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  • Os negócios da fé e o militarismo nas eleições municipais: o futuro-presente das esquerdas

    Os negócios da fé e o militarismo nas eleições municipais: o futuro-presente das esquerdas

    Em nossa contribução ao livro Do Fake ao Fato (des)atualizando Bolsonaro procuramos usar as palavras “atualizados” e “obsoletos”, entrecruzando-as com as definições clássicas de direita e esquerda, para compreender a base bolsonarista. Esse cruzamento pareceu-nos útil para entender a relação desses eleitores com o tempo, como atualizados de direita e de esquerda; e obsoletos de direita e de esquerda. É partindo dessa compreensão teórica que aqui nos perguntamos: Como reagir ao crescimento vertiginoso de candidaturas evangélicas e militares em nossas últimas eleições?

    Mayra Marques, Mateus Pereira, Valdei Araujo, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana

    Frente a um tempo agitado e marcado pela chamada destruição criativa, somos levados a nos compreender como atualizados ou obsoletos em um ambiente hostil que parece nos cobrar um preço sempre mais alto pelo simples direito de existir. Essa sensação é parte do que temos chamado de atualismo, uma ideologia hegemônica que avalia e divide as pessoas por seu grau de atualização. O sujeito atualizado pode ser no máximo um surfista que tenta se equilibrar nas ondas de atualização e teme a todo momento se afogar em um oceano de coisas, comportamentos, linguagens e tecnologias consideradas obsoletas. Nessa metáfora, a história é um profundo oceano de esquecimento no qual estamos ameaçados de afundar.

    O sujeito rotulado de obsoleto existe com a contínua sensação de sua incapacidade de sobreviver à próxima onda de atualização. Não por acaso, o vocabulário da extinção é continuamente invocado para caracterizá-lo: ele é o peixe fora d’água ou o dinossauro que se recusa a desaparecer. Atualizado e obsoleto são as duas condições que a ideologia atualista reserva aos humanos, atribuindo valor exclusivo ao estar atualizado. O atualismo pretende nos convencer que apenas o que é atual merece existir. Essa ameaça existencial do atualismo produz ansiedades e ressentimentos que são amplamente explorados pela direita. Curiosamente, a mesma direita que patrocina a visão de um mundo em que apenas os mais fortes (atualizados) merecem viver, tem sido exitosa em capitalizar com o medo de extinção de setores dos grupos sociais que se enxergam como  maiorias. Neste grupo, os militares e religiosos conservadores se destacam.

     Comecemos por relembrar um fato ocorrido na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2020, que em decorrência da pandemia de Covid-19, aconteceu de forma remota. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro fez um discurso no qual, dentre várias informações distorcidas, fazia “um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”[1] e encerrou a sua fala afirmando que “o Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base”. Nota-se que o esforço em manter os laços com a comunidade cristã, em especial a evangélica, não foi algo que se restringiu aos palanques eleitorais; assegurar este importante apoio é uma constante de Bolsonaro, mesmo estando há quase dois anos na presidência: após vetar o projeto de lei que pretendia perdoar as dívidas das igrejas, Bolsonaro declarou, no Twitter, que ele mesmo derrubaria seu próprio veto, caso fosse um senador ou deputado[2]. Desta forma, mesmo quando parece não agir em favor das igrejas, o presidente reforça a sua imagem como um defensor e propagador da religião cristã.

    Alguns meses antes da Assembleia da ONU, a Deutsche Welle noticiou que muitos pastores apoiavam o discurso de Bolsonaro, que diminuía a gravidade da Covid-19 e defendia a reabertura do comércio, e mantinham suas igrejas abertas, embora a maioria dos fiéis preferisse ficar em casa[3]. Para Edir Macedo, quem nada teme não precisa se preocupar com o vírus; já, para Valdemiro Santiago, a doença seria uma vingança divina. O primeiro é um bispo evangélico fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário de uma das maiores emissoras de televisão do Brasil, a Rede Record, enquanto o segundo é fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus e possui um programa na Rede Bandeirantes. Além do fato de ambos possuírem fortunas dignas de serem relatadas na Revista Forbes e de possuírem programas religiosos na TV aberta, outro fato os une: os dois têm o apoio a Bolsonaro.[4]

    O atual presidente foi eleito com grande adesão do eleitorado evangélico. Cerca de um terço da população brasileira é de alguma denominação evangélica, dentre os quais 42% ajudaram a eleger Bolsonaro[5]. Embora seja católico, o atual presidente, que até então era apenas um capitão “excêntrico” que defendia o lobby corporativo dos militares, foi batizado pelas mãos do pastor e deputado Everaldo Dias, em 2016, no rio Jordão, e costuma frequentar cultos com sua esposa na Igreja Batista. Seu lema de campanha “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, assim como o combate a pautas progressistas, como a legalização do aborto e o casamento homo-afetivo, fizeram com que muitos pastores o apoiassem e aconselhassem seus fiéis a votarem nesse candidato.

    É bom destacar que o discurso de Bolsonaro nem sempre manteve essa ênfase na religião: entre 2004 e 2012, por exemplo, os seus temas principais eram o anticomunismo e o favoritismo ao militarismo, mas, a partir de 2013, ao se aproximar do então presidente da Comissão de Direitos Humanos, o pastor Marcos Feliciano, ele passou a ter mais contato com a “Bancada Evangélica”, incluindo aspectos religiosos às suas falas. Marcos Feliciano, pastor da igreja neo-pentecostal Catedral do Avivamento e vice-líder do governo no Congresso, e Silas Malafaia, pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, foram incluídos entre seus principais conselheiros.

    A Frente Parlamentar Evangélica, popularmente conhecida como Bancada da Bíblia, compõe parte considerável do Parlamento: dos 594 parlamentares, 203 pertencem ao grupo, sendo 195 deputados e oito senadores, o que significa mais de 30%. Os partidos que têm maior adesão a esta frente são: o Partido Social Liberal (PSL), Partido Social Democrático (PSD), Republicanos, Partido Liberal (PL), Progressistas (PP) e Movimento Democrático Brasileiro (MDB), embora haja representantes de diversos outros partidos, incluindo o Partido dos Trabalhadores (PT) . Em 2019, a Frente Parlamentar Evangélica foi considerada, pelo “Estadão”, a bancada mais governista dos últimos cinco mandatos presidenciais, pois 90% dos seus votos foram a favor do governo . Após a saída de Bolsonaro e seus filhos do PSL, houve a tentativa de criar o partido Aliança pelo Brasil, que fracassou. Assim, a ex-mulher do presidente, e seus filhos, Carlos e Flávio Bolsonaro, se filiaram aos Republicanos, partido que contém 24 parlamentares na Frente Parlamentar Evangélica. Jair Bolsonaro segue sem partido, mas não seria de se espantar que ele também se filiasse ao Republicanos, pois além deste partido ser um dos mais presentes na Bancada Evangélica, também é o partido do atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.

    Santinho da campanha de Crivella

    Crivella busca a reeleição no pleito deste ano e, para isso, tentou uma aliança com a ala bolsonarista do antigo partido do presidente, o PSL. No entanto, o partido preferiu não se associar ao atual prefeito do Rio devido ao seu suposto envolvimento em um esquema de corrupção. Mesmo assim, Crivella optou por uma candidata a vice-prefeita bastante simbólica, pois tem duas características que podem ser bastante atrativas para os apoiadores do presidente: ela é militar e católica. Enquanto o catolicismo da tenente-coronel Andrea Firmo pode arrebanhar votos de mais cristãos, englobando os católicos, ela ainda tem uma carreira militar digna de nota: ela foi a primeira mulher a comandar uma base da ONU na África. Assim, essa candidatura tem tudo para agradar as duas principais alas do bolsonarismo.

