Fogo. O plano é claro. O Governo Federal quer o fim da maior parte dos biomas brasileiros. 58% é a porcentagem cortada para contratação de brigadistas, profissionais qualificados e treinados que trabalham com prevenção e controle de incêndios florestais. Parece um absurdo em um ano em que as queimadas bateram um recorde com mais de 12.000 focos de incêndio e a perda de mais de 2.500.000 hectares, mas não é. O corte genocida e brutal do governo das fake news, infelizmente, é de verdade.
Jaguatirica morta à beira da estrada tentando fugir do fogo
Nesta semana, circulou um vídeo mostrando um grupo de brigadistas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) pondo fogo em matéria orgânica de forma controlada na região de Cáceres no Mato Grosso. Não demorou muito para que o vídeo circulasse em grupos de whatsapp e em redes sociais acusando os brigadistas de estarem pondo fogo no Pantanal ao invés de atuarem para a extinção das queimadas. Mais um ataque que põe em dúvida por meio das fake news a atuação de um órgão que está em constante ataque do Ministério do Meio Ambiente sob a mão ditatorial e equivocada do ministro Ricardo Salles.
Técnica do Pinga-Fogo
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Contrafogo. Quando o fogo apaga fogo
Essa técnica para combater incêndios de grandes proporções em campo aberto chama-se contrafogo. Utilizada como prevenção de alastramento contínuo, criando uma linha de chamas que vai de encontro ao incêndio ou que abre um aceiro para criar uma linha sem material natural inflamável e que faz o fogo se extinguir.
Em entrevista ao jornal Campo Grande News, o analista ambiental Alexandre Pereira, do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do Ibama, explica que é utilizado um equipamento chamado “pinga-fogo” e é manuseado apenas por profissionais que tem conhecimento técnico e treinamento em combate aos incêndios, pelo Ibama, ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e Corpo de Bombeiros.
Há cerca de um mês, a chefe de assessoria de comunicação (Ascom) do ICMBio foi exonerada, dando lugar a outro militar – predileção de um governo adepto e saudoso de uma Ditadura ainda recente em nosso país.
Arara-azul, espécie exclusiva do bioma pantaneiro
Arara-azul, espécie exclusiva do bioma pantaneiro
Agronegócio x brigadistas
É importante entender o esforço desse governo em desmerecer o IBAMA e o ICMBio como forma de desarticular a batalha que vem sendo travada no Pantanal, no cerrado e na Amazônia. O agronegócio é peça-chave para o enriquecimento ilícito de fazendeiros e políticos que lucram com o fim desses biomas dando lugar ao pasto para cria e recria de gado.
Entre a fumaça e a poeira da estrada, o pantaneiro foge do fogo que consome a mata em uma área de fazenda
Dessa forma, a grande jogada é diminuir a fiscalização assim como a informação para o público menos esclarecido e suscetível a mentiras divulgadas, como o vídeo fora do contexto, dos brigadistas, que viralizou de forma irresponsável.
Recente também é a morte do brigadista Welington Fernando Peres Silva de apenas 41 anos que teve 80% de seu corpo queimado em uma ação em Goiás. Wellington morreu queimado por um fogo que, de acordo com o Governo Federal, não existe. Em um vídeo exibido pelo governo em um evento, Salles afirma que a Amazônia não está pegando fogo. Em uma das imagens aparece um mico-leão-dourado, espécie característica e exclusiva da Mata Atlântica. Mais mentiras. Mais fake news.
Campos devastados pelo fogo
O Agro não é Pop
O AGRO não é pop, como narra a propaganda bizarra na emissora campeã de audiência no programa conhecido como o show da vida. O AGRO é implacável. O AGRO ama o fogo.
O cineasta Takumã Kuikuro participou no último dia 11 do programa de veiculação nacional Encontro com Fátima Bernardes, da TV Globo. Ele denunciou as queimadas que estão consumindo uma grande parte do Parque Indígena do Xingú, a falta de apoio às comunidades e o número reduzido de brigadistas indígenas para combater as chamas. Além de destacar os atos insuficientes por parte dos órgãos oficiais federais, Takumã ressaltou a importância do envolvimento de toda a população brasileira em ações de apoio aos povos que estão ameaçados pela pandemia de Covid-19 e também pelo grande número de queimadas em territórios indígenas e áreas de preservação permanente.
