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  • A FORÇA E A FRAQUEZA DO BOLSONARISMO

    A FORÇA E A FRAQUEZA DO BOLSONARISMO

    “O tema da educação não é da esquerda”. Foi dessa maneira que o líder do Governo na Câmara dos Deputados, deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), se dirigiu a seus seguidores nas redes sociais, comentando o resultado da votação sobre a renovação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

    Daniel Pinha é professor do Departamento de História da UERJ

    Embora o governo tenha agido nos bastidores para postergar a votação e sequer tenha apresentado proposta alternativa sobre a matéria, no discurso de Vitor Hugo a votação foi vitoriosa para Bolsonaro. A fala do deputado, postada em vídeo em suas redes sociais, evidencia a fraqueza e a força do bolsonarismo: a fraqueza em operar no interior das regras do jogo democrático para propor e aprovar uma agenda, um plano de ação; a força, em ideologizar absolutamente todas as esferas da vida política, mantendo acesa e permanente a chama eleitoral de embate direita versus esquerda, animando, desta forma, sua base nas ruas e redes sociais.

    Criado em 2007 pelo governo Lula, o Fundeb recolhe 20% dos impostos e os divide para estados da federação investirem na educação básica, em proporção ao número de alunos matriculados em cada escola. A divisão dos recursos obedece critérios quantitativos, repassando verbas para governadores de estados dos mais diversos matizes ideológicos.

    Em um primeiro momento, o governo Bolsonaro encaminhou uma proposta de suspensão do Fundeb para 2021 e alterações no uso dos recursos, como a proibição do uso para pagamento de aposentados e pensionistas. O objetivo era retirar recursos do fundo para fortalecer o Renda Brasil, novo projeto que o governo está preparando para substituir o Bolsa Família.

    Deputados do centrão fisiológico, apoiadores de Bolsonaro, tentaram obstruir e adiar a votação, para tentar emplacar suas propostas. Sem sucesso. A votação decorreu e a derrota da proposta do governo foi acachapante: 499 a 7. Se a medida “direita versus esquerda” valesse para este caso, atendendo ao modo como o Major Vitor Hugo narrou a situação, a esquerda poderia começar a preparar seu processo revolucionário a partir do Parlamento, com a incrível base de quase 500 deputados…

    A derrota do governo expressa não só a inabilidade no Legislativo, mas também do Executivo em apresentar reformas imprimindo ritmo a mudanças. O governo não apresentou proposta alternativa ao Fundeb. Não possuía. Sofreu uma derrota retumbante e mudou, pouco antes, a narrativa: recuou porque sabia que ia perder. A discussão não contou com a presença do ministro da Educação. Em um ano e meio, já são quatro ministros e nenhum conseguiu apresentar um projeto estrutural de educação para o país.

    A pergunta feita pela deputada Tábata Amaral ao então ministro Velez Rodrigues continua no ar: qual o programa, qual a agenda deste governo para a educação? A ausência, no caso do governo Bolsonaro, é até bem vinda, tendo em vista o que poderia ser este projeto, se ele existisse. De qualquer forma, é sintomático que este governo tenha mantido e renovado um projeto criado por Lula para a educação brasileira.

    A renovação do Fundeb é vitória do Lulismo. Educação e cultura são trincheiras fundamentais do projeto político bolsonarista no sentido de implementar sua guerra ideológica. Cortes de bolsas de pesquisa científica, nomeações impostas de reitores e diretores de institutos de pesquisa são exemplos de medidas tomadas por este governo no âmbito da educação. São mudanças sensíveis, com impactos diretos na atuação dos educadores e pesquisadores. Não se pode dizer que executem um programa; antes destroem do que edificam algo.

    A bandeira da educação é vista, sobretudo, como instrumento retórico de um embate ideológico que retoma instrumentos conceituais da Guerra Fria. Weintraub foi exemplo máximo disso: administrava com um celular na mão, soltando bravatas, espalhando mentiras, ódio, violência e racismo pela internet, inclusive em horário de expediente.

    O discurso bolsonarista impõe uma narrativa que reduz toda agenda do governo a uma fórmula esquerda versus direita. Um caso aparentemente despolitizado, como, por exemplo, a importação de respiradores, remédios ou vacinas para o tratamento da Covid, ganha outro significado quando se fala que eles foram importados da China. Nos termos das guerras virtuais, das disputas políticas nas redes sociais, onde paira, em grande parte, a lógica da “bolha” que confirma expectativas prévias – e não a abertura para a diferença – esta modalidade de discurso faz sentido e soa efetiva. No entanto, isso não parece ser suficiente para governar nos termos da democracia.

