. 


    Ilustração especial Visibilidade Lésbica / Sophia Andreazza / @sophiandreazza

    A importância da Visibilidade Lésbica no combate à discriminação

    A criação do Dia da Visibilidade Lésbica propiciou que o debate fosse colocado em diversas áreas da sociedade. Para as entrevistadas, a data é importante para que a existência lésbica seja normalizada. “A lésbica é vista como um ser aberrante, uma desviante, e por isso mesmo encaixada em estereótipos. A visibilidade é importante para que sejamos entendidas como pessoas que têm uma vida interior própria. A mulher já é desumanizada e objetificada, tem um papel social que é construído como receptáculo do desejo do outro. A lésbica é vista como um receptáculo quebrado, uma mulher que não funciona. A visibilidade é dar voz às lésbicas num processo humanizador. Nós não somos mulheres quebradas, ou barraqueiras frustradas, somos seres humanos, temos nossas próprias histórias e precisamos ser vistas e ouvidas”. 

    “É por meio da visibilidade que, pouco a pouco, a gente consegue transformar o imaginário coletivo de quem somos enquanto lésbicas, a cada movimento novo de visibilidade é um próximo passo que a gente tenta dar rumo a uma transformação das realidades das próximas gerações. Eu espero que o mundo seja mais acolhedor para as lésbicas que vão vir e o Dia da Visibilidade Lésbica contribui pra isso. Além disso, marca um momento importante na história das lutas por direitos, por transformação social e é uma data importante politicamente porque rompe com o véu da ignorância, inclusive do movimento LGBT+, de dizer que lésbicas nunca estiveram ativas politicamente, de que mulheres não constroem política”, explica Rosangela. 

    Para a psicóloga, é preciso lembrar, todos os anos, que as lésbicas existem o ano todo. “É visibilidade, para olhar nossa pluralidade, reivindicar respeito, acessos, humanidade. É celebrar todos os corpos lésbicos que são resistência, revolução, que têm voz, têm potência, e que vai contra o patriarcado, o machismo, o racismo e todas outras formas de opressões. É o rompimento da invisibilidade do nosso existir, é mostrar que estamos na luta há muito tempo e, além disso, relembrar toda a caminhada histórica trilhada por mulheres lésbicas que vieram antes de nós. É pensar outras formas de viver em menos sofrimento, pensar outras possibilidade de caminhos, principalmente se for em coletivo, e deixar uma estrada para outras que irão vir depois de nós”. 

    Quando questionada sobre como avançar no combate às violências, Lourdes é assertiva “com mais lésbicas tendo espaço!”. E continua “Em todas as áreas, em todos os lugares, numa posição de protagonismo. Precisamos ter nossas lutas e nossas histórias contadas. E não apenas numa forma de ‘representatividade’  com histórias meia-boca sobre lésbicas de mentira sendo contadas por homens ou por mulheres heterossexuais, mas realmente dar espaço para a nossa voz. Na mídia, no mercado de trabalho, nos círculos feministas, na legislação, em todo lugar”. 

    Combater a lesbofobia diariamente passa por humanizar lésbicas e reafirmar que, assim como todas as demais pessoas existentes, elas também são merecedoras de acessar políticas públicas. “Combater a lesbofobia é a disponibilidade de pensar ações para tudo que é nos é negado – como o acesso à saúde especializada, ginecologia lésbica, programas de saúde mental -, ações de acesso ao trabalho que nos ajudem a permanecer, pois falamos de um ambiente capitalista e competitivo. Disposição de repensar os estereótipos atribuídos e as atitudes direcionadas a nós, repensar ações para a sobrevivência das lésbicas nos presídios e em situação de rua também. É também enfrentar lesbocídio, que é o homicídio direcionado a mulheres lésbicas. Enfim, é pensar formas de a gente poder ter uma existência mais plena e por mais tempo”, finaliza Larissa.  

    Rosangela encerra a entrevista pedindo “que o Dossiê Lesbocídio [primeiro e único levantamento sobre assassinato de mulheres lésbicas no Brasil] não seja o único que se preocupa em contar nossos corpos, que nossas vidas sejam valorizadas por todos os poderes e que sejamos mais que corpos assassinados e suicidados, que sejamos vida também”.

