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  • Raquel Kambinda Trindade – 1935-2018

    Raquel Kambinda Trindade – 1935-2018

    Escrito do mestre Alceu Estevam, integrante do Grupo Urucungos, Puitas e Quinjengues desde sua fundação

    Renasce hoje, dia 15 de abril de 2018, uma nova Raquel Trindade: a Raquel do protagonismo e do legado que ela deixou em vida aqui na terra, para que todos nós possamos fazer desse mundo um lugar melhor para viver, celebrar e conquistar os nossos direitos.

    Em 10 de agosto, de 1936, lá em Recife, Solano Trindade, poeta, escritor, folclorista e artista plástico e a sua esposa, a coreografa Maria Margarida Trindade, tinham razões especiais para estarem felizes. Afinal, nasce Raquel Trindade, já com feição de artista, porque já se revelava arteira e inquieta. Mas só foi no Rio de Janeiro, quando os seus país foram morar em Duque de Caxias, que ela veio a ser registrada, então, Raquel é considerada pernambucana de nascimento e carioca de registro, que teve como testemunha o teatrólogo e ativista negro Abdias do Nascimento. Pai comunista e mãe presbiteriana, Raquel sempre ouvia da sua mãe que: “se Salomão tocava harpa, então não tinha problema algum dela tocar tambor…”, enquanto que o seu pai, esquerdista que era, lhe transmitiu o conceito da liberdade e da democracia.

    E foi exatamente nessa época, no Rio de Janeiro que Raquel passa a conviver e participar dês’da sua infância dos variados grupos artísticos culturais da época como Teatro Folclórico de Aroldo Costa; Orquestra Afro Brasileira, de Abigail Moura; Balé Folclórico Negro, da Mercedes Batista e do Teatro Experimental da Negro, do Abdias do Nascimento. Paralelo a isso, Solano Trindade também a leva para beber na fonte da cultura europeia, assistindo vários concertos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, saraus literários, peças teatrais e livros de autores da literatura brasileira e estrangeira. Foi nesta efeverscência que Raquel viu o seu pai criar o Teatro Popular Brasileiro, junto com o folclorista Edson Carneiros, e faz a sua estréia nos palcos estrangeiros quando excursiona com o seu pai e o TPB para a antiga Tchecoslováquia, hoje Tchéquia, e Polônia.

    Depois de uns tempos no Rio, fazendo várias apresentações, a família Trindade muda para São Paulo e quando a artista plástico Assis assiste uma dessas presentações do TPB, ele convida todos para irem ao Embu das artes. Após a morte de Solano, a Raquel Trindade cria o Teatro Popular Solano Trindade (TPST) e a Nação Kambinda de Maracatu. Na cidade de Campinas. Quando, a convite do Antônio Nobrega, do Brincante, leciona na UNICAMP Danças Afro e Religiosas Brasileiras, é que o seu legado começa a ser transmitido e difundido dentro das universidades e na comunidade negra da cidade.

    Na graduação ela dizia: “eu estou lecionando cultura afro brasileira e só há um negro no meu curso”, então, em conjunto com a Reitoria, ela cria um grupo de extensão Universitária e convida os funcionários da Unicamp e a comunidade negra local, para aprender a dançar maracatus, boi meu boi, jongos, sambas de roda e samba lenço, côco, guerreiros, lundu colonial e dança dos orixás. Após o término desse curso, a Raquel então propõe a criação do Grupo Urucungos, Puitas e Quinjengues, isto há trinta anos atrás.

    Escreveu os livros “Embu: de Aldeia de M’Boy a Terra das Artes”; “Os Orixás e a Natureza”; “Mulheres negras contam sua história” e estava preparando um livro sobre o grupo Urucungos, Puítas e Quijengues e a sua biografia. Tem vários quadros artísticos espalhados pelo Brasil inteiro e coleciona algumas homenagens como o prêmio “Mulheres Negras Contam sua História” da Secretaria de Políticas Para as Mulheres (SPM), da Presidência da República e a Ordem do Mérito Cultural no Palácio do Planalto, em novembro de 2012.

    Uma das grandes lideranças de mulheres negra do Brasil, Raquel Trindade, que tem, porque ainda está fazendo a passagem, a religião de matriz africana do candomblé como orientação espiritual, deixa para o Brasil umas das maiores referências da cultura popular de afro descendência, que é o Teatro Popular Solano Trindade, de responsorialidade do seus filhos Vitor Trindade e Dada Trindade e da sua nora, Elis Sibere Monte. Juntos com os seus netos Manoel Trindade, Zinho Trindade, Maria Trindade e Marcelo Tomé, em conjunto do o Grupo Urucungos Puitas e Quinjengues, continuarão com o seu legado para sempre.

