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  • Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% a mais no isolamento social

    Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% a mais no isolamento social

    Texto de Míriam Santini de Abreu, Paula Guimarães, Priscila dos Anjos e Fábio Bispo.

    A reportagem “Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% mais no isolamento social” foi realizada colaborativamente entre Portal Catarinas, CatarinaLAB e Folha da Cidade.

     

    Ilustração: Hadna Abreu

    Guilherme da Silva dos Santos, 21 anos; Matheus Cauling dos Santos, 17 anos; Derick da Luz Waltrik, 17; Walace Índio Farias, 18; Wellinton Jonatan da Silva, 21; Shilaver da Silva Lopes, 22; Yure Esquivel da Rosa, 17; Lucas Pereira da Silva, 21; Everton da Rosa Luz, 22; Leonardo Leite Arruda Alves, 18; Marlon Leite Arruda Alves, 15; e Jonatan Cristhof do Nascimento, 24.

    Os tempos são de pandemia, mas as 12 cruzes fincadas no canteiro central da rua Silva Jardim, na entrada do Morro do Mocotó, no Centro de Florianópolis, não prestam homenagens aos mortos da covid-19 como milhares idênticas espalhadas em memoriais pelo país. A epidemia que sobe o morro na calada da noite, que caça alvos em uma suposta lista e sentencia ali, no calor do momento, é outra, e teve início há muitos anos. Só não inventaram ainda vacina capaz de contê-la: as mortes de jovens negros e favelados pela polícia.

    A polícia catarinense matou uma pessoa a cada três dias em 2020. São 60 mortes até 29 de junho. Na pandemia, a partir de 16 de março, a letalidade cresceu 85%. Os gatilhos puxados por policiais catarinenses mataram 35 pessoas. Em 2019 foram 19 mortos nas ações policiais neste período.

    Em Florianópolis, este ano, as intervenções policiais mataram pelo menos 11 jovens entre 20 de janeiro e 1º de junho. O mais novo tinha 15 anos; o mais velho, 24. Uma a cada quatro mortes violentas na cidade, este ano, foi pelas mãos da polícia. Em cinco anos já são 64 vítimas fatais nessas ações.

    As famílias contestam as versões policiais, falam em execução, alterações das cenas dos crimes e negligência no atendimento. “Onde está a gravação deles que mostra que os guris os enfrentaram, como informaram no B.O.? Que eu saiba eles usam uma câmera na camisa, eu gostaria de ver, onde está?”, questiona a empregada doméstica Raquel Leite Arruda, mãe dos irmãos Marlon e Leonardo, mortos no domingo de Páscoa,

    As versões conflitam com as afirmações do comandante do 4º Batalhão, coronel Dhiogo Cidral de Lima: “Todas as ocorrências foram legítimas, as pessoas envolvidas nesse enfrentamento tinham uma extensa ficha criminal”, disse o tenente-coronel, por telefone.

    Um relatório de investigação conduzido pela Polícia Militar, nomeado de “Relatório Técnico Operacional” e obtido pela reportagem, elaborado pelo 4º Batalhão de Florianópolis em 2018, listou 55 pessoas na comunidade do Mocotó como  envolvidos com o tráfico de drogas. Desses, quatro foram mortos em “confrontos”.

    O documento virou inquérito policial, mas não foi diligenciado pela Polícia Civil. O Ministério Público chegou a alertar que investigação da PM não teria elementos para afirmar existência de uma facção.A Justiça chegou a prender parte dos citados.

    “E uma verdadeira reprodução do que já havia sido apurado pela Polícia Militar, sem acrescentar nenhuma nova informação ou alargar as investigações”, relatou o promotor Luiz Fernando F. Pacheco. O inquérito tramita desde 2018 sem oferecimento de denúncia. E apesar de ter como base uma investigação da PM, nenhuma informação referente as mortes foi apresentada no inquérito. Em alguns casos, foi juntada certidão de óbito, mas sem explicações das circunstâncias das mortes.

    As vidas perdidas desses jovens, que também já tinham chorado a morte de outros amigos, dizem sobre a intensificação de uma guerra sem data para terminar. Para entender o contexto da ausência de trégua, justamente quando há uma luta global para sobreviver à pandemia do novo coronavírus, investigamos algumas dessas mortes, ouvimos moradoras das comunidades, pesquisadoras, além da própria polícia e outras fontes oficiais.

    Os dados desta reportagem estão no Anuário Brasileiro de Segurança Pública e nos relatórios da Secretaria de Segurança Pública de SC. A informações referentes às mortes em ações policiais em Florianópolis no ano de 2019 só contabilizam casos até o mês de junho daquele ano. A informação foi requisitada à SSP por meio de assessoria de imprensa e via LAI, mas ainda não foi disponibilizada pelo órgão.