Takumã Kuikuro também é um dos colaboradores do Projeto ÁudioZap Povos da Terra, com informações sobre prevenção e cuidado com a Covid-19. O projeto de extensão da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT é um trabalho coletivo e voluntário desenvolvido em conjunto entre lideranças indígenas, professores e alunos dos cursos de comunicação. Toda semana, novos programas curtos (entre seis e nove minutos) trazem temas diferentes, como a importância do uso da máscara e do isolamento social, mesclando o português e o idioma de cada nação indígena. Os programas são distribuídos como arquivos de áudio nas aldeias e nas cidades por meio do WhatsApp pelos próprios líderes indígenas que contribuem com as narrações ou comentários sobre os assuntos tratados.
Takumã Kuikuro, por exemplo, participou do primeiro episódio do projeto relatando a experiência do Povo Kuikuro, na Aldeia Ipatse, na prevenção e combate à Covid-19, em que os próprios membros da comunidade se anteciparam e tomaram a frente no trabalho de prevenção, campanhas de arrecadação de materiais e alimentos e na conscientização da comunidade sobre como evitar o contágio e a transmissão do novo coronavírus. A ineficiência das ações e a falta de interesse do governo federal também foram destacadas como fatores relevantes que dificultaram ainda mais o trabalho de enfrentamento da pandemia.
O Projeto ÁudioZap Povos da Terra, que atende a comunidades de sete etnias de povos indígenas localizadas em Mato Grosso, já está na sua sétima edição. Além da distribuição de celular para celular pelos próprios indígenas, os materiais de cada episódio e em cada língua também são disponibilizados por meio de um site e de perfis nas redes sociais, usando a internet como ferramenta para facilitar a distribuição dos áudios também para as rádios comunitárias de Mato Grosso.
Para a professora Andréa Ferraz, que é coordenadora do projeto de extensão, a participação dos líderes indígenas na narração, comentários e distribuição dos programas do ÁudioZap Povos da Terra é fundamental para seu sucesso.
“A própria ideia original do projeto é de Isabel Teresa Cristina Taukane, a primeira indígena com doutorado em Comunicação e Cultura pela UFMT”, diz a professora. “Sem a sua participação e protagonismo, assim como a de todos os demais indígenas que fazem as narrações em seus idiomas, colaboram com comentários, a exemplo de Takumã Kuikuro, e repassam os áudios aos parentes, jamais conseguiríamos formatar a informação especificamente para os públicos pretendidos e muito menos alcançar pessoas que podem estar isoladas em aldeias distantes”.
Para baixar os áudios e ter mais informações sobre o Projeto de Extensão ÁudioZap Povos da Terra, acesse:
No Brasil, a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 pode ser vista como uma espécie de Livro do Deuteronômio na vida do povo brasileiro. Após muita luta social, resgatando a memória das lutas de resistência popular, o povo organizado, na luta, conquistou a inserção de vários princípios e regras na Carta Magna para garantir respeito à dignidade de todas as pessoas, tais como: ‘função social da propriedade’, ‘desapropriação de latifúndios que não cumprem sua função social’; forte ênfase nos direitos sociais, entre os quais estão: ‘o direito à educação, à saúde, à terra, à moradia, ao meio ambiente saudável e equilibrado’; princípios libertadores, ou seja: ‘respeito à dignidade da pessoa humana’, ‘direitos humanos’, ‘liberdade de expressão’, ‘espírito republicano’, ‘direito de manifestação’, ‘liberdade religiosa’; prescrição para se demarcar as terras dos Povos e Comunidades Tradicionais, tais como: ‘indígenas,’ ‘quilombolas’ etc.
Tudo isso está assegurado na Constituição Federal, mas a classe dominante, cotidianamente, mais do que impedir a efetivação desses direitos sociais, os destroem. A história demonstra que só com luta social permanente se conquistam direitos e se impedem retrocessos de direitos conquistados com suor e sangue pela classe trabalhadora. Se o povo se acomoda, vai sendo violentado aos poucos, até ser sacrificado.
O livro do Deuteronômio contém narrativas de um povo comprometido pela ALIANÇA (BeRiT, em hebraico,) com Yahweh, Deus solidário e libertador, que “libertou do Egito o povo escravizado”. O fio condutor do Deuteronômio é um povo que busca, eticamente, colocar em prática o projeto de Aliança firmado entre eles, POVO escravizado por mais de 500 anos sob o imperialismo dos faraós no Egito, e o Deus YAHWEH, acima de tudo, libertador. Para isso, marcham no deserto por cerca de “40 anos”, a fim de conquistar uma “terra onde corre leite e mel” (Dt 26,9), e, no final, ao sopé do Monte Sinai, celebram a projetada Aliança.