    Dia do Orgulho Lésbico: 19 de agosto, a revolta no Ferro’s Bar

    Localizado próximo à avenida 9 de Julho, no centro da capital paulista, o Ferro’s Bar era um conhecido ponto de encontro de lésbicas a partir dos anos 60. A polícia fazia investidas violentas no estabelecimento e as frequentadoras eram expulsas do bar, além de terem seus panfletos e materiais impressos apreendidos. 


    Jornal “Chana com Chana”, vendido no Ferro’s Bar, local do primeiro levante lésbico no Brasil / Reprodução

    Nesta época, o que mais circulava entre essas mulheres era o jornal não-permitido “Chana com Chana”, produzido de 1981 a 1987, que trazia troca de cartas, poesias, resenhas, entrevistas, dicas de livros, depoimentos, além de tratar questões como legislação, trabalho e família. 

    Depois de muito resistir às expulsões violentas e à proibição dos materiais, no dia 19 de agosto de 1983, as militantes resolveram dar um basta em toda essa violência. Um manifesto contra a repressão e pelo direito das lésbicas foi lido diante da polícia e da imprensa. O protesto resultou em um pedido de desculpas e na liberação da venda dos panfletos. 

    O levante do Ferro’s Bar foi um marco histórico da primeira manifestação lésbica brasileira, incentivando outros grupos a se erguerem contra a repressão também. 


    Levante no Ferro’s Bar, em 19 de agosto de 1983 / Reprodução

    Confira abaixo o conteúdo do panfleto distribuído em julho que mobilizou o levante em agosto. 

    PRA VOCÊ QUE FREQUENTA O FERRO’S 

    BEM, GENTE, ACHO QUE CHEGOU A HORA DE FALARMOS ABERTAMENTE. CHEGA DE SUBTERFÚGIOS. E VOCÊ QUE É UMA PESSOA INTELIGENTE HÁ DE CONVIR COMIGO QUE TEMOS QUE NOS UNIR, POIS SÓ A UNIÃO FAZ A FORÇA. NÃO QUEREMOS QUE VOCÊ EMPUNHE A BANDEIRA DE HOMOSSEXUAL CONTRA A SUA VONTADE, MAS GOSTARÍAMOS QUE VOCÊ OLHASSE PARA DENTRO DE VOCÊ E VISSE O QUANTO GENTE VOCÊ É, QUE SER HUMANO MARAVILHOSO SE ESCONDE ATRÁS DE UMA MÁSCARA, BRINCANDO DE FAZ DE CONTA. 

    FAZ DE CONTA QUE SOU TRATADA IGUALMENTE COMO TODAS AS PESSOAS. 

    FAZ DE CONTA QUE O RESTAURANTE QUE EU FREQUENTO ME RESPEITA COMO EU MEREÇO. 

    FAZ DE CONTA QUE A SOCIEDADE ME ENCARA SEM PRECONCEITO. 

    FAZ DE CONTA ATÉ QUANDO? 

    VOCÊ SABIA QUE COLEGAS SUAS, SERES HUMANOS COMO VOCÊ, SÃO POSTAS PARA FORA DE NOSSO MEIO COMO SERES LEPROSOS? 

    VEJA, POR EXEMPLO, O QUE ACONTECEU NA NOITE DO SÁBADO PASSADO, DIA 23 DE JULHO, SÓ PORQUE UMAS MENINAS ESTAVAM VENDENDO SEU BOLETIM O CHANACOMCHANA, NUM CERTO BAR QUE CONHECEMOS, O DONO DO BAR E OS SEGURANÇAS QUERIAM EXPULSÁ-LAS À FORÇA SÓ PORQUE O BOLETIM FALA DAS NOSSAS VIDAS CLARAMENTE, SEM VERGONHA OU MEDO E ATÉ COM MUITO ORGULHO. E É SÓ POR ISSO MESMO, JÁ QUE, NO MESMO DIA, O EXÉRCITO DA SALVAÇÃO ESTAVA VENDENDO SEU JORNAL PARA NOS LIVRAR DO “PECADO” E NINGUÉM O INCOMODOU. 

    NESSA NOITE, QUISERAM EXPULSAR AS COLEGAS, MAS NÓS NÃO DEIXAMOS E ELAS FICARAM, JANTARAM E PAGARAM A CONTA COMO SEMPRE COSTUMAM FAZER, POIS, PRA UNS E OUTROS, EMBORA NÃO PASSEMOS DE CÃES SARNENTOS, NOSSO DINHEIRO NÃO TRANSMITE NOSSA DOENÇA. E ELES SABEM FAZER BOM USO DELE, NA COMPRA DO CARRO ZERO KM, NO ESTUDO DO FILHO NO EXTERIOR, ETC. QUEREMOS TER OS MESMOS DIREITOS DAS OUTRAS PESSOAS, NÃO SÓ SEUS DEVERES. 

    E PRECISAMOS COMEÇAR A BATALHAR POR ISSO A PARTIR DOS LUGARES QUE FREQUENTAMOS E SUSTENTAMOS. OU NÓS NOS UNIMOS OU CENAS COMO A DO SÁBADO PASSADO CONTINUARÃO A OCORRER E PODERÁ SER COM QUALQUER UMA DE NÓS POR QUALQUER MOTIVO. 

    NOSSAS COLEGAS ESTÃO PROIBIDAS DE ENTRAR NO FERRO’S PORQUE QUEREM VENDER UM BOLETIM QUE TAMBÉM É NOSSO E PORQUE QUEREM CONVERSAR CONOSCO. VAMOS ADMITIR ESSA PROIBIÇÃO?

    GUARDE E PENSE COM CALMA, EM CASA. REFLITA, FAÇA UMA AUTO-ANÁLISE, SE POSSÍVEL RELEIA ESTE TEXTO COM BASTANTE ATENÇÃO E, SE VOCÊ NÃO SE IMPORTA CONSIGO MESMA, JOGUE FORA E FAÇA DE CONTA QUE NADA LEU. 

    CASO CONTRÁRIO NOS PROCURE. NOSSO ENDEREÇO É RUA AURORA, 736, APTO 10. 

    E DEIXE O SEU RECADO. CASO CONTRÁRIO, PROTESTE CONTRA A PROIBIÇÃO DE NOSSA ENTRADA COM O DONO DO BAR. 

    E, CASO CONTRÁRIO, NOS APOIE QUANDO FORMOS VENDER O BOLETIM CHANACOMCHANA. 

    PARTICIPE NA LUTA CONTRA O PRECONCEITO QUE NOS DISCRIMINA, POIS TODA MANEIRA DE AMOR VALE A PENA. 

    GRUPO AÇÃO LÉSBICA FEMINISTA CX.POSTAL 62,618, CEP 01000, SP JULHO DE 1983

    (texto digitalizado do folheto original distribuído no Ferro’s Bar– acervo Rede de Informação Um Outro Olhar, contido na publicação “Quando o preconceito fecha as portas, lute para abrí-las”, de Miriam Martinho)

    Veja também: Eu Sou A Próxima: como morrem as mulheres lésbicas no Brasil

  • 10 diretoras de cinema lésbicas que valem a pena conhecer

    10 diretoras de cinema lésbicas que valem a pena conhecer

    Você sabia que agosto é o mês da visibilidade lésbica? Como todos os grupos da comunidade LGBTQ+, as mulheres lésbicas enfrentam discriminações únicas, possuem reivindicações únicas, e levantam pautas sociais que precisam ser ouvidas. 

    Na prática, no entanto, essas preocupações são constantemente jogadas de escanteio, e o mês da visibilidade lésbica busca remediar um pouco isso. Nada mais justo — mulheres lésbicas contribuíram de forma crucial para todas as áreas de conhecimento da humanidade, em papéis fundadores que atestam a força de suas identidades.