    Raquel Trindade com o Grupo Urucungos, Puitas e Quinjengues. Foto: Fabiana Ribeiro
  • Morre dom Paulo Evaristo Arns. Morre um santo

    Morre dom Paulo Evaristo Arns. Morre um santo

    Morreu hoje (14/12), em São Paulo, o arcebispo emérito da capital paulista, cardeal dom Paulo Evaristo Arns, 95.
    Lutador pela liberdade, contra a Ditadura Militar, guardião dos Direitos Humanos, incentivador da Teologia da Libertação, foi um exemplo de coragem e amor ao próximo.
    A seguir, trechos da biografia escrita pelo jornalista :

    REGIME MILITAR

    Nomeado bispo em 1966, por decisão pessoal do papa Paulo 6º, a quem conhecera em Roma, voltou à terra natal para ser ordenado ao lado dos colonos de Forquilhinha [região de Criciúma, em Santa Catarina.].
    A seguir assumiu a função de bispo auxiliar de São Paulo, por uma improvável escolha do cardeal Agnelo Rossi, alinhado à ala conservadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
    Como bispo auxiliar da região norte da maior cidade brasileira, começou a visitar os presos comuns no Carandiru e, por designação do cardeal, foi ao presídio Tiradentes saber das condições de um grupo de frades dominicanos encarcerados por motivos políticos, entre eles frei Betto e frei Tito.
    Constatou que foram torturados e encontrou Tito esvaindo-se em sangue. Voltou ao cardeal e relatou o que viu. Para sua surpresa, como relata em “Da Esperança à Utopia”, ouviu de seu superior: “Muito obrigado dom Paulo, (…) mas outros me garantem que não há tortura nas nossas prisões”. Ele nunca criticou publicamente dom Agnelo pela declaração.
    Mas a partir desse batismo de sangue, assumiu em São Paulo a vanguarda da luta pelos direitos humanos e pela defesa dos presos políticos.
    Em outubro de 1970, foi designado titular do arcebispado em substituição ao cardeal Rossi, que foi servir em Roma. Outra vez, uma escolha pessoal de Paulo 6º, o papa que dom Paulo mais admirou e de quem se aproximara em passagens de estudos pelo Vaticano.
    À frente da Igreja de São Paulo, aplicou ensinamentos do Concílio Vaticano 2º e transformou em ações concretas a opção preferencial pelos pobres afirmada na Conferência Episcopal de Medellín, Colômbia, em 1968.
    Começou a gestão vendendo o imponente palácio episcopal. Com o dinheiro, comprou terrenos em bairros populares para construir centros comunitários e instalações religiosas modestas, dando início à “Operação Periferia”.
    Jogou os costumes principescos de seus antecessores pela janela. Surpreendeu os religiosos que o serviram na Cúria paulista ao sentar-se com eles às refeições.
    Inspirou-se no que ouviu do pai ao contar-lhe que queria ser padre: [você] “sempre será filho de colono e de seu povo”.
    Agindo como tal, investiu em trabalho comunitário, foi às periferias, voltou-se para os migrantes e espalhou Comunidades Eclesiais de Base pelos quatro cantos da cidade.
    Ao mesmo tempo, revitalizou o estudo doutrinário entre os religiosos e fez da evangelização um objetivo constante em todas as ações da Arquidiocese, até nos presídios.
    São dessa época seus grandes confrontos com os generais da ditadura. Enfrentou os sucessivos comandantes do 2º Exército (hoje Exército do Sudeste), sediado em São Paulo, e até presidentes da República.
    Num encontro com o presidente Emílio Garrastazu Médici, a conversa encerrou-se aos berros. Foi Médici quem decretou, depois, em 1973, a cassação da rádio Nove de Julho, tradicional emissora da igreja em São Paulo.
    Do mesmo modo, desafiou as autoridades civis de São Paulo, de governadores afinados com a ditadura a secretários de Segurança e delegados de polícia, tentando preservar a vida e assegurar os direitos fundamentais dos presos políticos.
    Com base no exemplo de Paulo 6º no Vaticano, reproduziu na Arquidiocese de São Paulo a Comissão Justiça e Paz, em 1972, indo buscar o jurista Dalmo de Abreu Dallari para ser seu primeiro presidente. Paulo 6º declaradamente o admirava e, no consistório de 1973, elevou-o a cardeal.
    Sem perder o foco na ação propriamente religiosa de que pouco se fala, usou a nova insígnia papal para se contrapor aos desmandos da repressão política. Apoiou decididamente o procurador de Justiça Hélio Bicudo em sua luta contra o Esquadrão da Morte -quadrilha policial de assassinos de que fazia parte um notório torturador e ícone da ditadura, o delegado Sergio Paranhos Fleury.
    Foi a Comissão Justiça e Paz que publicou nos anos 70 o livro de Bicudo sobre o Esquadrão, recusado por editoras comerciais.
    No período sofreu ameaças e calúnias —como denúncias anônimas tachando-o de homossexual. Sobre isso jamais se pronunciou, demonstrando absoluto desprezo por seus detratores.
    Mas admitiu ter sido informado de que o acidente de automóvel que sofreu no Rio de Janeiro fora na verdade um atentado à sua vida.
    Sobreviveu e ainda bateu muito na ditadura -por exemplo, patrocinando a publicação “Brasil: Nunca Mais”, sobre os mortos e desaparecidos na ditadura militar. Apanhou também.
    Um dos animadores de suas organizações de base, o operário Santo Dias, presidente da Pastoral Operária, foi assassinado pela polícia com um tiro nas costas durante uma manifestação popular.
    O nome do operário -“cuja sorte foi a mesma de Jesus Cristo pregado na cruz”, nas palavras de dom Paulo- tornou-se mais um símbolo da luta do cardeal com a criação, anos mais tarde, do Centro Santo Dias de Defesa dos Direitos Humanos, hoje internacionalmente conhecido.
    Na prisão, dom Paulo foi ainda visitar —e procurar proteger sob o manto cardinalício- sindicalistas e estudantes.
    No episódio Herzog, sua figura se agigantou. O regime militar fez de tudo para desqualificá-lo e ensaiou até manobras diplomáticas junto ao Vaticano por seu afastamento da Arquidiocese de São Paulo.
Foram esforços vãos.