    Entendendo o ato de governar como construir um plano de ação, ter uma estratégia e conseguir implementar efetivamente este plano. Bolsonaro mostrou capacidade de vencer a eleição, de governar não – uma eleição marcada pelo afastamento forçado e injustificado do seu principal adversário, Lula. Hoje, ora reclama que a democracia é regime “ingovernável”, ora faz uma ameaça de golpe, ora negocia com o centrão a própria sobrevivência. Este discurso super ideologizado traz também uma força: mantém uma base convicta de sua visão de mundo, mantém uma coesão ideológica em torno de si. Isto faz diferença em um contexto de crise democrático-representativa, em que boa parte da população expressa profunda desconfiança da política e dos políticos.

    A votação do Fundeb traz uma boa e uma má notícia. A boa é que Bolsonaro é ruim de governo e as regras do jogo democrático parecem atrapalhá-lo em suas próprias pernas, vivendo o drama do jogador que reclama o quanto a bola é redonda. Agindo dessa forma, por outro lado, ele mantém acesa a chama eleitoral naquilo que mais “fideliza” a sua base, isto é, a ideologia; assim, ele é forte candidato à reeleição, o que é uma péssima notícia para todos os brasileiros.

  • O FATOR DILMA ROUSSEFF EM 2020

    O FATOR DILMA ROUSSEFF EM 2020

    ARTIGO

    RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Especialmente em momentos de crise, os movimentos da política devem ser acompanhados no dia a dia. Os políticos profissionais mais habilidosos e os analistas mais experimentados sabem perfeitamente disso. Por isso, as pesquisas de opinião atraem tanto a atenção, pois é aí que temos a possibilidade de identificar as curvas, a formação de tendências.

    Todos os que acompanham a política brasileira com algum método estão debruçados sobre a pesquisa Datafolha divulgada no último domingo, 8 de dezembro. Os defensores do presidente Jair Bolsonaro torcem os números para ver na realidade o fortalecimento do governo. Os opositores torcem os números para ver na realidade o início do fim do fascismo à brasileira.

    Torcidas à parte, se analisarmos os números com cuidado não perceberemos nenhuma grande novidade em relação aos dados divulgados em pesquisa anterior, publicada em agosto.

    Com alguma variação pra lá e pra cá, é possível perceber a sociedade brasileira dividida em três fatias com mais ou menos 30% cada, ficando aí voando uns 10%, para margem de erro e arredondamentos.

    Trinta por centro avaliam o governo como “ótimo e bom”. É a base social orgânica do bolsonarismo. Dificilmente essas pessoas se movimentarão. Estão dispostas a ir com o Bolsonaro até o fim. É pra essa camada que o presidente fala quando se apresenta como um “pai de família” perseguido pela mídia, pelo Judiciário e pela classe política corrupta. É essa a base social que Bolsonaro excita quando publica vídeo de Leão saneador cercado por hienas. É pra essa base que o bolsonarismo joga quando fala em AI-5, excludente ilicitude, fechamento do Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro é extremamente competente em manter essa gente mobilizada, em estado de excitação. Bolsonaro pode até ser fraco como presidente, pois pra ser presidente em República democrática carece de respeitar os ritos, de seguir os protocolos institucionais. Mas é fortíssimo como agitador fascista. Em um momento de grave crise institucional, essa é uma habilidade muito perigosa.

    Trinta por cento avaliam o governo como ruim/péssimo. É a base social orgânica do antibolsonarismo, que agrupa um leque amplo de forças políticas: petismo e esquerda em geral, aquilo que podemos chamar de modo vago e um tanto impreciso de “centro democrático”, defensores do meio ambiente e dos direitos humanos e todos a quem sobrou um mínimo de bom senso para entender que o bolsonarismo significa, necessariamente, o constante ataque às instituições do Estado democrático. Esse grupo tende a se aglutinar ao redor daquele que conseguir se apresentar como liderança forte o suficiente para combater o bolsonarismo nas urnas. Essa liderança ainda é exercida por Lula. Nada no horizonte sugere que isso mudará no curto prazo.

    Trinta por cento avaliam o governo como regular. É uma massa amorfa formada por pessoas que não são organicamente nem bolsonaristas e nem antibolsonaristas. Temos aqui o pêndulo, o fiel da balança, aqueles que serão disputados na unha. Essas pessoas se incomodam com o que julgam ser comportamento destemperado do presidente, mas também estão dispostas a esperar um pouco mais para ver se o governo dá jeito na crise. Dão a Bolsonaro o benefício da dúvida. A evolução do cenário econômico determinará para onde essa camada irá.