    Segundo um levantamento feito pelo Observatório das Eleições, o número de candidatos a prefeito, com títulos militares, aumentou em mais de 300% desde 2016, enquanto o aumento no número de vereadores que seguiram a mesma “estratégia” foi de 56%. Embora o crescimento da porcentagem de candidatos com títulos religiosos tenha sido menor, ele ainda existe: mais de 10% dos candidatos a prefeitos e mais de 40% dos candidatos a vereador[6].Os partidos que lideram este crescimento são os mais próximos a Bolsonaro: o PSL é o partido com mais candidatos militares, enquanto o Republicanos é o partido com mais candidatos religiosos. Os gráficos abaixo mostram que os eleitores conservadores terão muitas possibilidades de escolha em 2020:

    Fonte: Observatório das Eleições

    O antropólogo Juliano Spyer identifica uma transição religiosa no país: caso o número de evangélicos continue crescendo no ritmo que estamos assistindo, até 2032 eles serão maioria. Para o antropólogo, uma das razões fundamentais para este crescimento é o papel que muitas igrejas desempenham como uma espécie de “bem-estar social informal”, promovendo uma melhora na qualidade de vida de muitas pessoas pobres que o Estado não consegue promover de forma satisfatória[7]. Ainda que seja uma explicação insuficiente, ela ajuda a explicar o crescimento que assistimos, já que seria preciso, inclusive, construir distinções entre igrejas propriamente ditas de corporações disfarçadas de igrejas.

     E é preciso lembrar que há personalidades políticas que também são evangélicas, mas com tendências progressistas, como Benedita da Silva e Marina Silva, mas com posicionamentos bastante diferentes dos de Bolsonaro e seus seguidores. Já, em relação aos militares, é possível trazer políticos relacionados à segurança pública para o campo progressista, como mostram as candidaturas, bastante contestadas, por militantes e filiados, de Denice Santiago, ex-major da PM, como candidata à prefeitura em Salvador pelo PT; e do ex-coronel da PM e católico praticante, Ibis Pereira, como candidato a vice-prefeito no Rio de Janeiro pelo PSOL. Oportunidade para dizermos que a esquerda também pensa em segurança pública? Talvez.

    De todo modo, o nosso ponto é que no interior da nossa tipologia, entre atualizados e obsoletos, a hierarquia superior, entre militares e evangélicos, tende a ser mais atualizada, ao passo que a “base” tende a ser classificada e algumas vezes se considerar obsoleta frente aos valores que se apresentam como atualizados. Assim, um dos desafios do campo progressista passa, obviamente, por criar pontes e conquistar parte dos setores atualizados e obsoletos desses segmentos, em especial, os últimos, pois como vimos acima os pastores-políticos atualizados são hábeis em mudar de lado, caso o vento mude. Considerar estas pessoas como líderes religiosos é não entender o principal de suas atuações, justamente a dissolução das fronteiras entre política, religião, entretenimento e negócios.

    No entanto, parece que só o campo progressista pode atuar em vantagem em um aspecto. Essas duas possibilidades existenciais, atualizados e obsoletos, parecem cegas para os verdadeiros operadores do atualismo, as grandes empresas e corporações que monopolizam o novo mercado de dados, o que Shoshana Zuboff, em The Age of Surveillance Capitalism, chamou de “capitalistas da vigilância”: “A combinação entre conhecimento e liberdade funciona para acelerar a assimetria de poder entre os capitalistas da vigilância [Google, Facebook, Amazon etc] e as sociedades nas quais eles operam. Este ciclo será quebrado apenas quando reconhecermos como cidadãos, sociedades, e mesmo como civilização, que os capitalistas da vigilância sabem demais para se qualificarem para a liberdade”.

    Em outras palavras, queremos dizer que no Brasil o capitalismo de vigilância adquire uma “cor local” quando percebemos que há uma aliança tática entre as grandes corporações do capitalismo de vigilância com outras duas corporações e seus líderes atualizados: a militar e a evangélica, não excluindo aqui certo conservadorismo católico. E essa aliança constrói guerras culturais de atualização bastante específicas e estranhas a uma parte considerável do campo progressista, pois está assentado em discursos, práticas e tradições que pensávamos superadas. 

    Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e aos grupo Proprietas pelo apoio e interlocução neste projeto.


    [1] https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2020/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-na-abertura-da-75a-assembleia-geral-da-organizacao-das-nacoes-unidas-onu

    [2] https://www.camara.leg.br/noticias/692461-deputados-criticam-tweet-de-bolsonaro-sobre-veto-a-isencao-de-tributo-a-igrejas

    [3] https://www.dw.com/pt-br/evang%C3%A9licos-fazem-coro-com-bolsonaro-e-negam-riscos-do-coronav%C3%ADrus/a-53000050

    [4] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/pastores-se-destacam-entre-lideres-que-orbitam-governo-de-bolsonaro.shtml

    [5] https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2018/10/07/interna_internacional,994989/quem-sao-os-eleitores-de-bolsonaro.shtml

    [6] https://noticias.uol.com.br/colunas/observatorio-das-eleicoes/2020/09/30/aumentam-as-mencoes-a-titulos-militares-e-religiosos-nas-urnas-em-2020.htm

    [7] https://www.dw.com/pt-br/igrejas-evang%C3%A9licas-s%C3%A3o-estado-de-bem-estar-social-informal/a-55208669

  • As eleições nos EUA e Bolsonaro na ONU

    As eleições nos EUA e Bolsonaro na ONU

    Acompanhamos as convenções dos partidos democrata e republicano nos Estados Unidos que decidiram pelas candidaturas de Joe Biden/Kamala Harris e Donald Trump/Mike Pence respectivamente. Como era de se esperar, os protestos de rua, associados ao movimento Black Lives Matter e à derrubada de estátuas, foram mencionados mais de uma vez em diversos discursos em ambas as convenções.

    Mayra Marques – Mateus Pereira – Valdei Araujo (UFOP)*

    Em novembro saberemos se os eleitores estadunidenses escolherão viver em seu presente em constante atualização, como promete o discurso quase mágico de Donald Trump ou continuar a história imperfeita e inconclusa que Barack Obama descreveu em seu próprio discurso na convenção democrata:

    “Estou em Filadélfia, onde a Constituição foi escrita e assinada. Não foi um documento perfeito. Ela permitiu a desumanidade da escravidão, e falhou em garantir às mulheres  – e mesmo àqueles homens sem propriedade –  o direito de participar do processo político. Mas inserido neste documento estava a estrela polar que guiaria as gerações futuras; um sistema de governo representativo – uma democracia – através do qual podemos compreender melhor nossos mais elevados ideais. Através da Guerra Civil, e amargas disputas, aperfeiçoamos esta Constituição para incluir as vozes daqueles que foram deixados de fora. Gradualmente fizemos esse país mais justo, mais igualitário e mais livre”.[1]

    Em um contexto em que os personagens históricos estão no centro de polêmicas, Obama escolheu cuidadosamente o lugar (o Museu da Revolução Americana), ao canto dedicado à escrita da Constituição.[2] A intenção imediata era reforçar o diagnóstico de que Trump representa um risco aos fundamentos da democracia estadunidense. O retrato que aparece no painel de fundo talvez não tenha sido tão planejado, embora pudesse ter sido excluído da imagem com uma simples mudança de ângulo. Trata-se de James Madison, considerado o pai da Constituição e presidente dos Estados Unidos entre 1809 e 1817. As posições de Madison a respeito da escravidão estavam longe de serem avançadas para o período. Como outros pais fundadores, esteve de vários modos envolvido com a infame instituição. A presença de Madison ao fundo do cenário de Obama ilustra bem a imperfeição da Constituição a que ele se refere no discurso, e uma disposição de comemorar a história sem esconder seus defeitos. 

     Mesmo que possamos criticar Obama confrontando seu discurso de progresso da igualdade com os resultados pífios e contraditórios de seus dois mandatos, podemos reconhecer o êxito de seu esforço em recuperar aspectos do passado que parecem ainda servir à sua história, neste caso o legado democrático, revolucionário e a consciência das injustiças raciais, aspectos que podem estar associados à Revolução Americana e a nomes mais avançados na crítica da escravidão como Alexander Hamilton a partir de qualquer análise historicamente fundamentada. Este caso é um exemplo de como podemos elevar nossas exigências éticas e políticas com relação ao passado e ainda assim encontrar nele elementos de orientação para o futuro.

