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Tag: Meritocracia

  • DANIEL HÖFLING: Onipresença e Onisciência Neoliberal

    DANIEL HÖFLING: Onipresença e Onisciência Neoliberal

    O comportamento aparentemente descabido do inacreditavelmente ainda presidente Jair Messias Bolsonaro impressiona sob vários aspectos. Não há líder no planeta que combine tantas aberrações. Qual presidente no mundo sairia às ruas com a possibilidade de estar infectado e daria a mão aos seus eleitores? Qual presidente demitiria um ministro da saúde em meio à pandemia? Qual presidente discursaria ao lado de uma faixa pedindo intervenção militar e fechamento dos poderes Legislativo e Judiciário? Qual presidente afirmaria que tudo não passa de uma gripezinha e que, dado seu histórico de atleta, passaria incólume num eventual contágio? Pode até ser que um transloucado fizesse uma ou duas das coisas acima; todas não. Uma possível explicação para tais bizarrices seria acometimento de loucura.  Um fascista que leva suas atitudes às últimas consequências, colocando sua vida e a de seus apoiadores em risco, seria outra justificativa “plausível”. Um narcisista com a crença absoluta de ter sido ungido por Deus para livrar o Brasil de todos os males e instaurar o paraíso na terra, outra boa explicação. Entretanto, o problema nos parece ainda maior.

    Sem dúvida, Bolsonaro é um pouco de tudo isso: louco, fascista, narcisista eleito por Deus. Mensurar o peso de cada uma dessas variáveis na formação de sua personalidade e no condicionamento de suas atitudes é impossível e desnecessário. O que importa no debate acerca do comportamento do presidente bem como da sua capacidade de manutenção no poder é (re) acrescentarmos dois fatores “adicionais”, em grande medida negligenciados desde o começo da pandemia: 1) a crença do presidente nas ilusões do livre mercado e 2) o apoio dos atores econômicos/sociais/políticos interessados na vitória inconteste do projeto neoliberal. Parece lugar comum insistir no poder ideológico do neoliberalismo e na força do credo de seus agentes. O assunto começa a ficar desgastado. Logo vem alguém e diz: “Tudo é culpa dos interesses econômicos? ” “Esse papo já deu o que tinha que dar, muda o disco! ”. Entretanto, me parece que é hora de escutarmos o disco novamente e com mais atenção…

    É importante explicitarmos que o liberalismo econômico, em termos quantitativos, é a ideologia que mais abarcou adeptos na história da humanidade. Nenhuma religião, isoladamente, contemplou tantos fiéis. Nunca um conjunto de valores desenrolou-se com maior assiduidade e profundidade no cotidiano das pessoas do que os preceitos liberais. Pelos quatro cantos do mundo bilhões de seres humanos vivem e morrem há séculos movidos pela concorrência, meritocracia e amor ao dinheiro.

    Não seria exagero afirmar que tais valores são os fatores que mais impactaram o consciente e o inconsciente da maioria dos terráqueos nos últimos 300 anos. A ideologia liberal está presente em nossas vidas com muito mais intensidade do que qualquer outro pensamento ou sentimento; é o substrato da quase totalidade das nossas ações bem como das nossas relações sociais. De tão intensa e presente, passa despercebida; naturalizou-se. Justamente por isso, jamais podemos menosprezar sua força e capacidade em condicionar os acontecimentos não somente econômicos como também sociais e políticos. Senão vejamos.

    Bolsonaro, bem como seus apoiadores, querem que a economia volte à “normalidade” (como se isso fosse possível). Voltar à normalidade, para eles, é colocar a economia em funcionamento. É deixar o setor privado trabalhar. É liberar as forças de mercado para gerarem emprego e renda; portanto, é prescindir do auxílio estatal. Na sua lógica o Setor Público não tem dinheiro para sustentar pessoas e negócios; precisa economizar recursos para pagar a dívida pública pois, extinguindo-a, o empresariado sentir-se-á confiante e ampliará seus investimentos, culminando em maior crescimento econômico, geração de renda e bem-estar. Nada mais liberal que isso! Entretanto, não é preciso desenhar para demonstrar tamanha falácia. Basta dizer que o principal fator de estímulo ao investimento privado é a perspectiva de demanda futura; nenhum empresário olha a relação dívida/PIB para investir. E, como qualquer aluno de primeiro ano de economia sabe, a demanda do amanhã deriva do investimento e do consumo público e privado de hoje. Logo, cortar gastos do setor público em tempos de crise é a receita certa ao aprofundamento da recessão.

    A tática do governo é clara. Concede recursos públicos insuficientes à manutenção mínima da renda e do emprego agregados. Os negócios começam a quebrar, o desemprego aumenta, a população sofre. O tecido social começa a se desestruturar. Aí Bolsonaro avisa: “Se não voltarmos à normalidade, o povo brasileiro irá sofrer; o povo precisa trabalhar”. A pressão dos seus apoiadores aumenta e, gradativamente, o isolamento vai abrandando. As pessoas voltam às ruas, o comércio reabre, a vida parece voltar ao normal… Só que esqueceram (ou não se importaram) que estamos entrando na pior fase da pandemia; todo o esforço pretérito será jogado no lixo. A tentativa de isolamento vertical num país cuja pobreza é horizontal será uma catástrofe. A pressão ao fim do isolamento aumenta na pior hora possível…

    Todos juntos pelo Deus Mercado

    Devemos nos perguntar de onde vem essa pressão. A resposta, infelizmente, é clara: de todos os setores e classes sociais. É bom repetir: a pressão pelo fim do isolamento cresce em todos os setores e classes sociais, simplesmente porque o liberalismo é onipresente e onisciente. Os argumentos para o fim do isolamento parecem variados mas possuem raízes comuns: a necessidade premente de sobrevivência dos mais pobres, a manutenção dos ganhos extrativos dos mais ricos, o desejo de ir à academia ou às compras não importando as consequências alheias, tudo é decorrência do domínio neoliberal. Os menos favorecidos precisam trabalhar porque, infelizmente, o governo atual os abandona; os ganhos superelevados dos mais abastados ocorrem porque não há mecanismos extra mercantis para regulá-los; a vontade de fazer o que quiser objetivando o gozo individual, sem pensar no próximo… nada mais liberal do que tais “necessidades”!

    Não precisamos nos aprofundar muito para concluir a dissonância entre retórica e prática do discurso liberal. Ao prometer liberdade, riqueza e felicidade, entrega submissão e controle, desigualdade e pobreza, angústia e insatisfação permanentes. O enorme poder da ideologia liberal no imaginário da sociedade brasileira reflete não só a manutenção de Bolsonaro na presidência como também parte considerável dos males econômicos, sociais e políticos que nos afligem há décadas. Entretanto, essa letargia pode ser interrompida! A atual crise econômica nos dá a oportunidade de repensarmos nossos valores e crenças intuindo a construção de um país justo, digno e ambientalmente sustentável. A onipresença e onisciência liberal nos tornou conformistas; precisamos nos indignar! Não aceitar as coisas como elas são, mas sim lutar pelo que deveriam ser! Precisamos debater, refletir e agir politicamente! Isso nos moverá em direção a um Brasil e a um mundo melhor! Nossas próximas sessões se dedicarão a contribuir com isso.

    Daniel de Mattos Höfling

    é doutor em Economia

    pela Unicamp

    (Universidade Estadual de Campinas)

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  • Valores da periferia de SP: quatro opiniões

    Valores da periferia de SP: quatro opiniões

    A pesquisa qualitativa, Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo, realizada pela Fundação Perseu Abramo, gerou discussões e interpretações nas várias cores do espectro ideológico. A direita e a extrema direita a usaram para realçar e propagandear os valores liberais dos moradores da periferia paulistana. A esquerda reagiu de maneira variada, classificando-a de inadequada e inoportuna, e até, por outro lado, louvando o aprofundamento do tema que ela proporcionou.

    Pinçamos, nesse texto, ideias dos três sociólogos reunidos na Fundação Perseu Abramo para discutir a pesquisa, Andréia Galvão, Sérgio Fausto e Giovanni Alves, bem como da entrevista com Gabriel Feltran, ouvido pela Pública.

