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  • Teria Haddad aprendido mesmo?

    Teria Haddad aprendido mesmo?

    Caro senhor Fernando Haddad,

    Seu artigo para a revista Piauí ficou muito bom. Diríamos até que sua erudição nos iluminou. Esperamos, contudo, que ele, o artigo, signifique o início de uma discussão e não um fechamento de questão, porque nos suscitou muitas dúvidas.

    O senhor começou seu texto falando mal de Dilma e se alongou, na mesma toada, por algumas páginas. Há muitas críticas à ex-presidenta. O senhor apontou que ela errou ao não aceitar a municipalização da CIDE. Afirmou que ela errou ao cogitar sobre o represamento da tarifa de ônibus e, mais ainda, que “não se chega a um erro deste tamanho sem ter feito um percurso todo ele equivocado”. Em outros termos, o senhor disse que ela cometeu uma sucessão de erros, “um percurso todo ele equivocado”.

    Sua avaliação é de que eram necessários ajustes no rumo da política econômica, quando ela se reelegeu. O senhor escreveu assim: “era evidente que ajustes tinham que ser feitos porque, entre outras coisas, o governo tinha comprado uma agenda equivocada, elaborada em parte pela Fiesp: desonerações, redução da tarifa de energia elétrica, swap cambial, administração de preços públicos etc.”

    “A relação de Dilma com São Paulo nunca se resolveu completamente.” Com essa frase o senhor a acusou de não tratar São Paulo de modo adequado. Acredita, no entanto, que ela “comprou” uma agenda elaborada pela Fiesp? O objetivo é jogar São Paulo contra Dilma? O senhor foi o único que, no nível federal, cuidou adequadamente de São Paulo, desde 1932, quando ministro da Educação?

    Até mesmo na frase “eu diria até que sempre me tratou com consideração”, está subentendida uma crítica a ela. Por que o senhor resolveu criticá-la publicamente neste momento? Foi para justificar sua derrota no primeiro turno ou o senhor está mirando uma disputa futura? Ou quem sabe uma outra razão que nossa limitação não alcança?

    O senhor acredita que essas críticas vindas do senhor, nesse momento, ajudam no combate ao golpe?

    O senhor encomendou um estudo elaborado pelo economista Samuel Pessoa e o apresentou à Dilma. O estudo era sobre a municipalização da CIDE, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, que o senhor preferia ao aumento da tarifa dos ônibus. Samuel Pessoa, assim como a grande maioria dos economistas da GV, é bastante conhecido por seu neoliberalismo radical.

    Em 2015, ele afirmou à revista Época que “Com o PT, não dá para conversar”. “O economista diz que o problema estrutural das contas públicas só poderá ser resolvido em outro governo, porque não dá para fazer pacto com os petistas”, escreveu a revista. Para ele a Constituição de 1988 não cabe no orçamento: “O problema de a gente continuar com um contrato social cuja dinâmica não cabe dentro do PIB é que a gente pode escorregar para uma hiperinflação e chegar no cenário da Venezuela.”

    É a opinião de um notório neoliberal que o senhor queria que Dilma aceitasse? O senhor comunga as mesmas ideias de economia política que Samuel Pessoa? De que maneira fiar esse economista contribui para a resistência contra as reformas? A propósito, o senhor é favorável às reformas? Acha que, como assegura Pessoa, a Constituição de 1988 não cabe no orçamento?

    O senhor conta o que sentiu na saída da primeira fatídica reunião com Dilma da seguinte forma: “O que eu sentia ali era algo que já havia experimentado algumas outras vezes na vida: mais do que um mal-estar ou uma simples angústia, era uma espécie de intuição, a sensação nítida de que algo muito sério estava se passando, de que havia um risco real e iminente.”

    O senhor se resignou à negativa de Dilma ou continuou a lutar pelo que acreditava? O senhor tem essas intuições ou dons premonitórios com frequência? Anteviu o golpe?

    O senhor acredita que “numa democracia, até uma imprensa ruim pode ajudar. […] Em dezesseis anos de vida pública, sempre mantive com as principais famílias proprietárias dos meios de comunicação uma relação cordial e respeitosa, em que pesem nossas diferentes visões de mundo. Não dispensava interlocução com os Marinho, os Frias e os Civita.”

    Aqui o senhor nos embatucou. Poderia explicar em que medida a Veja ou o Jornal Nacional têm ajudado nossa democracia? Mais importante do que isso, seria saber com quem o senhor julga estar dialogando quando faz essas afirmações, poderia nos revelar? A interlocução com os Marinhos, os Frias e os Civitas o ajudou em quê? O que o fez divulgar esse texto em uma revista editada por uma sociedade entre um membro da família Moreira Salles (Unibanco) e três membros da família Civita?

