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  • Marx, o ilustre aniversariante da semana

    Marx, o ilustre aniversariante da semana

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na UFBA, com ilustração de Aroeira

     

    Mas como nem tudo na vida são flores, falo também de nós, da esquerda brasileira e daquela que parece ser a nossa grande derrota: perdemos a narrativa da denúncia e do combate à corrupção, uma narrativa que desde o início foi nossa, da esquerda.Uma narrativa que no século XIX foi formulada por Karl Marx.

    Sim, amigos e amigas, o capital nos roubou a narrativa. Foi roubando assim, despacito, passo a passo. Não nos demos conta. Em algum momento, acreditamos que a narrativa do capital era a nossa narrativa. Acreditamos que a Operação Lava-Jato era republicana. Acreditamos que as delações premiadas seriam um instrumento utilizado pelas autoridades do Sistema de Justiça no combate aos crimes de colarinho branco.

    Fomos tolos, muito tolos. Perdemos a narrativa. Perde o jogo quem perde a narrativa.

    Começo pelo começo e o começo começa em Marx, no sistema de pensamento que até hoje é a melhor interpretação da modernidade. É que antes de ser o teórico da revolução dos trabalhadores, Marx é um intérprete da modernidade, o melhor que temos. Ninguém entendeu a modernidade tão bem quanto Marx.

    Se fosse possível resumir o pensamento de Marx em uma sentença simples, rápida, eu diria assim:

    O capitalismo inventou uma sociedade fundada na corrupção!

    Ao longo de seus muitos escritos, Marx aborda a ideia da corrupção em duas perspectivas distintas, sendo que uma complementa a outra:

    1°) A primeira abordagem tem teor mais filosófico e propõe uma definição para a natureza humana. Ultrapassando a tese iluminista de que os seres humanos são naturalmente racionais, Marx afirma que a natureza humana é fabril.

    Ou seja, homens e mulheres são naturalmente vocacionados para o trabalho.

    Mas que tipo de trabalho seria esse? O próprio Marx responde no capítulo VII do I volume do Capital:

    “Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais que um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho, aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera: ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito.”

    O trabalho que define a humanidade não é o trabalho meramente mecânico e repetitivo. É o trabalho livre, criativo, cujos resultados já estavam sendo imaginados pelo trabalhador antes de iniciado o processo de criação.

    Na medida em que é fundado na exploração de uma classe social pela outra, o capitalismo corrompe a natureza dos seres humanos, de todos eles. O capitalismo, diz Marx, corrompe tanto a burguesia como o operariado.

    A humanidade dos burgueses é corrompida porque sua posição de classe lhes permite o privilégio do ócio. O ser humano ocioso não trabalha e por isso tem a natureza da sua humanidade violentada, corrompida.

    A humanidade dos trabalhadores é corrompida porque o seu trabalho não é livre, mas, sim, alienado. No capitalismo, o trabalhador trabalha em função das necessidades e dos desejos de outros.

    O mundo novo, para Marx, alcançado após a Revolução, não seria o império do ócio, mas sim o reino do trabalho livre, onde todos pudessem desenvolver livremente todas as potencialidades de sua natureza fabril. No mundo novo, todos trabalhariam para satisfazer suas necessidades, tendo apenas os limites da natureza como força externa de regulação.

    2°) O segundo tratamento possível que Marx deu à ideia de “corrupção” tem dimensão política e pode ser encontrado no livro “A Luta de Classes na França – 1848–1850”, publicados originalmente na forma de artigos na “Nova Gazeta Renana”, editada em Hamburgo.

    Diz Marx que: “Enquanto a aristocracia financeira legislava, dirigia a administração do Estado, dispunha de todos os poderes públicos organizados e dominava a opinião pública pelos fatos e pela imprensa, repetia-se em todas as esferas, desde a corte ao Café Borgne, a mesma prostituição, as mesmas despudoradas fraudes, o mesmo desejo ávido de enriquecer não através da produção mas, sim, através da sonegação de riqueza alheia já existente.”

    Para Marx, no capitalismo, o jogo político está sempre regulado pelas forças que controlam o capital. A manutenção dessas forças como classe de poder demanda a manipulação do jogo político, que passa a atender aos interesses de uma classe específica, ao invés de atender ao “interesse público”. Essa é a “corrupção política” para Marx: o jogo político colaborando para a reprodução dos privilégios de um grupo.

    No fundo, o que Marx está dizendo é que no capitalismo a corrupção política é uma redundância, pois não há a possibilidade de a política ser virtuosa se o sistema social inteiro está fundado na corrupção. Uma corrupção que, como disse há pouco, consiste na violação da natureza fabril dos seres humanos.

    Como o trabalho livre é elemento fundamental da natureza humana, a sua corrupção, obviamente, não é natural e demanda artifícios, estratégias, jogos de poder. É aqui que a corrupção política cumpre sua função, acionando as estruturas de poder que satisfazem os privilégios de um grupo e viabilizam a corrupção original.

    A corrupção original da essência humana produz a necessidade da corrupção política. A corrupção política possibilita a corrupção original da essência humana. Esse, segundo Marx, é o ciclo da corrupção na sociedade capitalista.

    Na modernidade burguesa, a narrativa da denúncia e do combate à corrupção foi formulada originalmente por Karl Marx, o principal teórico das esquerdas.

    Na dinâmica da crise brasileira contemporânea, as forças do golpe neoliberal, representadas pela aliança entre a mídia hegemônica e o sistema de Justiça, tomaram de assalto essa narrativa. É esse o aspecto da crise que mais me impressiona.

    É claro que no assalto as forças do golpe reorientaram a narrativa, o que ficou muito claro na última semana, no dia 2 de maio, quando o golpe neoliberal alcançou aquela que talvez tenha sido sua principal vitória: a restrição da prerrogativa de foro, aquilo que o próprio golpe chama, pejorativamente, de “foro privilegiado”.

    Penso que a restrição da prerrogativa de foro tenha sido a grande vitória do golpe até aqui, uma vitória mais importante que a destituição de Dilma e a prisão de Lula. É que a destituição de Dilma e a prisão de Lula são medidas emergenciais. A restrição do foro tá mirando no futuro do projeto do golpe neoliberal.