Por isso, o livro de Deuteronômio rechaça, com veemência, as práticas que se ancoram em imagens distorcidas de Deus: idolatria. Os redatores e as redatoras do livro de Deuteronômio são tão radicais contra a idolatria e percebem tão bem que os falsos profetas e os falsos pastores são propagandistas da idolatria, que alertam: “Não dê ouvidos a profeta que apresenta sinal ou prodígio. Mesmo que apresente prova, não dê ouvidos!” (Dt 13,2-4). Mais! Falso profeta não pode ser respeitado e nem tolerado: “O falso profeta deverá ser morto.” (Dt 13,6). É claro que não podemos entender esse versículo como uma autorização para pena de morte para os falsos profetas e falsos pastores, mas como um alerta para os estragos humanos e sociais que os mesmos causam no tecido social. O correto e ético é ‘puxar o tapete’ que sustenta esses falsos profetas e pastores, retirando deles todas as armas de morte que usam, com sutilezas, para enganar o povo, ao invés de cuidar desse povo injustiçado.
O texto de Dt 15,12-18, que apresenta um ensino sobre a libertação dos escravos hebreus, retoma e desenvolve a lei que está em Ex 21,2-6; fazendo isso, porém, em linguagem que liberta e evangeliza, e não em linguagem legislativa.
“Quando um de seus irmãos, hebreu ou hebreia, for vendido a você como escravo, ele servirá a você durante seis anos. No sétimo ano, você o deixará ir, em liberdade. Contudo, quando você deixar que ele vá em liberdade, não o despeça de mãos vazias: carregue os ombros dele com o produto do rebanho de você, da sua colheita e de cereais e de uva. Dê-lhe de acordo com a bênção que Javé seu Deus tiver concedido a você. Lembre-se que você foi escravo no Egito, e que Javé, seu Deus, resgatou você” (Dt 15,12-15).
O texto evoca um contexto do povo da Bíblia sobrevivendo em tempos de escravidão, sob relações sociais escravocratas, nas quais quem detinha poder econômico e político comprava pessoas como se fossem mercadoria e as escravizava. Vários povos dos tempos bíblicos foram escravizados durante uns 500 anos pelo imperialismo dos faraós no Egito, mas se libertaram por volta de 1200 antes da Era Comum. Após alguns séculos, foram escravizados novamente pelo Império Assírio, depois pelo Império Babilônico e, posteriormente, pelo Império Persa, Grego, Romano e, na sucessão da história, pelos impérios: português, espanhol, inglês, estadunidense, império das transnacionais etc., como assistimos hoje.
Pela narrativa de Dt 15,12-15, os escravos são reconhecidos pelo autor de Deuteronômio como ‘irmãos’ e, surpreendentemente, inclui a perspectiva de gênero (‘hebreu’ ou ‘hebreia’). É inspirador ver no Deuteronômio o reconhecimento da igualdade de dignidade entre homem e mulher. Mesmo que o contexto seja de escravidão, o texto ensina que a escravidão não será “ad aeternum”: será apenas por ‘seis anos’. Ninguém nasce destinado a sobreviver, pela vida inteira, como escravo. Nascemos para a liberdade, mas não para uma liberdade abstrata. Liberdade, sim, mas com condições materiais objetivas capaz de efetivá-la.
A orientação para descansar no 7º ano, Ano Sabático, é oriunda da mística segundo a qual o Deus criador, após criar todas as criaturas nas ondas da evolução, descansou no 7º dia. Por isso, intui-se que Deus quer que descansemos no 7º dia. Daí decorre a orientação para deixar a mãe terra descansar no 7º ano, em uma perspectiva de agricultura ecológica. E após 49 anos (7 anos x 7 anos), no Ano do Jubileu, deve se fazer uma reorganização geral da sociedade: as terras compradas ou invadidas deverão ser devolvidas aos seus ancestrais, todas as dívidas devem ser perdoadas, as pessoas escravizadas devem ser libertadas e a sociedade deve ser revolucionada, para que todos e todas tenham condições materiais e objetivas de ‘ter vida e liberdade em abundância’.