    Dos dois lados do espectro político nos EUA se explora hoje uma retórica de tempos de crise, fora da normalidade, e, por isso, decisivos para o futuro. Alguns analistas chamam essa linguagem de retórica existencial, no sentido de produzir um clima de que é a própria sobrevivência de um estilo de vida que estaria em jogo nas eleições. Estes analistas lamentam que essa atmosfera esteja esvaziando a campanha do debate de temas mais diretamente ligados aos problemas cotidianos da maioria dos cidadãos. A disputa aberta nos últimos dias pelo preenchimento de mais uma vaga na Suprema Corte, a versão estadunidense de nosso STF, tende a agravar a polarização. Mas é indubitável que Trump é ainda quem melhor tem explorado a linguagem da ameaça existencial: “Apesar de toda nossa grandeza como nação, tudo o que alcançamos está agora ameaçado. Esta é a mais importante eleição da história de nosso país”.[3] 

    O discurso de Obama, e em menor medida, também o de Biden, promovem uma visão liberal de progresso transformativo a partir de um legado histórico ambivalente, o mal e o bem estão inscritos na história estadunidense, luzes e trevas, cabe a cada geração escolher o caminho correto. Em um dos momentos mais graves de seu discurso, marcado por imagens de luz e trevas e por um combate pela alma da nação, Biden afirma: “A História nos confiou mais uma tarefa urgente. Seremos nós a geração que finalmente irá limpar a mancha do racismo de nosso caráter nacional?”[4] 

    Discursando alguns dias após Biden, Trump responderia a diversos pontos do discurso do seu oponente, pintando uma imagem muito mais simplificada e homogênea da história. Em sua visão mítica, os Estados Unidos e seu povo são a maior e talvez única fonte de grandeza, justiça e liberdade no mundo, tudo isso garantido por eleição divina. Não há em seu discurso qualquer vestígio de crítica ao passado, a história surge como algo uniforme e a luta não é interna, entre anjos e demônios em uma mesma alma, mas entre a verdadeira América e seus detratores. O bem e o mal aqui representam polos opostos e uniformes: “Entendemos que a América não é uma terra  mergulhada em trevas, a América é a tocha que ilumina o mundo inteiro”.

    Enquanto as narrativas da história apresentadas pelos Democratas são facilmente enquadradas no repertório do pensamento histórico moderno, no discurso de Trump o recurso à história é algo mágico, o tempo é apresentado como a atualização de uma essência miraculosa do ser americano. A única alternativa a essa atualização é a sua destruição por forças externas à sua essência. Assim, em seu discurso, ouvimos incessantemente a promessa de mais do mesmo, não há um princípio transformativo ou um campo de possibilidades, apenas mais América para os verdadeiros americanos, conduzidos a um “futuro maior e mais brilhante”.

    “O que uniu gerações passadas foi a inabalável confiança no destino Americano, e uma fé inquebrantável no Povo Americano. Eles sabiam que nosso país é abençoado por Deus, e que tem um propósito especial no mundo. Foi essa convicção que inspirou a formação de nossa união, nossa expansão para o oeste, a abolição da escravidão, a aprovação dos direitos civis, o programa espacial e a derrocada do fascismo, da tirania e do comunismo”.

    Como se vê, não é um princípio histórico (como o governo representativo e a democracia em Obama) o que guia a história dos Estados Unidos para Trump, mas a eleição divina. No lugar de um progresso transformativo, a história é apenas a atualização desse destino em expansão – sempre mais. Por isso ele recusa em diversos planos o tema do resgate da alma americana levantada por Biden; Deus é a única garantia da pureza nacional e a cruzada moral democrata é transformada em uma guerra cultural que pretende obrigar a população a uma forma de pensamento único, submetê-los a novos códigos de linguagem e comportamento que seriam essencialmente alheios à verdadeira alma nacional:

    “Precisamos recuperar nossa independência dos mandatos repressivos da esquerda. Os americanos estão exaustos de tentar acompanhar a última lista de palavras e frases aprovadas, e dos decretos políticos cada vez mais restritivos. Muitas coisas têm nomes diferentes agora, e as regras estão em constante mudança. O objetivo da cultura do cancelamento é fazer com que os americanos decentes vivam com medo de serem demitidos, expulsos, envergonhados, humilhados e excluídos da sociedade como a conhecemos”.

    Em outras seções do discurso, Trump repete sua crença de que os Estados Unidos são únicos e superiores a qualquer outra nação, reforça o mito da terra das oportunidades para todos, independente de suas origens. Diríamos, terra das oportunidades, mas não das possibilidades, nesse pacto mítico, seu sucesso ou fracasso depende apenas do quanto você decidiu ser como todo e qualquer americano eleito por Deus. O seu fracasso só pode ser sinal de que não conseguiu ser americano o bastante, pois não há falhas no projeto nacional. A forma como em seu discurso ele descreve a conquista do Oeste é emblemático, alguns aventureiros juntaram seus pertences, a Bíblia e ocupando as terras ilimitadas, abrindo cidades, indústrias e comércio como em um passe de mágica – nenhuma palavra sobre o massacre aos nativos americanos, apenas a sentença mágica: “Os americanos constroem o futuro, não destruímos o passado!”. O passado e o futuro de quem, cara pálida?

    Embora em seu discurso hoje na ONU Bolsonaro tenha se afastado da retórica antiglobalização e feito pequenos acenos aos órgãos de governança global, sua matriz discursiva e seu recurso à história tem semelhanças estruturais inequívocas com o imaginário de Trump. Em nenhum outro lugar isso fica tão evidente quanto em suas palavras de encerramento: “O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família a sua base”.[5] Todos os brasileiros que sejam diferentes dessa descrição não são brasileiros o suficiente, são provavelmente candidatos a inimigos da nação, sob constante ameaça de extermínio. Qualquer história do Brasil que possa ser contada a partir dessa definição será uma peça de ficção violenta e excludente. As raízes do sucesso dessas ilusões autoritárias precisam ser buscadas no fracasso das políticas neoliberais e na imensa crise de coesão social que nos legou.

    Como essa escolha pode afetar o futuro das esquerdas?

    Acreditamos que nossa crise de coesão social tem causas reais, presentes no nosso cotidiano: um exemplo é o aumento da população carcerária, especialmente de jovens negros; isso mostra que o passado-presente da escravidão e do racismo não é apenas uma memória/passado sensível, mas uma presença estrutural na vida social brasileira e estadunidense. Também a pandemia de Covid-19 mostrou que, durante uma crise sanitária, as pessoas pobres e negras se tornam mais vulneráveis. Sem resolver este problema estrutural, a disputa cultural tem seus limites.

    O debate sobre as estátuas e sobre a história é importante para revelar esse passado-presente, e não apenas disputar representações sobre um suposto passado morto. A crise de solidariedade que vivemos resulta do fracasso de certos projetos nacionais em realizar suas promessas para a maior parte da população. Falta emprego e oportunidades; a concentração de renda atinge patamares inéditos; ainda não há tratamento igual para homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres. Estes ideais e valores, além de incompletos e imperfeitos, parecem até mesmo retroceder em nosso tempo.

    Em um momento em que a crítica ou o elogio dogmático e naturalizante a um genérico “projeto ocidental” entrou na ordem do dia na disputa política, é preciso reforçar avaliações mais cuidadosas. Contra os que, vestidos de novos cruzados, celebram a sacralidade da civilização ocidental e consagram Donald Trump ou Jair Bolsonaro seus novos paladinos, pouco temos o que dizer. Mas, no campo daqueles que de boa fé buscam formas de enfrentar o grande desafio de defesa da democracia, vale insistir sobre a necessidade de diferenciarmos duas matrizes de crítica ao projeto moderno-ocidental. Há elementos fundamentalmente autoritários, racistas e aporéticos no projeto que devem ser revisados e abandonados, mas também há valores e ideais que ainda podem nos servir, que no lugar de serem abandonados precisam ser aprofundados e atualizados.

    Parte do “novo sentimento antidemocrático” e da frustração causada pela desigualdade social é fruto da não realização desses valores modernos, em especial, da democracia, ao menos não de forma satisfatória: a igualdade prometida pela universalidade, a fraternidade prometida pelo reconhecimento do mérito e a liberdade, não apenas permanecem como promessas não plenamente cumpridas, como foram distorcidas para legitimar projetos de opressão. É possível que esses valores sejam atualizados em sentido propriamente histórico para atender as demandas do presente e o aprendizado das ruas.