    Não é diferente no cinema. A história dos filmes ao redor do mundo é marcada de forma inegável pelo trabalho incansável e importante de mulheres lésbicas. Abaixo, os Jornalistas Livres selecionaram dez delas, em uma gama ampla de etnias, nacionalidades e gêneros cinematográficos.

    1. Dorothy Arzner

    Até por volta dos anos 1970, mulheres na direção não eram simplesmente raridade em Hollywood — eram uma impossibilidade. As duas exceções (que provam a regra) normalmente citadas são Ida Lupino… e Dorothy Arzner. 

    A nativa de San Francisco, que cresceu cercada por celebridades no popular restaurante dos pais na metrópole americana, “escalou” a hierarquia do cinema americano de maneira formidável: de datilógrafa de scripts a editora, passando por roteirista e assistente de direção, até, em 1927, se tornar a primeira mulher a dirigir um longa (“A Mulher e a Moda”) para a Paramount, um dos “cinco grandes” estúdios de Hollywood.

    Depois disso, engatou uma sequência sem precedentes de filmes — a maioria dos quais se mostram surpreendentemente modernos se vistos hoje em dia, destacando temas tabu e desafiando a forma como personagens femininas eram escritas à época. 

    Por exemplo: “Assim Amam as Mulheres” (1933), que lançou a carreira de Katherine Hepburn, contesta a ideia da rivalidade feminina ao transformar a história de um caso extramarital em uma trama sobre duas mulheres descobrindo forças uma na outra. Já “A Vida é uma Dança” (1940) chega ao seu clímax com a personagem de Maureen O’Hara, uma dançarina burlesca, se dirigindo diretamente ao público e desafiando a objetificação do corpo feminino.

    Dorothy Arzner (à dir.) com a namorada, Marion Morgan, no set de um de seus filmes

    Arzner deixou Hollywood ainda nos anos 1940, provavelmente por causa das restrições cada vez maiores que o Hays Code, o primeiro sistema de “classificação indicativa” de Hollywood, impunha sobre o conteúdo de seus filmes. Ainda é excepcional pensar, no entanto, que ela trilhou este caminho pelo cinema americano não só como uma mulher, mas como uma mulher que nunca fez questão de esconder sua sexualidade por trás de um casamento de fachada, como era comum na época.

    Ao invés disso, a cineasta viveu um épico romance de cinco décadas com a coreógrafa e dançarina Marion Morgan — ainda nos anos 1930, elas se mudaram juntas para uma casa em Los Angeles, onde permaneceram até a morte de Morgan, em 1971. Arzner passou os últimos anos em uma propriedade mais afastada, no deserto de La Quinta, na Califórnia, onde morreu aos 82 anos em 1979.

    1. Chantal Akerman

    Chantal Akerman provavelmente odiaria saber que foi incluída nesta lista. Durante sua carreira, essa artista belga de extraordinário talento sempre resistiu a todos os rótulos — inclusive os de “cineasta mulher” e “cineasta lésbica”, chegando a protestar contra a exibição de seus filmes em festivais especificamente voltados ao público LGBTQ+.

    Ela tinha um ponto, é claro: a sua arte não é essencialmente lésbica, embora ela própria fosse. Ao invés disso, seus filmes são tratados filosóficos e formais que refletem tanto sobre domesticidade e opressão quanto sobre a angústia existencial do dia a dia, e expressam a visão única de uma artista que admitiu que sua mãe, Natalia Akerman, foi a figura central do seu trabalho.

    “Jeanne Dielman” (1975), sua obra mais conhecida, acompanha por penosas 3h22 a rotina doméstica de uma viúva solitária, que se prostitui a fim de colocar comida na mesa para seu filho adolescente. Por meio de observação meticulosa e paciente, Akerman nos mergulha no tédio elemental e opressivo dessa existência, preparando o terreno para uma quebra de rotina radical que nos atinge como um soco no estômago.

    O procedimento se repete em filmes como “Os Encontros de Anna” (1978) e “Toda Uma Noite” (1982), que se juntam para formar assombroso tríptico sobre os silêncios mortais da ordem social vigente. Em contraste intenso, seus documentários, como “Notícias de Casa” (1977) e “Não é um Filme Caseiro” (2015), mostram uma Akerman generosa consigo mesma, abrindo de formas oblíquas e reveladoras o seu coração (e sua relação com a mãe) para a câmera.

    A morte de Natalia Akerman, pouco antes do lançamento de “Não é um Filme Caseiro”, deixou a filha “à deriva”, em suas próprias palavras. Chantal cometeu suicídio em outubro de 2015, aos 65 anos.

    1. Cheryl Dunye

    Se mulheres diretoras eram impossibilidades na Hollywood clássica, mulheres negras na direção era um conceito impensável — e permaneceu sendo até o final dos anos 1980, com a ascensão de Euzhan Palcy, Julie Dash e, nas margens do mainstream, da revolucionária Cheryl Dunye.

    Após uma série de curtas-metragens (que ela chama de “Dunyementaries”) que misturavam ficção e realidade de maneira mesmerizante, ela colocou a abordagem a prova no longa “The Watermelon Woman”, de 1996, onde uma jovem cineasta (vivida pela própria Dunye) começa a pesquisar a história das primeiras mulheres negras a aparecerem no cinema, se frustrando com a exclusão de seus nomes dos créditos dos filmes clássicos e se decidindo a construir, por si mesma, a mitologia de uma delas.

    Hollywood, é claro, não estava pronta para discutir nada disso nos anos 1990. Dunye seguiu trabalhando na linha tênue que separa o indie do mainstream, abordando a experiência de lésbicas negras encarceradas no telefilme “Surpresas do Destino” (2001), da HBO, que também misturava narrativa ficcional e documentário; e se arriscando na comédia pastelão em “My Baby’s Daddy” (2004).

    O tempo passou, no entanto, e o cinema americano não só aprendeu a assimilar um estilo tão único quanto o de Dunye, como se mostra ansioso para discutir tudo o que ela promovia há décadas em seu cinema — afinal, hoje em dia, diversidade (ou a aparência dela) é bom negócio.

    O resultado é uma mão cheia de trabalhos na TV, em séries como “Claws”, “The Chi”, “Queen Sugar” e “Lovecraft Country”, e um projeto no cinema que promete ser o de maior alcance da carreira da cineasta: a adaptação de “The Wonder of All Things”, livro de aventura sobrenatural de Jason Mott.

    1. Jodie Foster

    Descontando uma Penny Marshall aqui, uma Barbra Streisand acolá, sempre foi extraordinariamente mais difícil para atrizes de Hollywood fazerem o pulo para a direção do que para seus colegas homens (Eastwood, Newman e muitos outros que o digam). Com uma determinação de ferro e um talento inegável, no entanto, Jodie Foster ousou estrear como diretora justamente em 1991, o mesmo ano em que, como atriz, entregou a performance que lhe rendeu o seu segundo Oscar, em “O Silêncio dos Inocentes”.

    O primeiro filme da “queridinha da América” foi “Mentes Que Brilham”, um sensível drama sobre uma mãe solteira que luta para lembrar tutores e acadêmicos deslumbrados que o seu filho de sete anos, Tate, pode ter um intelecto prodigioso, mas ainda é apenas uma criança. Para uma mulher que passou toda a sua infância como uma das estrelas mais brilhantes de Hollywood, e que estava interpretando uma prostituta em “Taxi Driver” (1976) aos 14 anos, era uma situação que Jodie conhecia bem.

    Surpreendentes foram as escolhas que ela fez depois da estreia: uma comédia de humor ácido com Holly Hunter (“Feriados em Família”, 1995); um lúdico drama sobre um executivo que, em depressão, só consegue falar com a família através de um fantoche (“Um Novo Despertar”, 2011); e um thriller social em que um apresentador de TV (George Clooney) é sequestrado ao vivo por um espectador decepcionado (“Jogo do Dinheiro”, 2016).

    Foster, cuja vida pessoal sem dúvida é mais vigiada pelos tablóides do que a de qualquer outra mulher desta lista, nunca teve um grande momento de “se assumir” — a não ser que você conte o Globo de Ouro de 2013, em que, ao receber o troféu honorário Cecil B. De Mille Award, ela brincou com o “segredo aberto” de sua lesbiandade (“eu tenho 50 anos e é hora de admitir… estou solteira”) logo antes de agradecer a ex-namorada Cindy Bernard, de quem se separou em 2008, e com quem tem dois filhos.

    Hoje, Foster é casada com a fotógrafa Alexandra Hedison.

    1. Lisa Cholodenko

    A carreira da californiana Lisa Cholodenko serve como sinal de uma nova era da inclusão LGBTQ+ em Hollywood. Para ela, os desafios foram, de certa forma, invertidos aos das predecessoras nessa lista: em meados dos anos 1990, quando Lisa trabalhava como editora e assistente de direção e buscava fazer sua estreia como diretora, o cinema americano estava ansioso para mostrar que era um ambiente acolhedor para artistas LGBTQ+ — desde que eles contassem só histórias LGBTQ+.

    Em “High Art: Retratos Sublimes” (1998), seu primeiro filme, Cholodenko criou uma mistura memorável de drama romântico e thriller psicológico, contando a história de uma jovem jornalista (Radha Mitchell) que, ao descobrir que uma famosa fotógrafa (Ally Sheedy, de “O Clube dos Cinco”) mora em seu prédio, se envolve romanticamente com ela — tanto como uma forma de avançar a carreira quanto como uma maneira de expressar um desejo reprimido há muito tempo.

    Tendo garantido a estreia, ela buscou expor suas obsessões como artista em outros metièrs: “Laurel Canyon” (2002) foi um drama neurótico de disfunção familiar; “Cavedweller” (2004) trazia elementos musicais para a trama sobre uma mulher encarando uma relação abusiva do passado; e “Minhas Mães e Meu Pai” (2010), o único outro longa de protagonismo lésbico na carreira da diretora, se voltava para uma comédia sutil de costumes.

    O trabalho de Cholodenko na TV também é notável — ela não só emprestou seu talento para séries estabelecidas durante alguns episódios, como comandou uma produção inteira, imprimindo sua marca nela: “Olive Kitteridge” (2008), que traçava os 25 anos de casamento de uma mulher “comum” (Frances McDormand), rendeu um Emmy à diretora.

    Cholodenko namora há anos com a instrumentista Wendy Melvoin (ex-The Revolution e compositora de trilhas para TV, como “Heroes” e “Nurse Jackie”), com quem teve um filho, Calder.

    1. Nisha Ganatra

    A história de uma mulher indiana lésbica que aceita ser barriga de aluguel para a sua irmã mais velha, que acaba de descobrir que é infértil, “Chutney Popcorn” (1999) anunciou a chegada de Nisha Ganatra como uma voz hábil, gentil e única no cinema americano. No entanto, histórias LGBTQ+ com pessoas não-brancas, em geral, seguiam sendo raridades no mainstream, e Nisha entrou para a lista desonrosa de grandes talentos que foram mantidos na “geladeira” por muito tempo em Hollywood.

    Apesar de ter conseguido completar as comédias “Fast Food High” (2003) e “Cake: A Receita do Amor” (2005), Ganatra passou anos amargando bicos televisivos e projetos independentes que nunca ganharam um lançamento amplo o bastante para de fato chegar ao conhecimento de um público significativo — até chegar “Talk Show: Reinventando a Comédia” (2019), projeto levado a ela pela amiga Mindy Kaling.

    Trazendo a marca indelével de Ganatra, dona de um estilo de contar histórias que faz com que nos sintamos próximos aos personagens, “Talk Show” mistura clichês da comédia blockbuster hollywoodiana com uma mensagem certeira: diversidade traz renovação, e renovação é um bom negócio em um mundo que nunca para de mudar. Parte disso é o roteiro afiado de Kaling, sim, mas é a câmera e Ganatra que extrai os melhores significados dele — o que também é verdade no seu filme mais recente, “A Batida Perfeita” (2020).

    Nascida no Canadá, de família indiana e formada em Nova York, abertamente lésbica e sem medo de falar sobre isso desde o começo da carreira, Nisha Ganatra chegou a Hollywood trazendo uma franqueza refrescante para as histórias que o cinema mais vigiado do mundo estava disposto a contar. Que o seu recente retorno aos holofotes seja para valer.

    1. Lucrecia Martel

    O cinema argentino é um dos mais prolíficos, celebrados e interessantes da atualidade — e Lucrecia Martel é parte crucial disso. Para entender a “história de origem” dessa mulher extraordinária, basta assistir aos seus três primeiros longas: “O Pântano” (2001), “A Menina Santa” (2004) e “A Mulher Sem Cabeça” (2008).

    Todos são retratos de angústia moral, perturbação familiar e revolta feminina na província de Salta, na Argentina, onde a própria Martel nasceu e foi criada por uma família de classe média que, nas suas próprias palavras, “era profundamente dedicada ao ato de contar histórias”. Todos foram aclamados pela crítica, o que levou muitos a definirem Martel como uma das artistas mais relevantes em atividade no cinema atual.

    A “trilogia de Salta”, como os acadêmicos se acostumaram a chamar os três primeiros longas da argentina, demandou tanto cineasta que ela se afastou por quase uma década dos longas-metragens. O retorno aconteceu com “Zama” (2017), que demonstrou tanto a versatilidade (trata-se de um épico romântico com protagonismo masculino, que se passa na Espanha do século XVIII) quanto a consistência temática e artística de Martel — esta é mais uma história de alguém tentando tomar o controle de sua vida, afinal.

    Martel fala de sua lesbiandade desde os primeiros instantes sob os holofotes, contando em entrevista que se assumiu para a família durante a première do seu primeiro filme, para que pudesse falar francamente também com o público. A cineasta atualmente namora a cantora Julieta Lasso.

    1. Alice Wu

    Alice Wu tem mais uma daquelas histórias que te fazem odiar o que uma máquina empresarial gigantesca como Hollywood é capaz de fazer com quem desafia a ordem vigente de uma forma significativa. Em 2004, “Livrando a Cara” fez isso — e, como consequência, nós não ouvimos mais falar de sua diretora e roteirista por dezesseis longos anos.

    O longa de estreia de Wu seguia uma jovem médica taiwanesa (Michelle Krusiec) que, embora seja bem-sucedida em todas as áreas de sua vida, ainda não teve coragem de se assumir lésbica para a família, temendo o choque com a cultura tradicionalista que eles representam. Duas coisas acontecem, no entanto, para tirá-la da estagnação: a sua mãe (Joan Chen) é expulsa da casa dos avós por ter engravidado de novo (sem se casar); e ela conhece Vivian (Lynn Chen), por quem imediatamente se sente atraída.

    “Livrando a Cara” não foi um grande hit de bilheteria, mas se tornou um queridinho cult, daqueles que são capazes de impulsionar um diretor para projetos muito maiores — se este diretor não for uma mulher, lésbica, asiática. Logo, 16 anos se passaram (com alguns projetos que nunca saíram do papel) até que ela conseguisse fazer “Você Nem Imagina”, um dos maiores sucessos da Netflix em 2020.

    Apesar de também ser protagonizado por uma jovem asiática com problemas para sair do armário, o filme surpreende ao adotar o ponto de vista adolescente e sublinhar a importância da amizade, muito além da importância do “primeiro amor”, neste processo — o que, acredito, seja certeiro para qualquer um que passou por ele. 

    Com um estilo genuíno e profundidade narrativa de sobra, Alice Wu é uma voz que fez falta enquanto estava calada. Que ela tenha mais espaço para falar daqui para frente.

    1. Céline Sciamma

    Uma constante na filmografia formalmente estonteante, espetacularmente ousada da francesa Céline Sciamma é sua fascinação com sexualidade e gênero, especialmente nas fases formadoras da infância e da adolescência. Sua estreia, “Lírios D’Água” (2007), retrata as aventuras e desventuras sexuais de quatro jovens (três garotas, um rapaz) de um time de nado sincronizado; o filme seguinte, “Tomboy” (2011), faz confusão de propósito sobre a identidade de gênero do personagem principal, de 10 anos de idade.

    “Eu queria deixar as hipóteses abertas quando estava construindo o personagem. Não para evitar respostas, mas para fazer com que o filme fosse mais complexo e exato. É isso que me interessa na infância. É um momento em que todo mundo finge ser alguém que não é por uma tarde, ou inventa histórias sobre si mesmo. Eu fiz o filme com muitas camadas, para que uma pessoa trans pudesse olhar para ele e dizer: ‘esta é minha história’; mas uma mulher heterossexual pudesse dizer o mesmo. O filme cria uma ligação, é isso que importa”, comentou, na época do lançamento.

    “Garotas” (2014) brinca de forma similar com essa identificação em múltiplas camadas, mas inclui questões de raça e desigualdade econômica na receita de turbulência na qual Sciamma parece prosperar como artista. Tudo para chegar na apoteose que foi “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (2019), o primeiro filme com protagonismo lésbico explícito da francesa — e uma mudança radical de paradigma para a filmografia contemporânea.

    https://youtu.be/YKTpig51ajI

    O filme, que se passa no século 18 e retrata o caso de amor entre uma pintora (Noémie Merlant) e sua retratada (Adèle Haenel), jogou para o alto as “regras” da representatividade lésbica no mainstream e criou um conto radical de beleza plástica e poética ímpares, demonstrando voracidade ímpar em sua missão de expor cenas essencialmente femininas que ficaram de fora do olho vigilante do cinema por décadas.

    1. Dee Rees

    Dee Rees tinha quase 30 anos de idade quando conseguiu o seu primeiro trabalho no cinema, como assistente do lendário Spike Lee em filmes como “O Plano Perfeito” (2006). Spike era o seu professor na Tisch School of the Arts, onde ela entrou tardiamente após anos em empregos de vendedora. Mais cinco anos se passaram até ela conseguir arrecadar dinheiro o bastante para fazer “Pariah” (2011), o seu primeiro longa-metragem.

    Assistindo ao filme, é óbvio que ele é a obra de uma mulher de maturidade excepcional para uma estreante. O caráter autobiográfico da trama, em que uma jovem negra de ascendência liberiana aos poucos descobre sua lesbiandade e entra em conflito com a família por causa disso, é a primeira de muitas camadas de “Pariah”, uma experiência sinestésica impressionante, que expõe a forma de fazer cinema instintiva, voraz de Rees.

    Ela retornou em “Bessie” (2015), que mostrou a mesma verve ao retratar a vida da lendária cantora de jazz Bessie Smith (Queen Latifah), ela mesma uma mulher bissexual. Já em “Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi” (2017), ela impressionou ainda mais por abraçar entusiasticamente um livro complexo de Hillary Jordan e transformá-lo em um épico emocionalmente cru, profundamente marcante.

    O cinema caótico de Rees pode ter falhado recentemente em “A Última Coisa que Ele Queria” (2019), um filme confuso cheio de boas intenções, mas pouca ideia de como se comunicar com o espectador — mas isso não muda a relevância e a tensão essencial que sua voz traz para o cenário cinematográfico da atualidade. A torcida é para que ela tenha uma chance de se recuperar do tropeço.

    Rees é casada com a poeta Sarah M. Broom, com quem vive no bairro de Harlem, em Nova York (EUA).

    Cena de “O Par Perfeito”, de Rose Troche

    Menções honrosas: Rose Troche (“O Par Perfeito”, “Encontros do Destino”), Jamie Babbit (“Nunca Fui Santa”, “O Preço do Silêncio”), Patricia Rozema (“I’ve Heard the Mermaids Singing”, “Palácio da Ilusões”), Angela Robinson (“D.E.B.S.: As Super Espiãs”, “Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas”).

    Veja também: Nas Eleições 2018, as pessoas LGBTQ+ descobriram quem é Aliado com A maiúsculo

    Veja também: https://jornalistaslivres.org/nas-eleicoes-2018-as-pessoas-lgbtq-descobriram-quem-e-aliado-com-a-maiusculo/