Cultivando essa mística, o livro de Deuteronômio alerta: “Nãoescravize ninguém para além de seis anos” (Dt 15,12a.18). “Liberte quem você escravizou, no sétimo ano.” (Dt 15,12b.18). Isso é anunciado de forma enfática, pois se diz em Dt 15,12 e se repete em Dt 15,18 na conclusão da unidade textual. No entanto, muito eloquente é o fato de que o livro de Deuteronômio não prescreve apenas libertação formal, que concede liberdade abstrata, mas que muitas vezes, até aumenta as amarras escravizadoras, como aconteceu no Brasil. Em 1850, 38 anos antes da Abolição formal da escravidão de milhões de negros escravizados, escravizou-se a terra, com a Lei 601, Lei de Terras, ao legislar, afirmando que a única possibilidade de acesso à terra seria por meio de compra. Criou-se, assim, o cativeiro da terra antes de acabar com o cativeiro dos negros escravizados. Procedendo assim, juridicamente se pavimentou a estrada para se criar outro tipo de escravidão sob a égide de liberdade abstrata e formal.
Com a abolição formal da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888, os negros escravizados saíram de mãos vazias, sem jamais ter condições de ter acesso à terra, pois não tinham dinheiro para comprar nem mesmo um sítio. Consequentemente, de escravizados juridicamente se tornaram sem-terra, iniciando o que muitos chamam de escravidão moderna ou contemporânea, na prática, em muitos casos, até mais cruel. Como? Nos moldes de intensificação do trabalho por metas de produção, ganho por produção, trabalho intermitente, terceirizado, uberizado ou… sabe-se lá o que mais…
Portanto, relacionando o Livro do Deuteronômio com a Constituição de 1988, reconhecemos a caminhada e a luta do povo como um constante êxodo, em busca de libertação, guiado por um Deus que, sendo Pai-Mãe, atrai, educa, é Deus-Amor, Deus-Libertador!
Belo Horizonte, MG, 8/9/2020
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 – Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander – 15/01/2020
2 – Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral – 18/6/2020
3 – Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia – CEBI/MG – Parte I
4 – Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa – Parte II
5 – Livro do Deuteronômio – chaves de leitura – Mês da Bíblia de 2020 – por Rafael, do CEBI. Vídeo 1
5 – Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 – 02/2/2020
6 – Livro do Deuteronômio – Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues – Entrevista completa
7 – Live – CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020
8 – Live – Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
Em postura corajosa e profética, 152 bispos da Igreja Católica assinaram Carta ao Povo de Deus, divulgada dia 26/7/2020 na Coluna de Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo, se posicionando contra os desmandos do atual desgoverno federal chefiado por Jair Bolsonaro. Outros 150 bispos poderão assinar esta Carta em breve, pois mais de 70% dos bispos e dos padres não apoiam o atual presidente que comanda política autoritária, criminosa, genocida e ecocida.
Na Carta, os 152 bispos dizem em alto e bom tom: “Nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença. […] Temos clareza de que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência.”
Os bispos alertam que o Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história com “a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.” “Não cabe omissão, inércia e nem conivência diante dos desmandos do Governo Federal”, pontuam os bispos. Todos devem “combater as mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro e a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra.” Os 152 bispos denunciam também “a liberação do uso de agrotóxicos antes proibidos e o afrouxamento do controle de desmatamentos.” “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós”” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/6/2020).”
Com a ira santa de Jesus Cristo diante dos vendilhões do templo, lugar sagrado, os 152 bispos denunciam: “Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). […] As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo.”
Profetizam os bispos: “É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população”. Como bons pastores que não apenas cuidam das ovelhas feridas, mas enfrentam os lobos vorazes, os 152 bispos denunciam: “O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.”
De forma lapidar e com precisão cirúrgica, os 152 bispos põem o dedo nos desmandos do desgoverno federal: “O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.”
A idolatria do mercado é denunciada com veemência também pelos 152 bispos: “No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.”
Com veemência profética, continuam os 152 bispos: “Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que sobrevive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. […] O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais” (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).
Os 152 bispos interpelam nossa consciência: “Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?” Cientes que mudança emancipadora só vem de baixo para cima, a partir dos explorados, os 152 conclamam a todas as pessoas de boa vontade: “Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz”” (Romanos 13,12).
Esta Carta ao Povo de Deus é tão contundente e profética como os Documentos divulgados por bispos da Igreja Católica nos anos de chumbo da ditadura militar-civil-empresarial iniciada em 31 de março de 1964. Dia 6 de maio de 1973 – ano do milagre econômico -, 18 bispos e superiores religiosos do regional Nordeste II da CNBB lançaram o documento Eu ouvi os clamores do meu povo, que denunciava as práticas assistencialistas da Igreja, pois eram mancomunadas com os dominadores (Eu ouvi os clamores, 1973, p. 10). Nesse Documento, os bispos do Nordeste analisavam e propunham revisão de postura. Diziam os bispos do Nordeste: “A Igreja tem feito o jogo dos opressores, tem favorecido aos poderosos do dinheiro e da política contra o bem comum. […] À luz, portanto, de nossa Fé e com a consciência da injustiça que caracteriza as estruturas econômica e social de nosso país, entregamo-nos a uma profunda revisão de nossa atitude de amor pelos oprimidos, cuja pobreza é a outra face da riqueza de seus opressores” (Eu ouvi os clamores, 1973, p. 27).
Seis bispos do Centro-Oeste, da parte mais violentada da Amazônia, também lançaram no mesmo dia, 6 de maio de 1973, o documento Marginalização de um povo – grito das Igrejas, onde se afirmava: “Precisamos apoiar a organização de todos os trabalhadores. Sem isto, eles não se libertarão nunca” (Marginalização de um povo, 1973, p. 42). Os bispos denunciavam a exploração a que era submetido o povo trabalhador nas contradições do capitalismo: “[…] é um povo que luta e labuta, diário, num trabalho que, se não tira da pobreza os que trabalham, serve para enricar mais ainda os que já são ricos. […] O latifúndio está crescendo, fica mais poderoso. E tem apoio das autoridades. […] O sistema capitalista é a fonte de todos os males que assolam a vida do povo” (Marginalização de um povo, 1973, p. 9 e 14). E, mesmo confundindo dinheiro com capital, os bispos do Centro-Oeste compreendiam as contradições do capital e anunciavam uma utopia: “Queremos um mundo onde os frutos do trabalho sejam de todos. Queremos um mundo em que se trabalhe não para enriquecer, mas para que todos tenham o necessário para viver: comida, zelo com saúde, casa, estudos, roupa, calçados, água e luz. Queremos um mundo em que o dinheiro esteja a serviço dos homens e não os homens a serviço do dinheiro” (Marginalização de um povo, 1973, p. 43).
Os bispos e missionários da causa indígena lançaram também em 25 de dezembro de 1973 a declaração Y-juca-pirama – o índio: aquele que deve morrer, que era “documento de urgência”. Nesse se repudiava ‘civilizar’ os indígenas e defendia o reconhecimento das culturas indígenas. Nesse sentido afirmavam: “O objetivo do nosso trabalho não será ‘civilizar’ os índios. […] Urgente necessidade de reconhecer e publicar certos valores que são mais humanos, e assim, mais evangélicos do que os nossos ‘civilizados’ e constituem uma verdadeira contestação à nossa sociedade” (Y-Juca-Pirama, 1973, p. 21).
Esses documentos assinados por vários bispos deixavam patente a necessidade de uma mudança radical na atuação pastoral da Igreja. No livro O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta, José de Souza Martins aponta a revolução que esses Documentos de vários bispos provocavam: “Esses documentos anunciavam uma verdadeira revolução no trabalho pastoral, e constatavam que, de fato, o capitalismo subdesenvolvido e tributário não levaria à emancipação dos pobres. Ao contrário, o desenvolvimento econômico, que o Estado e o capital levavam adiante, no País, semeava fome, violência, destruição e morte” (MARTINS, 1999, p. 137).
A Igreja muda para contribuir com o processo de emancipação humana da classe trabalhadora e do campesinato ao abraçar a opção pelos pobres, que “é uma opção preferencial pela des-ordem que desata, desordenando, os vínculos de coerção e esmagamento que tornam a sociedade mais rica e a humanidade mais pobre. E ao desatar, liberta” (MARTINS, 1989, p. 57). Deus levanta os líderes da Igreja para denunciar o mal e anunciar que seu povo e toda a criação devem ser tratados com respeito e justiça, e conclamar a ações libertadoras, transformadoras . “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Miquéias 6,8). Com o monge Marcelo Barros saudamos “a volta da profecia na voz dos cuidadores do povo de Deus” e esperamos que estas denúncias claras contra o desgoverno federal que nos assola possam continuar por posicionamento claro destes bispos sobre os setores da nossa própria Igreja que apoiam esta iniquidade ou simplesmente ao se omitirem nesta hora a legitimam. Quem tiver ouvidos, ouça o que os 152 bispos dizem e enxergue o caminho que apontam.
Referências.
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso:ensaios de Sociologia da História Lenta. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1999.
MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.
Documento de Bispos e Superiores Religiosos do Nordeste – Eu Ouvi os Clamores do Meu Povo. Salvador, Editora Beneditina, 1973; Marginalização de um Povo – o Grito das Igrejas, Goiânia, 1973; Y-Juca-Pirama – o Índio Aquele que Deve morrer (Documento de urgência de Bispos e Missionários), s.e., s.l., 1973.