    O senhor se disse pressionado, lá em 2013, pela decisão do prefeito do Rio de adiar o reajuste e resolveu “ir ao Palácio dos Bandeirantes e propor ao governador Alckmin que fizéssemos juntos o anúncio da revogação do aumento”. Olhado de hoje, o senhor julga acertado ter unido sua imagem à de Alckmin naquela ocasião?

    O senhor contou sobre o diálogo com seu filho, no momento de tristeza pelo caminho que tomou a negociação da tarifa. Que ele teria tentado animá-lo dizendo: “Mas, pai, ainda faltam três anos e meio de governo.” Ao que o senhor respondeu: “Eu sei, filho, mas aconteceu uma coisa muito séria e não há como não viver o luto.” Como esse assunto da primeira reunião com Dilma é bastante recorrente em seu texto, gostaríamos de saber se esse luto passou? E quando?

    O senhor termina com a afirmação de que a escolha, do modo como se darão as eleições do próximo ano, está sendo feita agora. Poderia, por fim, nos esclarecer qual tem sido sua atuação nessa escolha, nesse momento?

    “Li praticamente todos os clássicos sobre a formação do Brasil. Conhecia teoricamente o nosso país. Mas a experiência prática é insubstituível. Vivi na pele o que li nos livros.” Perdoe-nos a franqueza, não nos sentimos seguros de que aprendeu mesmo. Durante seu mandato, criticamos sua distância da população e sua tibieza na luta contra o golpe. Na primeira oportunidade, o senhor escreve uma matéria de 20 páginas, opta por um canal elitista, participante da mídia que critica, e joga a culpa de tudo que deu errado nos outros. Precisamos de mais evidências.

    Um fraternal abraço.

  • Estado de exceção e direito penal do inimigo são duras realidades do Brasil

    Estado de exceção e direito penal do inimigo são duras realidades do Brasil

    Por Antonio Carlos Carvalho

    (Texto publicado originalmente pela Fundação Perseu Abramo neste link)

    Vivemos dias sombrios. Estado de exceção e direito penal do inimigo são duras realidades do Brasil. Se essa realidade nunca abandonou as periferias desse país, é verdade que agora ela se escancara aos olhos de quem quiser ver.

    A operação de um sistema jurídico que não garante defesa, que julga antes de conhecer as provas e que prende para obter detrações é sacramentada pelo constante apoio da campanha dos meios de comunicação, que, semana após semana, anunciam as balas de prata que acabarão com um mal comum único fabricado para distrair as desigualdades do Brasil.

    Essa poderia ser a descrição de outros períodos da nossa história. Ditaduras precisam existir no coração das pessoas. Carregar pra si o ódio, a raiva e a necessidade de perseguir um inimigo une pessoas, mobiliza emoções e cria um amálgama social destruidor.

    Esse foi o cerne das manifestações verde-amarelas e do golpe parlamentar viabilizado pelas forças da mídia brasileira, que se uniram à perseguição penal violenta da Operação Lava Jato. O inimigo comum estava declarado por essas forças: o PT é o fundador da corrupção e gerador da crise brasileiras, e precisa ser desligado do poder, extinto e combatido.

    Definidas a exceção e o inimigo, haveria ambiente para o estabelecimento de uma nova ordem política e econômica para o Brasil. Não contaram com um elemento: o povo. O povo é a regra, e não a exceção numa nação. E não existe liderança política da história desse país que conheça mais essa regra do que Lula. Ele já foi tratado como inimigo pelo Delegado Fleury, por Roberto Marinho, pelos Civita, pelos Mesquita, pelos Frias, pelos generais da ditadura, pelos proprietários das empresas metalúrgicas, pela aristocracia brasileira. Todos a bem de um ideal nacional. Sérgio Moro é o nome da vez.

    E querem que ele seja. Basta ver as capas das revistas Veja e Istoé desse final de semana. Lula virou inimigo nacional por ter um acervo presidencial, por frequentar Atibaia e por ter pensado em frequentar o Guarujá. E Moro, o combatente número um desse inimigo. Como as cascas de cebola de Hannah Arendt, o juiz de primeira instância do Paraná ocupa um papel na exceção que foi criada: o de tentar fazer valer alguma regra que não existe.

    Mas essa é mais uma travessia, para o povo brasileiro e para Lula. E, como diz Guimarães Rosa, citado no início do texto, é ali que está o real, a realidade, o fato. E a humanidade, os sentimentos, a felicidade, a democracia e a justiça social só podem aparecer nos fatos. Como nos natais que o presidente passou com catadores e catadoras, como na entrega da transposição do Rio São Francisco ao povo do Nordeste, no pau de arara que o trouxe para São Paulo, nas greves, nas ruas, nas duas vezes em que foi eleito para a presidência. E por isso ele é o inimigo. Travessia. Lula sempre teve a viola pra cantar.