    JOÃO PAULO 2º

    Surpreendentemente, sofreu seu maior revés no período da restauração democrática do país. Numa iniciativa cujas motivações mais profundas são até hoje mal explicadas, o papa João Paulo 2º fracionou a arquidiocese em seções menores e, por consequência, com menos poderes.
    Antes que o fato fosse consumado, o cardeal se queixou pessoalmente ao papa, que negou ter dado a ordem. Porém, como dom Paulo deixa claro em suas memórias, nada dessa magnitude acontece sem autorização expressa do pontífice.
    Também na campanha do Vaticano contra a Teologia da Libertação, arquitetada pelo então cardeal Joseph Ratzinger (depois papa Bento 16), João Paulo 2º agiu do mesmo modo.
    Disse a dom Paulo que não era contra a doutrina, mas deixou a Cúria Romana mandar um visitador para colher elementos processuais com vistas a bombardear a prática da Teologia da Libertação em São Paulo.
    Depois dessas contrariedades, o cardeal se afastou, em 1998, por limite de idade, do comando da Arquidiocese de São Paulo, levando o título de arcebispo emérito.
    Passou os últimos anos de sua vida entre orações, leituras e assistência aos idosos, recebendo ainda inúmeras homenagens, entre as quais a da presidente Dilma Roussef que, em 18 de maio de 2012, foi visitá-lo na Congregação Franciscana Fraternidade Nossa Senhora dos Anjos, em Taboão da Serra (SP).
    Na ocasião, Dilma contou a ele as providências do governo para criar a Comissão da Verdade, instalada poucos dias antes. Já bastante combalido, não fez comentários públicos a respeito.
    A rigor, seu derradeiro gesto de caráter político -embora de fundo religioso- ocorreu pouco antes de deixar o comando da Arquidiocese, em 1998, quando reagiu de forma dura às atitudes da Cúria Romana, levando João Paulo 2º a admitir, em uma difícil conversa pessoal com o cardeal brasileiro, que era, sim, o responsável final por aquelas decisões polêmicas.
    “A Cúria sou eu”, disse o papa, provocado por dom Paulo. Mais uma vez, então diante da autoridade máxima da Igreja Católica Romana, o frade mostrou que não era frouxo.