28/7/2020.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 – 3ª Live do Movimento Inter-Religioso do Vale do Aço, MG: Fora, Bolsonaro? – Debate Inter-Religioso.
2 – Live – Fora Bolsonaro e o (des)governo federal? – Debate interreligioso
3 – Live CRISTÃOS TAMBÉM GRITAM: “FORA BOLSONARO”!!! – Frei Gilvander Moreira, Pastor Daniel Elias (Frente de Evangélicos/PT), Renata Miranda (Frente de Evangélicos/MG), Sara Suzan (PJ) e Paulo Amaral.
4 – Padre Nelito Dornelas: Debate Inter-Religioso “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?”- 26/7/2020
5 – Dom Vicente Ferreira na Live “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?” – Debate Inter-Religioso, dia 12/7/2020.
6 – Irmã Claudicéa Ribeiro na Live “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?” – Debate Inter-Religioso – 12/7/2020.
7 – Padre Ronan: “Fora, Bolsonaro e esse governo de morte!” Eloquência e Profetismo – 12/7/2020
https://www.youtube.com/watch?v=3DEzWkp_7f4
8 – A voz profética de dom Mauro Morelli: Por que “Fora, Bolsonaro”? – 12/7/2020
9 – Padre Edson, de Artur Nogueira/SP reafirma denúncias das opressões causadas por Bolsonaro. 05/7/2020
10 – Frei Gilvander e Dom Mauro Morelli na Live “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?” – Parte I
11 – Frei Gilvander na Live Cristãos também gritam “FORA BOLSONARO e todo desgoverno federal!”- 28/6/2020
12 – Padre José Ailton: Faz carreata contra Quarentena quem não se preocupa com a vida dos trabalhadores
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
Após 10 meses do crime ambiental causado pelo derrame de petróleo cru que atingiu o litoral da região do Nordeste, ainda há evidencias de que esse resíduo permanece no local.
O biólogo Felipe Brayner pontuou locais entre as praias de Itapuama e Pedra de Xaréu no Cabo de Santo Agostinho onde é possível visualizar o material, “Foram 47 pontos específicos, sendo uma mais expressivas com aproximadamente 1 metro quadrado” afirma o biólogo. Ele explica também que as rochas atingidas são metamórficas que, longe de seus locais de formação e submetidas à pressão e temperaturas diferenciadas, transformam-se e modificam suas características, abrigando diversas espécies como arthopodos, cnidários, moluscos e crustáceos, espécies estas que estão sendo afetadas pelo resíduo. “Uma forma de mitigação dessa situação é o uso do biogel”, concluiu Felipe.
Precisamos chamar a atenção dos órgãos competentes. Isso não pode continuar como está, nosso meio ambiente grita o tempo todo por socorro. Precisamos lutar!
O medo e a desolação no Brasil e no mundo aumentam com a intensidade do espraiamento viral. Ainda que, infelizmente, muitos brasileiros não tenham se apercebido da dimensão do problema, parte considerável da população encontra-se temerosa. Ontem (7/4), pela primeira vez, morreram mais de cem pessoas em um único dia no país e as perspectivas são de incremento neste número. Entretanto, em meio ao desespero, abrem-se possibilidades concretas na direção de um futuro certamente melhor do que o presente, mas também superior ao passado. Pode não parecer, mas há o que comemorar!
John Maynard Keynes, um dos maiores pensadores do século XX escreveu, em 1930, no auge da depressão mundial decorrente da Crise de 1929, um ensaio brilhante denominado “Possibilidades econômicas dos nossos netos”. Nele afirmava que, apesar do pessimismo generalizado de então aniquilar qualquer esperança, as perspectivas em relação ao futuro eram alvissareiras. Dali a 100 anos (portanto em 2030), a vida da humanidade mudaria por completo. O problema econômico fundamental, a escassez material, desapareceria.
Em virtude do avanço tecnológico, as pessoas não precisariam trabalhar 8 horas diárias para sobreviver. O corolário dessas mudanças seria uma humanidade livre das privações básicas concernentes ao acesso à saúde, educação, moradia e cultura e com tempo abundante para se dedicar aos sentimentos e atividades realmente enriquecedoras: o amor, a arte, o momento.