    Vendo os números por dentro, há detalhes nada irrelevantes, como, por exemplo, o corte de renda. Entre os mais pobres, aqueles que ganham até dois salários mínimos, 43% avaliam o governo como péssimo e ruim, o que confirma tendência já observada na época das eleições presidenciais. Há um claro componente de classe na adesão/rejeição ao bolsonarismo.

    Obviamente, os pobres são mais sensíveis à recessão econômica e tendem a ficar cada vez mais mal-humorados caso a situação não melhore.

    Por mais que os aspectos culturais e comportamentais sejam muito importantes na configuração dos afetos político nos dias de hoje, a economia ainda é o aspecto definidor da disputa. Entendendo a economia, é claro, no seu nível prático, no carrinho do supermercado, no prato nosso de cada dia, no preço da gasolina, no quilo da carne.

    É claro que o bolsonarismo vai tentar tirar a economia do foco, falando diretamente à moralidade popular e ao sentimento de insegurança pública. Excludente de ilicitude para as PMs, acusação de cultivo de drogas nas universidades públicas, doutrinação homossexual nas novelas e cinemas. O bolsonarismo se conhece e conhece o Brasil. Sabe exatamente onde investir suas energias narrativas.

    Por seu lado, cabe à oposição fazer o mesmo e deslocar a disputa para o campo da economia, evitando a todo custo o debate comportamental e a guerra cultural. O brasileiro médio é conservador nos costumes e progressista na economia. Na democracia vence sempre a maioria. Quem não vence eleição não faz nada, não melhora a vida de ninguém.

    O lulismo representa exatamente esse conforto material no nível prático. Um dinheirinho a mais pra comprar um danone pras crianças no mercadinho da esquina, pra assar aquela fraldinha no churrasco de domingo. É a memória do lulismo que o campo democrático precisa recuperar, lembrando a todos como a vida estava melhor ali, entre 2005 e o primeiro semestre de 2013.

    O problema é que no meio disso tudo há o fator Dilma Rousseff. É muito difícil blindar a imagem da presidenta Dilma, que está diretamente associada ao começo da crise econômica.

    Com Lula, uma parcela considerável da população até então excluída de qualquer conforto material teve acesso ao consumo. Com Dilma, essas pessoas pararam de consumir, voltaram aos anos 1990. Estão desempregadas ou subempregadas. Comendo ovo no almoço e arroz e feijão puro na janta, sem mistura. Pior que nunca ter consumido, só começar a consumir, sentir o gostinho dos prazeres da vida burguesa e voltar à pobreza.

    Essas pessoas sabem que a coisa começou a degringolar com Dilma. No plano da análise mais cuidadosa, podemos relativizar (até certo ponto) a responsabilidade da ex-presidenta. Podemos falar em boicote, em pautas-bombas, em perseguição e misoginia política, em golpe. Mas na percepção daqueles que perderam poder de compra, e de sobrevivência, a defesa não cola.

    O que PT fará com Dilma? Escondê-la da propaganda ou até mesmo tomá-la como bode expiatório para a tal “autocrítica”? Ou deve predominar o princípio da lealdade, tão caro entre companheiros de luta, e Dilma deve ser defendida a qualquer custo?

    Já no ano que vem, quando a disputa entre o campo democrático e o bolsonarismo se tornar mais aguda nas eleições municipais, Dilma será acionada como a marca digital do PT na crise econômica. Ela é o elo mais frágil da narrativa que associa o petismo à prosperidade material dos mais pobres.

    O que fazer?

     

  • Lula X Bolsonaro, uma comparação necessária

    Lula X Bolsonaro, uma comparação necessária

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Al Margen

     

    Hoje, no Brasil, o sistema político está polarizado por duas lideranças carismáticas capazes de despertar na sociedade afetos tão opostos como o amor e o ódio. É claro que estou falando de Lula e Bolsonaro, do lulismo e do bolsonarismo. Nesses 30 anos de “Nova República”, com a exceção desses dois, nenhuma outra liderança política brasileira teve um “ismo” para chamar de seu.

    Qualquer esforço de compreensão da história politica brasileira contemporânea passa pela comparação entre Lula e Bolsonaro. É isso que faço aqui. Começo pelas circunstâncias eleitorais que pavimentaram as vitórias eleitorais dos dois personagens.

    A vitória eleitoral de Lula era um projeto da sociedade civil organizada que datava do final da década de 1970. Ao ser eleito em 2002, Lula era velho conhecido de todos os brasileiros. As eleições de 2002 aconteceram na perfeita normalidade democrática. Lula enfrentou José Serra, o ungido de Fernando Henrique Cardoso, que na época terminavam seu segundo mandato. A população brasileira teve todas as condições de comparar os dois projetos em disputa. PSDB X PT. Lula foi a todos os debates.

    Bolsonaro foi eleito em um processo eleitoral confuso e marcado pela interferência direta do poder Judiciário na corrida presidencial. Todos sabemos que Lula foi impedido de concorrer, foi impossibilitado até de participar da campanha por Sérgio Moro, que hoje é ministro de Estado nomeado por Jair Bolsonaro.

    As eleições de 2018 aconteceram sem debates. Protegido por um atentado que até hoje não foi devidamente explicado, Jair Bolsonaro não foi aos debates, não falou sobre seu plano de governo.

    Nos discursos de posse, tanto Lula como Bolsonaro se apresentaram como o resultado de um desejo coletivo de mudança. Os dois falaram da necessidade de reformas estruturais no Estado brasileiro.

    Dezesseis anos separam 2003 de 2019. Muita coisa mudou. Existem também algumas semelhanças. Eram momentos de transição, de virada na página da história. Com Lula, o Brasil mudou do ensaio neoliberal para a social democracia. Com Bolsonaro, o Brasil está transitando da social democracia para algo que ainda não tem nome, mas que é assustador.

    “Hoje, começamos um trabalho árduo para que o Brasil inicie um novo capítulo de sua história”, disse Bolsonaro.

    “Hoje, estamos realizando um sonho que não é só meu, mas um sonho do povo deste país, que queria mudança”, disse Lula.

    Os dois presidentes eram alvo de grande desconfiança no momento da posse. A diferença fundamental está na forma como essa desconfiança foi enfrentada.

    Em Junho de 2002, ainda durante a campanha, Lula publicou a sua “Carta ao Povo Brasileiro”. Naquela altura, a vitória eleitoral de Lula era favas contadas e o candidato entendeu rapidamente que precisava começar a se comportar como um estadista, como presidente de uma das maiores democracias do mundo.

    Lula entendeu rápido que o cargo exigia concessões, e que ele precisava deixar de ser o metalúrgico, líder sindicalista, para se tornar o Presidente da nação. Lula desceu do palanque antes de subir a rampa do Palácio do Planalto.

    No documento, Lula falava em respeito à propriedade, aos contratos estabelecidos. A conciliação teve como preço o desgaste com suas bases históricas. Lula foi chamado de traidor por companheiros de longa data. O tom do discurso de posse seguiu a tendência da “Carta ao Povo Brasileiro”. Lula não mencionou seus adversários políticos, não falou em conflito. Somente um inimigo foi nomeado: a fome. No seu discurso de posse, Lula declarou guerra contra a fome.

    “E quero propor isso a vocês: amanhã, estaremos começando a primeira campanha contra a fome neste país. É o primeiro dia de combate à fome. E tenho fé em Deus que a gente vai garantir que todo brasileiro e brasileira possa, todo santo dia, tomar café, almoçar e jantar, porque isso não está escrito no meu programa. Isso está escrito na Constituição brasileira, está escrito na Bíblia e está escrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos. E isso nós vamos fazer juntos.”

    O comportamento de Jair Bolsonaro foi completamente diferente. No auge da campanha eleitoral, quando sua vitória era dada como certa por todos os institutos de pesquisa, Bolsonaro falou em videoconferência aos seus eleitores, que estavam reunidos na Avenida Paulista, em São Paulo.

    Bolsonaro não sinalizou para a conciliação. Pelo contrário, sob os aplausos e gritos de seus apoiadores, ele prometeu servir a cabeça dos adversários em uma bandeja de prata.

    O discurso de posse seguiu a mesma tendência.

    “A construção de uma nação mais justa e desenvolvida requer a ruptura com práticas que se mostraram nefastas para todos nós, maculando a classe política e atrasando o progresso. A irresponsabilidade nos conduziu à maior crise ética, moral e econômica de nossa história.”

    Quilombolas, feministas, comunidade LGBT, professores, petistas, imigrantes. Segundo o presidente da República, são esses os responsáveis pelo atraso, são esses os inimigos da nação.

    Bolsonaro não conseguiu apresentar agendas propositivas. Todo o discurso é atravessado pela destruição, pela construção de um inimigo que precisa ser combatido, derrotado, aniquilado.

    É certo que entre Lula e Bolsonaro há semelhanças também. Ambos se tornaram objetos de um tipo de culto cívico que diz muito sobre a cultura política brasileira. Somos um país de tradição republicana frágil, de mentalidade cristã arraigada, o que nos torna sensíveis a toda sorte de messianismos. Entre nós, a representação política mais genuína acontece através da projeção de afetos, de idolatria aos líderes carismáticos. Parte da sociedade brasileira se sente representada por Lula. A outra parte se sente representada por Bolsonaro. Uma lástima não termos tido a possibilidade de ver um embate franco e direto entre os dois.

    Entretanto, seria um equívoco acreditar que o lulismo e o bolsonarismo são iguais. Não são. As energias afetivas que os impulsiona são bastante diferentes.

    O lulismo foi alimentado por anos de militância e pela combinação entre experiência e esperança. Lula representava o nordestino, o pobre, o trabalhador sem curso superior que pela primeira vez comandava a República fundada pelos bacharéis. Lula, com todas as contradições que marcaram seu governo, teve sucesso no combate à fome e à miséria. Lula venceu a sua guerra.

    O sertanejo que idolatra Lula tem a experiência como fundamento do seu afeto. Com Lula, a água chegou na torneira, a energia elétrica na tomada, o pão na mesa.

    O bolsonarismo está sendo alimentado pela sensação do apocalipse político. Até pouco tempo, Bolsonaro era um deputado inexpressivo e desconhecido no cenário nacional. Sua liderança é impulsionada pelo medo, pela desilusão.

    Porque se alimentava de esperança, Lula conseguiu falar como estadista quando ainda era candidato. Porque se alimenta do medo, Bolsonaro não consegue deixar de falar como candidato, mesmo depois de eleito e empossado.

    Em 2003, teve início uma era de prosperidade geral, de conciliação nacional. Nenhum grupo social perdeu com o governo Lula. É certo que uns ganharam mais que outros, como acontece em toda sociedade capitalista. Nunca é demais lembrar que Lula jamais arranhou as estruturas do capitalismo periférico brasileiro. Do socialismo, o presidente Lula não chegou nem perto.

    O ano 2019 começa sob os efeitos de uma grave crise política e econômica que está longe de terminar. Bolsonaro não pode abandonar o virulência característica do palanque eleitoral, não pode tentar se reconciliar com aqueles que não votaram nele. Isso seria o seu fim, seu desaparecimento político. Bolsonaro não existe sem seus inimigos, sejam eles reais ou inventados.

    Bolsonaro será sempre o presidente do conflito, do ódio.

    A necessária comparação entre Lula e Bolsonaro se dá muito mais pelas diferenças do que pelas semelhanças.

     

  • A radicalização da luta de classes no Brasil

    A radicalização da luta de classes no Brasil

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, com charge de Paulo Batista

     

     

    Conforme vamos nos aproximando do dia 7 de outubro, fica cada vez mais óbvio que estamos diante de uma forte polarização. Que polarização é essa? É esta a pergunta que tento responder neste ensaio.

    Começo com uma afirmação forte, contundente: Bolsonaro é o candidato dos ricos e Haddad é o candidato dos pobres!

    Essa frase, assim, solta no ar, vira alvo fácil de desmentidos. Certamente, o leitor e a leitora estão pensando: “Conheço um monte de gente pobre que vota em Bolsonaro”. Daqui, eu replico: conheço um monte de gente rica que vota no Haddad.

    Segundo o TSE, existem hoje no Brasil 140,3 milhões de eleitores aptos a votar. Será mesmo que a minha percepção pessoal, que construo a partir daquilo que ouço da boca do meu vizinho, do meu primo, é o bastante para ter a visão do conjunto do eleitorado brasileiro?

    Não, não é!

    A análise não pode ficar restrita ao que vemos com nossos próprios olhos e ouvimos com nossos próprios ouvidos. Por isso, os dados estatísticos são tão importantes. São eles que nos permitem ter noção do que está acontecendo para além do horizonte, onde os olhos não alcançam, onde os ouvidos não escutam.

    Parto sempre do princípio de que os institutos de pesquisa sérios e confiáveis são o Ibope e o Datafolha, pois na série histórica mais acertaram do que erraram. O Vox Populi também poderia entrar nessa lista, mas, como ele costuma ser próximo de movimentos sociais ligados ao PT, fiquemos apenas com o Ibope a o Datafolha.

    Qualquer analista minimamente sério não briga com os dados do Datafolha e do Ibope. Isso é comportamento de eleitor/torcedor. O Ibope apresentou nessa semana dados qualitativos que ajudam a responder às perguntas que me parecem ser as mais importantes de serem feitas no atual momento da corrida eleitoral: quem é o eleitor de Jair Bolsonaro? Quem é o eleitor de Fernando Haddad?

    Dos dois lados da fronteira ideológica saltam respostas caricatas que pouco ajudam na compreensão da realidade. À esquerda, fala-se muito em um “fascismo” que teria se espalhado pela sociedade brasileira. À direita dizem que os eleitores do PT são o resultado de uma revolução cultural que o partido vem silenciosamente fazendo no Brasil, especialmente a partir das universidades, onde atuam os “professores doutrinadores de esquerda”.

    Para contraditar as caricaturas, aciono os dados divulgados pela pesquisa do Ibope publicada em 24 de setembro de 2018. Os números são cristalinos:

    Haddad lidera com 30% das intenções de voto entre os eleitores que vivem com menos de 1 salário mínimo por mês. Bolsonaro tem 16%. Se o corte for o da escolaridade formal, o cenário é bem parecido: entre os eleitores que estudaram até a 4° série do ensino fundamental, Haddad lidera com 28%. Bolsonaro tem 19%.

    A situação é oposta quando mudamos o filtro dos dados qualitativos:

    Entre eleitores com renda mensal superior a cinco salários mínimos, Bolsonaro lidera com impressionantes 42% dos votos. Haddad tem 15%. Entre eleitores com ensino superior completo, Bolsonaro lidera com 33%. Haddad tem 16%.

    As caricaturas de esquerda e de direita não sobrevivem aos dados: o tal “fascismo” não é um projeto da “sociedade brasileira”, mas, sim, dos mais ricos. As universidades não fazem “doutrinação ideológica de esquerda”, pois a parcela mais escolarizada da população (que tende a ser a também a mais rica) prefere Bolsonaro.

    É claro que existem as exceções!

    16% de pobres votam em Bolsonaro. É muita gente. Alguns deles salpicam aqui e ali nas nossas relações pessoais, o que pode nos levar a um erro de percepção. Nunca é demais lembrar o óbvio: se 16% dos mais pobres votam em Bolsonaro, 84% não votam. 84 é mais que 16, bem mais.

    O que os dados qualitativos mostram é que o eleitor típico de Bolsonaro é homem com diploma universitário, branco, proprietário, com renda mensal superior a cinco salários mínimos e com idade situada entre 25 e 40 anos. Podemos chamar esse tipo ideal de eleitor de “Maicon”.

    Já o eleitor típico de Haddad é eleitora. É mulher, é preta, com ensino fundamental incompleto e com renda mensal inferior a um salário mínimo. Vamos chamar esse tipo ideal de “Dona Nísia”.

    Maicon vota em Bolsonaro e Dona Nísia vota em Haddad.

    Agora, podemos avançar na discussão e apresentar outras perguntas: por que Maicon vota em Bolsonaro? Por que Dona Nísia vota em Haddad?

    Maicon vota em Bolsonaro, principalmente, porque é proprietário e está assustado com a violência urbana, que nas pesquisas de opinião é apresentada como o segundo maior problema do Brasil, perdendo apenas para a saúde.

    Alguns companheiros e companheiras se limitam a colar o rótulo de “fascista” em Maicon. Não me contento com atalhos argumentativos.

    A percepção da insegurança é especialmente forte junto aos proprietários, e por um motivo bem óbvio: quem tem propriedade tem mais a perder com a violência urbana.

    É claro que há outros elementos que formam a decisão eleitoral de Maicon: moralismo comportamental, machismo, homofobia. Mas o fundamental mesmo é o poder de sedução da utopia autoritária representada por Jair Bolsonaro, que se manifesta na tópica “bandido bom é bandido morto”.

    Para Maicon, a imagem do bandido é personificada no homem preto e jovem que lhe assaltou na semana passada. Maicon está convencido de que se Bolsonaro for eleito esse tipo social será exterminado e, com isso, sua propriedade estará protegida.

    Já Dona Nísia lembra com clareza o que aconteceu no governo Lula.

    Segundo as Nações Unidas, as mulheres chefiam 92% das famílias assistidas pelo Bolsa Família. Entendem, leitor e leitora? 92%! O Bolsa Família significa o empoderamento da mulher pobre. A Dona Nísia sabe disso, e sabe muito bem.

    Segundo dados do governo federal, as mulheres são proprietárias de 89% das unidades habitacionais financiadas pelo programa Minha Casa Minha Vida. Aquela mulher pobre, vítima de violência doméstica, que era obrigada a morar com o agressor porque não tinha para onde ir, foi empoderada pelo Minha Casa Minha Vida.

    O que podemos tirar disso tudo?

    Maicon vota em Bolsonaro movido pela expectativa de que o problema da violência urbana será resolvido por um governo autoritário e violento. Dona Nísia vota em Haddad porque já viveu a experiência do empoderamento, proporcionada pelas políticas públicas desenvolvidas e intensificadas pelos governos petistas. Os dois estão convictos dos seus votos. Não mudarão, não importa o que aconteça.

    Sim, leitor e leitora. Sem dúvida, vivemos um ambiente de polarização. Lulismo X Bolsonarismo; Petismo X Antipetismo.

    Mas a verdadeira polarização se dá mesmo entre Maicon e Dona Nísia. É conflito racial, é disputa entre gêneros. É, antes de qualquer coisa, luta de classes, a velha luta de classes. Desde sempre, a história humana é a história da luta de classes.

    De qual lado vocês estão?

     

  • Haddad, o bacharel que o lulismo escolheu para chamar de seu

    Haddad, o bacharel que o lulismo escolheu para chamar de seu

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com foto de Ricardo Stuckert

     

    A candidatura de Lula foi registrada no TSE. Todos sabemos que Lula não será candidato e o registro de sua candidatura foi um ato político, um necessário ato político.

    A estratégia está clara desde o início: o objetivo é esgotar a legalidade institucional, num constante esforço de denúncia. Assim, os gestores do golpe são obrigados a adotar medidas excepcionais à luz do dia, a deixarem no chão as pegadas de sua infâmia. O golpe é uma narrativa que deve ser reforçada a todo momento.

    Foi isso que o PT fez quando levou Dilma ao Senado, para encarar face a face seus inquisidores. Foi isso que o PT fez em 8 de julho, quando o desembargador Rogério Favreto obrigou o primeiro escalão do golpe a se mobilizar para descumprir uma ordem judicial. Foi isso que o PT fez em 15 de agosto, ao registrar a candidatura de Lula, mesmo com a certeza da impugnação.

    Cada um desses eventos teve a sua função. Em cada um deles, a narrativa do golpe foi reforçada na prática, com o colaboracionismo dos próprios golpistas. Temos aí ações políticas para o presente e uma narrativa destinada ao futuro. A batalha será travada, também, no plano da memória.

    Não é de Lula que quero falar neste ensaio. Quero falar do ungido de Lula, daquele que estará com a foto na urna quando os eleitores digitarem “13”.

    Mentira: vou falar de Lula também, e do início ao fim. É impossível deixar falar de Lula. Quando discutimos política no Brasil, todos falamos de Lula, à esquerda, à direita e ao centro. Fala de Lula até quem não quer falar de Lula. Ninguém fica indiferente a uma instituição desse tamanho.

    Meu argumento aqui é simples e pode ser definido numa frase curta: a unção de Haddad leva o lulismo aos limites de uma grande contradição. Explico.

    Como prática de governo, o lulismo não teve nada de revolucionário. A bibliografia especializada está cheia de estudos que demonstram como Lula foi dócil com o tripé macroeconômico montado no governo de FHC e tão importante para os interesses do neoliberalismo internacional.

    Porém, em um aspecto o lulismo foi, sim, revolucionário. A revolução lulista é simbólica!

    Num país tão complexo como o Brasil, é sempre difícil fazer generalizações O analista que se aventura por esse caminho costuma escorregar na primeira esquina, logo ali, onde algum aspecto rebelde da realidade está pronto para desmenti-lo.

    Mas acho que pelo menos uma generalização seja possível: no Brasil, desde sempre, a política institucional é assunto a ser tratado entre iguais, no clube das elites. Tá aí algo tão presente na nossa história que ainda no século XIX Joaquim Nabuco disse que as faculdades de direito eram a “antessala da Câmara dos Deputados”.

    Ou seja: os filhos das elites saíam da Casa Grande, estudavam nas faculdades de Direito e depois seguiam carreira política.

    Somente no século XXI essa realidade foi alterada, ainda que temporariamente, mesmo que parcialmente. Com Lula, vimos, pela primeira vez, o Estado brasileiro sendo chefiado por uma liderança nascida nas bases da sociedade e amadurecida em movimento social organizado.

    Lula não foi a primeira liderança política que colaborou para a promoção da justiça social e para o fortalecimento da soberania nacional. Antes dele vimos Arraes, Brizola, Getúlio e Jango. Depois de Lula veio Dilma. Porém, diferente de Lula, todos os outros eram bacharéis, a maioria tendo sangue oligarca correndo nas veias.

    No lulismo, um nordestino, um operário sem curso superior que escorrega no uso da norma culta da língua portuguesa, é o maestro do jogo político. Esse é o dado novo. Essa é a revolução.

    E o que aconteceu quando o lulismo foi posto nas cordas?

    Lula escolheu um bacharel como sucessor. Pois é exatamente isso que Fernando Haddad é: um bacharel paulista, uspiano, roqueiro, com jeitão moço criado a leite com pera. Olhando para Fernando Haddad, tenho a sensação de que ele nunca transou sem camisinha, bêbado, depois de sair um forró.

    Nada poderia ser mais diferente de Lula que Fernando Haddad.

    Que o leitor e a leitora não me interpretem mal. O problema não é pessoal. Não tenho nenhum interesse em desqualificar Fernando Haddad, que foi um bom prefeito em São Paulo, que foi um grande ministro da Educação, talvez o melhor que já tivemos por aqui.

    Só estou dizendo o que é óbvio, ao menos o que me parece ser óbvio: na estética, na simbologia, Haddad não representa o lulismo. Isso é um problema que a direção do PT vai precisar enfrentar durante a campanha.

    Como aproximar Haddad de Lula? Eu não queria estar na pele dos organizadores da campanha petista.

    Eles vão conseguir? Mesmo preso, Lula será capaz de transferir seus votos para Haddad? Alguns dizem que sim. Outros dizem que não. Este é o fator que irá decidir as eleições presidenciais. Só o tempo dirá.

    Se Haddad não é o herdeiro ideal, a pergunta a ser feita é: havia outra alternativa?

    Falou-se muito em uma aliança com Ciro Gomes, agora do PDT. As escolhas dos dois partidos inviabilizaram a aliança. Além disso, tenho muitas dúvidas se Ciro encarnaria o lulismo melhor que Haddad.

    Dentro do próprio PT existiam outros candidatos. Nenhum deles seria mais adequado que Haddad. Afinal, não se tira um Lula da cartola, assim, do nada. Não se fabrica um Lula do dia pra noite. Não nasce um Lula a cada geração.

    Talvez diante das opções disponíveis, o que significa a total ausência de opções, a escolha por Haddad tenha sido a melhor possível, ou a menos pior. Haddad foi ministro importante do governo de Lula. Prefeito da maior capital do país. Enfim…

    É sempre bom lembrar que o Lula do lulismo também não nasceu do dia pra noite, tendo sido forjado a muito custo, num longo processo de amadurecimento político, numa estrada pavimentada por doloridas derrotas eleitorais. Antes de subir a rampa em 2002, o PT não era um partido popular, não atraía os votos da parcela mais humilde da nossa população.

    Muito longe disso. O PT era um partido de classe média, muito querido pelos trabalhadores com alguma capacidade de organização, mas amplamente rejeitado pela grande maioria daqueles que vivem um dia de cada vez, sem saber quando será a próxima refeição.

    Foi ao longo do primeiro mandato de Lula que o lulismo tomou o PT de assalto, alterando drasticamente as bases do partido. As bases históricas, formadas pelos trabalhadores organizados, rapidamente se sentiram abandonadas e traídas, o que explica em parte a debandada que aconteceu entre 2005 e 2006. Por outro lado, aqueles que não votavam no PT foram convidados a entrar no jogo, e atenderam ao chamado.

    O lulismo transformou os miseráveis em pobres. Essa talvez tenha sido a mais profunda mudança social da história do Brasil.

    No seu primeiro mandato, Lula fez uma escolha política deliberada: escolheu não tensionar com os poderosos e preferiu atender uns e não outros. Pagou o preço, levando a pecha de traidor, sendo xingado e hostilizado pelos seus antigos companheiros. Colheu os dividendos políticos também. Está colhendo até hoje. O saldo parece ter sido positivo para ele.

    Lula deixou de ser o grevista, o líder sindical, para se tornar o protetor, reencarnando a mística do “pai dos pobres”, imagem tão importante na mitologia política brasileira. Você, pessoa letrada que acompanhou a leitura até aqui, pode até achar isso ruim, paternalista, arcaico. Você pode até falar em “populismo”. Você pode achar o que quiser.

    Ironicamente, a força do lulismo é também sua fragilidade. A grandeza do protagonista transformou o lulismo em um capital político que, no limite, é intransferível. Hoje, nenhuma liderança viva, a não ser o próprio Lula, é capaz de se apropriar plenamente do lulismo.

    É até possível que o PT vença as eleições. Ainda assim, vitória não significará que Haddad terá herdado o lulismo. