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  • Como o PT e os advogados permitiram que se chocasse o ovo da serpente

    Como o PT e os advogados permitiram que se chocasse o ovo da serpente

     

    por Luis Nassif

    Os grandes escritórios de advocacia norte-americano têm investigadores privados contratados por eles para investigações independentes. Há uma desconfiança fundamentada com as investigações da policia e da promotoria, que quase sempre têm viés condenatório.

    É surpreendente que essa prática não tenha se estendido aos grandes escritórios de advocacia nacionais, especialmente quando a AP 470 escancarou a parcialidade da Procuradoria-Geral da República.

    Dia desses, o Extra publicou reportagem sobre um casal que decidiu investigar por conta própria o indiciamento do filho no Rio de Janeiro. Sozinhos, pai e mãe conseguiram imagens de vídeo que contradiziam as versões da polícia.

    Por tudo isso, jamais entendi o caso Visanet.

    Quando estourou o “mensalão”, em meio à barafunda de indícios, delações e o escambau, eu tinha apenas uma certeza: não houve desvios da Visanet. E o caso Visanet foi a espinha dorsal que permitiu à Procuradoria-Geral da República enquadrar o inquérito na modalidade organização criminosa e estender as ilações para dentro do governo.

    Minha certeza era baseada em indícios muito concretos. O marketing do Banco do Brasil tinha profunda implicância com Pizolatto. Depois, soube que o próprio Secretário de Comunicação Social, Luiz Gushiken também tinha desconfianças. Mas, os técnicos do marketing diziam que não tinha havido desvios porque, ao contrário da Petrobras, o BB dispunha de modelos eficientes de governança.

    Depois, um diretor do BB me passou a informação definitiva. Para abater os gastos de campanha do balanço, a Visanet precisava comprovar que os gastos foram realizados. Foi contratado, então, o respeitabilíssimo escritório Pinheiro Neto que atestou a comprovação de R$ 73 milhões da verba de R$ 75 milhões do marketing. Os R$ 2 milhões restantes não eram desvio, mas simplesmente despesas ainda não comprovadas – com fotos e documentos dos eventos patrocinados. O dinheiro foi gasto com a Globo, com a Abril e com patrocínios de eventos, todos devidamente documentados.

    Nem se diga o fato da Visanet não ser uma empresa pública, mas uma sociedade entre várias instituições, entre as quais o BB.

    Há anos tenho um grilo falante que sempre ameniza as críticas que tenho em relação ao Ministério Público Federal. E ele me dizia: não é possível, pois o inquérito passou por vários procuradores confiáveis, por dois Procuradores Gerais (Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel) e pelo Ministro Joaquim Barbosa, ex-procurador da República. Cada vez que me dizia isso, em vez de me convencer da impossibilidade da manipulação, me deixava em pânico, pela comprovação de uma conspiração em andamento.

    Mas o argumento que me deixava balançado era outro: os réus estão sendo defendidos pelos maiores escritórios de advocacia do país. Eles não deixariam passar essa questão. Bastaria uma conversa com a diretoria do BB para saberem do trabalho da Pinheiro Neto que desmontaria definitivamente a acusação.

    Não houve nada disso. Nem mesmo depois das informações que demos aqui, no GGN, mencionando o tal trabalho. Havia também um inquérito da Polícia Federal que confirmava a não ocorrência de desvios. Mas Joaquim Barbosa manteve o inquérito sob sigilo, longe do alcance da defesa. E os advogados se limitaram a espernear, para ter acesso ao inquérito.

    Na entrevista com José Dirceu, indaguei a respeito disso. E ele admitiu que, apenas quando o inquérito da PF foi divulgado, com o sigilo quebrado pelo sub-relator Ricardo Lewandowski, os advogados conseguiram comprovar a falsidade da acusação. Mas, àquela altura, a sorte estava lançada.

    Com essa postura passiva, os advogados deixaram livres, leves e soltos, o Ministério Público e setores da Polícia Federal para construírem suas narrativas livremente, com o apoio acrítico da imprensa.

    Pior, a AP 470 foi uma graça divina, ao alertar o governo, com toda a estridência, do espírito conspiratório que se instalara na PGR, e, mais que isso, a metodologia de parceria com a mídia. Em vez dos factoides inverossímeis, do período anterior, a mídia tinha agora factoides oficiais, chancelados pela PGR e pelo Supremo. O efeito foi arrasador. Não se derrubou o governo devido à genialidade de Lula com a crise internacional, dois anos que o consagraram como um dos grandes estadistas mundiais.

    Mas a serpente continuava sendo alimentada diariamente pela mídia e os conspiradores continuavam infiltrados na máquina pública.

    Era nítido que haveria uma segunda rodada quando a economia vacilasse, conforme alertávamos aqui, em 2012. Mas o PT e os governos Lula e Dilma, não dispunham de nenhuma visão prospectiva sobre os fundamentos da conspiração. Mesmo com a comprovação da conspiração, envolvendo PGRs e Ministros do Supremo, trataram com absoluta leniência as nomeações de Ministros do Supremo, do STJ, o Procurador Geral da República, a Polícia Federal.

    Foi a crônica da morte anunciada da democracia brasileira.

    Espero que ainda haja tempo de segurar a besta do apocalipse que se avizinha.

    Notas

    1 Texto originalmente publicado em:
    https://jornalggn.com.br/noticia/como-o-pt-e-os-advogados-permitiram-que-se-chocasse-o-ovo-da-serpente-por-luis-nassif

    2 Essa matéria recebeu o selo 042-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Juristas repudiam declaração autoritária do comandante do Exército

    Juristas repudiam declaração autoritária do comandante do Exército

    A democracia tem no Estado de Direito seu sustentáculo. Este, por sua vez, é construído sobre o pilar das normas que regem a organização do Estado. No caso brasileiro, os papéis das instituições e a separação de poderes estão bem delineados na Constituição Federal de 1988.

    O art. 142 do texto constitucional consigna que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares que atuam sob a autoridade do Presidente da República e cujas funções precípuas são a defesa do país em caso de guerra e a garantia dos poderes constitucionais, só podendo agir por determinação expressa de um dos poderes da República.

    O Brasil atravessou uma penosa ditadura civil-militar que durou 20 anos. Muitas vidas foram sacrificadas nos porões das casas de tortura. A redemocratização ocorreu, porém não sem fraturas e divergências na forma, de tal modo que até hoje existe um pungente debate acerca da lei de anistia. Também remanesce na sociedade brasileira e nas instituições públicas um incômodo entulho autoritário.

    Em período recente, desde o ano de 2013, a partir das manifestações de rua de pautas pulverizadas, a crise institucional por que passa o país tem trazido autoridades das Forças Armadas para o centro da cena política, opinando sobre questões da conjuntura.

    A entrevista do general Villas Boas, comandante do Exército, a um jornal de circulação nacional no último domingo (09/9) sobre as eleições de outubro causou perplexidade. No contexto pós atentado ao candidato Jair Bolsonaro, o comandante questiona a viabilidade ou legitimidade de determinadas candidaturas, o que se apresenta extremante grave e preocupante, por se tratar de uma manifestação de caráter político. O General chega a afirmar que uma vitória de candidatos pode vir a ser questionada, por “comprometer nossa estabilidade”. Qualifica, ainda, a decisão do comitê da ONU que ordenou que o ex-presidente Lula tivesse garantidos seus direitos políticos de candidato como “atentado à soberania nacional”, ignorando que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos foi soberanamente ratificado pelo Executivo Nacional e incorporado pelo Parlamento à ordem jurídica do país.

    A entrevista é claramente uma tentativa de tutela sobre a democracia e de constrangimento da independência judicial, visto que o caso segue pendente na apreciação de recursos bem fundamentados. São declarações de caráter autoritário e sem reação institucional do Chefe do Poder Executivo, já que este ocupa o cargo sem legitimidade e força popular, pois nascido de golpe parlamentar. Tais declarações do Comandante militar só fazem agravar a crise social, política e econômica do país.

    Desse modo, reafirmando seu compromisso na defesa dos valores e princípios democráticos a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD vem demonstrar sua preocupação e repúdio às declarações do General Villas Boas e reafirmar seu compromisso em defesa do Estado Democrático de Direito.

    Notas

    1 Publicado originalmente em http://www.abjd.org.br/2018/09/juristas-repudiam-declaracao.html

    2 Essa matéria recebeu o selo 041-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Justiça restaurativa: convite para transformação

    Justiça restaurativa: convite para transformação

    por Luís Bravo *

    Pluralidade de justiças e restauração

    No texto publicado em 09 de agosto último, por este Observatório do Judiciário, Denise da Veiga Alves e Giselle Mathias iniciam sua reflexão com a seguinte constatação: “naturalizou-se nomear o Poder Judiciário de ‘Justiça’.” De início, durante a minha época de estagiário de Direito, eu ficava perplexo em ver nas capas dos diversos autos que eu manuseava a palavra “Justiça Pública” no campo “autor(a)”, isto é, a parte responsável por ajuizar a ação criminal. Como que aquele grandioso ideal, fim mesmo do Direito como ciência e corpo normativo, há milênios objeto da exploração obstinada de filósofos, pensadores, militantes, enfim juristas de todos os cantos do mundo, se apresenta processualmente personificado nos autos de quase todas as ações criminais, reduzido a uma prerrogativa institucional para o exercício da pretensão acusatória? Pensava eu.

    Sob uma perspectiva mais pragmática, eu me via algo desmotivado na medida em que os réus defendidos por mim estavam colocados contra ninguém menos que a própria Justiça Pública. Isso me levava a ponderar como o apelo simbólico disso poderia se traduzir, como de fato se traduz, numa perniciosa desigualdade processual. É como se a mesma censura jurídica, resultante de uma decisão condenatória, já estivesse declarada desde o início, a despeito de qualquer devido processo.

    No final das contas, eu acabei, também, naturalizando essa referência parcializada à Justiça Pública, não sem, entretanto, trazer comigo um grande desconforto pelo testemunho, como advogado criminalista, de que a fisiologia do sistema de justiça criminal vigente alimenta ciclos viciosos de trauma e humilhação que perpetuam mais injustiças.

    Saber é uma atitude proativa (i)

    Na minha busca por possibilidades menos destrutivas de como se lidar com conflitos sociais, juridicamente rotulados como criminalmente relevantes, deparei-me com o conceito de Justiça Restaurativa. Desacompanhado de qualquer predicado, o significado mais corrente de justiça já traz consigo um peso retributivo: nos esquecemos com muita facilidade que isso é fruto de uma construção humana.

    A sacralidade mitológica a envolver o conceito retributivo de justiça, tão vivo na nossa cultura ocidentalizada, inibe olhares curiosos dedicados a uma exploração dos seus sustentáculos culturais.

    Indispensável nos propormos a uma reflexão baseada no reconhecimento de que o conceito de justiça, como qualquer um outro na infinitude do repertório linguístico humano, é uma construção cultural, e, por isso mesmo, temporário, impermanente, circunstancial. Isto é, contingente a contextos históricos.

    O ser humano produtor, ou perpetuador, de conhecimento está, sempre, inserido em um contexto cultural que o sustenta e o influencia. Por mais importante que seja a noção, ou noções, de justiça como (re)equilíbrio convivial, há de se atentar para tendências de imposições universais que, por se colocarem como conceitos absolutos, acabam justificando violências e autoritarismos. Acho importante ter-se consciência disso.

    Em 1973, ao apresentar uma crítica às formas e verdades jurídicas como relações de poder, Michel Foucault (ii) afirmou: “o próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história.”

    Diante da crise de legitimidade do sistema de justiça criminal, sinto uma urgência por se contextualizar historicamente o conceito de justiça retributiva para, desmistificando-a, abrir possibilidades para outras justiças, menos violentas e mais construtivas, benfazejas às necessidades humanas exteriorizadas em cada contexto conflitivo.

    He oikoumene ge (iii)

    Após a explosão de culturalidade do Paleolítico Superior, há uns 50 mil anos atrás, comunidades humanas passaram a se organizar em torno do poder do feminino. A fertilidade da terra, que provia vida, era representada por deidades femininas. A ordem social era matriarcal. Paz era resultante de constantes esforços para a manutenção de harmonia dos fluxos energéticos que regiam um ambiente ainda pouco compreendido. Nessa época, grande parte da orla oriental do Mar Mediterrâneo era composta por povoados matriarcais.

    Há, aproximadamente, 3 mil anos, a ascensão da cultura Greco-helênica. Ao mesmo tempo em que disseminava tecnologias inovadoras, no âmbito da linguagem, da escrita, da matemática, da geometria e da filosofia, ela, em grande parte, se baseava em visões de mundo patriarcais que, para a expansão do poder, via o diferente, o outro, como inadequado, inferior. A tensão dessa fronteira entre a cultura Greco-helênica e outras culturas se fazia clara na forma como, então, se descrevia a ideia de civilização: “a parte habitada do mundo” (he oikoumene ge). Ou seja, o mundo além dos limites, geográficos e culturais, conhecidos pelos gregos era tido como não habitado.

    O outro, para ser reconhecido humano, devia se submeter às leituras de mundo impostas pela expansão civilizatória Greco-helênica. Uma das formas mais sutis e, ao mesmo tempo, violentas de sustentar esse tipo de expansão dominadora era pela apropriação e distorção dos símbolos e mitos das culturas tidas como não civilizadas. Deidades femininas de povos matriarcais do mediterrâneo, que representavam paz pela fertilidade, luxúria, e a sazonalidade da mãe-natureza, sofreram dessa apropriação. Um grande exemplo disso são as horae, que em sua essência serviam a uma necessidade de organizar visões de mundo com base em representações dos ciclos naturais, mais especificamente das estações climáticas. Nomeadas, a partir de então, como horae, se tornaram filhas de Zeus e Themis, em número de três nas versões mais correntes: Eunomia (ordem); Eirene (paz); Diké (justiça).

    Iustitia: Diké de olhos vendados

    Constituído sobre o etos da guerra, que passou a predominar em quase toda região do Mediterrâneo, o Império Romano ascende apoiado no referencial cultural Greco-helênico. Ocorre, então, uma série de outras usurpações culturais. Dentre elas, Diké, de olhar altaneiro, espada e balança em riste, torna-se Iustitia, doravante com venda nos olhos, símbolo de uma institucionalização inédita: a da apropriação, pela autoridade imperial, das divergências e conflitos sociais para a prescrição de uma fórmula resolutiva com o intuito de se impor a violenta Pax Romana. Um modelo de perpetuação de dominação a serviço da preservação de privilégios por relações de poder. Um sistema de controle baseado em regras criadas, compiladas e aplicadas por um poder centralizado em homens, patriarcas, que se assumiam detentores de uma capacidade quase que sobre-humana para pronunciar o bom do mau, o certo do errado.

    A raiz etimológica ius significa depurar. (iv) A partir disso, Iustitia pode ser traduzida como o rito de tornar puro. Uma visão de mundo a reforçar o distanciamento do diferente tido como desviante, impuro, que facilita a desumanização para a inflição de violências supostamente expiatórias.

    Essa essência mitológica se faz presente na nossa atual realidade jurídica. Com 3,30 metros de altura a Iustitia zela pelo nosso Supremo Tribunal Federal, com a espada no colo e livre de qualquer balança: escultura em granito de Alfredo Ceschiatti.

    Para além de, não menos potentes, simbolismos, a seletividade e nocividade do sistema de justiça criminal vigente são escancaradas pelos altos índices de encarceramento, de letalidade policial, de mortandade policial, e por todos os efeitos colaterais decorrentes disso, como o problema do crime organizado e a própria criminalidade urbana. Kenarik Boujikian, desembargadora de uma câmara criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma com todas as letras: “A seletividade é um marco da justiça brasileira.”

    Justiças e Pazes

    O sistema de justiça criminal funciona como um monopólio de resolução prescritiva de conflitos. Desse modo, ele desconsidera a necessidade de as pessoas avaliarem as próprias dores e frustrações, conceberem as formas mais apropriadas para amainarem-nas e, então, vislumbrarem um sentido de paz verdadeiramente tangível e significativo.

    Com base em dado texto legal desrespeitado por uma conduta tida como criminosa, é colocado foco na pessoa do infrator para, declarando-o culpado, impor-lhe a punição prevista em lei. Geralmente assoladas por sensações de injustiça, insegurança, incerteza, as vítimas são postas de lado, meros anteparos para a deflagração de um portentoso aparato baseado numa mecânica aparentemente asséptica que objetiva a desumanização pela privação da liberdade e a estigmatização humilhante.

    Em virtude da nossa realidade relacional, o conflito é um elemento inerente à experiência humana. Subjacente a qualquer episódio conflitivo um complexo feixe de almejos e aflições que gritam por atenção. Queiramos ou não, toda essa complexidade precisa ser atendida e reelaborada. Nenhuma medida punitiva, por si só, dá conta disso. Ao contrário, seu caráter opressivo e não relacional contribui para a perpetuação de ciclos viciosos de (re)vitimização e de (re)traumatização.

    Cada situação conflitiva pede por um delicado e dinâmico equilíbrio entre justiça, segurança, verdade, harmonia, dentre outros almejos, a comporem uma paz possível a dado contexto e a dado momento. (v) O reconhecimento da pluralidade de justiças e pazes, para além de respostas institucionais preconcebidas, convoca o cuidado às necessidades humanas expostas e abre espaço a possibilidades de restauração.

    Ceticismo à alternativa restaurativa e o receio pelo novo, geralmente, está atrelado a um automático apego ao sistema vigente, frequentemente pelo desconhecimento de outras possibilidades de como se lidar com conflitos juridicamente rotulados como crime. Contudo, a resposta punitiva não é o único, muito menos o melhor, caminho para se lidar com conflitos.
    Ana Messuti, (vi) jusfilósofa argentina, exemplifica essa resistência por alternativas ao penal ao dizer que “precisamente porque a prisão restou como única modalidade da pena, pretende-se justificar a pena justificando a prisão.”