    O golpe neoliberal sabe o que faz.

    As forças motoras do golpe neoliberal sabem muito bem que o seu projeto de desenvolvimento, fundado no “Estado Mínimo”, não tem apoio da maioria da população brasileira. A consolidação desse projeto somente é possível nas costuras palacianas. A consolidação desse projeto depende do enfraquecimento da soberania popular nas eleições.

    Mas o que o ataque à prerrogativa de foro, ao “foro privilegiado”, tem a ver com as eleições? Não se trata apenas de combater a corrupção?

    Isso é o que o golpe neoliberal quer que você pense, leitor e leitora.

    O golpe neoliberal quer convencer você que os juízes brasileiros, os mesmos que se lambuzam com privilégios funcionais como auxilio moradia e salários acima do teto constitucional, estão comprometidos com o combate à corrupção.

    Salários acima do texto constitucional também são prática de corrupção. Auxílio moradia mesmo com residência própria também é corrupção.

    É corrupção legalizada!

    É legal porque a diferença entre o político corrupto e o juiz é pequena, é apenas uma caneta. A caneta do juiz transforma sua prática de corrupção em direito assegurado por lei.

    É óbvio que isso tudo está mascarado pela narrativa do golpe neoliberal, que tenta nos convencer diariamente que a política institucional é o território exclusivo da corrupção e que o político profissional, eleito pelo voto popular, é o corrupto por excelência.

    Na narrativa do golpe neoliberal não existe corrupção no sistema financeiro, nos lucros da especulação rentista. Não existe corrupção na imprensa hegemônica, que suborna entidades esportivas para ter o monopólio da transmissão dos grandes eventos. Não existe corrupção no Sistema de Justiça.A corrupção só rola solta no território da política, onde a vontade da população tem alguma influência. A soberania popular não é soberana no sistema de comunicação, controlado por poucos grupos. A soberania popular não é soberana no sistema de Justiça, formado por funcionários concursados que não foram eleitos.

    A vontade popular é influente no jogo político, pois de dois em dois anos os políticos profissionais descem do olimpo e ao rés do chão dão tapinhas simpáticos nos ombros dos eleitores, posam para fotos com crianças e vovós, comem pastel e bebem caldo de cana na feira do bairro da periferia.

    Nesse momento, a bola está com o eleitor. Se ele joga bem ou mal é tema para outra conversa. Fato mesmo é que de dois em dois anos, a bola do jogo está com o eleitor.

    O que o eleitor faz?

    Elege mandatos, escolhe seus representantes.

    Podemos ficar horas e horas discutindo a qualidade dessa representação, mas não dá para negar que o político eleito foi escolhido, escolhido pelo povo, pelo eleitor.

    Cada político eleito representa uma parcela da sociedade relevante o suficiente para ser representada. A instituição da prerrogativa de foro garante que esse mandato popular não será facilmente constrangido pelas primeiras instâncias do Sistema de Justiça, que em teoria são mais sensíveis às pressões políticas da localidade.

    A prerrogativa de foro protege o mandato popular quando garante que o político eleito só pode ser julgado pela mais alta corte do Sistema de Justiça. Uma corte que, em teoria, é mais qualificada e mais capaz de resistir às pressões políticas. Em teoria…

    O que tentei mostrar neste ensaio é que o golpe neoliberal tomou de assalto a narrativa da denúncia e do combate à corrupção, reorientando a matriz original dessa agenda, que é de esquerda, que é marxista.

    Na narrativa do golpe neoliberal, a corrupção não está na desigualdade, na exploração de uma classe pela outra. A corrupção está no exercício do voto, na manifestação eleitoral. O corrupto é o político eleito pelo povo, é o mandatário eleito por um povo incapaz de decidir seu próprio destino.

    A mensagem do golpe neoliberal é clara: o povo não sabe escolher seus representantes, não sabe escolher o modelo ideal para o desenvolvimento nacional. Então, pouco importa se a maior parte da população, nas urnas, rejeita as reformas neoliberais, elegendo lideranças políticas que se opõem a esse programa.

    Com a restrição da prerrogativa de foro, o mandato dessas lideranças é fragilizado e pode ser desestabilizado por funcionários concursados, sobre os quais o eleitor não tem nenhum controle. Com isso, a soberania popular se torna coadjuvante numa democracia que está em claro processo de oligarquização. Mais do que nunca, estamos nos tornando a República dos Bacharéis.

     
     

     

     

  • Para que serve o 1 de maio?

    Para que serve o 1 de maio?

    A verdade é que, nesse início do ano 3 do golpe, temos bem pouco para celebrar. O produto do nosso trabalho continua sendo alienado de nós. Uma exceção que anima é constatar o orgulho que transborda dos trabalhadores ligados ao MST, em suas feiras da reforma agrária. Porém a expropriação relatada na canção “Cidadão”, gravada por Zé Geraldo e composta por Lúcio Barbosa há cerca de 40 anos, continua sendo a regra:

    Tá vendo aquele edifício moço?
    Ajudei a levantar
    Foi um tempo de aflição
    Eram quatro condução
    Duas pra ir, duas pra voltar

    Hoje depois dele pronto
    Olho pra cima e fico tonto
    Mas me chega um cidadão
    E me diz desconfiado, tu tá aí admirado
    Ou tá querendo roubar?

    Meu domingo tá perdido
    Vou pra casa entristecido
    Dá vontade de beber
    E pra aumentar o meu tédio
    Eu nem posso olhar pro prédio
    Que eu ajudei a fazer

     

    Ao continuar a busca por uma razão para comemorar nas pesquisas do IBGE, nos deparamos com o aterrorizante número de 13,7 milhões de desempregados no país no primeiro trimestre de 2018. Ao comparar com a desocupação média de 2014, que foi de 6,7 milhões de pessoas, constatamos que temos o dobro de pessoas sem emprego. Além disso, o número de trabalhadores com carteira assinada, que superava 36 milhões nos mesmos trimestres de 2014 e 2015, hoje se encontra abaixo de 33 milhões.