    Não me parece que as perguntas da pesquisa permitam

    sustentar a conclusão de que para a população

    não há luta de classes e de que o Estado é o inimigo.”

    Andréia Galvão

    Embora considere legítima e adequada a metodologia da pesquisa, Andréia Galvão aponta que as perguntas foram muito amplas e muito abrangentes, o que dificulta chegar às conclusões indicadas pelos próprios pesquisadores. Sua opinião é de que as perguntas deveriam ter sido mais fechadas e mais alinhadas às hipóteses da pesquisa.

    Sobre a conclusão da pesquisa de que a polarização política não é bem definida ou é inexistente para o público estudado, ela realça a diferença que existe entre uma pessoa, por um lado, se reconhecer como pertencente à direita ou à esquerda, ou como conservadora ou progressista, e, por outro lado, ser confrontada com posições que podem ser definidas como sendo de direita ou de esquerda.

    Andréa Galvão exemplifica: “Poderíamos perguntar para o sujeito: ‘Você é homofóbico?’ E ele dizer: ‘Não, não sou, não me reconheço nessa categoria’. Mas, ainda assim, expressar posições que são posições homofóbicas.” O resultado da pesquisa seria mais evidente e objetivo se fossem pedidas avaliações dos entrevistados sobre políticas concretas.

    Com relação ao empreendedorismo referido na pesquisa como aspiração dos entrevistados, a professora questiona que ele pode estar mais relacionado a uma estratégia de sobrevivência pela falta de oferta de postos de trabalho assalariado, e menos a “uma aspiração ideológica a virar patrão”.

    Ela conclui: “A análise dos resultados da pesquisa ganha se a gente consegue destacar e reforçar esses aspectos contraditórios. O conservadorismo no plano dos costumes, que nem aparece muito na pesquisa, não necessariamente equivale à defesa da liberdade econômica, da não-intervenção do Estado, do mercado como valor, e vice-versa. A crítica à ineficiência do Estado, o desejo de consumo individual não equivale a demanda de menos Estado ou de menos bens de consumo coletivo. Eu não vejo liberalismo aqui.”

    “A gente precisa levar em consideração essas três dimensões:

    o global, o que é brasileiro, do ponto de vista da transformação da sociedade,

    e o momento político que nós estamos vivendo que afeta essa paisagem.”

    Sérgio Fausto

    Buscando concluir que os sindicatos e os partidos estão perdendo representatividade e sendo substituídos por outras formas de intermediação, Sérgio Fausto afirma: “O que a gente sabe que está acontecendo? A gente sabe que está acontecendo, primeiro, uma mudança, que não é só no Brasil, em que as sociedades estão se tornando mais heterogêneas, em que as identidades se definem menos em função das posições ocupadas no mercado de trabalho. As classes, tal como concebidas a partir do século XIX, são categorias de análise, hoje, que têm, digamos, uma aderência mais complicada com a realidade. Isso não significa dizer que o conflito distributivo acabou. Mas as identidades se formam a partir de outros elementos também”.

    Para ele as categorias surgidas no século XIX não dão conta de explicar a realidade atual e darão menos ainda com a substituição do trabalho humano por máquinas inteligentes.

    Focando no Brasil, Fausto aponta a ascensão social ocorrida nos últimos anos e a regressão atual: “Você tem uma transformação brasileira de um processo de mobilidade social bastante acentuado, que se deu num curto espaço de tempo e que chega a um fim abrupto. Então, essa pesquisa é colhida num momento em que ‘deu ruim’, ‘deu ruim’ para muita gente que experimentou o plano de saúde privado, a escola privada, e voltou para o sistema público. O que vai resultar dessa experiência, não é claro. Uma sociedade, ainda que não esteja politizada nesse nível sofre os efeitos do colapso do sitema político, tal como ele se organizou no período da redemocratização. Que afetou o PT de maneira muito dura, e não só o PT.”

    “Essa pesquisa está mostrando um Brasil que está num desmonte.”

    Giovanni Alves

    Giovanni Alves contrapõe dois momentos do país: as décadas de 1950 e 1960, em que nos encontrávamos na ascensão história do capitalismo industrial, e as décadas de 2000 e 2010, em que experimentamos a decadência do capitalismo industrial . Afirma ele: “a desindustrialização muda todo o sentido produtivo no caso de uma metrópole como São Paulo”

    “Nos anos 60, você tinha elementos de uma tremenda ideologia que buscava quebrar essa percepção da luta de classes e, de certo modo, passar aquela ideia de que patrão e empregado pertenciam a uma mesma comunidade produtiva. Se formos verificar, temos elementos de continuidade e descontinuidade na miséria das camadas populares nas metrópoles nesse país.”

    Ele salienta aspectos mais gerais do capitalismo global e enfatiza que as mudanças em curso não são singulares do Brasil ou de São Paulo: “Eu salientaria a questão do desmonte do mundo do trabalho, esse aprofundamento da precarização do trabalho nas suas mais diversas dimensões. Isso é um dado que explica muito dos resultados dessa pesquisa”.

    O professor chama atenção para um aspecto que julga pouco lembrado a “precarização das condições existenciais do trabalho vivo”, a falta de sentido de vida oriundo do trabalho. Sindicatos e partidos burocratizaram-se e não se preocuparam com esse aspecto. Para ele a valorização das igrejas e das famílias significa a ocupação, por essas instituições, do vazio de sentido da atividade profissional. As igrejas neopentecostais estão “dentro de uma lógica de mundo, onde alienação se aprofundou a uma dimensão que as pessoas estão recorrendo a esses espaços e não tem volta”.

    Nas conclusões da pesquisa encontramos que “no processo de formação de opinião, as condições materiais de vida e do cotidiano são preponderantes”. Giovanni Alves ressalta esse aspecto como “fundamental para a formação de uma consciência de classe.”

    Ele conclui que teremos outros resultados na ação social “no dia em que essas pessoas tiverem a consciência clara de que não existe mercado para todos”.

    “As esquerdas perderam votos na periferia quando deixaram de ser esquerdas.”

    Gabriel de Santis Feltran

    Feltram, com base na diversidade de formas de ver o mundo nos bairros periféricos, opina que os “jovens” pesquisadores da Fundação Perseu Abramo “não deram conta dessa diversidade e acabaram homogeneizando demais a interpretação”. Para ele é “bem perigoso” imaginar homogeneidade nas periferias que são, ao contrário, crescentemente, heterogêneas.

    Ele nos lembra que “nas eleições municipais as periferias de São Paulo elegeram a Erundina, o Maluf, o Pitta, a Marta, o Kassab, o Haddad e o Doria. Mas, veja, elas votaram no Lula, majoritariamente, desde 1989”.

    Sua avaliação, ainda assim, é que as esquerdas perderam votos na periferia quando se distanciaram e consideraram que a base era “menos importante eleitoralmente do que televisão e políticas populares, de melhora do bem estar, como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, etc. Não há espaço vazio em política. Outros grupos, como as polícias militares (que têm horas de programa diário na TV aberta, dentro das casas das periferias, com figuras carismáticas como apresentadores), os evangélicos (com suas ações midiáticas e de base), bem como o empreendedorismo do mercado de trabalho, têm estado bem mais perto. E estando perto, ganham eleição ali”.

    Notas

    1 Andréia Galvão é professora do Departamento de Ciência Política da Unicamp

    2 Sérgio Fausto é superindente do Instituto Fernando Henrique Cardoso e da USP

    3 Giovanni Alves é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Unesp

    4 Gabriel de Santis Feltran é professor do Departamento de Sociologia da UFSCar

    5 Para ler a entrevista de Feltran: http://apublica.org/2017/04/as-esquerdas-perderam-votos-na-periferia-quando-deixaram-de-ser-esquerdas-diz-pesquisador/

    6 Para assitir o debate completo reaizado na FPA: https://www.facebook.com/fundacao.perseuabramo/videos/1414378015288766/

  • A meritocracia e o fantástico mundo do Holiday

    A meritocracia e o fantástico mundo do Holiday

    A ideia de uma sociedade livre, onde cada indivíduo a partir do seu próprio esforço deve construir a sua trajetória, é bastante sedutora. Afinal, somos todos humanos e capazes, portanto, podemos chegar onde quisermos e senão atingir os objetivos estabelecidos, a culpa é única e exclusivamente sua. O Estado, estruturado por 3 poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, deve ter leis rígidas e claras: todos cidadãos devem ser tratados igualmente perante a lei.

    Esses são alguns parâmetros do conceito do Liberalismo, que forma o discurso eloquente do mais novo vereador eleito pela cidade de São Paulo, Fernando Holiday, que já anunciou em suas redes sociais que suas primeiras medidas serão o combate ao vitimismo, fim das cotas raciais em concursos públicos e a revogação do dia da Consciência Negra.

    Holiday, jovem, negro e gay, ganhou muita visibilidade nas redes sociais por atacar o movimento negro e as políticas de promoção da igualdade racial, pois acredita que estas reforçam o racismo. O vereador também se projetou como uma liderança do Movimento Brasil Livre (MBL).

    Se o racismo não é algo importante na realidade brasileira, se as negras e os negros estão em pé em igualdade com os não negros e a partir do seu esforço individual, sem a presença do paternalismo do Estado, podem ascender-se socialmente, porque o próprio Holiday insiste tanto em debater esse tema?

    Seria porque o seu amigo Kim Kataguiri (MBL) é visto como um jovem intelectual, figura da nova geração de liberais e assim, o vereador só consegue se projetar com um discurso raivoso contra o movimento negro e as políticas de combate ao racismo?

    Holiday é vítima, e ao mesmo refém, da pauta que ele diz combater. Sua ascensão como liderança está condicionada a pauta racial, sua estética lhe dá legitimidade para fazer um discurso que um branco de classe média jamais poderia fazer. É um exemplo perfeito para a busca de uma narrativa eficiente na desconstrução da luta histórica do povo negro.

    É interessante notar como ao longo da história, a elite brasileira sempre buscou formas de apagar, ou minimizar, os impactos do que foi o colonialismo, o escravismo até hoje. O discurso da democracia racial é o maior exemplo disso, pois sempre buscou, a partir da incorporação de elementos da cultura negra e indígenas como parte de uma identidade nacional, esvaziando os conflitos e as assimetrias étnicas construídas ao longo da história, refletindo em uma profunda desigualdade econômica, social e cultural.

    O movimento negro brasileiro se dedicou longos anos para desconstruir a idéia de uma democracia racial. Existindo duas frentes para essa desconstrução, sendo uma com a iniciativa de forçar o Estado a reconhecer a existência do racismo como fruto de um processo histórico escravista e portanto, era necessário a aplicação de políticas reparatórias de promoção da igualdade racial. Deriva dessa luta a formação da Fundação Palmares, o racismo como crime inafiançável, a proposta de cotas nas universidades e no serviço público, na formação de diversos órgão municipais, estaduais e nacionais na promoção da igualdade racial.

    A segunda frente foi no campo cultural, com o fortalecimento de uma identidade negra e da afirmação estética que foi produzindo um aumento significativo de autodeclarados pretos e pardos nos sucessivos censos. O momento de avanço desse projeto se deu nos governos Lula/Dilma com a criação da Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e da política de cotas nas Universidades Públicas Federais, como o ProUni e FIES que garantiram o acesso nas universidades particulares. Além de cotas no funcionalismo público, e políticas econômicas como o bolsa família, a valorização do salário mínimo, o aumento da oferta de crédito. Medidas que mexeram na dinâmica social brasileira, abrindo oportunidades para diversos setores historicamente excluídos, mas que mostraram os seus limites, pois não foram capazes de enfrentar as bases estruturais da desigualdade, como a concentração de riqueza, latifúndio e o monopólio midiático.

    No auge da aplicação dessas políticas econômicas e sociais, que geraram certa mobilidade social no núcleo de poder encabeçada por Lula e pelo PT, abriram mão do debate ideológico e da disputa de consciência, da exaltação das saídas individuais, e da construção fantasiosa de uma narrativa da formação da nova classe média reforçou no imaginário popular conceitos liberais, com a possibilidade de ascensão social e melhorias da qualidade de vida se dando por meio de ações individualizadas.

    É neste contexto que cai como uma luva o discurso do Fernando Holiday, reforçando a ideia de que os programas sociais, as políticas de cotas e sistema público de saúde e educação formam um paternalismo de Estado que impede o desenvolvimento individual das pessoas. A maior força do discurso do vereador é também a sua maior fragilidade. É muito cômodo dizer que todos são iguais perante a lei, e que só através do esforço individual as pessoas poderão melhorar sua condição de vida. Além de afirmar que qualquer política que busque diminuir as desigualdades é vitimismo.
    É curioso que a política de juros altíssimos que geram super lucros para os bancos e uma dívida pública que consome 46% do orçamento federal não seja considerado vitimismo. Ou que o incentivo fiscal que anistia empresas a pagarem impostos não seja considerado vitimismo. Ou que a inexistência de impostos que taxem lucros dos empresários, heranças e patrimônio não seja considerado vitimismo. Ou seja, tudo o que beneficia o andar de cima, que transforma o Brasil em um dos países mais desiguais do mundo não é considerado vitimismo. Trocando em miúdos, para Holiday, o Estado só deve atuar para manter os privilégios das elites que se mantêm no poder há mais de 500 anos e reprimir com leis duras os mais pobres.

    Será que no fantástico mundo de Holiday, ele também acredita ser vitimismo quando no ano passado, cerca de 160 pessoas foram assassinadas por dia no Brasil? Somando no total, 58.383 pessoas mortas violentamente e intencionalmente no país? Sendo 70% dessas mortes são praticadas contra jovens, negros e pobres?

     

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    Outro ponto importante do seu discurso é a ideia de meritocracia que se embasa na afirmativa de que todos são iguais e têm condições de disputar qualquer espaço na sociedade.

    No debate das cotas, é possível exemplificar a fragilidade do discurso liberal. Como por exemplo, o vestibular ou um concurso, nada mais é do um conjunto de regras e equações, e aqueles que estiverem melhor treinados para aqueles padrões são os que tem o melhor desempenho. Avaliações como estas, não medem conhecimento ou capacidade de aprendizagem, apenas reflete os que estão mais preparados com esse padrão de prova.
    Para quem acredita na meritocracia, o fato de todos os concorrentes lutarem por uma vaga e realizarem a mesma prova, com o mesmo tempo disponível, ou seja, com regras bem estabelecidas, já garante uma igualdade de condições, sendo aqueles que obtiverem o melhor resultado são os “merecedores”.

    Porém, analisarmos esse mesmo processo seletivo levando em consideração o contexto histórico e as distintas trajetórias, veremos que os vestibulares e os concursos são grandes funis sociais.

    Como por exemplo, uma jovem de classe média, que estuda em uma escola particular pela manhã, faz cursinho a tarde com preparatório para o vestibular e acompanhamento psicológico. E em contrapartida, outra jovem, moradora da periferia, que estuda à noite, pois durante o dia precisa trabalhar para ajudar na renda doméstica, e com muito esforço faz um cursinho popular aos sábados, não terão as mesmas condições para realizar a prova.
    A política de cotas nada mais é do que uma ação que busca diminuir o abismo entre essas duas trajetórias e garantir oportunidades para aqueles que historicamente foram excluídos, neste sentido, Holiday utiliza sua trajetória como exemplo de como é possível ascender pelo próprio mérito e estabelece isso como regra e não exceção.

    Por fim, no fantástico mundo de Holiday não devemos ter memória de resistência, o caminho que deve ser exaltado é dos bandeirantes, dos senhores de engenho, de heróis nacionais como Dom Pedro II, Tiradentes, José Bonifácio e os Constitucionalistas.

    O resumo da ópera então é que não podemos ser vitimistas. Não devemos cobrar políticas de reparação histórica do Estado Brasileiro, muito menos exaltar a nossa memória daqueles que se rebelaram contra o sistema colonial escravista.  Para Holiday o nosso papel histórico deve se resumir emtrabalhar, trabalhar e trabalhar. Caso o indivíduo não consiga nadana vida é porque não se esforçou o suficiente, e o restante fica tudo como está. Só que não!

    Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho, é jornalista, militante do movimento negro e presidente estadual do PSOL-SP.