    Justiça restaurativa: convite para transformação

    Howard Zehr, (vii) acadêmico norte-americano, um dos pioneiros no movimento contemporâneo de Justiça Restaurativa, gosta de afirmar que “crime é uma violação de pessoas e de relacionamentos interpessoais”. Uma mudança de foco, da lei desrespeitada para os seres humanos afetados pelos efeitos destrutivos do conflito.

    Efeitos esses que, frequentemente, originam ou reforçam traumas que precisam ser cuidados para aplacar sensações, por exemplo, de insegurança, de medo, de vergonha, de ódio, de pesar. Tais necessidades são incomensuráveis: o critério de retribuição pelo sofrimento no qual se sustenta o Direito Penal é insuficiente, quando não contraproducente, para a efetivação de esforços transformativos.

    A partir da vítima, passando pelos círculos familiares próximos, pela comunidade mais expandida, e pela pessoa do ofensor, leva-se em consideração as necessidades de todos os envolvidos, incentivando a (co)responsabilização para a tomada de providências para tornar as coisas melhores.

    Ao lidar com o incomensurável, o esforço restaurativo se propõe à (re)construção dos significados afetados, um empenho imprescindível para o resgate de sentidos de vida abalados pelas consequências contundentes de dado conflito.

    Não se trata de uma inércia diante de condutas juridicamente classificadas como crime, mas de se honrar o dever de mobilização e de ação inspirado por uma ética de cuidado baseada no respeito às relações.

    De maneira abrangente, as práticas restaurativas dependem do provimento de espaços incondicionais para o acolhimento, a escuta e, possivelmente, o encontro entre as pessoas envolvidas em dado conflito para que protagonizem suas próprias transformações.

    Já são significativas as iniciativas no Poder Judiciário brasileiro que promovem metodologias de Justiça Restaurativa, especialmente no âmbito da Justiça da Infância e Juventude e dos juizados especiais criminais, como a mediação vítima-ofensor e os círculos de construção de paz, por exemplo.

    A meu ver, uma das maneiras mais profundas e empoderadoras de justiça restaurativa é a implementação de práticas comunitárias que, independentemente do sistema de justiça criminal, colocam esforços transformativos em prática, de maneira não-violenta, concretizando a preservação e o fortalecimento do tecido coletivo.

    Nesse sentido, o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo, um polo, na Zona Sul da cidade de São Paulo, de formação de facilitadores, de disseminação e de concretização de projetos de práticas restaurativas, promoverá o Fórum de Justiça Restaurativa Comunitária no Brasil entre 28 e 30 de novembro.

    • Luis Bravo é professor e facilitador. Atualmente integra a linha de Justiça Restaurativa do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo – CDHEP.

     

    Notas

    i Para essa reflexão, me inspirei, especialmente, nos pensamentos dos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, e dos filósofos Michel Foucault e Gianni Vattimo.

    ii Palestra proferida por Michel Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1973. Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2002. P 08.

    iii Para essa reflexão, me inspirei, especialmente, nos pensamentos do historiador Arnold Toynbee, da historiadora Barbara G. Walker, e de Florencia Benitez-Schaefer e Wolfgang Dietrich, de quem tive a honra de ser aluno no programa de mestrado em Estudos de Paz e Conflitos da Cátedra de Estudos de Paz da UNESCO, na Universidade de Innsbruck, na Áustria, em 2014 e 2015.

    iv Conclusão baseada no trabalho etimológico de P.G.W. Glare, de Douglas Harper, e de Santiago Segura Munguiá.

    v Uma paz que Wolfgang Dietrich descreve como transracional (Dietrich, Wolfgang. Interpretations of Peace in History and Culture. Houndmills, Basingtoke and Hampshire: Palgrave Macmillan, 2012).

    vi Messuti, Ana. O tempo como pena. Tradução: Tadeu Antonio Dix Silva, Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: RT, 2003. P. 46.

    vii Zehr, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução: Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. P. 31.

    1 Essa matéria recebeu o selo 040-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Haddad e os desígnios insondáveis da acusação

    Haddad e os desígnios insondáveis da acusação

    por Marco Aurélio de Carvalho *

    A verdade é sempre provisória. Assim caminham a ciência e o conhecimento. Valores éticos, sociais ou individuais desempenham papel importante na apuração dos fatos. Para afastar os valores, o ideal da imparcialidade requer vigilância constante. Até porque a isenção exige, à luz da realidade, a capacidade de examinar as evidências com a incorporação de todos os valores e de todos os interesses em disputa.

    Será tal exercício possível? A indagação é procedente na ciência, na apuração dos fatos jornalísticos e no terreno —hoje minado e controvertido— dos “veredictos” do Judiciário e dos órgãos auxiliares da Justiça.
    O avanço do ativismo judicial, amplamente denunciado por expressivos nomes do direito, com merecido destaque para Pedro Serrano, Lenio Streck, Leonardo Isaac e Rubens Casara, mostrou mais uma vez sua face perigosa nos últimos dias.

    Na sequência do noticiário informando que o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad poderia ser o candidato do ex-presidente Lula no pleito de outubro, o MP paulista passou a acusar Haddad de ter recebido pagamento para quitar dívidas de campanha –contra, inclusive, a robusta prova de inocência produzida nos próprios autos.

    Denúncia dirigida a interesses inconfessáveis e circunstanciais, cujo destino esperado é o arquivamento por “falta de justa causa”, inépcia ou por excesso de criatividade e ausência de fundamentação jurídica.
    Como escreveu o jornalista Alberto Dines (1932-2018), “a socialização do denuncismo não é prova de isenção, é a sua caricatura”. Os vícios de apuração da Promotoria raramente são captados de imediato.

    Os equívocos podem perdurar anos,

    arrastando personalidades para o limbo político,

    com prejuízos pessoais e eleitorais irreparáveis.

    Uma vez que as acusações são levadas ao conhecimento da sociedade, os efeitos do tribunal midiático são implacáveis. Para a imprensa, é natural que a autoridade constituída dispense a presença vigorosa do contraditório. Assim, ao emprestar credibilidade para a versão das autoridades, o outro lado é contemplado de forma burocrática e formal. Ao atingir com velocidade uma ampla audiência, a acusação adquire notável peso simbólico.

    A enorme responsabilidade de promotores diante do fato de que sua atuação desequilibra o jogo político deve merecer amplo debate, já que a premissa da imparcialidade esbarra no muro tênue das paixões, dos interesses, da coloração ideológica e da motivação política.

    Oculta sobre a blindagem do aparato da carreira de Estado —encorajada pela admiração da mídia e estimulada pela plateia ávida por “justiçamentos”—, a ação “moralizadora” de agentes de Estado segue colocando em risco a própria democracia. Para quem a compreende como valor absoluto, a pergunta persiste como desafio: de que modo administrar as preferências e valores individuais e como fazer a boa gestão das prerrogativas sem influenciar o jogo político?

    Imiscuir-se, sem transparência, nas preferências eleitorais pode revelar sinal de força no presente. Infelizmente, entretanto, o enfraquecimento dos pilares constitucionais das instituições será o legado para o futuro.

    *  Marco Aurélio de Carvalho é advogado, especialista em direito público e ex-coordenador jurídico do PT (2011-2017)

     

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 039-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • “Precisamos enfrentar essa casta”

    “Precisamos enfrentar essa casta”

    por Marco Weissheimer, para o Sul21

     

     

    Pela quinta vez em sua vida, Frei Sérgio Antonio Görgen adotou a greve de fome como uma forma de luta e de protesto.

    Desta vez, o frade franciscano e integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) integrou um grupo de sete militantes de movimentos populares (além dele, Jaime Amorim, Zonália Santos, Rafaela Alves, Luiz Gonzaga, Vilmar Pacífico e Leonardo Soares) que foi a Brasília fazer uma greve de fome cujo alvo de protesto foi o núcleo duro do Judiciário do país, o Supremo Tribunal Federal.

    A escolha do método da greve de fome para realizar esse protesto foi resultado de uma avaliação política. Frei Sérgio resume a lógica que regeu essa escolha.

    “Em toda a sua história no Brasil, o movimento social nunca tinha colocado o Judiciário como centro de suas reivindicações e de sua pressão. Até então, era sempre o Legislativo, o Executivo ou os dois juntos. Agora, foi a primeira vez que as baterias dos movimentos sociais se voltaram para o Judiciário. Escolhemos o método da greve de fome porque ele é um protesto silencioso não ofensivo, mas apelativo. Avaliamos que qualquer outro instrumento de pressão que costumamos adotar para o Executivo ou o Legislativo poderia se voltar contra nós”.

    Na chuvosa manhã de sexta-feira (31), Frei Sérgio recebeu o Sul21 na sede provincial dos franciscanos no Rio Grande do Sul, na zona sul de Porto Alegre, para fazer um balanço da greve de fome de 26 dias, a mais longa da qual já participou. Ele considera que o protesto cumpriu o papel a que se propunha: sensibilizar a população, confrontar o Judiciário e demonstrar que ele é o responsável principal pelo que esta acontecendo no país e pela continuidade do golpe. O frade franciscano saiu de Brasília com uma visão que define como “muito dura” sobre a experiência que teve no STF e sobre o papel que o Judiciário desempenha hoje no país:

    “O que não queríamos no Império se preservou no Judiciário. Um dos motivos que nos levou a criar a República hoje se preserva no Judiciário. Temos um grupo de famílias que se reproduzem lá dentro. Um exemplo disso é o desembargador Thompson Flores, presidente do TRF4. Temos aí uma relação de pai para filho que vem desde o golpe de 1964 e vai mais para trás ainda. O bisavô de Thompson Flores chefiou as últimas expedições para destruir Canudos. É uma família de elite anti-povo. Precisamos enfrentar essa casta”.

    (Vídeo com a entrevista no final da matéria)

    Sul21: Esta foi a sua quinta greve fome. Ela teve um elemento novo, que foi o questionamento do papel que o STF vem desempenhando no país. Neste período de 26 dias de greve de fome, como avalia o contato que vocês tiveram com o Supremo Tribunal Federal e alguns de seus ministros?

    Frei Sérgio Görgen: Esta foi a minha quinta greve de fome e foi a mais longa. Até então, a mais longa da qual eu tinha participado foi uma de 22 dias, em 1992, depois da crise da Praça da Matriz aqui em Porto Alegre, que foi acompanhada por uma onda de violência muito grande. Agora, a questão do Judiciário é uma novidade em todos os sentidos para o movimento social. Em toda a sua história no Brasil, o movimento social nunca tinha colocado o Judiciário como centro de suas reivindicações e de sua pressão. Até então, era sempre o Legislativo, o Executivo ou os dois juntos. Agora, foi a primeira vez que as baterias dos movimentos sociais se voltaram para o Judiciário. Mais do que isso, se voltaram para o núcleo duro das decisões judiciais e da capa de proteção do Judiciário. A nossa pressão foi dirigida ao STF, mais especificamente a seis ministros e ministras que votaram contra o habeas corpus para Lula.

    Escolhemos o método da greve de fome porque ele é um protesto silencioso não ofensivo, mas apelativo. Avaliamos que qualquer outro instrumento de pressão que costumamos adotar para o Executivo ou o Legislativo poderia se voltar contra nós. Além disso, vínhamos avaliando, desde março, que os métodos tradicionalmente eficazes quando o Judiciário não está cooptado por uma ideologia política não estavam mais fazendo efeito.

    A gota d’água foi o que ocorreu no dia 8 de julho, que ainda entrará para a história como o maior escândalo do judiciário brasileiro. Uma decisão de um desembargador de plantão, que poderia ser questionada ou mesmo revertida, foi desrespeitada. Houve quebra de hierarquia, juiz em férias entrando no processo e demandando o que não tinha autoridade para demandar, e outros desembargadores entrando em ação para desautorizar o desembargador plantonista que tinha poder efetivo naquele momento.

    Isso tudo ocorreu com o silêncio totalmente cúmplice do Supremo Tribunal Federal, indicando o sequestro da nossa mais alta Corte pelo golpe de Estado que está em curso no país. Nós não sabíamos qual seria a reação deles. A nossa greve de fome foi sempre um andar no fio da navalha.

    As togas se tornaram o motor dos golpes contra o povo e contra a democracia.

    “Se o Judiciário se desmoralizar totalmente, só restará ao povo retomar o poder originário”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

    Sul21: Como foi a reação dos ministros e ministras do Supremo diante da greve de fome?

    Frei Sérgio Görgen: Quem quebrou o gelo e temos um reconhecimento muito grande disso foi o ministro Lewandowsky. Ele foi o primeiro a nos receber logo nos primeiros dias da greve. Saiu da sessão que estava em andamento e nos recebeu dentro do salão nobre do STF. Escutou o que dissemos com muita atenção. Na sua resposta, foi extremamente formal, o que normalmente é o padrão da casa. Mas nos disse uma frase que até hoje considero meio enigmática: “vocês tenham um pouco de paciência porque a Justiça triunfará”.

    Depois, eu fui o único dos grevistas aceitos na reunião dos movimentos sociais com a doutora Cármen Lúcia, na presidência do STF. Além dos movimentos sociais, participaram dessa reunião representantes da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, artistas e o Nobel da Paz, Adolfo Peres Esquivel. Esquivel deu uma aula sobre como democracias estão sendo desmontadas no mundo e como as togas se tornaram o motor dos golpes contra o povo e contra a democracia. Ele citou o caso de vários países do mundo em que isso está acontecendo, incluindo aí o Brasil.

    Neste dia também, o que me impressionou muito foi a fala do Osmar Prado, artista consagrado nacionalmente. Ele perguntou para a ministra Cármen Lúcia, de maneira muito intensa e vibrante, utilizando todos os seus dons artísticos: quantos cadáveres ainda serão necessários para que vocês acordem? Já mataram Marisa Letícia, o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, a vereadora Marielle Franco…Quantas mortes serão necessárias ainda? Precisará um cadáver aqui na frente do STF também para que vocês acordem?

    Sul21: Qual foi a reação dela diante dessa pergunta?

    Frei Sérgio Görgen: Ficou muito tensa. Não sabia bem como reagir. Depois foi a minha vez de falar. Confesso que estava muito fragilizado emocionalmente naquele dia, que era o décimo quarto da greve de fome. Eu comecei pedindo que ela me desculpasse se eu usasse alguma palavra que não fazia parte do jargão daquela casa.

    Comecei dizendo para ela que, na nossa opinião, o artigo 3o. da Constituição, em seus quatro itens, que estabelece os deveres básicos do Estado brasileiro – salvaguardar a democracia, a soberania, erradicar a pobreza, combater todas as formas de discriminação e reduzir as desigualdades sociais -, estava sendo rasgado. Ela conhece bem esse artigo. Citou ele de cor.

    Rasgar a presunção de inocência é apenas uma conseqüência de rasgar o pilar central que estrutura a Constituição, a democracia e o Estado brasileiro.

    O que estamos vendo na rua, disse ainda para ela, é a fome voltando, o desemprego desgraçando milhões de vidas, epidemias já controladas retornando e a mortalidade infantil crescendo. Isso, pra vocês, dentro dessas paredes frias, é apenas uma estatística. Para nós, que não moramos em nenhum palácio e nem estamos protegidos por muros ao redor de casas de luxo, é uma realidade crua e dura.

    Eu mesmo não moro em uma paróquia de centro de cidade, mas sim em uma casa dentro de um assentamento. Para nós, essa realidade significa pessoas concretas que batem à nossa porta. Eu disse para ela que a coisa que fiz com mais dor na minha vida foi enterrar crianças que morreram de fome. Fiz isso muitas vezes em minha vida, em paróquias onde atuei e havia muita pobreza, como, por exemplo, em Tiradentes, no interior do interior de Três Passos.

    Contei que estávamos há dez anos em um conjunto de assentamentos em Hulha Negra, com cerca de duas mil famílias, sem que tivéssemos enterrado nenhuma criança que morreu de fome. Não quero voltar a enterrar criança, repeti e desabei chorando.

    “Ela não cumpriu a palavra. Lá na minha terra a gente chama quem faz isso de tratante”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

    Após me recuperar, coloquei a minha mão no braço dela e disse: doutora, tudo isso está acontecendo com a conivência de vocês. Vocês estão sendo coniventes com essa desgraça, não estão tomando as providências que cabem a vocês. Na sala onde estávamos, eu via o Congresso Nacional à esquerda e o Palácio do Planalto bem na minha frente. E eu estava dentro do outro poder, o Judiciário. Apontei para os prédios lá fora e disse que aqueles poderes estavam em frangalhos e não significavam mais nada para o povo. Seria uma desgraça para o país se vocês também se tornassem um poder desmoralizado, justamente o poder responsável por ser o guardião da Constituição. Estamos muito perto de chegar a isso. Vocês ainda podem evitar a desmoralização. Se isso não acontecer só restará ao povo retomar o poder originário.

    Eu disse para ela ainda que o Lula não é um mito para nós, mas sim é a esperança do povo encarcerada em Curitiba. Doutora, falei, ninguém precisa ser especialista em Direito para ver o que está acontecendo. Aquele apartamento pelo qual Lula foi condenado é um apartamento de terceira categoria. Por que ele iria se corromper por um apartamentinho daqueles. Além disso, sabemos que ninguém pode ser condenado por um ato de ofício indeterminado. Nós também sabemos como é a velocidade da Justiça brasileira, que é a velocidade de uma tartaruga manca. No caso do Lula, tem uma velocidade de avião a jato para conseguir condená-lo antes da eleição. Todo mundo está enxergando isso. Não é preciso ser nenhum especialista em Direito. E citei ainda o escândalo do que aconteceu no dia 8 de julho. Vocês devem ao Brasil colocar o Direito e a Justiça no seu devido lugar, acrescentei.

    O Esquivel me interrompeu, dizendo que gostaria que ela nos recebesse, ao que ela respondeu prontamente: recebo sim, ou aqui ou onde eles estão, se não puderem vir aqui por estarem muito fragilizados. Ela não cumpriu a palavra. Lá na minha terra a gente chama quem faz isso de tratante. Quem trata e não cumpre é tratante ou sem palavra.

    O Barroso não nos recebeu. Foi o tratamento mais formal e desrespeitoso que tivemos.
    A reação dela foi bem formal. Ouviu, disse que estava impressionada com os relatos, que iria levá-los em consideração, que iria ler o dossiê entregue pela Carol Proner. Depois não aconteceu nada. O jogo de pressões do outro lado também deve ter sido violentíssimo. Não dá pra confiar neste tipo de gente. Com todos os demais com quem tivemos contato, a reação foi semelhante. Eu disse a Rosa Weber que li a declaração de voto dela no habeas corpus do presidente Lula e achei incoerente. Tudo o que dizemos na rua, repetimos lá para eles e elas. Não tergiversamos. O Barroso não nos recebeu. Foi o tratamento mais formal e desrespeitoso que tivemos. Quem nos recebeu, de pé no balcão, foi a chefe de gabinete dele. Mas pelo menos alguém do gabinete dele nos recebeu. O Fachin, por exemplo, se negou a nos receber. Foram falas tranqüilas e serenas, mas sempre muito duras, confrontando eles com a realidade do país que deixaram que se criasse.

    Sul21: Que conclusões foi possível tirar a partir dessas conversas?

    Frei Sérgio Görgen: Minha conclusão mais dura é que, ou aquele Supremo é uma máquina de moer gente, ou aquelas paredes frias gelam o sangue dos que vão pra lá e matam a pulsação cardíaca deles. Viram mortos-vivos lá dentro, perdem a sensibilidade humana, o respeito por aquilo que eles assumem que é preservar a Constituição. Outra possibilidade é que eles são vítimas do moralismo que incentivaram e agora são reféns em função de deslizes morais que possam ter cometido e que são desconhecidos do grande público. Fala-se nos corredores da existência de dossiês nas redações de alguns jornais e TVs.

    “É uma família de elite anti-povo. É preciso enfrentar essa casta”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

    Outra conclusão é que, além de uma reforma política geral, precisamos fazer uma reforma muito profunda no Judiciário brasileiro. Se tivéssemos escolha dos ministros do Supremo pelo voto e um mandato fixo de, digamos, dez anos, quantos destes que estão lá retornariam ao cargo pelo voto. Eu acho que nenhum. Se é para errar, é melhor que erre o povo ao invés dessa forma de escolha. É preciso acabar com o caráter vitalício desses mandatos. Não é possível manter esse modelo onde as indicações se dão dentro da corporação, onde parentes indicam parentes e assim por diante. O que não queríamos no Império se preservou no Judiciário. Um dos motivos que nos levou a criar a República hoje se preserva no Judiciário. Temos um grupo de famílias que se reproduzem lá dentro. Um exemplo disso é o desembargador Thompson Flores, presidente do TRF4. Temos aí uma relação de pai para filho que vem desde o golpe de 1964 e vai mais para trás ainda. O bisavô de Thompson Flores chefiou as últimas expedições para destruir Canudos. É uma família de elite anti-povo. É preciso enfrentar essa casta.

    Sul21: Como foi o convívio entre vocês que participaram desses 26 dias de greve de fome?

    Frei Sérgio Görgen: A convivência entre nós foi muito fraterna. Nos juntamos por um conjunto de coincidências. Eu conhecia pessoalmente três integrantes do grupo que participou da greve. Os outros três eu conheci lá, mas houve uma química muito boa no grupo e não houve nenhum momento de tensão entre nós. Houve situações de divergência política quanto a alguns encaminhamentos, mas isso é normal. Os movimentos sociais têm métodos para resolver as divergências e não houve nenhum tipo de problema. Os últimos dias foram um pouco tensos. Estou com um problema no pé agora porque somatizei no lado mais fraco do meu organismo. Começamos a sofrer muita pressão externa de companheiros e familiares pedindo que parássemos a greve, que não queriam que morrêssemos, que precisavam de nós vivos.

    Sul21: Isso a partir de que dia, aproximadamente?

    Frei Sérgio Görgen: A partir do vigésimo dia. Os últimos seis dias foram muito tensos. Nós sabíamos que ainda havia algumas tarefas a cumprir com a greve de fome. Foi muito difícil. Nas outras greves havia uma certa blindagem disso. Nesta, como todo mundo tem acesso às redes sociais, era impossível evitar que as pessoas enviassem mensagens pelo whatsapp chorando.

    Sul21: Chegou a receber mensagens desse tipo?

    Frei Sérgio Görgen: Eu não. Eu administro essas coisas e já tinha a experiência de outras quatro greves de fome. Tenho um acordo com a minha família. A minha mãe já não é mais viva. Não sei como ela reagiria se estivesse viva. Já ia estar com oitenta e poucos anos. Nas outras, ela sempre reagiu bem. Fiz um acordo com meus irmãos e com meus sobrinhos e ficou tudo certo. A equipe que nos apoiou era muito boa. Tivemos uma equipe excelente de psicólogos lá de Brasília que apoiou as famílias. A equipe de cuidadores também era muito boa. E havia o grupo dos médicos que participaram desse trabalho, três deles de forma muito intensa, o Ronald, o Otávio e a Maria da Paz. O Frei Zanatta nos apoiou também. Além da água e soro, tínhamos um chazinho que nos ajudou. Mas ingerimos só esses líquidos nestes 26 dias.

    Alguns de nós estávamos no limite, não no limite físico, mas sim no emocional.

    Sul21: Como foi a decisão de encerrar a greve? Partiu de vocês?

    Frei Sérgio Görgen: A decisão partiu dos movimentos, que avaliaram que a greve já tinha cumprido seu papel e o que se podia esperar dela tinha sido alcançado: sensibilizar a população, confrontar o Judiciário e demonstrar que ele é o responsável principal pelo que esta acontecendo no país e pela continuidade do golpe. Não se alcançaria muito mais com mais alguns dias de sacrifício. Alguns de nós estávamos no limite, não no limite físico, mas sim no emocional. Pelo limite físico, talvez pudéssemos prosseguir mais algum tempo. O emocional é o fator preponderante neste tipo de protesto. O físico da gente vai se readaptando, principalmente se você toma regularmente o soro hidratante.

    “A disputa agora é nas ruas”. Foto: Joana Berwanger/Sul21

     

    Sul21: Em algum momento se para de ter fome, a sensação de fome?

    Frei Sérgio Görgen: No terceiro dia a sensação de ter fome não existe mais. Você vai sentindo fraqueza, dores, a boca vai ficando pegajosa, a língua parece que fica grande, o sono diminui, você se sente mais cansado, sente tontura quando levanta. Os sentidos ficam extremamente aguçados. A gente sentia cheiro de comida que as outras pessoas não sentiam. Mas isso não dava fome. A gente só sentia o cheiro mesmo. Devia ter um restaurante ali por perto.

    Sul21: E agora, quais são os próximos passos dessa luta?

    Frei Sérgio Görgen: A disputa agora é nas ruas. Nós consideramos aquela decisão da ONU como uma grande conquista. É um constrangimento a mais para eles. Depois que encerramos a greve de fome colocaram a questão do habeas corpus em debate de novo. Eles terão que se pronunciar sobre isso mais uma vez. Talvez a maior conquista que tivemos, que não é resultado isolado da greve de fome, mas sim da sequência de lutas populares no Brasil nos últimos anos, é a militância retomar as ruas com a cabeça erguida. A greve de fome não foi um ato isolado, mas fez parte dessa sequência de muitas lutas e atividades de rua, nas estradas, assentamentos, portas de fábrica.

    O 23 de janeiro, em Porto Alegre, um dia antes do julgamento do Lula, mobilizou cerca de 100 mil pessoas e não era mais só militância. Mais recentemente, tivemos o Festival Livre Lula Livre no Rio, que reuniu outras dezenas de milhares de pessoas. A marcha a Brasília, no dia do registro da candidatura do Lula, foi outro momento desses, onde só não foi mais gente por falta de recursos. O resultado dessa sequência de lutas está aparecendo nas pesquisas, inclusive com virada no Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo. Não é só mais o Nordeste.

    Temos uma demarcação muito clara hoje no país. Ou você é de extrema-direita ou você preserva um projeto civilizatório, com uma tendência de que o centro mais lúcido acabe se posicionando mais à esquerda. Durante a greve de fome, recebemos manifestações de apoio das comunidades mais longínquas do Brasil.

    Acho que agora eles não seguram mais essa avalanche pró-Lula ou pró quem o Lula indicar. Vai ser como fogo morro acima ou chuva morro abaixo. Passamos de um ponto de inflexão. Acho, inclusive, que as pesquisas não correspondem à essa realidade, inclusive no Rio Grande do Sul. Todos os relatos que recebemos apontam para isso. Eu mesmo tive experiências bem concretas desta nova realidade. E os relatos dos militantes populares nunca são relatos eufóricos, sempre buscando ser muito realistas.

    Os movimentos sociais e populares, que sempre estiveram nas ruas lutando, foram o núcleo duro de resistência que o golpe não conseguiu destruir e de onde ressurgiu essa força que hoje está virando o jogo.

    Notas

    1 Entrevista publicada originalmente  no Sul21 em:  https://www.sul21.com.br/areazero/2018/09/frei-sergio-o-que-nao-queriamos-no-imperio-se-preservou-no-judiciario-precisamos-enfrentar-essa-casta/

    2 Essa matéria recebeu o selo 038-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Terceirização no STF

    Terceirização no STF

    por José Eymard Loguércio *

    O Supremo Tribunal Federal, no dia 30 de agosto de 2018, ao decidir pela terceirização em qualquer atividade da empresa, aderiu, com sérias consequências para o futuro, à lógica de mercado, com ruptura do pacto constitucional de prevalência dos direitos sociais sobre os econômicos.

    O STF concluiu julgamento conjunto da ADPF nº 324 e do RE nº 958.252, considerando lícita a terceirização ou qualquer outra forma de organização da produção, independentemente do objeto social das empresas envolvidas no processo de descentralização produtiva, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante. Votaram no mesmo sentido os Ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia. Divergiram os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.

    Uma vez mais, no cenário jurídico constitucional, estiveram contrapostos a “modernização” das relações trabalhistas (tida como condição sine qua non para enfrentar a crise econômica e criar empregos) e o direito fundamental de quem trabalha a ter direitos e sobreviver dignamente.
    Venceu a primeira corrente, como, aliás, tem sido a tendência desde 2014. Em inúmeras oportunidades, em nome da teoria econômica do direito e da relatividade, o Supremo Tribunal Federal desconstrói o sistema protetivo dos direitos sociais no Brasil, negando sua qualidade de direito fundamental insculpido na Constituição Cidadã de 1988, esvaziando a norma de conteúdo.

    A gravidade desta última decisão consiste no fato de que o fenômeno que se legitimou subverte por completo a lógica do sistema protetivo do trabalho e transforma uma modalidade excepcional de relação de emprego em regra. Com isso, aumenta-se a rotatividade, os acidentes de trabalho, o assédio moral e as jornadas de trabalho; reduz-se salários; debilita-se a representação sindical e, consequentemente, o poder de negociação coletiva, além de se favorecer casos de fraude e impunidade para quem descumpre as leis trabalhistas no Brasil.

    A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia é contrária à locação de trabalhadoras e trabalhadores. Afinal, trabalho não é mercadoria. E, por isso, continuará empenhada para que o sistema de fiscalização e de Justiça no País combata os casos de fraude e garanta a isonomia salarial e condições de trabalho entre os trabalhadores, independentemente de sua forma de contratação.

    • José Eymard Loguércio é associado da ABJD e advogado no processo. Artigo escrito com colaboração de Fernanda Caldas Giorgi, associada da ABJD

    Notas

    1 Publicado originalmente em http://www.abjd.org.br/2018/09/terceirizacao-no-stf.html

    2 Essa matéria recebeu o selo 037-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.