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  • DANIEL HÖFLING: Onipresença e Onisciência Neoliberal

    DANIEL HÖFLING: Onipresença e Onisciência Neoliberal

    O comportamento aparentemente descabido do inacreditavelmente ainda presidente Jair Messias Bolsonaro impressiona sob vários aspectos. Não há líder no planeta que combine tantas aberrações. Qual presidente no mundo sairia às ruas com a possibilidade de estar infectado e daria a mão aos seus eleitores? Qual presidente demitiria um ministro da saúde em meio à pandemia? Qual presidente discursaria ao lado de uma faixa pedindo intervenção militar e fechamento dos poderes Legislativo e Judiciário? Qual presidente afirmaria que tudo não passa de uma gripezinha e que, dado seu histórico de atleta, passaria incólume num eventual contágio? Pode até ser que um transloucado fizesse uma ou duas das coisas acima; todas não. Uma possível explicação para tais bizarrices seria acometimento de loucura.  Um fascista que leva suas atitudes às últimas consequências, colocando sua vida e a de seus apoiadores em risco, seria outra justificativa “plausível”. Um narcisista com a crença absoluta de ter sido ungido por Deus para livrar o Brasil de todos os males e instaurar o paraíso na terra, outra boa explicação. Entretanto, o problema nos parece ainda maior.

    Sem dúvida, Bolsonaro é um pouco de tudo isso: louco, fascista, narcisista eleito por Deus. Mensurar o peso de cada uma dessas variáveis na formação de sua personalidade e no condicionamento de suas atitudes é impossível e desnecessário. O que importa no debate acerca do comportamento do presidente bem como da sua capacidade de manutenção no poder é (re) acrescentarmos dois fatores “adicionais”, em grande medida negligenciados desde o começo da pandemia: 1) a crença do presidente nas ilusões do livre mercado e 2) o apoio dos atores econômicos/sociais/políticos interessados na vitória inconteste do projeto neoliberal. Parece lugar comum insistir no poder ideológico do neoliberalismo e na força do credo de seus agentes. O assunto começa a ficar desgastado. Logo vem alguém e diz: “Tudo é culpa dos interesses econômicos? ” “Esse papo já deu o que tinha que dar, muda o disco! ”. Entretanto, me parece que é hora de escutarmos o disco novamente e com mais atenção…

    É importante explicitarmos que o liberalismo econômico, em termos quantitativos, é a ideologia que mais abarcou adeptos na história da humanidade. Nenhuma religião, isoladamente, contemplou tantos fiéis. Nunca um conjunto de valores desenrolou-se com maior assiduidade e profundidade no cotidiano das pessoas do que os preceitos liberais. Pelos quatro cantos do mundo bilhões de seres humanos vivem e morrem há séculos movidos pela concorrência, meritocracia e amor ao dinheiro.

    Não seria exagero afirmar que tais valores são os fatores que mais impactaram o consciente e o inconsciente da maioria dos terráqueos nos últimos 300 anos. A ideologia liberal está presente em nossas vidas com muito mais intensidade do que qualquer outro pensamento ou sentimento; é o substrato da quase totalidade das nossas ações bem como das nossas relações sociais. De tão intensa e presente, passa despercebida; naturalizou-se. Justamente por isso, jamais podemos menosprezar sua força e capacidade em condicionar os acontecimentos não somente econômicos como também sociais e políticos. Senão vejamos.

    Bolsonaro, bem como seus apoiadores, querem que a economia volte à “normalidade” (como se isso fosse possível). Voltar à normalidade, para eles, é colocar a economia em funcionamento. É deixar o setor privado trabalhar. É liberar as forças de mercado para gerarem emprego e renda; portanto, é prescindir do auxílio estatal. Na sua lógica o Setor Público não tem dinheiro para sustentar pessoas e negócios; precisa economizar recursos para pagar a dívida pública pois, extinguindo-a, o empresariado sentir-se-á confiante e ampliará seus investimentos, culminando em maior crescimento econômico, geração de renda e bem-estar. Nada mais liberal que isso! Entretanto, não é preciso desenhar para demonstrar tamanha falácia. Basta dizer que o principal fator de estímulo ao investimento privado é a perspectiva de demanda futura; nenhum empresário olha a relação dívida/PIB para investir. E, como qualquer aluno de primeiro ano de economia sabe, a demanda do amanhã deriva do investimento e do consumo público e privado de hoje. Logo, cortar gastos do setor público em tempos de crise é a receita certa ao aprofundamento da recessão.