    O futuro da esquerda passa por enfrentarmos a perda de solidariedade social aberta pela crise entre o capitalismo e valores democráticos, em especial, atacar as causas da concentração de renda e da piora nos indicadores sociais, e avançar na compreensão dos modos de produção da desinformação, para alargar o controle social das fontes de produção e circulação de informação, combatendo o negacionismo da história, da ciência e dos valores éticos.

    Isso deverá levar a uma ocupação cidadã das novas estruturas da esfera pública e ampliar as oportunidades para o debate franco e honesto como forma de mediar conflitos e produzir novas solidariedades. Desde que possamos levar a sério o desafio proposto pela ideia de interseccionalidade de gênero, raça e classe, respeitando e conscientes dos limites e potencialidades da vivência e da experiência do lugar social de fala e ação. Afinal, conforme Géssica Guimarães e Amanda Danelli, “no interior do discurso pela igualdade deve haver espaço para o respeito à diversidade e o combate às opressões estruturais que ainda hoje assolam as vidas de tantas pessoas”.[6] 

    Assim, para sobreviver à ansiedade e à nostalgia do atualismo, assim como poder sair do fluxo contínuo de apropriações violentas do passado e do futuro pelo tempo presente, é necessário criar possibilidades de desatualização e de atualizações próprias, o que é mais do que desacelerar o tempo. Oscilar entre o atual e o inatual é entender que podemos ainda ter um papel sobre o futuro, que o presente pode ser futurizado e passadizado por decisões que podemos tomar coletivamente.

    (*) Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e aos grupo Proprietas pelo apoio e interlocução neste projeto.


    [1] A transcrição pode ser lida no site https://edition.cnn.com/2020/08/19/politics/barack-obama-speech-transcript/index.html.

    [2] É possível fazer um tour virtual pelas salas do museu em seu site: https://museumvirtualtour.org/

    [3] A transcrição do discurso de Trump na convenção do partido republicano pode ser lida no link – https://edition.cnn.com/2020/08/28/politics/donald-trump-speech-transcript/index.html 

    [4] A transcrição do discurso de Biden pode ser lida no link https://edition.cnn.com/2020/08/20/politics/biden-dnc-speech-transcript/index.html

    [5]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/09/22/leia-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-na-assembleia-geral-da-onu.htm

  • De Minneapolis a Mariana: presença do racismo e outros fantasmas da escravidão

    De Minneapolis a Mariana: presença do racismo e outros fantasmas da escravidão

    No dia 25 de maio, na cidade de Minneapolis, EUA, George Floyd foi detido e asfixiado até a morte pelo policial Derek Chauvin. Floyd era um homem negro. Ele repetiu várias vezes que não conseguia respirar, enquanto Chauvin, o policial, um homem branco, apertava o joelho contra o seu pescoço. As imagens do assassinato foram amplamente disseminadas, na mesma medida em que os protestos se espalharam por diversas cidades dos Estados Unidos e, em seguida, em outros países. 

    Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Mariana, MG *

    Como se sabe, uma das ações que passou a fazer parte destes protestos foi a derrubada de estátuas que homenageiam personagens de algum modo envolvidos com a história da escravização moderna ou do colonialismo, o que logo suscitou um debate entre a defesa do “patrimônio histórico” e a necessidade de “fazer justiça às memórias” de grupos historicamente oprimidos. A polêmica se dá entre aqueles que alegam a defesa de um certo patrimônio histórico e artístico versus os que demandam por justiça e reparação.  

    Nos Estados Unidos, uma das tensões com a derrubada ou remoção de estátuas de Cristóvão Colombo envolveu parte da comunidade ítalo-americana, que via e vê na imagem de Colombo um elemento de reforço de sua identidade estadunidense. Segundo um articulista do The New York Times, as estátuas “reconhecem a dívida geral que os colonizadores do Novo Mundo, colonos e imigrantes, têm com o homem que conectou a Europa às Américas, junto (em muitos casos) com o desejo específico dos imigrantes ítalo-americanos de reconhecer e reivindicar o explorador italiano”.[1] 

    Os personagens históricos, assim como os seres humanos, são multidimensionais, isto é, suas vidas possuem diversos aspectos contraditórios. Assim, como separar o que está sendo homenageado daquilo que deveria ser repudiado, se ambos estão presentes em um mesmo personagem-monumento? Podemos celebrar o Colombo explorador e repudiar o Colombo conquistador? Podemos nos afastar dessa concepção tradicional e homogênea das biografias que ainda organiza as expectativas de boa parte público? Para começar a responder a essas perguntas é preciso analisar em que medida uma visão celebrativa e acrítica do colonialismo que Colombo representa ainda é uma ferida aberta, assim como as concepções racistas e eurocêntricas que fundamentam essa concepção de história.

    Os que criticam a revisão dos monumentos públicos possuem origens sociais e políticas distintas; seus enfoques e argumentos são variados. O mesmo pode ser dito dos que defendem a revisão dos monumentos. Este debate está longe de ser uma simples polarização. Alguns críticos questionam o gesto de revisar monumentos por um suposto moralismo anti-histórico que poderia levar à destruição de qualquer ponto de apoio no passado. Segundo esse argumento, a nova iconoclastia (destruição de imagens) desconsidera os contextos históricos, os progressos alcançados na luta por igualdade e relativiza valores morais e políticos que teriam sido decisivos na construção de projetos nacionais bem-sucedidos. 

    Mais recentemente alguns críticos invocaram o tema da liberdade de expressão em torno de uma suposta cultura do cancelamento, da qual a destruição das estátuas seria apenas mais uma dimensão. Nesse grupo de críticos pode-se encontrar quase todas os matizes da direita política contemporânea, mas, também, setores da esquerda, como muitos dos que assinaram a carta publicada na Revista Harpers em 7 de julho deste ano em um manifesto contra uma alegada cultura do cancelamento que estaria colocando em risco a liberdade de expressão. As posições, naturalmente, vão oscilar desde uma recusa total a qualquer esforço de revisão – como defendido por Donald Trump no caso dos militares confederados que nomeiam bases militares estadunidenses – até críticos moderados que admitem a legitimidade de algumas demandas e que questionam apenas os métodos de algumas dessas ações.

    Os que defendem a revisão dos monumentos são muitas vezes enquadrados no rótulo de uma nova esquerda identitária ligada aos movimentos negros, de mulheres e LGBTQIA+. Não raro esses grupos também apresentam demandas por novas histórias e novos monumentos. Por outro lado, setores da direita também não estão alheios ao trabalho de revisão de personagens e eventos históricos em perspectiva iconoclasta, mesmo que frequentemente lançando mão de procedimentos negacionistas e de falsificação, ou seja, da distorção programática de nosso conhecimento sobre a história. Estes grupos de direita promovem a narrativa de uma guerra cultural para salvar uma fantasiosa civilização “cristã-ocidental” e os valores da pátria e da família tradicional, ignorando qualquer esforço de acolhimento crítico daqueles que pensam e vivem de modo diferente.    

    No dia de 13 de maio, que no Brasil se comemora a abolição da escravatura, a “derrubada simbólica” da figura de Zumbi pela Fundação Palmares foi acompanhada do reforço de personagens supostamente mais afinados com a base do bolsonarismo, como a Princesa Isabel e Joaquim Nabuco; mas também do intelectual negro Luiz Gama, celebrado como patrono da abolição. A operação reforçava a oposição entre uma narrativa de resistência violenta dos negros e a via por dentro do sistema através de reformas. De certo modo, Luiz Gama, filho de pai branco e mãe negra, cuja biografia destaca sua capacidade de prosperar dentro da ordem, estaria mais adequado à mitologia conservadora promovida pelo bolsonarismo.

    Pelourinho

    Na Praça Minas Gerais, em Mariana, cidade que abriga nosso campus da UFOP, há um dos poucos pelourinhos em espaços públicos ainda existentes no Brasil. Esses marcos eram usados no período colonial para identificar o poder local quando da criação de vilas, simbolizava o poder de administrar a justiça, o que na época poderia envolver a exposição e o açoite em público. Muito frequentemente as pessoas punidas nesses espaços eram seres humanos escravizados. O pelourinho de Mariana havia sido derrubado em 1871, mesmo ano em que entrou em vigor a Lei do Ventre Livre, mas foi reconstruído e reinstalado em 1981, em novo local, a mando do então prefeito Jadir Macedo.