    Quem sabe encontramos boas novas na “Modernização das Leis Trabalhistas”? Não precisamos de muito esforço: se pararmos dois minutos para avaliar as mudanças promovidas após o golpe ficará muito claro que as novas regras são uma modernização às avessas, um retrocesso de mais de 50 anos, uma retirada em massa de direitos e enfiada goela abaixo da classe trabalhadora sem qualquer negociação ou discussão.

    Talvez a data se preste, apenas, para registrar e disseminar o empenho da elite dominante em transformar a educação, a saúde, a água, as florestas, as aldeias e os quilombos em mercadorias. Da mesma forma já operada com a força de trabalho, como nos relembra Marx:

    Por modo de produção, ele [Marx] não se referia apenas ao estado da técnica – ao que chamou de estágio de desenvolvimento das forças produtivas – mas ao modo pelo qual se definia a propriedade dos meios de produção e às relações sociais entre os homens que resultavam de suas ligações com o processo de produção. Desse modo, o capitalismo não era apenas um sistema de produção para o mercado – um sistema de produção de mercadorias, como Marx o denominou – mas um sistema sob o qual a própria capacidade de trabalho “se tornara uma mercadoria” e era comprada e vendida no mercado como qualquer outro objeto de troca. Seu pré-requisito histórico era a concentração da propriedade, dos meios de produção em mãos de uma classe, que consistia apenas numa pequena parte da sociedade, e o aparecimento consequente de uma classe destituída de propriedade, para a qual a venda de sua força de trabalho era a única fonte de subsistência. (Em Maurice Dobb, A Evolução do Capitalismo, p. 17)

    Estendendo nossa visão para um pouco além, constatamos que o modo de produção capitalista predomina em nossa sociedade há 3 ou 4 séculos. Esse espaço de tempo não é tão significativo ao compararmos com o tempo que a raça humana habita este planeta. Como nos ensina Marx:

    Uma coisa… está clara: a natureza não produz, de um lado, possuidores de dinheiro ou de mercadorias e, do outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho. Esta relação não tem origem na natureza, nem é mesmo uma relação social que fosse comum a todos os períodos históricos. Ela é, evidentemente, o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, do desaparecimento de toda uma série de antigas formações da produção social. (O Capital, livro 1, p. 199)

    Assim, em que pesem todos os percalços desses anos, é preciso lembrar a cada dia, especialmente a cada 1 de maio, que o capitalismo não existe desde sempre e não existirá para sempre.

    Notas

    1 Canção “Cidadão”, de Lúcio Barbosa, interpretada por Zé Geraldo: https://youtu.be/cCnr8bpe6hI

    2 PNAD contínua https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/20994-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-13-1-no-trimestre-encerrado-em-marco.html

  • Há um curto-circuito no coração do golpe

    Há um curto-circuito no coração do golpe

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*

    Acho que poucos de nós duvidam que a palavra “corrupção” é o termo chave da crise brasileira contemporânea. Uma crise que começou em junho de 2013, mas que deita suas raízes mais profundas lá em 2005, na ocasião do que já na época ficou conhecido como o “julgamento do mensalão”.

    Aqui neste ensaio, quero mostrar como essa palavrinha mágica pode ser entendida de várias maneiras e como a história da crise brasileira contemporânea pode ser contada a partir do privilégio de um desses sentidos: o sentido “liberal”, segundo o qual a “corrupção” está diretamente vinculada ao Estado, a tudo que é público. É como se o Estado fosse naturalmente corrupto e corruptor e o combate à corrupção passasse, necessariamente, pelo combate ao Estado, pelo desmonte do Estado.

    O privilégio dessa leitura liberal do fenômeno da corrupção diz muito sobre a crise, especialmente sobre os seus movimentos mais recentes. De uns dias pra cá, os veículos mais poderosos da imprensa hegemônica brasileira (Folha de São Paulo, o departamento de jornalismo da Rede Globo, Estadão) vêm abrindo fogo contra os privilégios dos juízes, que já são conhecidos por todos nós há muito tempo. Por que somente agora a imprensa hegemônica denuncia os privilégios nababescos dos juízes brasileiros? Penso que estamos entrando num novo momento da cronologia da crise, em que a aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até então sólida como pedra, começa a fazer água. Também aqui a leitura liberal do conceito “corrupção” tem uma importante função política a cumprir.

    Bom, pra começar a conversa é importante esclarecer melhor o que estou querendo dizer quando afirmo que o conceito “corrupção” é polissêmico, que possui vários sentidos. Pra isso, cito, bem rápido, alguns autores que ao longo da história da cultura política ocidental usaram a palavra “corrupção”, fazendo-o de diferentes formas.

    Para Aristóteles, que que no IV século antes de Cristo escreveu o tratado da “Política”, a “corrupção” era o efeito natural do tempo sobre os organismos políticos. Maquiavel, escrevendo no século XVI da era cristã, seguiu a trilha aberta por Aristóteles e definiu a “corrupção” como a perda da capacidade da República em institucionalizar os conflitos travados entre seus cidadãos. Chamo de “republicana” essa forma de tratar a corrupção.

    Karl Marx, escrevendo no século XIX, enfrentou o tema da corrupção em um livro pouco conhecido, cujo título é “A luta de classes na França entre 1848 e 1850”. Basicamente, Marx argumenta que falar em “corrupção política” no sistema capitalista é uma redundância, pois o próprio capitalismo já é corrupto, na medida em que se fundamenta na exploração de uma classe pela outra. Essa é a definição marxista.

    Nenhuma dessas formas de pensar associou a “corrupção” ao roubo do dinheiro público. Vamos encontrar essa associação sendo feita de forma mais clara nos textos que Friedrick Hayek escreveu ao longo do século XX. Preocupado em discutir o tema da “ética na política”, Hayek definiu a corrupção como a apropriação para fins particulares dos recursos públicos. Como o objeto da corrupção seria o dinheiro público, a definição proposta por Hayek sugere que o terreno da “coisa pública”, do “Estado”, é solo fértil para a corrupção. Podemos chamar essa definição de “liberal”.

    Bom, o conceito “corrupção” tem, pelo menos, três significados distintos: o republicano, o marxista e o liberal. Nem carece de gastar muito papel e tinta pra mostrar que na crise brasileira contemporânea um desses significados foi privilegiado: o liberal. Ao menos na minha avaliação, isso não aconteceu à toa, sendo um projeto planejado deliberadamente por segmentos poderosíssimos das elites brasileiras para realizar um antigo sonho, para viabilizar um projeto que vem sendo frustrado desde a década de 1940.

    Que projeto é esse? Que sonho é esse que animou durante esse tempo todo o sono da direita brasileira, mas que jamais foi plenamente realizado?

    Pra responder, apresento uma breve síntese da história contemporânea do Brasil. Síntese histórica é igual prudência e canja de galinha: é sempre bem-vinda. O conhecimento histórico é útil à vida.

    Trata-se do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, projeto que começou a ser defendido no final dos anos 1940 pela UDN, partido político que na época foi o portador da narrativa da redemocratização que marcou a transição da Ditadura do Estado Novo para a ordem democrática que se consolidaria em 1945. Não era, ainda, o “Estado Mínimo” neoliberal, mas sim um projeto desenvolvimentista internacionalista que priorizava o mercado e o capital, considerando o Estado um obstáculo para a prosperidade nacional.

    Esse projeto desenvolvimentista jamais foi aprovado nas urnas, o que explica em parte o transformismo golpista da UDN. Em algum momento da década de 1950, a UDN cansou de brincar de eleição e passou a recorrer ao expediente golpista. Já que o povo não colaborava, a UDN resolveu caminhar sem o povo mesmo. A aproximação com os militares foi uma consequência quase natural.

    A aliança entre a UDN e os militares viabilizou o golpe civil-militar de 1964. Mas como os militares não são seres acéfalos, não serviram como simples instrumento para a realização do projeto udenista. Acabou mesmo que a UDN deu com os burros n’água, pois os milicos sentaram na cadeira do poder e ali ficaram por mais de 20 anos, perseguindo até mesmo os aliados de véspera, como o líder udenista Carlos Lacerda.

    E o pior para o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” vou contar agora: os militares não efetivaram o projeto udenista, pelo contrário, já que em vários aspectos os governos militares podem ser definidos como estatais-desenvolvimentistas. Isso não significa um elogio aos militares, bem longe disso, pois a ditadura foi fundada em um golpe que destituiu um governo democraticamente eleito. Diante desse vício de origem, nenhum ato da ditadura militar pode ser considerado legítimo.

    Enfim, não foi com a UDN e não foi com os militares que o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” se tornou realidade.

    O projeto voltou com força no final dos anos 1980 e pautou as eleições presidenciais de 1989. Sob a batuta do “Consenso de Washington”, um jovem político alagoano, bonitinho mas ordinário, prometeu “caçar os marajás”. Ou em outras palavras, combater a “corrupção”. Adivinhem como? Enxugando o Estado.

    Sabemos bem o que aconteceu com esse jovem e charmoso político alagoano. Collor também não conseguiu realizar o velho sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”.

    Com um discurso de propaganda em muitos aspectos parecidos com o de Collor, só que acrescido da narrativa da “estabilidade econômica resultante do plano real”, Fernando Henrique Cardoso se submeteu às urnas em 1994. E venceu. Havia chegado a vez do príncipe da sociologia uspiana tentar realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, dessa vez com a legitimidade de uma vitória eleitoral.

    O sucesso foi relativo. Sem dúvidas, FHC avançou mais que seus antecessores, mas no final dos seus oito anos de governo ficou a sensação de que foi pouco, de que dava pra entregar mais. O neoliberalismo é um lobo faminto.

    Por mais que o governo de Lula tenha negociado com a agenda neoliberal, apenas com muita desonestidade intelectual seria possível dizer que o desmonte iniciado pelos tucanos foi mantido pelos governos petistas. Com a eleição de Lula, o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” sofreu um duro revés. Mas o lobo não é só faminto. É insistente e teimoso também.

    O que estou querendo dizer é: A crise brasileira contemporânea representa uma nova ofensiva desse lobo neoliberal contra o Estado brasileiro e pra isso é necessário algo a mais do que o simples argumento macroeconômico. É que esse negócio de economia, de números, não convence muito, tem pouca eficiência retórica.

    É aqui que o tratamento da “corrupção” na perspectiva liberal vai cumprir sua função discursiva, ao definir o Estado como o antro da corrupção, como o cabaré da imoralidade. A diferença é que a experiência mostrou que o marketing político não basta, que é necessário algo mais forte: a judicialização da política. Nasce assim, lá em 2005, a aliança que até a semana passada era a força política mais poderosa da República: o concubinato entre a mídia hegemônica e setores do poder judiciário.

    Quem não lembra de Joaquim Barbosa, o homem da capa preta que prometia colocar todos os políticos corruptos na cadeia?

    O tal combate à corrupção foi seletivo e serviu apenas para desestabilizar os governos petistas, que estavam fortalecendo o Estado como grande agente de regulação estratégica do desenvolvimento nacional. Lideranças petistas foram perseguidas judicialmente, como foi o caso de José Dirceu e José Genoíno, e isso sob os aplausos de uma opinião pública raivosa, com fome de vísceras.

    Pouco importava o devido processo legal, desde que os “corruptos” fossem punidos e os “corruptos”, é claro, eram as lideranças petistas. Pronto! A matriz da crise está aqui. Só que do outro lado tinha um certo Luiz Inácio, cabra esperto, inteligente, que conseguiu sobreviver à primeira ofensiva do conglomerado “judiciário/imprensa hegemônica”.

    Nos anos seguintes, com a prosperidade econômica resultante do boom das commodities, os ânimos foram pacificados. Tava entrando dinheiro no bolso de todo mundo e a opção lulista em não tensionar as contradições estruturais fez com que o lobo faminto e temporariamente saciado pudesse dormir.

    O jogo mudou a partir de 2013, em virtude da combinação da crise econômica com algumas escolhas políticas da presidenta Dilma. Pois sim, em muitos aspectos o “dilmismo” é diferente do “lulismo”. Ainda precisamos avançar na conceituação do “dilmismo”. Não é isso que faço aqui.

    O lobo acordou, mais faminto que nunca e viu naquele momento uma chance de ouro para realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”. Outra vez foi evocada a narrativa liberal do combate à corrupção. Foi assim que o governo da presidenta Dilma foi desestabilizado, foi com essa semântica que o golpe de 2016 se efetivou, novamente sob os aplausos dos “brasileiros de bem”, indignados com a corrupção.

    Mal sabiam os “brasileiros de bem” que eles estavam sendo bombardeados por uma narrativa que deu ao conceito “corrupção” um sentido específico, que de forma alguma é o único. Assim, com essa narrativa, Dilma foi derrubada e Lula condenado, em processos jurídicos profundamente politizados e questionados pela comunidade jurídica nacional e internacional.

    Acontece que a crise é um processo em movimento que ainda não acabou. Ao que parece, acabamos de entrar num outro momento da cronologia da crise: com Lula condenado e virtualmente preso, chegou a hora do lobo neoliberal devorar todo o banquete. O lobo é insaciável.

    E pra matar a fome do lobo, nada melhor do que servir, numa bandeja de prata, os privilégios do judiciário. Não é possível a realização do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” com um judiciário tão caro, cheio dos privilégios, cheio das pensões vitalícias.

    Bastaram menos de 72 horas após a condenação de Lula para aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até aqui marcada por lealdade recíproca, se dissolver. Moro, Dallagnol, Bretas, até então representados como heróis nas páginas dos principais jornais da imprensa brasileira, se tornaram aproveitadores da coisa pública, se tornaram corruptos.

    Justo agora, os privilégios tão conhecidos por todos nós começaram a incomodar a imprensa hegemônica. De forma alguma, quero defender os juízes, mas precisamos entender que os ataques midiáticos ao judiciário fazem parte do mesmo projeto neoliberal que desestabilizou o reformismo petista. O lobo é faminto, teimoso e criativo. Tomara que as esquerdas brasileiras não se deixem seduzir pelo uivo do lobo, travestido de canto de sereia. Tem sereia não, meus amigos. É lobo mesmo, com os dentes enormes, mais perigoso que aquele jantou a chapeuzinho vermelho. Ou almoçou? Não sei.

    Escrever no olho do furacão é sempre um desafio e aquele que se arrisca acaba botando a língua na guilhotina. Não tem jeito. Por isso, arrisco a integridade da minha língua dizendo que temos um elemento novo na cronologia da crise brasileira.

    As duas forças que juntas foram as responsáveis pela aplicação do golpe têm projetos distintos e até mesmo rivais para o futuro da nação: de um lado, o judiciário querendo uma República dos bacharéis, onde os magistrados serão os guardiões da moral pública, com a devida recompensa, sob a forma de privilégios que não estão disponíveis a nenhum outro setor do funcionalismo público. Do outro lado, a imprensa hegemônica, que representando os interesses do neoliberalismo vê na atual conjuntura de crise a chance para tornar realidade, de uma vez por todas, o antigo sonho do “Estado Mínimo” brasileiro.

    Há um curto-circuito no coração do golpe! Em tempos tão difíceis, com tantas notícias ruins, talvez exista aqui algo a se comemorar.

    (*) Com ilustração de Cau Gomez

     

  • A REVOLUÇÃO RUSSA E A LUTA DAS MULHERES

    A REVOLUÇÃO RUSSA E A LUTA DAS MULHERES

    Por Luna Costa para os Jornalistas Livres

    Há 100 anos, acontecia a insurreição dos Bolcheviques, liderados por Vladimir Lênin, contra o governo provisório (25 outubro de 1917 pelo calendário juliano, e 7 de novembro pelo gregoriano).

    Era dos momentos mais marcantes da história: a primeira revolução socialista, feita pela e para a maioria. As mulheres tiveram importância fundamental e foram as responsáveis pelo início do processo revolucionário, mas, apesar dos grandes direitos conquistados pós-revolução, pouco se comenta sobre sua decisiva decisiva participação no período.

    O grande estopim ocorreu justamente no dia 23 de fevereiro no calendário juliano (08 de março no calendário gregoriano), o Dia Internacional da Mulher. Milhares de mulheres, que viviam uma situação precarizada e miserável, foram às ruas, em uma greve geral por seus direitos mais básicos.

    Na Rússia de 1916, as operárias se concentravam no setor têxtil e eram a categoria mais explorada da classe operária. A média de seus soldos chegava a menos da metade do salário dos operários do setor metalúrgico. A porcentagem de analfabetismo era de 17% entre os metalúrgicos e subia para 62% entre as têxteis.

    O enorme impulso que as trabalhadoras russas deram à revolução, combinado com a política revolucionária consequente dos bolcheviques, trouxe avanços que ainda hoje articulam mulheres internacionalmente.

    Programas governamentais soviéticos investiam na emancipação das mulheres: plena igualdade de direitos civis e políticos, o casamento civil e o divórcio, liberdade sexual, inserção do mercado de trabalho de forma igualitária, direito ao aborto, licença maternidade, uma política que incentivava a socialização do trabalho doméstico e a criação dos filhos, como a construção de creches públicas.

    As trabalhadoras que se levantaram por pão, terra e paz ainda são capazes de nos repassar importantes lições sobre o potencial avassalador que a organização de mulheres tem nas transformações sociais. Fundamental no momento que estamos vivendo de retirada dos nossos direitos em todos os campos.

    A revolução russa e a luta das mulheres vivem!

  • Sem surpresas, mas infame; esperado, mas escatológico; previsível, mas vergonhoso.

    Sem surpresas, mas infame; esperado, mas escatológico; previsível, mas vergonhoso.