    A tática do governo é clara. Concede recursos públicos insuficientes à manutenção mínima da renda e do emprego agregados. Os negócios começam a quebrar, o desemprego aumenta, a população sofre. O tecido social começa a se desestruturar. Aí Bolsonaro avisa: “Se não voltarmos à normalidade, o povo brasileiro irá sofrer; o povo precisa trabalhar”. A pressão dos seus apoiadores aumenta e, gradativamente, o isolamento vai abrandando. As pessoas voltam às ruas, o comércio reabre, a vida parece voltar ao normal… Só que esqueceram (ou não se importaram) que estamos entrando na pior fase da pandemia; todo o esforço pretérito será jogado no lixo. A tentativa de isolamento vertical num país cuja pobreza é horizontal será uma catástrofe. A pressão ao fim do isolamento aumenta na pior hora possível…

    Todos juntos pelo Deus Mercado

    Devemos nos perguntar de onde vem essa pressão. A resposta, infelizmente, é clara: de todos os setores e classes sociais. É bom repetir: a pressão pelo fim do isolamento cresce em todos os setores e classes sociais, simplesmente porque o liberalismo é onipresente e onisciente. Os argumentos para o fim do isolamento parecem variados mas possuem raízes comuns: a necessidade premente de sobrevivência dos mais pobres, a manutenção dos ganhos extrativos dos mais ricos, o desejo de ir à academia ou às compras não importando as consequências alheias, tudo é decorrência do domínio neoliberal. Os menos favorecidos precisam trabalhar porque, infelizmente, o governo atual os abandona; os ganhos superelevados dos mais abastados ocorrem porque não há mecanismos extra mercantis para regulá-los; a vontade de fazer o que quiser objetivando o gozo individual, sem pensar no próximo… nada mais liberal do que tais “necessidades”!

    Não precisamos nos aprofundar muito para concluir a dissonância entre retórica e prática do discurso liberal. Ao prometer liberdade, riqueza e felicidade, entrega submissão e controle, desigualdade e pobreza, angústia e insatisfação permanentes. O enorme poder da ideologia liberal no imaginário da sociedade brasileira reflete não só a manutenção de Bolsonaro na presidência como também parte considerável dos males econômicos, sociais e políticos que nos afligem há décadas. Entretanto, essa letargia pode ser interrompida! A atual crise econômica nos dá a oportunidade de repensarmos nossos valores e crenças intuindo a construção de um país justo, digno e ambientalmente sustentável. A onipresença e onisciência liberal nos tornou conformistas; precisamos nos indignar! Não aceitar as coisas como elas são, mas sim lutar pelo que deveriam ser! Precisamos debater, refletir e agir politicamente! Isso nos moverá em direção a um Brasil e a um mundo melhor! Nossas próximas sessões se dedicarão a contribuir com isso.

    Daniel de Mattos Höfling

    é doutor em Economia

    pela Unicamp

    (Universidade Estadual de Campinas)

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  • Fature-se ou FXXX-SE – MEC mente ao dizer que mercado vai investir em educação

    Fature-se ou FXXX-SE – MEC mente ao dizer que mercado vai investir em educação

    FUTURE-SE É O PROGRAMA
    DO DESMONTE DA UNIVERSIDADEOS FINANCISTAS DO MEC apresentaram hoje pela manhã o projeto Future-se, que busca alterar radicalmente o ordenamento jurídico, patrimonial, pedagógico, trabalhista e o papel social das Universidades públicas. Toda a apresentação tinha o figurino de encontro de negócios espertos. Não faltaram painel de Led e apresentador de bleiser azul marinho sem gravata a recitar vantagens para todos, promessas de happy startups, criação de fundos, investimentos, PPPs, organizações sociais e a possibilidade de professores “ficarem ricos”.”Nós nos inspiramos em Friedman”, foi dito a certa altura. Às escâncaras, trata-se de um acelerado processo de privatização das instituições públicas, que ganharão suposta eficiência e vinculação ao mercado, como as krotons da vida.NO GOVERNO FHC, anos 1990, as privatizações eram alardeadas como forma de se superar a chamada ineficiência estatal, a falta de telefones, as carências no mercado de energia, os cabides de emprego, os cartórios corporativos etc. etc. Para chegar ao objetivo pretendido, foi preciso massacrar a opinião pública com a ladainha de que a venda de estatais era o segredo para a superação de nosso “atraso”, e que com auxílio do mercado estaríamos em sintonia com o “primeiro mundo”.

    No governo Bolsonaro, nem argumentos desse tipo há mais. Existe chantagem, feita por quem nada tem a ver com educação. Cortam-se orçamentos – o que inviabiliza de imediato o funcionamento das instituições – , coloca-se a faca no pescoço de reitores, professores, alunos, técnicos administrativos e monta-se um teatro midiático, cuja adesão seria opcional.

    A UNIVERSIDADE PÚBLICA BRASILEIRA é um modelo internacional de sucesso. Ela não apenas produz ciência de ponta, como se volta – na maior parte dos casos – para a resolução de problemas concretos e materiais da sociedade. A “torre de marfim” autossuficiente tornou-se anacrônica, em especial ao longo das últimas décadas, fruto da expansão de unidades pelo país.

    O aumento do número de vagas, as políticas de cotas e sua presença cada vez maior na vida pública faz dessas instituições a marca de um Estado que verdadeiramente se articula com as demandas sociais. Temos aqui algo raro nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental: universidades de massa, amplas, plurais e financiadas com o dinheiro dos impostos.

    HÁ UMA DÉCADA, o documentário “Inside job”, de Charles Ferguson, ganhou o Oscar da categoria ao fazer uma varredura profunda nas causas e consequências do tsunami financeiro originado nos EUA, em 2008. Secundariamente, a fita exibiu a imensa teia de interesses privados que se sobrepõem à Universidade estadunidense. Lá, é bom lembrar, cresce a legião de jovens inadimplentes que não conseguem arcar com os altos custos das anuidades (O ministro da Educação afirma que não haverá cobrança de anuidades. Por enquanto).

    Três professores de Harvard – também operadores no mercado financeiro – foram desmascarados diante das câmeras por darem aval acadêmico à saúde financeira de empresas e países a peso de ouro.

    Harvard é um centro de excelência global, especialmente nas áreas de Direito e Finanças. Tem cerca de 23 mil alunos e é privada. A USP tem 95 mil alunos e é pública.

    SEGUNDO O CENSO DA Educação Superior do INEP, o Brasil possui “296 Instituições de Educação Superior (IES) públicas e 2.152 privadas, o que representa 87,9% da rede. Das públicas, 41,9% são estaduais; 36,8%, federais e 21,3%, municipais. Quase 3/5 das IES federais são universidades e 36,7% são Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets)”.

    Com raríssimas exceções, a pesquisa está concentrada nas públicas. Por esse motivo, é aí que se concentra o pensamento crítico e seus resultados em diversas áreas se traduzem em importante apoio para políticas públicas.

    Os milicianos da gestão Bolsonaro não conseguem externar a mesma distorção conceitual que fazem no debate da Previdência, de que “o sistema dá prejuízo”.

     

    Se olharem apenas para o que o orçamento do MEC, com pensamento terraplanista de contador, “o sistema dá prejuízo”, sim.

    O raciocínio é evidentemente torto. Direitos e serviços públicos não são negócios regidos pelas sacrossantas leis do mercado, mas pelo benefício universal que geram. O modelo de gestão proposto pelo “Future-se” é o “Vire-se” para captar recursos. Quem conseguir dinheiro, segue funcionando – com alta ingerência de investidores nos conteúdos pedagógicos – e quem não conseguir, adentrará literalmente no programa “Foda-se”

    Como o projeto bolsonarista é o da entrega da Petrobrás, da Embraer, da Eletrobrás, do saneamento e do desmonte do BNDES, do SUS e de várias ferramentas do desenvolvimento e da soberania nacional, acabar com a Universidade é algo que está na conta. Pesquisa e inovação de ponta será feita pelos novos donos desses ativos.

    Impedir esse ataque fulminante é impedir que se acabe com o futuro do país. Apesar do nome do programa ser o horrível trocadilho Future-se.

  • O RIO DE SANGUE

    O RIO DE SANGUE

    Artigo de Opinião por Carlos D’Incao

    A intervenção federal no Rio de Janeiro não é uma brincadeira e muito menos um improviso. Não é coisa de amadores e muito menos obra de um “governo fraco” que não tem mais saída para se sustentar.

    Ao longo de uma história nacional marcada pela interrupção golpista, nenhum outro governo fez tantas reformas reacionárias em tão pouco tempo como o governo Temer. Falta dar continuidade política a essas reformas. E é aí que entra a intervenção federal no Rio.

    Ela não é feita para que Temer tenha qualquer ambição político-eleitoral. Ela é feita para se criar um “novo herói” nacional. E esse herói já tem nome e patente: é o general Braga Netto. Se alguém tinha alguma dúvida sobre a posição das forças armadas brasileiras nesse universo político, ela se desfez nos últimos dias. O exército está a favor das reformas neoliberais e as defenderá com tanques e fuzis, se assim for necessário.

    É comum (e de certa forma saudável) as pessoas olharem para o passado para tentar compreender o presente. Mas o presente não é escravo do passado e – a não ser sob a forma da farsa – o passado nunca se repete. Devemos esquecer o processo golpista de 1964. Esse se deu em uma conjuntura econômica e política muito diferente do que a que vivemos.

    O que ocorre hoje não deixa de ser óbvio para quem acompanha as exigências do mercado: o Brasil deve entregar suas riquezas para a iniciativa privada e realizar um ajuste ultra-neoliberal em seu orçamento para garantir o pagamento de suas dívidas públicas para os banqueiros.

    Entretanto, as vias democráticas não sustentam essas reformas. Sob vários cenários elas são derrubadas nas urnas por uma coalizão de centro-esquerda. É necessário então uma nova República onde o jogo democrático esteja esvaziado de poderes, ou seja, onde os poderes políticos de um presidente, do congresso e do senado estejam limitados à banalidade da “simples gestão”. Uma República onde o que é importante seja decidido pelos poderes de fato, isto é, o grande capital.

    E é justamente isso que está sendo articulado desde 2016. Estamos vivendo os primeiros momentos de uma nova República, a 6ª República. Ela terá um judiciário forte, um Banco Central autônomo, um Ministério da Segurança Pública com poderes de Ministério da Justiça e um presidencialismo fajuto ou, na prática, um “Parlamentarismo de Mercado” onde o Primeiro-Ministro seja o índice Bovespa, controlado diretamente por Washington.

    O general Braga Netto é o nome que faltava para convencer a opinião pública – em especial os milhões de “manifestoches” – de que o Brasil precisa de uma nova constituinte para resolver os diversos atropelos entre os poderes e os “graves” problemas de segurança pública que contam com um crime organizado que ironicamente está munido de armamentos que são de uso exclusivo das forças armadas… e… obviamente… um calendário eleitoral não pode estar acima “dos interesses nacionais”…

    No fim o que temos é um complexo e bem estruturado sistema para impedir o retorno da democracia, como existia nos moldes da Constituição de 1988.

    Caso o plano de intervenção no Rio seja um sucesso teremos o funeral da democracia sob o pretexto de que o “excepcional” deve se tornar uma regra. E esse sucesso dependerá muito da maquiagem e da manipulação da Rede Globo. Caso a intervenção não tenha sucesso, teremos o funeral da democracia sob o pretexto de que o “excepcional” deve ser aprofundado para se ter o sucesso esperado…

    Tanto de um lado como de outro, temos uma trava muito bem feita e muito bem pensada pelos donos do poder. E qual é a única saída quando se está no interior de um jogo onde sob qualquer ótica você será derrotado? É justamente realizar o mesmo movimento de quem elaborou esse jogo, ou seja, virar o tabuleiro e se recusar a jogar sob esses termos.

    Nunca é o desejo de ninguém a saída da insurreição popular. Mas quem não deixou outra saída foram os que tomaram o poder através de um golpe de Estado. Quem se recusou a dialogar e radicalizou ao ponto de destruir a democracia e o Estado de Direito foi o mercado, a direita brasileira…

    Resta saber agora quando as lideranças do campo da esquerda vão começar a levar a sério a atual conjuntura e assumir a responsabilidade histórica de não mais jogar o jogo da atual ditadura e, sobretudo, parar de fingir que milagrosamente e de forma generosa o mercado deixará Lula ser o presidente da República em 2019, abrindo docemente a mão de trilhões de reais que estão em jogo nos próximos meses.

    O mercado vai exigir que seus interesses sejam obedecidos. E se para isso for necessário que haja um mar de sangue, ele já deixou clara a sua opção… Ele quer um Rio de Sangue.

  • Bancos ditam mudanças promovidas por Temer para facilitar retomada de imóvel

    Bancos ditam mudanças promovidas por Temer para facilitar retomada de imóvel

    Projeto de lei aprovado no Congresso traz 16 cláusulas criadas por instituições financeiras que alteram regras de retomada do imóvel. “Taxa de aluguel” contra o devedor já está em vigor     

    Por Thais Haliski e Vinícius Segalla, dos Jornalistas Livres

    O governo Michel Temer acatou um conjunto de mudanças sugeridas pelos bancos na lei que rege o financiamento imobiliário para facilitar a retomada do imóvel pela instituição financeira em caso de atraso nas parcelas. A nova norma obriga o mutuário devedor a pagar uma espécie de aluguel para o banco até que seu imóvel seja vendido em leilão, impede que ele questione o contrato na Justiça caso se sinta injustamente penalizado e permite que ele seja intimado sobre a retomada do imóvel por parentes, vizinhos ou ainda funcionários de condomínios residenciais ou comerciais.

    No último dia 11 de julho, entrou em vigor a  Lei 13.465/17, advinda de uma medida provisória (759/16) e proposta pelo Poder Executivo. A norma inclui ou altera 16 cláusulas da Lei 9.514 de 1997, que estrutura a política de financiamento habitacional no Brasil.

    A Abecip (Associação Brasileira das Empresas de Crédito e Poupança), entidade representativa dos maiores bancos do país, enviou ao governo federal, em janeiro deste ano, um anteprojeto de lei para alterar as regras dos chamados contratos de alienação fiduciária, que é quando o próprio imóvel serve como garantia de pagamento do crédito imobiliário. O objetivo declarado era acelerar a retomada do imóvel do mutuário devedor por meio de pressão financeira e redução das vias de contestação judicial. 

    Os Jornalistas Livres tiveram acesso a este documento (veja arquivo anexo ao final da reportagem). Ele contém 16 sugestões de alteração na Lei. Todas foram atendidas pelo governo federal, conforme se nota ao confrontar este documento com a lei que foi aprovada no Congresso. Instituições que representam a indústria da construção civil, associações de mutuários ou qualquer outro agente civil não foram ouvidas pelo governo para alterar a lei, muito menos esboçaram qualquer anteprojeto normativo que tenha sido levado em conta pelo Planalto.

    Em que pese ser de domínio público o fato de a Abecip ter entregue ao Ministério do Planejamento o anteprojeto de lei, a pasta federal, procurada pelos Jornalistas Livres, recusou-se a comentar o assunto, orientando a reportagem a procurar explicações junto ao Ministério da Fazenda. A assessoria de imprensa deste órgão, porém, também se esquivou de conceder qualquer explicação, limitando-se a dizer “que não recebeu qualquer documento da Abecip”.

    Já o site da entidade bancária noticiou em fevereiro deste ano que o “Governo vai facilitar retomada de bens em caso de calote”. “O governo vai facilitar o procedimento para que bancos retomem bens financiados em caso de calote.  O ministro Henrique Meirelles disse que uma dessas medidas é o aperfeiçoamento da alienação fiduciária”, descreve o documento da entidade.

    Veja, abaixo, quais foram os principais pontos que os bancos conseguiram transformar em lei e que agora regem os contratos de financiamento imobiliário no Brasil:

     

    • Mutuário tem que pagar “aluguel” mais prestações até leilão do imóvel

    Desde o dia 11 de julho, o mutuário que sofre a retomada extrajudicial de seu imóvel deve devolvê-lo ao banco imediatamente, ou terá que pagar uma “taxa mensal de ocupação” fixada em 1% do valor total do imóvel.

    Antes da nova regra criada pelos bancos ter sido acatada pelo governo, o mutuário só tinha que pagar esta taxa depois que o imóvel fosse vendido em leilão. O Artigo 37 da lei 9.514/97 determinava:

    O fiduciante (mutuário) pagará ao fiduciário (banco), ou a quem vier a sucedê-lo, a título de taxa de ocupação do imóvel, por mês ou fração, valor correspondente a um por cento do valor do imóvel, computado e exigível desde a data da alienação em leilão até a data em que o fiduciário, ou seus sucessores, vier a ser imitido na posse do imóvel.

    Agora, ficou assim:

    O devedor fiduciante pagará ao credor fiduciário, ou a quem vier a sucedê-lo, a título de taxa de ocupação do imóvel, por mês ou fração, valor correspondente a 1% (um por cento) do valor do imóvel, computado e exigível desde a data da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciante até a data em que este, ou seus sucessores, vier a ser imitido na posse do imóvel.

    Ou seja, agora, durante o período em que o imóvel é retomado e até ele ser vendido pelo banco, ou o mutuário desocupa imediatamente o bem ou vê sua dívida aumentar diariamente até que o banco o venda em leilão, o que costuma demorar alguns meses.

    Havia uma lógica para a lei ser como era. Quando um imóvel é retomado pelo banco, as parcelas e os encargos da dívida que o mutuário deveria pagar seguem sendo contabilizados, e são descontados do valor que o mutuário deveria receber de volta após a venda em leilão, caso o montante atingido seja superior ao que faltava para o banco receber.

    Assim explica a situação o advogado especialista em Direito imobiliário Mauro Antônio Rocha,  da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP: “Os responsáveis pela redação e pela aprovação dessa alteração legal parecem não ter o conhecimento pleno dos procedimentos de execução extrajudicial na alienação fiduciária de bem imóvel. Ocorre que, no procedimento desse instituto, a partir da consolidação da propriedade há uma inversão de posições entre as partes, isto é, o credor fiduciário passa a ser devedor das obrigações de levar o bem a leilão e prestar contas do valor apurado na venda, enquanto o devedor fiduciante passa a ser credor das mesmas obrigações.”

    Conforme afirma o especialista, é ao credor fiduciário que a lei confere a obrigação de organizar o primeiro leilão em até 30 dias, mais 15 dias para o segundo e cinco dias para a prestação de contas ao devedor fiduciante, de forma que só caberia a cobrança de taxa de ocupação após a venda em leilão e prestação de contas.

    “Até porque”, explica o advogado, “não é incomum a situação em que o imóvel é levado a leilão em condição de que parte substancial do valor apurado seja destinada ao devedor fiduciante. Pagar taxa de ocupação integral de um bem do qual o devedor detém parcela substancial de direitos parece-nos quase uma expropriação.”

    O advogado assim conclui: “Essa cobrança agora permitida pela lei proporciona ao credor meio de enriquecimento sem causa, uma vez que o débito a ser liquidado com a venda do imóvel em leilão continua evoluindo nesse período, de acordo com as cláusulas de juros e atualização monetária contratuais, até a data da venda efetiva em leilão, o que já corresponde à remuneração do credor fiduciário. A cobrança de taxa de ocupação no mesmo período é impor dupla penalidade ao devedor fiduciante.”

    Já para Vinícius Costa, presidente da Associação Brasileiras dos Mutuários da Habitação – que não foi chamado para debater as alterações na lei – a nova norma caracteriza “a imposição de uma taxa que se assemelha mais a uma punição ao mutuário, com intuito de forçar a desocupação do imóvel sem a necessidade de um processo.”

    Aos Jornalistas Livres, a Caixa Econômica Federal afirmou que “não cabe à CAIXA posicionar-se acerca da legislação, mas tão somente cumpri-la dentro do mais estrito respeito à lei.” Já a Presidência da República, o Ministério do Planejamento e o da Fazenda foram procurados pela reportagem para comentar o assunto, mas não responderam.

     

    • Dívida pode ser cobrada com familiares, vizinhos e porteiros

    Conforme determinava a lei antes de ser alterada segundo os interesses dos bancos, para que a instituição financeira desse início aos procedimentos de retomada do imóvel, era preciso notificar extrajudicialmente o devedor. Assim dizia o texto legal:

    A intimação far-se-á pessoalmente ao fiduciante, ou ao seu representante legal ou ao procurador regularmente constituído.

    Agora, se o oficial de registro de imóveis não encontrar o mutuário em seu endereço por duas vezes, poderá passar a intimação para quem estiver a seu alcance, graças a dois dispositivos que foram incluídos na lei a pedido dos bancos. São eles:

    “ARTIGO 26

    3o-A. Quando, por duas vezes, o oficial de registro de imóveis ou de registro de títulos e documentos ou o serventuário por eles credenciado houver procurado o intimando em seu domicílio ou residência sem o encontrar, deverá, havendo suspeita motivada de ocultação, intimar qualquer pessoa da família ou, em sua falta, qualquer vizinho de que, no dia útil imediato, retornará ao imóvel, a fim de efetuar a intimação.

    3o-B. Nos condomínios edilícios ou outras espécies de conjuntos imobiliários com controle de acesso, a intimação de que trata o § 3o-A poderá ser feita ao funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência.”

    Vinícius Costa, da ABMH, explica o que a mudança representa: “O mutuário não tem a garantia de que será comunicado pela pessoa que receber o oficial cartorário, muito menos possui mecanismos de acompanhar a fase que esse procedimento se encontra para poder exercer seus direitos.”

    Ele explica que a nova norma fere um princípio constitucional, o da pessoalidade, que determina que nenhum ato jurídico pode ser feito por meio de uma terceira pessoa que não aquela diretamente afetada por ele. “Com a recente alteração, passou-se a aceitar que terceiros recebam em favor do devedor principal uma notificação que é de extrema importância.”

    • Mutuários perdem direito de ir à Justiça para contestar contrato

    Sempre visando retomar o imóvel da forma mais rápida possível, a nova lei apresentada pelo governo Temer impede que o mutuário vá à Justiça para contestar a retomada de seu imóvel caso entenda que está sendo punido injustamente. É o que diz um novo parágrafo único incluído no Artigo 30 da lei:

    “Uma vez averbada a consolidação da propriedade fiduciária, as ações judiciais que tenham por objeto controvérsias sobre as estipulações contratuais ou os requisitos procedimentais de cobrança e leilão, excetuada a exigência de notificação do devedor fiduciante, serão resolvidas em perdas e danos e não obstarão a reintegração de posse de que trata este artigo.”

    Ou seja, caso o mutuário se sinta lesado em seus direitos pela retomada de seu imóvel pelo banco, ele não pode mais entrar com uma ação judicial para tentar frear a suposta retomada ilegal do bem. Agora, o máximo que ele pode fazer é abrir um novo processo por perdas e danos, na Justiça comum. A partir daí, ele enfrentará uma batalha judicial de anos com a instituição financeira que, por sua vez, poderá tomar o imóvel de pronto, por meio de um procedimento extrajudicial que não pode ser contestado juridicamente e tem duração de poucos meses.

    Assim, as alterações prometem rapidez e redução de ajuizamento dos processos de retomada de imóveis, como querem os bancos, mas vão de encontro com princípios básicos do direito, como o da legalidade e livre acesso à Justiça. Segundo Mauro Antônio Rocha, os artigos são passíveis de contestação judicial. O especialista vê com preocupação as mudanças, pois as alterações vieram para evitar a judicialização e tornar o processo totalmente extrajudicial, mas podem gerar demandas sobre a validade de seus dispositivos em questões basilares do ordenamento jurídico brasileiro, alongando o procedimento.

    Dos últimos anos para cá, a realidade do mercado e dos mutuários mudou diante da crise econômica e, consequentemente, a taxa de inadimplência para financiamentos imobiliários aumentou. A Caixa Econômica Federal, porém, sequer divulga qual o percentual de mutuários em atraso com suas parcelas, apenas números de imóveis recuperados. De acordo com a CEF, banco que detém quase 70% do mercado de financiamento imobiliário do país, esse número passou de 13.137 unidades em 2015, para 15.881 em 2016.

    • Todas as mudanças valem também para o Programa Minha Casa Minha Vida

    Os novos procedimentos aprovados a pedido dos bancos recaem também sobre a Lei 11.977, de 7 de julho de 2009, a norma que instituiu no país o programa Minha Casa Minha Vida, voltado à população de baixa renda.

    Por seu caráter social, o programa tinha regras específicas, visando proteger o mutuário que eventualmente venha a enfrentar dificuldades financeiras. Agora, com a nova lei de Temer, o mutuário do MCMV passa a ser tratado como um financiado comum, sendo submetido às mesmas regras de aceleração da retomada extrajudicial de seu imóvel quando se tornar inadimplente.