    Muitos turistas que visitam a Praça Minas Gerais em Mariana se divertem tirando fotos nas quais simulam estar algemados, e alguns brincam que estão sendo chicoteados. Não há, no monumento, uma explicação clara sobre a sua história, apenas uma placa dizendo que o prefeito havia “restituído” o pelourinho à “memória nacional”. Alguns metros ao lado há outra sinalização em que se lê: “Símbolo do poder municipal, inicialmente composto por simples coluna de madeira com argolão ao pé, no qual eram amarrados criminosos e cativos expostos ao castigo público” e mais alguns detalhes técnicos. É interessante notar que o “poder municipal” não precisaria necessariamente continuar a ser simbolizado pelo pelourinho para as gerações futuras, já que o prédio da Câmara Municipal, erguido também no século XVIII, se encontra preservado e ativo nessa mesma praça.

    Caso a placa de identificação do pelourinho contivesse mais informações sobre a violência contra os presos e escravizados, os turistas continuariam a tirar fotos agrilhoados? Encarar este local como um lugar onde pessoas foram torturadas no passado não tem nenhuma relação com os inúmeros casos de violência que presenciamos hoje em dia? Como não lembrar de vários casos em que pessoas alegando fazer justiça com as próprias mãos amarram suspeitos de roubo (geralmente pobres e negros) em postes? O pelourinho como monumento não não seria também um símbolo dessa violência policial e social de nosso presente? Não seria ele a reafirmação de frases populares como “bandido bom é bandido morto”, que autorizam a prática do justiçamento contra pessoas pretas e pobres? O tipo de frase inúmeras vezes repetida pelo presidente Bolsonaro e que tem nas condições genocidas das prisões e cadeias brasileiras sua materialização enquanto política pública.

    Esse seria um exemplo da plurissignificação aderida aos monumentos históricos, pois, nesse caso, a elite local celebra, com a reinauguração do Pelourinho, uma suposta autonomia que reforçou a imagem da cidade como a origem administrativa do poder em Minas, enquanto também representa um passado-presente violento e racista que é invisibilizado ou ignorado. O reerguimento do pelourinho no final da Ditadura Militar está relacionado à onda ufanista de valorização do patrimônio colonial, mas também com as ansiedades que a expansão da mineração trazia. Segundo o mesmo prefeito, em declaração para o Jornal do Brasil em 1981, a cidade corria o risco de ter um “futuro vazio”. O pelourinho representava a atualização de uma forma de poder baseado na hierarquia e na violência racial que, de algum modo, pacificava a consciência das elites locais em um momento de rápida transformação. Na época, o turismo histórico baseado em uma concepção celebrativa do passado colonial também começava a ser alvo de políticas públicas locais.

    Quase quatro décadas depois de restauração do pelourinho o futuro de Mariana não foi vazio. De algum modo as elites locais conseguiram repetir o passado colonial de desigualdades e hierarquias. A município saltou de 14 para 60 mil habitantes, as periferias cresceram com pouca ou nenhuma infraestrutura, a mineração nos legou o crime da Samarco e somos hoje o município com um dos piores indicadores socioeconômicos de Minas Gerais. O turismo valorizou as áreas centrais da cidade beneficiando os herdeiros do casario colonial e a especulação imobiliária.

    Seria uma saída buscar meios de separar a celebração das elites locais da memória da escravidão? Uma saída difícil, é fato, já que a violência foi perpetrada por este mesmo poder que a celebra. Ao mesmo tempo, nas disputas por prestígio e investimentos, a elite política constantemente recorre à história da cidade como a primeira de Minas, gesto que atinge seu ponto alto no dia 16 de julho quando, por artigo na Constituição estadual, a cidade volta ser a capital do Estado. Geralmente a data é comemorada com a presença do governador, o que reforça seu papel nos mitos constitutivos da história mineira. 

    Para o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot, em Silenciando o Passado, “trivializar a escravidão – e o sofrimento que ela causou – é algo inerente ao presente, que envolve tanto o racismo como as representações da escravidão”.[2] É importante ressaltar mais um aspecto da presença do pelourinho em Mariana: a cidade é sede, desde os anos de 1980, de um curso de História vinculado à Universidade Federal de Ouro Preto.

    Como professores isso significa que não estamos ali só de passagem, vivemos a cidade e suas contradições. Como em muitas outras salas de aulas no Brasil e no mundo, concordamos com as palavras dos colegas Francisco Carballo, David Martin e Sanjay Seth que recentemente escreveram sobres os protestos antirracistas em Londres: “Os manifestantes, muitos deles jovens, porém já amadurecidos, estão fazendo a ligação entre a história do colonialismo, a história da escravidão e o racismo estrutural que é o seu legado. Eles estão fazendo isso apesar de sua educação formal, e não porque esta lhes deu essa oportunidade. A rua é a sala de aula porque as salas de aula falharam”.[3] 

    Seria ingênuo, e mesmo violento, imaginar que comunidades humanas possam viver sem suas narrativas de orientação e presença no tempo. Para que sejam eficazes,  no entanto, é preciso que essas narrativas sejam representativas e inclusivas. O que observamos em situações como a do pelourinho em Mariana é uma perda de representatividade de narrativas tradicionais convivendo com uma crise mais profunda da forma como vivemos a nossa história comum. Portanto, não se trata apenas de refundar e atualizar narrativas históricas, mas de questionar seus efeitos e duvidar das condições de que isso aconteça em um tempo atualista que nos pressiona a viver uma história pobre. 

    A derrubada de estátuas pode simbolizar um deslocamento ou uma atualização da relação com o tempo histórico, levando a inevitáveis redimensionamentos das disputas por orientação e performances. Exemplos conhecidos são as estátua do Czar Alexandre III, retirada pelos revolucionários russos em 1917, os bustos de Lenin e Stalin, com o fim da URSS, e, mais recentemente, a estátua de Saddam Hussein, em Bagdá, em 2003. Em Budapeste, encontramos um jeito próprio de lidar com o passado: as estátuas retiradas de locais antes públicos agora se encontram no Memento Park, um museu a céu aberto, bem longe do centro da cidade. 

    O fato é que perpetuar e destruir registros são gestos siameses e constitutivos de nossa condição humana, que podem acontecer de modo programático ou espontâneo.  No caso atual, a retirada, ressignificação ou atualização das estátuas simbolizaria não a inauguração de um novo regime político, mas a tentativa de dar visibilidade àqueles sujeitos que a história teria invisibilizado ou registrado a partir de hierarquias e distorções. A luta por equilibrar a economia da memória histórica compõe o rol das lutas por uma sociedade menos violenta, racista e sexista e mais igualitária. Essas novas disputas, em torno de personagens muitas vezes desconhecidos, indica também que a presença do passado é mais complexa do que a “consciência historiográfica” gostaria de supor. Ou seja, longe de um passado morto e domesticado por um historiador terapeuta, o que vemos nessas disputas é uma sociedade plural e muito atenta à forte presença da história, capaz de identificar e disputar passados-presentes sensíveis e apontar para um necessário esforço de atualização que abra outros futuros. 

    Se considerarmos as cidades ou os países como grandes museus, nos quais se integram as estátuas, os casarões históricos e os monumentos que os compõem, assim como as peças expostas, precisamos pensar sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam a inserção ou a retirada de um monumento.

    Nessa direção, ao analisar o caso americano, Trouillot afirma que: “O fato de que a escravidão estadunidense tenha acabado oficialmente, mas continue sob muitas formas mais sofisticadas – em especial, sob a forma de racismo institucionalizado e de degradação cultural da negritude –, torna a sua representação particularmente incômoda nos Estados Unidos. A escravidão, aqui, é um fantasma, isto é, simultaneamente uma figura do passado e uma presença viva; e o problema da representação histórica é como representar este fantasma, algo que é, mas não é”.

    Derrubar estátuas não significa que o passado a elas relativo será apagado, mas que há um desejo de mudança em direção a um futuro em que aqueles que construíram suas vidas baseadas na escravização de outras pessoas não se tornem referência. Portanto, a questão que se coloca é: como lidar com a obsolescência de monumentos? Haveria lugar na monumentalização pública para objetos obsoletos? Haveria uma força de atualização, em sentido próprio, que pode ser despertado pelo que nosso presente considera obsoleto?

    As estátuas não deveriam ser celebradas. Qualquer pessoa familiarizada com a imperfeição das coisas humanas saberá que por trás de cada personagem ou evento escondem-se falhas, insuficiências, erros, mentiras e mesmo crimes. A ambivalência é constitutiva da vida humana e se enquadra mal às exigências rigorosas da escala moral e ética. Assim, o mais prudente é entendermos que a monumentalização de personagens e eventos históricos deveria ser um motivo para comemoração no sentido estrito da palavra, ou seja, um convite à rememoração coletiva, à reavaliação crítica dos sentidos e consequências dessas pessoas e eventos para o nosso tempo. 

    (*) Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.


    [1] DOUTHAT, Ross. The Ghost of Woodrow Wilson. The New York Times, Nova Iorque, 30 de junho de 2020. Opinion. Disponível em  <https://www.nytimes.com/2020/06/30/opinion/woodrow-wilson-princeton.html> Acesso em 26 ago.

    [2] TROUILLOT,  Michel-Rolph.  Silenciando  o  Passado: Poder  e  a  Produção  da  História.  Curitiba:  Huya, 2016.

    [3] CARBALLO, Francisco; MARTIN, David; SETH, Sanjay. A sala de aula e a rua. HH Magazine, 08 de julho de 2020. Ensaios. Disponível em <https://hhmagazine.com.br/a-sala-de-aula-e-a-rua/> Acesso em 01 set. 2020.

  • A polêmica das estátuas no 7 de Setembro

    A polêmica das estátuas no 7 de Setembro

    Não é possível comemorar a Independência do Brasil hoje sem pensarmos sobre um dos temas mais debatidos em nossa relação com a história: a polêmica das estátuas. Em 22 de junho de 2020, por exemplo, o Museu de História Natural de Nova York anunciou a retirada de uma estátua equestre de Theodore Roosevelt localizada em frente ao museu desde 1940. Vejam na fotografia acima que razões não faltaram, pelo modo subalterno com que negros e índios são representados.

    Por Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo (UFOP)*

    O diretor do Museu afirma que a recusa é ao monumento, e não à figura de Roosevelt, que continuará sendo homenageado pela instituição por seu pioneirismo na luta pela conservação do meio ambiente. Segundo a reportagem, um dos descendentes do ex-presidente, declarou:

    “O mundo não precisa de estátuas, relíquias de uma outra era, que não refletem os valores das pessoas que pretendem honrar, ou os valores de igualdade e justiça”. 

    Em 2017 uma comissão estabelecida pela cidade de Nova York para reavaliar a pertinência de monumentos públicos havia decidido, em votação dividida, pela manutenção da estátua, apesar dos protestos de que já vinha sendo alvo e das promessas do museu em  “atualizar” (update) suas exibições. Em 2019 o museu tomou a iniciativa de promover um debate com a comunidade e inserir elementos que pudessem contextualizar e criticar os aspectos racistas e colonialistas do monumento, bem como reavaliar as posições do próprio Roosevelt.

    A iniciativa ficou registrada no projeto “Addressing the Statue”, que pode ser ainda visitado no site da instituição. O projeto é um excelente exemplo de como o interesse renovado pelos monumentos e personagens históricos, provocados por polêmicas, podem ser respondido pela produção de conhecimento e diálogo com a comunidade em busca de atualização. Algo que poderia não acontecer se a estátua tivesse que ser removida violentamente. 

    Com a onda de protestos que se seguem após o assassinato de George Floyd, os administradores do museu decidem finalmente retirar a estátua, em um desfecho que exemplifica como a atualização da monumentalização pública pode ocorrer em um ambiente democrático ampliando o seu sentido histórico, no lugar de apagá-lo, como acusam ligeiramente alguns críticos.    

    https://lh5.googleusercontent.com/n4LEpIBYOzlLoCw3PECR7ta5UA9eQBqAA_3fdtQ41N5aY_ZFczU7wGjWgfZyEyOUkAaWW94uTk_lg9y_TdNMqjBqWdlD7ClFO1btfIvisdXENLyD2Iv0LiIg4VNYeA

    Estátua equestre de Theodore Roosevelt, a ser removida da frente do museu de História Natural de Nova York

    Esse fato, que tem como centralidade a figura e a estátua de Roosevelt, nos remete à  também polêmica estátua equestre de Pedro I, que se encontra na atual praça Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Ela carrega a mesma estrutura evolucionista e hierarquizante criticadas na estátua de Roosevelt.

    Estátua como “mentira de bronze”

    O monumento comemorativo da Independência foi erguido em 1862, e desde seu nascimento provocou fortes protestos, ainda que por razões diferentes. Mesmo que sua instituição tivesse por objetivo a consagrar Pedro I como o herói que libertou a nação, dando-lhe uma carta constitucional,  ela não deixa de materializar as concepções evolucionistas e racistas das elites brasileiras. Ao mesmo tempo, esse episódio nos mostra a complexidade da instituição de monumentos: desde o início a estátua foi vista por grupos liberais como uma impostura contra a memória de outros movimentos e heróis da independência, o liberal mineiro Teófilo Ottoni lança no mesmo dia da inauguração um panfleto crítico em que chama a estátua de “a mentira de bronze”, ao mesmo tempo em que recuperava a figura de Tiradentes como o verdadeiro herói da Independência.

    A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República. Nesse caso, no lugar de remover a estátua do ex-imperador, bastou às elites republicanas ressignificar o contexto da praça em um gesto ao mesmo tempo provocativo e de conciliação. Deixava de ser praça da constituição para ser Praça Tiradentes. Ironia ou conciliação?  

    Até hoje a posição subalterna da população indígena no monumento permanece invisibilizada, e sua atualização poderia passar, também, pela promoção de debates e, mesmo, pela remodelagem documentada do monumento. A estátua equestre, com o Imperador segurando a constituição, poderia, por exemplo, descer de seu pedestal evolucionista-racista e, em paralelo, outras formas de comemorar/celebrar os povos indígenas e denunciar sua opressão poderiam ser produzidas.      

    Estátua equestre de D. Pedro I na praça Tiradentes, Rio de Janeiro

    Estátua equestre de D. Pedro I na praça Tiradentes, Rio de Janeiro

    Retirar as referências de um passado sensível não nos deixaria com uma falta de “locais de memória” nas ruas? A solução, neste caso, seria a sua substituição e/ou convivência com novos monumentos aos grupos historicamente oprimidos e sub-representados, como mulheres, indígenas e negros. Mas é preciso pensar em que tipo de monumentos seriam esses.

    Estátuas como selfies de celebrities

    Segundo o crítico de arte britânico Jonathan Jones, derrubar estátuas é uma performance admirável, mas a ideia de substituir as estátuas derrubadas por outras de pessoas mais “merecedoras” da homenagem seria fruto de um pensamento artístico conservador. A estátua, para Jones, já não seria uma forma artística adequada para homenagens desde que Marcel Duchamp enviou um urinol para uma exposição de arte em Nova York. O mais adequado seria, então, dar espaço para que a arte contemporânea pudesse representar as vidas roubadas pela escravidão, pois a estátua reduz a história a apenas um rosto, um personagem, podendo apenas reforçar uma concepção simplista e conservadora de como a história acontece.

    As estátuas, de modo parecido com as selfies, fazem parte de uma cultura de celebridades que não faz sentido para retratar horrores como a escravidão ou o Holocausto. De algum modo, a representação monumental dos personagens históricos parece evocar a concepção de um indivíduo linear, solar, sem falhas.  

    Considerando as cidades ou os países como grandes museus, precisamos pensar sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam a inserção ou a retirada de um monumento.

    Sobre essa questão o historiador Fábio Faversani nos lembra que, na Roma Clássica, a noção de cidadão era excludente, o que significa que as representações eram, apenas, de pessoas consideradas cidadãos importantes. Assim, a questão sobre quem deve ser homenageado com uma estátua ou com um monumento está diretamente relacionada ao fato de se ter reconhecidamente o direito a ocupar os espaços da cidade, isto é: quem, por algum critério de legitimidade, é reconhecido como cidadão. A cidadania, na nossa democracia contemporânea, deve ser abrangente, não porque sejamos todos iguais, mas justamente por sermos diferentes – e, por isso, é preciso reconhecer e escrever as várias histórias que constituem a nossa sociedade. A derrubada violenta pode ser reconhecida como a forma radical de determinados grupos sociais chamarem a atenção dos políticos e da sociedade em geral. A derrubada violenta faz sentido quando não há oportunidade de diálogo. É preciso reconhecer que as tradições não são boas por si mesmas, pelo simples fato de serem uma herança de nossos antepassados; elas são mutáveis e só permanecem vivas se formas capazes de atualizar nossa história (nosso passado-presente-futuro) a partir delas de modo plástico e criativo.

    Alguns críticos consideram a derrubada e/ou atualização de estátuas um tipo de anacronismo, no sentido de que reduziriam a história ao universo de valores do presente. Não estaríamos tirando estes personagens de seus contextos históricos? Diante de tais questões devemos nos lembrar que o racismo não é algo do passado; ele ainda está presente e tem consequências significativas nas nossas vidas. Muitos dos personagens que são hoje alvo de crítica cometeram ações que mesmo em suas épocas poderiam ser consideradas infames, mas acabaram tendo suas memórias protegidas por suas ligações com os poderosos da vez.

    Estátuas como forma de criar mitos

    Apenas tornando a história menos eurocêntrica e heteronormativa é possível evitar que as extremas-direitas usem referências do passado como forma de recrutamento e propaganda, como se o passado fosse homogêneo e sem disputas. E isto não significa negar a história ou falseá-la; a pluralidade é uma realidade, basta trazer à luz histórias esquecidas ou suprimidas das várias nações e povos que formam a nossa sociedade.

    A divisão entre aqueles que defendem o patrimônio a qualquer custo e os que gritam “deixa quebrar” só ocorre porque não há políticas públicas efetivas de monumentalização voltadas para a reparação histórica, como aponta, também, Fernanda Castro. Vale notar que em países como o Brasil há uma grande dispersão de autoridades com mandato que permite gestos de celebração e monumentalização. A emergência do bolsonarismo, por exemplo, acontece em “paralelo” a uma epidemia de medalhas e outras celebrações de aliados cujas biografias se confundem com uma vasta lista de crimes.  

    Assim, os protestos nos quais estátuas são derrubadas ou depredadas podem ser uma forma de manifestação que surge de situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando de que problemas graves não encontram políticas públicas adequadas.

    Destruir estátuas por si só não tornará as sociedades menos racistas, mas deve servir de estímulo para a identificação do que deve ser feito, como o combate à violência policial contra negros, por exemplo, bem como a implementação de políticas públicas de memória e antirracistas. Além de políticas públicas cujo objetivo seja a redução da desigualdade socioeconômica dos negros em relação aos brancos. Cabe enfatizar que a normalização da violência é amplamente utilizada pelos grupos de direita, como vimos no caso da destruição da placa da Rua Marielle Franco, que se tornou um símbolo de extremistas de direita na campanha eleitoral de 2018. Portanto, é preciso entender o contexto e o sentido da destruição de monumentos antes de fazer qualquer juízo definitivo.

    O historiador Marcelo Abreu nos chama a atenção para o fato de que a desigualdade social presente no mundo precede as estátuas e os patrimônios que buscam moldar as identidades nacionais. Por isso, embora uma estátua possa representar uma identidade local ou nacional, a revolta contra o racismo desses “heróis” homenageados transpassa as fronteiras, já que a desigualdade não está presente em apenas um país. Nessa direção, a luta contra todas as formas de opressão nunca deveria fugir do horizonte de todos e todas que formam e lutam dentro do campo progressista.

    Se os lugares de memória existem para nos recordar, constantemente, de quem somos nós, é muito natural que o valor desses lugares se transforme com o tempo, na mesma medida em que a própria sociedade se transforma. Já não aceitamos o racismo como em tempos bem próximos, logo, não faz sentido que queiramos deixar para o futuro homenagens a pessoas que defenderam esta forma de discriminação e dela se aproveitaram. Lutas como essas podem ajudar para a construção de pautas comuns no interior do campo progressista. Disputas e divergências sempre haverá, mas é preciso não perdermos o horizonte do comum.

    O que vemos hoje é a reivindicação, muito justa, dos grupos que tiveram suas memórias e identidades subjugados, o que faz com que se reconheça que a nossa sociedade é composta por variadas memórias e identidades – muito diferente do “povo brasileiro” homogêneo que defendeu, em sua “atualização regressista”, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, durante a famigerada reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020. Em sua análise, relativa a esse “povo” ao qual faz referência a extrema-direita brasileira, a historiadora Luísa Pereira escreve: “O verdadeiro povo seria formado pelo homem simples, cristão, conservador, heterossexual, casado, pai de família, provedor, empreendedor e patriota […]. O verdadeiro povo é, portanto, homogêneo”. Uma ideia de povo e heróis celebrados pela atual propaganda política desse governo para o 7 de Setembro este ano.

    Os protestos atuais nos quais estátuas são derrubadas em nome da luta contra o racismo e o colonialismo são formas de manifestação que surgem em situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando. Antes de condenar, a cidadania precisa se perguntar sobre o que está errado e precisa ser feito.

    Como afirma Adam Prezeworski, em Crises da democracia: “A persistência da desigualdade é uma prova irrefutável de que as instituições representativas não funcionam, pelo menos não como quase todo mundo acha que deveriam. Portanto, o avanço do “populismo” — resultado da insatisfação com as instituições políticas que reproduzem a desigualdade e não oferecem alternativa — não deveria nos surpreender”.

    Assim, no dia em que os mais diversos brasileiros rememoram sua Independência não custa lembrar que enfrentar as diversas opressões e desigualdades que marcam esse país é um desafio que nosso passado nos legou e que deve ser assumido coletivamente.

    *Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.

  • A história do encontro de um presidente fake e um vírus real

    A história do encontro de um presidente fake e um vírus real

    ARTIGO  

    Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo*

     

     

    Cento e cinquenta dias se passaram, após um início recheado de perguntas: Como a pandemia afeta o destino das democracias liberais? Como as direitas, em especial, a extrema-direita e a Alt Right, estão lidando com a revalorização da ciência e da curadoria jornalística? Quem herdará as estruturas de vigilância que estão se constituindo? Quem será mais capaz de combater a pandemia: as ditaduras ou as democracias? Por que demoramos tanto a aceitar que seríamos atingidos pela pandemia? O que o governo Bolsonaro ganha e perde com a pandemia?

    Foram essas as perguntas que ocuparam o nosso tempo e as nossas preocupações quando decidimos publicar nossas sensações e reflexões sobre a pandemia. O que começou como um diário tomou a forma mais aberta e plural de um almanaque, cuja materialização se realiza a partir dos acontecimentos. Outras questões e análises foram sendo incorporadas ao texto, já que a pandemia, somada à performance de Bolsonaro e do bolsonarismo, estabeleceu um jogo dinâmico, para nós, brasileiros, entre previsibilidade e imprevisibilidade, que nos fez tomar direções, muitas vezes distintas das previstas nos primeiros esboços do livro.

    O leitor também perceberá que, na nossa escrita, algumas vezes podemos passar a sensação de que está acontecendo tudo-ao-mesmo-tempo-agora, e talvez possa se sentir desnorteado com o fluxo de informações que nem sempre têm relação entre si. No entanto, como mostraremos, sentir-se sufocado pelas cascatas de informações parece ser uma experiência própria do nosso tempo epidêmico, bem como de sua infodemia.

    Pois bem, a nossa tentativa foi uma escrita, de forma bastante livre, do registro dos eventos a que assistimos e ou vivenciamos, tendo como referência  as perguntas que nos nortearam. Foram com esses elementos que pensamos em fazer uma espécie de diário dos 150 dias da pandemia, desde que a China informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o novo vírus, no dia 31 de dezembro de 2019. Ao longo desse tempo, acabamos por alternar e misturar três gêneros de escrita: o diário, a cronologia e a crônica, que reunidos formam o Almanaque. O nosso laboratório-base foi, o tempo todo, o grupo de WhatsApp chamado “Atualismo”, com o qual, desde 2015, produzimos reflexões e debates.   

    Boa parte do que escrevemos foi publicado, em primeira mão, e em português, pelo site Jornalistas Livres, e, em inglês, pelo site Brazil Solidarity Initiative. Inicialmente, a nossa escrita foi impulsionada pela ideia de que um esforço de parada reflexiva é, em nosso tempo, necessário para evitar sermos devorados pelas atualizações constantes, fragmentárias e cada vez mais imprecisas e disputadas. A nova direita e a extrema-direita global têm se utilizado da agitação das notícias, provocadas pelo fluxo de atualizações, e pelas chamadas fake news, para reforçar o seu poder. Como acreditamos que o caminho progressista precisa seguir em outra direção, o nosso trabalho tem, assim, a intenção de nos levar a um engajamento que busque outras alternativas ao que nos apresentam as direitas mundiais.

    A escolha pela forma de almanaque foi reforçada pelo clima apocalíptico que temos vivido. Além do noticiário diário, dos canais de streaming, dos filmes sobre epidemias, como Outbreak (Wolfgang Petersen, 1995), etc, reforçam essa sensação de uma contagem progressiva em direção ao inevitável. No fim de março, nos perguntávamos quando chegaria entre nós o pico da epidemia e quão severas seriam as suas consequências, que haviam se agravado pela imagem da segunda onda representada pelo colapso econômico. No filme de 1995, a origem do surto está em alguma república de bananas; em nossa história real ele se origina em uma cidade de 11 milhões de habitantes, na segunda maior economia do mundo.

    A principal história que acabamos por contar no livro foi a de como o vírus SARS-CoV-2 e a doença a ele associada, a COVID-19, infiltrou-se em nossas vidas. Ao mesmo tempo, o livro apresenta o paradoxo de um presidente fake, ou seja, que não reconhece e trabalha para destruir o sistema democrático no qual foi eleito – ser desafiado pela realidade incontornável de um vírus e a doença que ele provoca.

    Nosso objetivo foi apresentar uma modesta e fragmentária compreensão cronológica, entrecruzando subjetividade e objetividade, dessa triste e catastrófica experiência histórica que estamos vivendo. Procuramos pensar para além da agitação atualista, a fim de analisar as possibilidades do nosso futuro próximo, durante e após essa emergência. Mas, também, refletimos sobre o nosso presente imediato, sobre a catástrofe vivida, em especial, no Brasil, já que aqui o poder simbólico e real do vírus foi potencializado pela presença do presidente Bolsonaro.

    A esse tempo agitado e confuso em que a informação nos entretém sem nos orientar, chamamos de “atualismo”. A capacidade de agitar, sem orientar ou desvelar, desse fluxo de notícias tem sido bem explorado pelas direitas globais. A explosão de notícias em fluxo contínuo, em que o valor de verdade parece ser confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida, impede a cidadania de tomar consciência de seus reais interesses e formar um senso compartilhado de realidade que permita a ação política emancipadora. Essa estrutura, impede, muitas vezes, que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Por isso, políticos atualistas como Trump, Boris Johnson e Bolsonaro, em geral, não admitem erros, mas, simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Muitas vezes, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da negação da realidade do dia anterior. Fato que contribui para a dispersão e distração que se fantasiam com as roupas do jornalismo. Esses líderes se assemelham a apresentadores de shows de variedades, só que, nesse caso, os shows apresentados são perversos e sombrios. São shows de horrores.

    O passado e o futuro são mobilizados, muitas vezes, nesses discursos e práticas, como dispositivos para a agitação política. Mas isso não significa que não existam projetos de passado e futuro nos movimentos políticos atualistas, representados tão bem por esses líderes. O caos é apenas uma cortina de fumaça, assentada numa complicada realidade do passado histórico, muitas vezes idealizado. Uma de suas consequências é a mobilização política em prol de presentes-passados, passados-presentes e presentes-futuros autoritários, na maioria das vezes, incitada pela negação, pela nostalgia e pelo ressentimento. E, talvez, o principal projeto de futuro desses movimentos seja a destruição ou, pelo menos, o enfraquecimento das bases da Democracia e do Estado Liberal.

    Por tudo isso, o almanaque, uma das formas mais tradicionais de organização do passado, volta a ter uma função crítica importante. Nesse exercício de história imediata, os primeiros 150 dias da pandemia estão organizados por quinzena, acompanhando um dos tempos que organiza o ritmo da crise, já que o vírus pode levar até duas semanas para se manifestar. Na segunda parte do livro, apresentamos nossa leitura reflexiva, mais verticalizada e em forma de crônica, de alguns fatos que ocorreram durante o encontro do presidente fake com o vírus real. E, na terceira parte, abrimos e destacamos alguns dos assuntos mais recorrentes do período, que podem ser lidos de forma isolada ou podem ser entendidos como aprofundamento informativo, como hiperlinks, de temas tratados nas duas primeiras partes.

    Ao navegar por esse almanaque, acreditamos que você, leitor ou leitora, poderá reviver e pensar sobre os momentos em que a pandemia, causada pelo coronavírus, deixava a sua condição latente para se tornar o evento reorganizador de nossas vidas em sua articulação com a crise das democracias liberais.

    Queremos entender como dois grandes países, no caso, o Brasil e os Estados Unidos, divergiram da OMS e, mesmo assim, os seus líderes continuaram no poder de forma mais ou menos estável. Se não estáveis, apoiados por pelo menos um terço de sua população. Como entender esse escândalo?

    Ao final dessa jornada, vemos a evolução catastrófica da pandemia no Brasil e nos EUA, com a perspectiva crescente do número de mortos e consequências sociais devastadoras para os grupos minorizados. Quem acompanhar nossa narrativa poderá perceber como o governo brasileiro se alinhou com alguns outros poucos países em que a política pública divergiu programaticamente daquilo traçado pela OMS. Ainda assim, a popularidade de Jair Bolsonaro não foi, até agora, substancialmente atingida. Ficamos com a sensação de que estamos contando a história de como o regime de verdade, que sustentava as democracias ocidentais, foi severamente comprometido nesses países.

    A nossa hipótese é a de que, em certas dimensões da temporalidade atualista em que vivemos, a verdade que mais importa é aquela que nos chega na forma de notícia, de news. A maior parte das pessoas formam opinião orientadas por um ambiente de notícias em fluxo contínuo, consumido como entretenimento, embaladas pela crença de que quanto mais recente e atual é a notícia, mais relevante se torna para nossas vidas. Controlar a produção incessante das news – pouco importa se verdadeiras ou simuladas (fakes) – tornou-se a mais importante fonte de poder político, até mais relevante do que partidos e outros sujeitos políticos tradicionais. Esse universo paralelo, da simulação da notícia como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos a história da COVID-19. Ele é o hospedeiro em que o bolsonarismo, e também o trumpismo, parasita em simbiose. Mas, como se verá, os níveis de insanidade do bolsonarismo e de Bolsonaro parecem ser insuperáveis.

    Ao longo desse período, escrever foi para nós uma forma de lidar com a pandemia e com a crise política e econômica. Um ato de resistência e de conhecimento. Procuramos, assim, trabalhar com as dimensões positivas do atualismo, que em nosso livro, Atualismo 1.0, só estavam anunciadas. A atualização, em sentido próprio, se apresenta aqui como uma possibilidade de lidar de forma ativa e não reativa frente os acontecimentos e as notícias que vêm à tona. Portanto, ao invés de só repercutir, alargar e repetir incessantemente, fazendo reverberar ainda mais a agitação, propomos deslocar os eventos e as notícias com a força do passado e do futuro. Dessa maneira, esperamos que esse gesto contribua, a seu modo, para a construção de um outro tempo.

    (*) Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. São autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.