    Saber antecipadamente dos acontecimentos não nos livra da estupefação. Não porque algo nos faria supor que uma decisão diferente da que foi divulgada ontem viria. Mas porque a esperança de que um instante de sanidade, senso moral e coragem cívica, de repente perturbassem um soldadinho de chumbo que se utiliza do direito como meio para alçar-se ao egrégio lugar do representante mor da extrema direita no país. Não aconteceu, mas torcer não é pecado.

    Muitos agora estão ambicionando o cargo do líder da extrema direita no país:

    Bolsonaro, Dória e Moro.

    Joaquim Barbosa ensaia alguns passos,

    Jobim foi descartado e Gilmar Mendes está atualmente sobre suspeita.

    A direita se mexe e se articula e já apresenta seus candidatos para a sucessão de Temer pós Maia.

    Por justaposição de significantes e condensação da retórica simplória dos grupos de direita no país chegamos à conversão de Lula em condenado à prisão, sem provas, proclamado pelo juiz que obedeceu às ordens que lhe foram conferidas desde o início, assim como Dilma foi deposta sem crime de responsabilidade num processo liderado pelo encarcerado Cunha que cumpriu o prometido.

    Eles são executores de um nível de esvaziamento e captura da linguagem no seio do discurso. Isso é o discurso repetitivo, vazio de pensamento, sequestrador de ideias e atos que vem se sobrepondo às narrativas do pensamento, da ética e da justiça.

    O fiel executor da tramoia, desde o início anunciada, Sergio Moro era um ilustre desconhecido antes de demonstrar sua capacidade e ousadia em cometer arbitrariedades que o alçasse aos lugares mais altos dos pódios globais e de outras mídias do mesmo naipe. Confirmados por atos pusilânimes de operadores do direito, das camadas médias conservadoras e das elites nacionais Moro tinha como uma de suas razões de existir entregar a cabeça de Lula em bandeja de prata.

    Não poderá entregar o serviço completo.

    Não está em sua alçada, mas fez sua parte, como Cunha fez a dele.

    Legal Moro, agora dá licença. Dirão seus chefes deixando em suas costas o custo de sua sentença que quis tirar do jogo político o líder mais bem avaliado da história. Não era necessário gastar tanto do erário público com audiências, salários e benefícios à servidores públicos, custos advocatícios com a defesa apenas para encenar o já previamente sentenciado.

    É bem simples e já sabido: um dia após a aprovação das reformas trabalhistas que atingem no peito de todo trabalhador e trabalhadora assalariados do país, o juiz previsível solta sua “surpreendente” e “inesperada” sentença: prisão de Lula e sua inelegibilidade pelo resto da vida.

    Sobre qual líder de qual partido incide a sentença?

    O do partido dos trabalhadores.

    Esses mesmos sobre os quais recai a reforma trabalhista e previdenciária, os que verão sucateados os sistemas de saúde e educação após a aprovação da PEC do fim do mundo, aos quais terão de recorrer após arrochos salariais extraídos das negociações entre patrões empregados.

    Criticável ou não, o Partido dos Trabalhadores foi o único partido a ser eleito com uma pauta de esquerda no país. Respeitando ou não as aspirações da esquerda, condenável ou não quanto ao seu modus operandi e sua maneira de fazer política quando no poder, é o partido que ainda faz peso importante nas lutas contra a avalanche reacionária que assola o país inteiro.

    Resistiu à avassaladora campanha que, diuturnamente, tentou arrastar todos do partido para a lama. Nesse sentido Lula e o PT deram um baile. Nem seus líderes esperavam que toda a campanha difamatória de todas as mídias oficiais que lotearam todas as concessões de rádio e TV, além das famílias proprietárias da imprensa escrita diária e semanal com campanhas difamatórias abertas para desmantelar o partido fosse malsucedida. E foi. O PT foi o único partido que cresceu desde 2014.

    Mas também não se esperava que a patrocinadora oficial do golpe – o conglomerado Globo – viesse a atacar o seu menino prodígio Michel Temer até o ponto de destruí-lo. Mas aconteceu. Também não se esperava que o capitão caverna da lava-jato Rodrigo Janot tirasse o time de campo na disputa pela PGR. Tirou.

    A direita derrapa, fracassa, bate cabeça.

    Sabe que vai ter massacrar muitos brasileiros para manter essa onda flagrante de bestialidade e violência. A prisão de Lula, para eles, seria a última bandeira a fincar no panteão dos vende pátria.

    Hoje a luta é contra os trabalhadores e retornar ao tempo da escravidão não é mera retórica. Logo mais, a Câmara estará decidindo quantas chibatadas o trabalhador deve levar no lombo no caso de atrasos, faltas e insubordinação hierárquica e se não avançarmos quanto à clareza do que isso significa, a reação pode não ser contundente.

    Todos vociferarão retoricamente o absurdo, mas o Congresso fechará as portas, apagará as luzes e votará a medida que será sancionada pelo presidente em exercício.

    Prender sem provas; depor presidentes baseado em alegação de crime que, dois dias depois do impeachment da presidenta se transforma em lei que autoriza o mesmo crime; expor a mulher gestante a condições insalubres; retirar a autonomia do trabalhador sobre suas férias, descanso remunerado e almoço, hoje, se tornaram leis, mas elas são fracas, a política pode depô-las fazendo o caminho contrário.

    Logo mais, se sancionará a lei que permite à criança trabalhar a partir dos 7 anos anos, para que as famílias possam ter uma renda extra, diante da perda dos direitos arrancados. Uma calamidade justificando a próxima e sendo engolida como justificativa para que se amplie o exército de escravos sem direitos e se barateie a mão de obra pouco qualificada disponível. Grande chance da medida passar na CCJ e ter maioria no senado e na câmara. Retornamos ao século XIX.

    Vejamos o que escreve Marx no século XIX sobre os pequenos trabalhadores na europa:

    ..] Muitos, milhares desses pequenos seres infelizes, de sete a treze ou quatorze anos foram despachados para o norte. O costume era o mestre (o ladrão de crianças) vesti-los, alimentá-los e alojá-los na casa de aprendizes junto a fábrica. Foram designados supervisores para lhes vigiar o trabalho. Era interesse destes feitores de escravos fazerem as crianças trabalhar o máximo possível, pois sua remuneração era proporcional à quantidade de trabalho que deles podiam extrair. (…) Os lucros dos fabricantes eram enormes, mais isso apenas aguçava-lhes a voracidade lupina. Começaram então a prática do trabalho noturno, revezando, sem solução de continuidade, a turma do dia pelo da noite o grupo diurno ia se estender nas camas ainda quentes que o grupo noturno ainda acabara de deixar, e vice e versa. Todo mundo diz em Lancashire, que as camas nunca esfriam. (1988, p. 875-876)

    Não estamos distantes disso num país que virou piada de mau gosto. Nada é impossível no Brasil de hoje. Que gritem OIT, ONU e Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os membros do parlamento e do judiciário dão e darão de ombros.

    Ainda perdura um problema, mesmo nas manifestações expressivas, aquelas que mobilizam centenas de milhares de pessoas; elas ainda contam com uma parcela pequena dos milhões trabalhadores brasileiros que estão sendo massacrados e atingidos pelos ataques do capital financeiro sem controle.

    Isso significa que há ainda milhões a mobilizar.

    Entre eles aqueles que veem a torneira pingar,

    o assoalho encharcado mas não creem no afogamento.

    Uma ampla campanha e estratégia de conscientização deve ser feita em cada recôndito do país e a preparação para paralização total dos trabalhadores por tempo indeterminado, deve ser construída e considerada pelos movimentos organizados que, hoje, lideram a resistência no país.

    O projeto de espoliação do país tem, no mínimo, vinte anos então qualquer coisa antes disso será bem vinda e politicamente importante. É a alternativa para se deter essa avalanche. Já não bastam mais as manifestações é preciso parar a produção de lucro e dividendos, atingir os que monitoram e comandam o conjunto de atrocidades que vem sendo aprovadas no legislativo.

    Tudo está sendo decidido à sete chaves sem a permissão sequer de que os trabalhadores ocupem as galerias no congresso nacional destinadas para isso. Tudo decidido em jantares sofisticados, reuniões engravatadas, mansões muradas.

    A maioria dos parlamentares persistem em cumprir o combinado à mando das elites financeiras e mancomunados com elas, dão as costas para as centenas de milhares de manifestantes nas ruas todos os dias que, para eles, são vagabundos que acordam tarde. É preciso levar essa retórica da direita muito a sério porque eles a estão levando. Dizem isso enquanto atiram contra manifestantes, humilham trabalhadores, assassinam pobres, elogiam torturadores e se preparam para assumir o poder por longos períodos.

    Ninguém precisa de militares nas ruas,

    já há mais de 400.000 milicos nas polícias estaduais,

    que jamais tocam nos excessos cometidos pelos muito ricos,

    mas pisam sobre o corpo de qualquer pobre que se lhes atravesse o caminho.

    O poder judiciário, as altas cortes pusilânimes não conseguirão estancar nem a mais absurda das decisões do legislativo que legisla o país destruindo, dia após dia, cada tijolo da democracia brasileira.

    Cunha presidindo o impeachment e um juiz de primeira instância mandando e desmandando no modo de julgar e condenar no Brasil. O que é difícil de imaginar é fácil de acontecer no Brasil de hoje.

    Precisamos analisar com calma, clareza e profundidade o que está se passando e pensarmos juntos nas novas estratégias, abrir mão dos projetos de poder desse ou daquele espectro, para manter o Brasil acima da devastação. Não vamos nós aprofundar as baboseiras dicotômicas também muito comuns entre as esquerdas. Se há uma utopia sobre a união das esquerdas já é passada a hora de realizá-la. Lula não precisa ser o chefe, como disse Tasso Genro, mas pode ser um líder favorecendo a emergência de outros.

    A comprovação de crimes cometidos por Lula não existiu.

    Mataram sua esposa atrás dessas provas e elas não apareceram. O objetivo agora é matar Lula política e literalmente. Temos testemunhado o quanto eles jogam pesado e atiram pra matar.

    Nas barbas da justiça, o presidente em exercício atua para paralisar a lava-jato, agora que ela o ameaça enquanto se prepara um Maia para presidente. É muito possível que consiga. O grande trunfo da lava-jato já foi conquistado.

    A um palmo dos narizes dos excelentíssimos ministros do supremo um juiz de primeira instância faz o que quer em suas sentenças e decisões estapafúrdias.

    Temer, Cunha e Moro fizeram seu trabalho exemplarmente, para que servirão agora?

    É a hora da troca.

    Maia, Bolsonaro, Dória, Dallagnol aguardam na fila para exercer seu protagonismo.

    Vão lançar a chapa Cunha para presidente e Feliciano vice? Ou Bolsonaro presidente e Moro vice? Tudo é possível no país dos banguelas se não se estanca essa sangria.

    O governo Temer acena para os sindicatos que serão ridicularizados e destruídos se aceitarem sentar para negociar sua lenta extinção. Trabalhadores sem direitos e sindicatos inúteis, eis aí o país do futuro para trabalhadores que ainda lutam para consolidar a CLT.

    A bela resistência que se construiu nesses últimos anos de adversidade, que pintaram e cantaram nas ruas disseminando esperança, alegria e compartilhamento de ideais tem tudo para reinventar a própria resistência, novas estratégias e outras narrativas. Daqui para frente talvez seja o caso de infestar, além de manifestar. Infestação do dever e da urgência em resistir em cada recanto do país que ainda se encontra sonolento e, ativamente, em algum momento no futuro próximo, parar o país.

    Mais do que nunca lutar por todos e pelo país é, também, salvar a própria pele.

  • Jornada de 12 horas? Obrigado, Temer, por nos lembrar de Marx

    Jornada de 12 horas? Obrigado, Temer, por nos lembrar de Marx

    A discussão da moda, nas rodas golpistas, é passar leis que “flexibilizem” a relação trabalho e capital. Precisamos “modernizar” a legislação trabalhista, repetem com ares de quem se refere a matéria óbvia, evidente, pacificada, de conhecimento geral. Invejo o otimismo de quem julga que flexibilizar e modernizar significa outra coisa que não cortar direitos, imprimir mais trabalho com menor retorno, com menos garantias.

    O governo Temer, e todos que o apoiam, está dizendo, com todas as letras, aos trabalhadores: “só vocês criam valor, e para ganharmos mais, precisamos que vocês criem mais valor, recebendo menos e trabalhando mais, para aumentarmos nossos lucros”.

    Eles confirmam Marx: só o trabalho cria valor.

    Ao tempo em que, em coro querem aprovar regulações para, nas palavras de Marx, aumentar o trabalho excedente e, assim, aumentar a mais-valia. Trabalho excedente entendido como o valor que o trabalhador gera e não é pago em seu salário e mais-valia entendida como o lucro apropriado pelo empresário.

    A última pérola vem acrescentar à discussão uma mudança na lei trabalhista para permitir jornadas de trabalho de 12 horas. Não consegui fugir da ideia de que retornamos, não ao neoliberalismo dos Fernandos, Collor e Cardoso, mas ao século XIX. Brincávamos que o programa golpista seria a Ponte para o Passado. Não poderíamos supor que o retrocesso chegaria à revolução industrial inglesa, que Marx bem analisou e afirmou que a jornada normal de trabalho foi resultado de séculos de lutas entre capitalistas e trabalhadores.

    Marx está morto. Sua descrição do capitalismo e dos capitalistas, entretanto, está cada vez mais viva. Quando, no século XIX, Marx cita a “sede vampiresca do capital pelo sangue vivificante do trabalho”, parecia intuir que, dali a duas viradas de século, haveria um bando hematófago a negar o processo civilizatório que, se passou muito ao largo de promover a igualdade, ao menos, limitou certos excessos.

    O consumo de uma vida em 7 anos de trabalho

    A súcia que usurpou o poder no Brasil em 2016 certamente veria com normalidade viver nos tempos sombrios, nos EUA, que Marx descreve: “O trabalho dos negros nos estados meridionais da América do Norte preservava certo caráter patriarcal enquanto a produção se destinava principalmente à satisfação direta das necessidades. Na medida, porém, em que a exportação de algodão se tornou interesse vital daqueles estados, o trabalho em excesso dos pretos e o consumo de sua vida em 7 anos de trabalho tornaram-se partes integrantes de um sistema friamente calculado. Não se tratava mais de obter certa quantidade de produtos úteis. O objetivo passou a ser a produção da própria mais-valia.”

    Escravos com algodão recém colhido - foto de history.com
    Escravos com algodão recém colhido – foto de history.com

    Marx dedicou quase 80 páginas do Capítulo VII, de O Capital, a uma exposição histórica detalhada da luta real entre capitalistas e operários para determinar a duração da jornada de trabalho. “Argumentava ele que, enquanto os trabalhadores procriassem, fornecendo, assim, seus próprios substitutos, os capitalistas lutariam para estender a duração da jornada de trabalho, até que ela atingisse o limite da resistência humana”, nos ensina E. K. Hunt

    A jornada normal de trabalho

    foi o resultado de séculos de lutas

    entre capitalistas e trabalhadores.

    Marx descreveu a voracidade do capital no século XIX, que muito se assemelha às questões do Brasil do século XXI, da seguinte forma:

    O que é uma jornada de trabalho? Durante quanto tempo é permitido ao capital consumir a força de trabalho cujo valor diário paga? Por quanto tempo se pode prolongar a jornada de trabalho além do tempo necessário para reproduzir a própria força de trabalho?

    A estas perguntas, conforme já vimos responde o capital: O dia de trabalho compreende todas as 24 horas, descontadas as poucas horas de pausa sem as quais a força de trabalho fica absolutamente impossibilitada de realizar novamente sua tarefa. Fica desde logo claro que o trabalhador, durante toda sua existência, nada mais é que força de trabalho, que todo seu tempo disponível é, por natureza e por lei, tempo de trabalho, a ser empregado no próprio aumento do capital.

    Não tem qualquer sentido o tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, , para preencher funções sociais, para o convívio social, para o livre exercício das forças físicas e espirituais, para o descanso dominical, mesmo no país dos santificadores do domingo. Mas, em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o capital os limites extremos, físicos e morais, da jornada de trabalho.

    Usurpa o tempo que deve pertencer ao crescimento, ao desenvolvimento e à saúde do corpo. Rouba o tempo necessário para se respirar ar puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado às refeições para incorporá-lo, sempre que possível, ao prórpio processo de produção, fazendo o trabalhador ingerir alimentos como a caldeira consome carvão, e a maquinária, graxa e óleo, enfim, como se fosse mero meio de produção.

    O sono normal necessário para restaurar, renovar e refazer as forças físicas reduz o capitalista a tantas horas de torpor estritamente necessárias para reanimar um organismo absolutamente esgotado.

    Não é a conservação normal da força de trabalho que determina o limite da força de trabalho; ao contrário, é o maior dispêndio possível diário da força de trabalho, por mais prejudicial, violento e doloroso que seja, que determina o tempo de descanso do trabalhador.

    O capital não se preocupa com a duração da vida da força de trabalho. Interessa-lhe exclusivamente o máximo de força de trabalho que pode ser posta em atividade. Atinge esse objetivo encurtanto a duração da força de trabalho, como um agricultor voraz que consegue uma grande produção exaurindo a terra de sua fertilidade.

    Marx conhecia os golpistas brasileiros?

    Karl Marx - foto de salon.com
    Karl Marx – foto de salon.com

    Notas

    1 “O operário fez tudo; e o operário pode destruir tudo, porque pode fazer tudo de novo.” Essa frase é a epígrafe do livro “Compêndio de O Capital”, de Carlo Cafiero, escrito em 1879.

    2 As citações de Marx foram extraídas do capítulo “A jornada de trabalho”, do livro “O Capital” de Karl Marx, Livro 1 volume 1.

    3. E. K. Hunt é o autor de “História do Pensamento Econômico”.