A maioria dos críticos afirma que Keynes estava errado. Acredito que não; os fatos comprovam isso. Segundo a FAO (2018), o mundo produz 2,5 bilhões de toneladas de grãos por ano, suficiente para atender a demanda mundial, ainda que quase um bilhão de pessoas passem fome; a estrutura produtiva do planeta é capaz de construir hospitais, moradias e rede de esgotos para o conjunto da população, apesar de o WRI (World Resource Institute, 2019) afirmar que 1,2 bilhão de citadinos “não têm acesso a habitação segura e de qualidade”; de acordo com o relatório do FMI (Fundo Monetário Internacional
– World Economic Outlook, 2019), o PIB mundial per capita é de US$ 11.860, ou seja, praticamente US$ 1.000,00 por mês, o que permitiria uma vida razoável para todos os terráqueos. Keynes, portanto, não estava errado. Existem hoje condições materiais para atender às necessidades básicas da humanidade; o problema reside na iniquidade de sua distribuição. Entretanto, neste e outros quesitos, a crise atual demostrou que outro mundo é possível. E não precisamos esperar décadas para sua concretização.
O avanço da base material profetizado por Keynes foi acompanhado por uma expansão brutal das políticas públicas de proteção social ligadas à saúde, educação, moradia e infraestrutura urbana em virtude da elevação da participação do Estado na economia. Como afirma John Kenneth Galbraith, um dos maiores economistas estadunidenses do século XX, “os serviços federais, estaduais e municipais representam (em 1970) 1/4 de toda a atividade econômica. Em 1929, perfaziam apenas 8%”. Tais números eram ainda maiores na Europa.
A combinação entre crescimento do investimento produtivo (estatal e privado) e ampliação das políticas públicas conferiu aos cidadãos dos países desenvolvidos um bem-estar generalizado. Tamanho incremento na qualidade de vida não ocorreu por acaso. Ele foi fruto da desolação tanto da Crise de 1929 quanto das I e II Guerra Mundiais, que revelaram ao mundo a incapacidade do liberalismo econômico em proporcionar condições dignas de vida ao conjunto da população. A desgraça desses eventos levou ao reconhecimento de que a ordem liberal vigente até então era inadequada ao bem-estar coletivo. A partir daí embates sociais e políticos profundos acarretaram o desenvolvimento dos denominados “Estados de Bem-Estar Social” —provavelmente o que houve de mais sofisticado nas democracias ocidentais desenvolvidas. O caos econômico e social que prevaleceu até 1945 propiciou o advento de uma sociedade solidária que alçou o bem-estar coletivo como objetivo supremo a ser alcançado. Reconheceu-se que a liberdade individual só poderia existir em meio à abundância coletiva e que a prosperidade de poucos levava à exclusão de muitos. As sociedades arrasadas de então tomaram decisões políticas em prol da solidariedade econômica e social, mudando por completo seu destino. Foi, portanto, uma oportunidade histórica aproveitada. Nos defrontamos hoje, novamente, com tal oportunidade. E não podemos desperdiçá-la.
Infelizmente, à exceção dos Anos Dourados (os Trinta Gloriosos, entre 1945-75), os pilares ideológicos da economia capitalista sempre sustentaram o imaginário ocidental. A busca incessante pelo lucro, a primazia do setor privado sobre o Estado, do particular sobre o coletivo, do livre-mercado, da concorrência e da meritocracia constituem valores defendidos com unhas e dentes pelos indivíduos supostamente livres que se digladiam ordinariamente nas sociedades capitalistas desreguladas em busca da sobrevivência. Na
crise atual, tais valores vêm sendo peremptoriamente negados, demonstrando sua insignificância no combate às mazelas que ora nos assolam. A farsa desses conceitos foi desmascarada pela atual crise econômica —desenhada muito antes do advento do Covid-19, mas sem dúvida nenhuma aprofundada pelo mesmo.
Novamente, ficou evidente que os mercados não se auto-regulam e que a primazia do Setor Público sobre o setor privado é incontestável, principalmente (mas não só) em períodos emergenciais.
Sem a ajuda econômica estatal, sem o sistema de seguridade social e sem os hospitais públicos, o caos imperaria. Os países que no passado avançaram nas privatizações estão pagando um alto preço agora. Aqueles que não possuem um sistema de saúde universal, mesmo que ricos, sofrem arduamente; os Estados Unidos são um exemplo claro de que a prosperidade privada de poucos não garante o bem-estar da maioria. O país mais rico do mundo comprova que não há a mínima possibilidade dessa subjetividade denominada mercado ou a filantropia dos bilionários, bastante comedida atualmente, resolverem os problemas econômicos e sociais em curso. No caso do Brasil, os hotéis-hospitais destinados à diminuta parcela da população jamais substituirão a capilaridade e solidariedade do Sistema Único de Saúde. Parafraseando aquele médico daquela emissora: “Ainda bem que temos o SUS”.
A atual crise evidenciou que o mercado só sabe jogar quando a economia vai bem; mesmo assim, contribui à piora gradativa da partida durante o jogo e, cedo ou tarde, demanda a mão visível do Estado.
Os interesses econômicos parecem ter perdido seu protagonismo em meio ao combate ao Covid-19. A quase totalidade dos governos optou por desacelerar a economia para salvar vidas. Isso tem um significado profundo: a busca incessante pelo lucro perdeu seu reinado e deixou de comandar a sociabilidade nas economias capitalistas, abrindo espaço para a preocupação com o próximo —seja ele quem for. A vida do outro, a vida de todos, é o balizador da racionalidade que ora impera. O amor ao dinheiro foi substituído pelo amor ao próximo. A crise demonstrou que os Estados podem sim socorrer os necessitados através das transferências diretas de recursos. Ficou provado que há dinheiro para todos! Basta distribuí-lo melhor! As pessoas, e não somente os bancos como de costume, podem e devem receber recursos monetários caso precisem. E essa “ajuda” não levará nenhum país à bancarrota tampouco quebrará alguma economia, senão o contrário: a ausência dessas transferências varreria nações inteiras do mapa. “De repente” explicitou-se que caso as pessoas percam seus empregos e/ou suas rendas o mundo colapsará; evidenciou-se que as reformas trabalhistas direcionadas à precarização das relações de trabalho e ao achatamento dos salários ou as reformas previdenciárias que buscam a retirada de direitos, conclamadas pelos neoliberais como a panaceia ao desenvolvimento econômico, na verdade são contraproducentes e caminham na direção contrária à estabilidade social e prosperidade econômica das nações. Ficou claro que quanto mais nos aprofundarmos nessas reformas, menores serão nossos mecanismos de defesa contra as intempéries inerentes ao livre-mercado.
Precisamos admitir que trilhamos nos últimos 40 anos um caminho errado. Necessitamos reconhecer que os problemas ora enfrentados não são apenas oriundos do Covid-19, mas sim intrínsecos ao sistema capitalista desregulado.
Independentemente da pandemia, o desemprego, a desigualdade e a exclusão vinham aumentando na maioria dos países. A concentração brutal da renda é um dado; a marginalização crescente das pessoas, um fato. Um mundo no qual as 8 pessoas mais ricas do planeta detêm a mesma quantidade de recursos que a metade mais pobre da população (3,6 bilhões de pessoas, segundo a Oxfam – 2018) não pode parar em pé por muito tempo. Cedo ou tarde teremos, como sociedade, como humanidade, que enfrentar esse dilema: ou transferimos recursos aos mais necessitados ou a economia e a sociedade se dilacerarão. Sem políticas públicas de distribuição de renda, consubstanciadas tanto na forma monetária quanto nos serviços essenciais, a barbárie reinará em algum momento.
A pandemia nos deu a oportunidade de repensarmos os valores e comportamentos que regem nossas sociedades. O individualismo, a concorrência exacerbada, a correria cotidiana comandada pelo dinheiro e o consumo desenfreado perderam sentido. Nos demos conta de que tais valores são antagônicos ao bem-estar coletivo e, portanto, devemos e podemos nos livrar deles. A queda acentuada da poluição nas grandes metrópoles nas últimas semanas nos obriga a perguntar até que ponto aguentaríamos a emissão transloucada de CO2 na atmosfera. Qual o sentido de insistirmos numa produção assentada na queima de combustíveis fósseis e na produção de carros particulares e bens de consumo supérfluos, se podemos investir em energia limpa, transporte público e baixar nosso ímpeto consumista? A recuperação econômica pode e deve originar-se desses novos questionamentos e paradigmas, a exemplo do que propõe as iniciativas de renda mínima ou o “New Green Deal”. Abriu-se novamente, como no pós-guerra, uma “janela de oportunidade” para enfrentarmos os problemas da desigualdade, da exclusão, da pobreza e do meio-ambiente que são, insistindo, estruturais do sistema capitalista. Não decorreram do Covid-19; foram por ele explicitados. A pandemia nos mostrou que podemos enfrentá-los. Isso é motivo para comemorarmos! Outro mundo, melhor, é possível! No entanto, caso não incorporemos as lições que a pandemia nos ensinou, o futuro, ainda mais que o presente, poderá ser catastrófico.