    Em consulta ao sistema do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a reportagem verificou que dos 12 mortos pela PM na região do Mocotó e listados na abertura desta reportagem, apenas um tinha condenação, por roubo, e quatro estavam relacionados no relatório que apura tráfico de drogas na comunidade. Os demais não respondiam qualquer ação penal na Justiça catarinense.

    Sobre a investigação da PM, que alega ter como mote a existência de uma facção criminosa instalada no Mocotó, o Ministério Público apontou que os elementos são frágeis para tal afirmação, mas que constituem indicativos para prosseguimento das investigações.

    Levantamento da reportagem apurou que das 64 mortes em ações policiais em Florianópolis desde 2016,  cinco casos foram distribuídos para a Vara do Tribunal do Júri. Ou seja, apenas 7% das mortes em operações policiais serão analisadas na Justiça.

    Para a professora do Departamento de Antropologia  da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Flavia Medeiros, casos de violações de direitos, que envolvem tortura, tentativa de morte e morte, mostram que as instituições policiais estão mais preocupadas com o uso da força e manutenção de uma ordem hierárquica e desigual na sociedade, do que necessariamente com a proteção dos cidadãos. “É papel do MP [Ministério Público] o controle externo do uso da força, tanto MP quanto judiciário são omissos neste controle. E essa omissão é forma de corroborar com a ação policial”.

    :.Leia a entrevista completa com a pesquisadora em gestão de mortes Flavia Medeiros  (mais…)

  • ELISA LUCINDA: a morumbização do olhar sobre a tragédia de Paraisópolis

    ELISA LUCINDA: a morumbização do olhar sobre a tragédia de Paraisópolis

    Desigualdade e racismo, mas o olhar anestesiado do Morumbi não vê - acervo Favela News
    Desigualdade e racismo, mas o olhar anestesiado do Morumbi não vê – acervo Favela News

    Há poucos anos, dentro de uma academia de ginástica no Jardim Botânico, uma colega de alongamento estava esfuziante junto com as amigas, comentando o champagne, o filho que chegou de Londres a tempo, o tênis verde-amarelo que tinha comprado para a sobrinha, e a alegria que tinha sido o dia de domingo na família num evento que custei a perceber que se tratava da passeata em Copacabana a favor do impeachment da Dilma.

    Como tinha visto as imagens do evento, aproveitei para perguntar pra ela por que não havia negros na referida manifestação pública. Ela então me olhou com olhos imensos, embora meio ocos, ampliada na minha frente aquela cara cheia de preenchimentos, embora vazia: “Ah, esses artistas fazem cada pergunta! Os pretos não têm cultura, Elisa! Para eles tanto faz, política não interessa.” Para esta senhora, como sou uma artista conhecida, eu era uma espécie de não-negra, alguma categoria em mim me embranquecera aos seus olhos.

    Na sequência, reajo:

    “Querida, preciso te explicar uma coisa. Como mulher negra que sou, vejo um país que você não vê.”

    Ao que ela imediatamente retrucou indignada:

    “Que que é isso? Você não é negra, você é bonita com esses olhos! Para de se rebaixar, de se denegrir”.

    Toda errada, e segura de que estava muito certa, minha interlocutora me encheu de preguiça. Por onde começar? Isso me levou, na época, a prestar extrema atenção à ignorância que a casa grande sempre teve do povo brasileiro, e uma ignorância que pode conviver bem com clássicos da cultura universal. A pessoa pode ter lido grandes autores, mas esse saber pode não fazer cruzamento sociológico aplicável à interpretação da nossa realidade.

    A tragédia de Paraisópolis é um horror cheio de erros contra a Constituição e contra os Direitos Humanos. Na primeira versão oficial dada pelos policiais, falou-se em enfrentamento por parte dos frequentadores do baile, em pisoteamento, em apologia às drogas e sexo.

    Depois, vídeos trazendo fatos mostram o ataque deliberado por parte das forças de segurança (ó ironia) contra os jovens, e agora, laudos periciais apontam para sufocamento, enforcamento, ou seja, o assassinato das vítimas. Não houve confronto. Parece que esses policiais estão sendo treinados para crer que vidas negras não importam. E não é por acaso que seu pensamento combina muito com o dos vizinhos, os que moram no Morumbi, e que gostariam sinceramente que aquela comunidade não existisse mais, que fosse dedetizada e parasse de existir assim, esfregando a pobreza na beira dos jardins das redondezas. É incômodo. Compromete o IPTU, é desagradável, por isso aquele muro dividindo os mundos. Tentando que uma parte da cidade partida não fagocite a outra.

    A sordidez do jogo desigual deixa as periferias, as favelas, as comunidades pobres todas reféns das igrejas ou de algum boteco para se divertirem. Nada mais. Não há opções. Dentre essa população moram mil vocações: médicos, engenheiros, artistas plásticos, bailarinos, atores, astronautas, cientistas, filósofos, professores, ensaístas, escritores. Mas, como a regra do jogo é educação zero para o povo, e o não-direito ao compartilhamento das riquezas da sociedade como um todo, fica meio proibido sonhar deste tamanho ali. E como não se tem teatro, nem cinema, nem modo de se expressar isso, se o indivíduo for cantor, o melhor dia da vida dele é o dia que ele canta na igreja. E Deus ganha aí todo o território da sua vocação.

    Se sou ator e moro num lugar onde a melhor performance “teatral” que se vê é a de um pastor, é o que eu vou ser então. Eu mesma, por exemplo, se tivesse nascido numa favela e nela tivesse sido criada, certamente o melhor dos meus destinos seria ser uma rapper, uma funkeira, ou então, com a minha criatividade, poderia me dedicar e chegar a ser uma importante chefe de facção.

    Quem pode afirmar que não? Quando o Estado deixa intelectual e culturalmente desnutrida uma população, ele está exercendo o abandono, o mesmo abandono que muitos pais oferecem aos filhos muitas vezes. Não se importam com o seu destino. E mesmo que esse exército de pobres se transforme numa multidão de servidores domésticos, cuidando com dedicação os filhos dos ricos, construindo suas casas, cozinhando, servindo, lavando suas roupas, levando os meninos ao colégio, sua importância humana segue sendo nenhuma. Há um desprezo por cima, como se fosse um requinte desta crueldade. O baile funk não é crime, e sem ele a coisa vai ficar pior.

    A alma precisa de cultura. É ali o único encontro que se tem com a arte. Adolescente quer se divertir, dançar, cantar, se libertar, curtir. Faz parte da saúde jovem. Tanto é verdade que jovens ricos fazem festinhas “quentes” em suas casas, com os pais sempre ausentes. Frequentam suas raves onde rola droga farta, sexo nos banheiros, apologia  à sacanagens, drogas como MD que exacerbam a sexualidade, sem temer a invasão da polícia. Lá a polícia não vai. E os pais compreendem, para eles não há delito: “São brancos, ricos, adolescentes e jovens. É natural”.

    Agora, você que me lê, responda, por favor: se as festas ricas do país são abarrotadas de tudo que dizem que havia no baile funk de Paraisópolis, por que a polícia não vai nelas? Isso nos faz crer que o que se combate nestas agressões policiais não são as drogas, correto? Você que me lê poderia me explicar  por que a mesma ação não é feita nas zonas nobres das cidades, mesmo que haja ali maciça presença de meninos mimados, sem limites na vida e nos cartões de crédito, capazes de qualquer coisa, e confiantes de que seus pais têm contatos no judiciário, na alfândega, nas fronteiras, e podem fazê-lo desaparecer para esfriar as coisas num apartamento em Dubai, se der alguma merda? Por quê? Tudo isso eu não invento.

    Está aí para quem quiser ver. Há muitas boates famosas, no Rio de Janeiro e em São Paulo abarrotadas de brancos, com bundas brancas tentando ir até o chão. São ricos, transando na cara de todo mundo pra geral ver, à base de muita droga sintética e cara, que baile funk  algum nunca ousou conhecer. Ouvi dizer que são coisas de arrepiar! Até substâncias para anestesiar cavalo tem e quem me contou foi um usuário contumaz e extremamente seguro de sua impunidade.

     

    Matar, limpar e dedetizar

     

    Circulou nas redes o vídeo de uma reunião de condomínio no Morumbi. Todos com caras de gente que se reúne pra “dedetizar” o prédio. Todos preocupados com sua segurança, desprovidos de empatia com a situação da comunidade vizinha, destilavam suas pautas de desprezo com essas vidas humanas: Não tem como o Exército entrar lá e “limpar” de uma vez a favela, gente?” “E se nós que temos mais poder aquisitivo oferecêssemos carros blindados à polícia? Que com esses carros eles não conseguem combater nada.” Enquanto essa reunião absurda acontecia, em minha página no instagram alguns seguidores, não muitos, mas não tão poucos como eu gostaria, reverberavam o mesmo pensamento desses condôminos, comentando a cena: “A culpa é dos pais que deixam os filhos de 14 anos num baile desse. Quem mandou tá lá dentro, rebolando a bunda?”, “É isso que acontece, com tanto sexo e drogas rolando, queriam o quê?”

    Bem, os comentários não avançavam em análises profundas. Seguiam na linha da criminalização daqueles jovens,. Nenhum deles tem nome, sobrenome, importância. São pobres e pretos por isso devem morrer. Quando morava na Lagoa e estava havendo um tiroteio no ápice do morro, perguntei ao policial que estava na esquina se podia subir para ir pra casa. Neste momento, um vidro fumê de um carro blindado importado, desce e revela o rosto de uma mulher loira que dizia: “A polícia tem que subir no morro e matar todo mundo, você tá ouvindo, seu policial? Sobe lá e mata todo mundo pra gente ficar livre desse inferno”. Foi então que eu olhei pra ela e afirmei: “Você não tem filho lá, né?”. É isso, todos os que acham que Paraisópolis não foi violada em seus Direitos Humanos, entre eles seu direito à vida, não têm filhos nem parentes lá.

    Novos laudos e depoimentos revelam destruição de provas e até lavagem do sangue na calçada do crime feita por policiais. Que tristeza, meu Deus! E essa crônica pergunta: qual é o seu olhar? Se você brada sua fé em Deus e em nome Dele, em nome da ordem, já se perguntou o que faria seu Jesus Cristo nessa situação? Para mim, a morumbização do olhar é esse anestesiamento, essa falta de sentimento, esse não se importar com a sanguinária cruzada do rico contra o pobre, e que se utiliza da força do Estado, da ignorância e do despreparo de vários policiais, também oriundos da pobreza, para que, sem pena, ou consciência, se voltem contra os seus. Em toda regra há exceções e no Morumbi conheço gente realmente fina na sensibilidade. Mas é exceção. Astrid Fontenele, por exemplo, por amar profundamente seu filho preto, fez uma revolução e conseguiu que a escola rica dele frequentasse a escola pobre ao lado e vice e versa. Quebrou o muro que a maioria dos seus vizinhos do Morumbi quer preservar.

    Morumbi significa colina verde em Tupi. Representa uma coisa límpida, descarregada de ódio, desprovida de toda a escrotidão que ronda a prataria desumana de muitas mesas. Morumbi ficou significando algo oposto à beleza de sua etimologia.Talvez ali muito poucos se importem quando matam um guardião tupi, o inventor do nome do bairro. Talvez nem saibam a origem do nome. O espírito da colina verde pede amor e não o descaso que essa morumbização do olhar tem significado. É difícil nesse momento escrever essa crônica, sem que doa o meu peito. Na minha página, um a um, com paciência, respondi a cada tentativa de justificar a matança: então porque dançam devem morrer? Porque usam drogas devem ser assassinados? Porque gostam de sexo também? É pena de morte então? Pena de morte para quem?

    É bom ficarmos de olho porque quem está anestesiado não sente que está anestesiado. Claro, né? Então, repare se o seu olhar não está desfalcado da sensibilização da realidade. O Morumbi é vizinho de Paraisópolis. Expõe o jogo sujo da desigualdade. Criminalizar quem sempre perde o jogo empobrece muito a riqueza. Essa não tem o meu respeito. Ao final do dia, lendo as mensagens, vi que uma delas tinha espelho no meu peito. Vinha de Cláudio Jorge, meu grande amigo, grande músico e compositor que amo e respeito: “Putz, o exercício para não ter ódio está me matando”.

  • Família de garoto morto em Paraisópolis entrará em campo com o Corinthians

    Família de garoto morto em Paraisópolis entrará em campo com o Corinthians

    Camiseta: Dennys Guilherme Santos, eternamente dentro de nossos corações
    Camiseta: Dennys Guilherme Santos, eternamente dentro de nossos corações

    Em seu último jogo do Campeonato Brasileiro de 2019, contra o Fluminense, na Arena Corinthians, em Itaquera, o Corinthians entrará em campo com um irmão e um primo de Dennys Guilherme Santos, de 16 anos, um dos nove jovens mortos durante o ataque da Polícia Militar aos frequentadores de um baile funk na favela de Paraisópolis, no último domingo.

    Dennys era estudante aplicado e trabalhador dedicado, ganhando a vida como Jovem Aprendiz numa empresa de telemarketing. Morador da Vila Matilde, na Zona Leste de São Paulo, seu sonho era tornar-se administrador de empresas e mostrar para a mãe que um garoto da favela poderia vencer na vida. Nas horas vagas, torcia pelo seu Corinthians. Comparecia aos jogos no Pacaembu e na arena de Itaquera.

    Ao consentir na homenagem, a direção corinthiana atendeu à solicitação de integrantes do Coletivo Democracia Corinthiana (CDC) e do Núcleo de Estudos do Corinthians (NECO), empenhados em fazer valer a tradição centenária do clube alvinegro na luta por uma sociedade justa e solidária.

    Lucas Santos, de 10 anos, irmão mais novo de Dennys, e seu sobrinho, Murillo, de 4 anos, entrarão em campo com seus ídolos. “O pessoal faz um trabalho maravilhoso e fico agradecido de coração pela atenção deles”, diz Rodrigo, irmão mais velho da vítima, integrante ativo dos Gaviões da Fiel.

    Contestação

    A irmã de Dennys, Fernanda Santos, contesta a versão oficial de que a morte do jovem tenha sido em decorrência de pisoteamento. Segundo ela, o adolescente estava sendo socorrido por amigos, em um beco de Paraisópolis, quando a polícia chegou, expulsou os jovens do local e afirmou que socorreria Dennys.

    O rapaz, no entanto, somente foi encontrado no dia seguinte, já morto, no IML. “Ele estava com a barriga coberta, não me deixaram ver. Eu pedi para tocar ele, mas não me deixaram”, afirma Fernanda. Ela examinou o corpo somente no velório. Encontrou apenas uma lesão na cabeça. “Sabemos que não foi pisoteamento”, contesta.

     

     

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  • Massacre de 17 de novembro de 1889: sobre Raça e República no Brasil

    Massacre de 17 de novembro de 1889: sobre Raça e República no Brasil

    Por Matheus Gato, doutor em sociologia pela USP e membro do Núcleo Afro/Cebrap, que realiza pós-doutorado com bolsa de pesquisa concedida pela Fapesp.

     

    Uma história política marcada pelo imaginário da raça é, antes de mais nada, uma história feita de silêncios, datas rasuradas, registros incompletos, apagamentos e cesuras que constituem a luta simbólica pelas formas de imaginar uma comunidade e estabelecer a sua memória coletiva. A narrativa oficial acerca da Proclamação da República no Brasil em 15 de novembro de 1889, em particular, a forma como a participação ou não da gente comum é retratada, e a insistência em tomar cidades como Rio de Janeiro e São Paulo qual metonímias explicativas sobre o que se passou em todo país muito nos têm ensinado a esquecer. Uma das imagens mais recorrentes acerca da instauração do regime republicano entre nós é aquela do povo bestializado, apático, sem tomar posição alguma frente ao golpe de Estado que encerrou o longo reinado de d. Pedro II. Se por um lado tal imagem denuncia o teor palaciano, antidemocrático, com que as elites brasileiras tradicionalmente conduzem as reformas políticas, por outro, reforça a tosca retórica sobre a ausência de virtudes cívicas e morais que se espera de um povo civilizado entre os brasileiros.

    Na contramão desse senso comum erudito estão os eventos que culminaram no Massacre de 17 de Novembro em São Luís do Maranhão durante o processo de instauração do novo regime. Naquele dia, uma grande multidão, cerca de 2 a 3 mil pessoas[1], descritas como “libertos”, “homens de cor”, “cidadãos do 13 de maio” e “ex-escravos”, saiu às ruas numa passeata em protesto contra as notícias sobre a proclamação da república. Na visão dessa gente, a mudança de governo vinha para restaurar a escravidão no país. Os manifestantes percorreram as ruas do centro da cidade, dirigindo-se ao edifício do jornal republicano O Globo, que havia marcado uma conferência para o fim do dia. Uma tropa de linha formada por doze soldados fortemente armados de fuzil foi destacada para proteger a sede do periódico, mas isso não intimidou os manifestantes, que ameaçavam atacar os seus dirigentes. O pelotão realizou uma descarga de fuzil contra a multidão, deixando, segundo números oficiais, quatro mortos e vários feridos.

    Pessoas mortas no Massacre de 17 de Novembro

    Fonte: José Thomaz da Porciuncula, Relatório com que o Exmo Im. Dr. Thomaz da Porciuncula passou à Administração do Estado em 7 de Julho de 1890, 1890, p. 6.
    Fonte: Relatório que o Exmo Im. Dr. Thomaz da Porciuncula passou à Administração do Estado em 7 de Julho de 1890, 1890, p. 6.

     

    Pessoas feridas no Massacre de 17 de Novembro

    Fonte: José Thomaz da Porciuncula, Relatório com que o Exmo Im. Dr. Thomaz da Porciuncula passou à Administração do Estado em 7 de Julho de 1890, 1890, p. 7.
    Fonte: Relatório que o Exmo Im. Dr. Thomaz da Porciuncula passou à Administração do Estado em 7 de Julho de 1890, 1890, p. 7.

     

     

    O registro hospitalar descreve os homens que morreram no conflito como homens solteiros, naturais do Maranhão, de cor preta ou parda. João de Brito, Sergio, Martinho, Raimundo Araújo Costa provavelmente estavam entre os líderes do protesto, pois foram atingidos na linha de frente. Os dados acerca dos feridos nos ajudam a interpretar a ocorrência de um verdadeiro massacre, pois as vítimas foram atingidas em partes do corpo como o peito, braço, antebraço, elemento que qualifica a intenção efetiva de matar e não apenas amedrontar ou dispersar a multidão.

    Um dos aspectos que mais escandalizaram os cronistas e contemporâneos ao protesto que culminou no Massacre de 17 de Novembro foi a sua motivação: o medo de retorno à escravidão. Entretanto, as fronteiras entre o trabalho escravo e o trabalho livre eram bem mais porosas que as suas definições legais podem sugerir[2]. O perigo do retorno à escravidão era uma constante na vida dos libertos e a constância da ameaça tornava precária a liberdade. O protesto na cidade de São Luís informa que o medo da escravidão ultrapassou o marco da Abolição, indicando a fragilidade material da cidadania conquistada no 13 de Maio.

    Na cidade de São Luís, foram noticiadas denúncias de que alguns senhores insistiam na escravidão, valendo-se de brechas legais para alegar que a Lei Áurea não revogava a obrigação de cumprimento das prestações de serviços pelos adolescentes e crianças alforriadas por efeito da Lei do Ventre Livre (ou Lei Rio Branco), assinada em 28 de setembro de 1871. Argumentavam que as crianças nascidas de “ventre livre” – as chamadas “ingênuas” – deveriam permanecer sob o controle dos ex-senhores de sua mãe até os 21 anos. O jornal A Pacotilha denunciou logo no dia 22 de Maio de 1888, menos de uma semana após a Abolição, “que filantropos há que, não sabemos com que direito, ou com que título, conservam reclusos, debaixo de sete chaves, como se costuma dizer, libertos pela lei de 13 de Maio. Dizem-nos que esta gentileza se dá lá pelas bandas do Caminho Grande”. O não cumprimento da lei deixava no ar o fantasma da reescravização.

    O problema do não pagamento da indenização aos senhores de escravos foi outro esteio de legitimação da escravização ilegal de pessoas no imediato pós-Abolição. Uma missiva publicada em 28 de junho de 1888 no Diário do Maranhão, enviada de Vargem Grande, pedia providências ao presidente da Província indagando: “[…] é possível ter-se ainda debaixo de sujeição os ex-escravizados sob o pretexto de não ter sido o possuidor indenizado do valor dos mesmos, pois aqui tem uma entidade representativa que ainda os tem sob domínio, tendo até um deles se evadido par gozar do seu direito”. Nesse sentido, o “medo da escravidão” possuía bases muito concretas não apenas devido à experiência da reescravização e/ou não cumprimento da lei de 13 de Maio, mas, também, devido à permanência da cultura do cativeiro no pós-Abolição. Problema que esteve no centro do protesto que foi às ruas em 17 de novembro 1889. Com efeito, o simbolismo da luta contra a escravidão era forte. O protesto saiu do largo do Carmo onde se localizava o Pelourinho de São Luís. Havia sido ali também que muitos desses homens e mulheres estiveram comemorando a Abolição, pois do Largo do Carmo saíra a “passeata dos libertos” no dia 15 de Maio de 1888[3]. Assim, no dia 17 de novembro, as memórias do cativeiro e sua redenção estavam, por assim dizer, à flor da pele.

    Na memória dos negros, a violência do Massacre de 17 de Novembro não se restringiu ao fuzilamento. Em depoimento ao jornalista César Teixeira, nos anos 1970, o cantador de bumba-boi Zé Igarapé contou que seu pai era monarquista e estava entre os manifestantes, razão pela qual não tinha um braço. “Foi cortado pela República”, afirmou na ocasião o brincante popular. No hospital da Santa Casa, o médico responsável em atender os feridos teria dito: “Em barulho de branco, preto não se mete!”[4]. O escritor negro Astolfo Marques (1876-1918) reconstruiu precisamente essa cena no livro A nova aurora (1913), romance dedicado à instauração do novo regime. No livro, a frase possui uma conotação ainda mais ameaçadora: “Quem se mete em coisas de brancos, tem a mesma tristíssima sorte aqui desses teus companheiros”[5]. Imaginadas e narradas nesses termos, as amputações procedidas na Santa Casa ganham fortes conotações de linchamento racial. Nessas representações construídas por negros, a república de 15 de novembro de 1889 se confunde, indelevelmente, com a experiência da subordinação racial.

    O problema da tortura policial, durante o governo provisório, certamente ajudou a cristalizar essa imagem. Os suspeitos de integrarem o protesto sofreram intensa perseguição nos dias subsequentes e alguns foram presos. De acordo com o relato de Astolfo Marques, nessas ocasiões “o detido, pela menor queixa, era conservado a pão e água, quando lhe davam, por mais de 24 horas; e, antes de posto em liberdade, se infligiam […] indecorosos castigos, dos quais os menores se limitavam à aplicação de dúzias e dúzias […] de bolos (palmatoadas) e a raspagem dos cabelos”. Os jornais da época dão testemunho que nem mesmo mulheres escaparam da violência. Maria da Paz Rubim teve a cabeça raspada por se envolver em brigas com outra companheira. “A operação foi tão bem feita que lhe deixou várias escoriações ligeiras no couro cabeludo, tendo sido medicada pelo dr. Henrique Alvares Pereira”, informou o jornal A Pacotilha em 19 de dezembro de 1889. Joaquina, residente na rua da Misericórdia, e Clara Maria da Conceição, moradora da rua do Mercado, também tiveram as cabeças e sobrancelhas raspadas. A simbologia desses atos e a humilhação infligida através deles eram fortes: o chamado “raspa coco” foi uma das marcas do tratamento policial aos escravos fugidos, nos últimos anos do cativeiro[6]. Mas, nesse caso, o estigma da escravidão convertia-se em estigma racial.

    O protesto de 17 de novembro reagia precisamente a essa reestruturação das hierarquias sociais no pós-Abolição que esvaziava muito dos direitos conquistados com o 13 de Maio. Os rumores, o medo e a crença na possibilidade de retorno à escravidão foram a expressão cruel desse drama coletivo – uma experiência rasurada das maneiras com que os brasileiros dão sentido a sua história. Um massacre não é feito apenas da quantidade de corpos que se abandona ao relento, mas, também de palavras, rumores e, sobretudo, de memória. Para aqueles homens que entregaram a vida pelo medo de serem escravos novamente, o “massacre” nomeava toda uma gama de violências e humilhações para as quais a raça se erguia como linguagem. Massacre é o nome de uma “experiência” que faz lembrar o braço amputado de um pai e a rotina da tortura policial. O Massacre é a força estruturante do racismo na formação do Brasil moderno.

     

     

    Conferência proferida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP para a abertura do seminário A Cidade e a Questão Racial, realizado em 13 de novembro de 2019.

     

    [1] Milanez, J. L. da S. Apontamentos escritos pelo Capitão do Exército José Lourenço da Silva Milanez fl. 24.

    [2] Ver: Chalhoub, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

    [3] Jacinto, C. “Festejando a liberdade: o 13 de Maio no Diário do Maranhão e na Pacotilha, 2018, p. 13 (mimeo).

    [4] Teixeira, C. “Zé Igarapé (I): ‘O gigante do boi da Madre Deus’”, Jornal Pequeno, 14/06/2002, p. 2.

    [5] Marques, A. A nova aurora. Maranhão: Tip. Teixeira, 1913, p. 77.

    [6] Needell, J. D. “Brazilian Abolicionism, Its Historiography, and the Uses of Political History”, Journal of Latin American Studies, v. 42, 2010, p. 250.

  • Marcha do retorno reúne 30 mil palestinos em Gaza

    Por Rodrigo Veloso*, especial para os Jornalistas Livres

    Mais de 30 mil palestinos saíram às ruas de Gaza, hoje, para participar da “Marcha do Retorno”, que é um protesto contra as sistemáticas expulsões de cidadãos árabes das suas terras no que hoje configura o estado de Israel, e cuja data específica marca o confisco das propriedades de 6 árabes-israelenses em 1976 para construção de habitações para cidadãos judeus no mesmo lugar.

    A marcha foi convocada por dezenas de grupos palestinos, inclusive pelo Hamas, que administra Gaza, mas recebeu também o apoio de organizações internacionais de direitos humanos, e agrega outras pautas importantes para os palestinos no momento em que eles vivem uma crise humanitária no território bloqueado.

    As movimentações acontecem, propositalmente, ao longo da cerca na fronteira com Israel para aquilo que o comando do Hamas afirmou ser “a oportunidade de ver com os próprios olhos a beleza das terras roubadas pelos israelenses”.

    A tensão no local está no nível mais alto possível, com a administração em Jerusalém deslocando tropas do exército, com armas de controle não-letal, mas também tanques de guerra e até atiradores de elite.

    Até agora, 13 palestinos foram confirmados mortos, centenas estão feridos e outras centenas foram presos. Os confrontos ocorrem à medida que israelenses e palestinos trocam hostilidades, mas não há registro de qualquer israelense gravemente ferido.

    O governo de Israel, na figura do líder da extrema-direita e ministro das relações exteriores, Avigdor Lieberman, usou até mensagens em árabe diretamente enviadas à população de Gaza para desestimular a participação na manifestação, sob a alegação de que esta estaria sendo manipulada pelo Hamas, uma facção que historicamente se notabilizou pela posição política de não reconhecer Israel.

    Por sua vez, os grupos palestinos alegam que Lieberman ignora de propósito a diversidade de grupos que apoiam a causa para tentar desqualificar um protesto legítimo, e pedem que a população continue saindo de casa em direção à fronteira. O chamado, eles dizem, é para um protesto que dure mais do que esta sexta-feira, dia sagrado e de orações importantes para os muçulmanos, e que permaneça nas ruas, inclusive montando acampamentos pelos próximos dias e semanas até o “Nakba”, que é o “Dia da Catástrofe”, a data que marca a partilha do território em 1948.

    As próximas horas prometem ser delicadas, já que os países vizinhos, neste Oriente Médio marcado por conflitos, estão recebendo imagens ao vivo das mortes cometidas. Em Israel, já estão sendo convocadas manifestações de apoio ao exército (por grupos nacionalistas de direita) e em defesa de um cessar-fogo com a volta das negociações com os palestinos (por grupos de esquerda e pela comunidade árabe em geral). Reações em outros países da região com maioria muçulmana devem acontecer nas próximas horas. E ainda é aguardado o posicionamento dos EUA sob a administração de Donald Trump. A tensão é muito grande.

    *Rodrigo Veloso é bacharel em Relações Internacionais, judeu e ativista LGBT

     

  • “Do portão pra dentro é dos presidiários”, diz ex-detento em Manaus

    “Do portão pra dentro é dos presidiários”, diz ex-detento em Manaus

    João (nome fictício utilizado para preservar o entrevistado), era usuário e também vendia maconha. Tinha 21 anos e trabalhava como office boy quando, em 2007, foi preso sob acusação de ”tráfico de drogas”. Portava 12 cigarros de maconha.

    João começou a vender maconha para sustentar seu próprio consumo. Não tinha pretensão de enriquecer com a venda da planta e tampouco tirava seu sustento das vendas. Não era vinculado a organizações criminosas e, até então, não tinha antecedentes criminais. João entrou para as estatísticas da população prisional brasileira.

    Segundo dados de dezembro de 2014, divulgados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo (622.202). O líder do ranking são os Estados Unidos (com 2,2 milhões de presos). Dos 622.202 detentos brasileiros, 28% estão enquadrados na Lei de Drogas. A maioria da população prisional é composta por negros (67%) e por indivíduos de baixa escolaridade (53%).

    Quem é o responsável pelo massacre que ceifou as vidas de 60 homens no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj)? Seria da terceirizada Umanizzare, empresa privada que administrava a penitenciária, tendo recebido do governo do estado do Amazonas o equivalente a R$ 686 milhões entre os anos de 2013 a 2016? Ou o responsável seria o Estado, que deveria fiscalizar a terceirizada contratada para que cumprisse com os serviços inclusos no contrato, entre os quais se contam: prezar pela limpeza e conservação do complexo penitenciário, pela manutenção dos equipamentos que integram o sistema de segurança eletrônica, como câmeras de vídeo e pela alimentação dos detentos entre outros serviços.

    Lado mais fraco

    João é um exemplo dos milhares de detentos não só do Estado do Amazonas, mas também do Brasil. Esses que são esquecidos pelo Estado, responsável por eles enquanto estes estiverem sob sua custódia. João poderia ser um dos mortos no massacre.

    Por causa de 12 cigarros de maconha!

    E tem muita gente fora das cadeias pedindo mais mortes. “Morram todos!”

    O triste é que a maioria desses que gritam “bandido bom é bandido morto” quer uma sociedade mais justa –mas a solução imediatista que propõe só pune exatamente o lado mais fraco.

    O relato de João, um ex-detento do Compaj, nos leva a analisar a necessidade da descriminalização do consumo de todas as drogas, a analisar a omissão do Estado frente ao sistema penitenciário brasileiro e também, a refletir se estamos perdendo nossa humanidade ao difundir o ódio nas redes sociais.

    Jornalistas Livres foram ao encontro do ex-detento que é filho de uma diarista moradora da periféria de Manaus. O relato de João é sobre tudo que viveu enquanto esteve preso. Sobre sua história, sobre tudo o que viu, o que sentiu, e como é a vida atrás das grades. A entrevista a seguir foi feita pelos repórteres Macarena Mairata e Christian Braga de Manaus (AM), dos Jornalistas Livres.

    Vídeo: Christian Braga / Jornalistas Livres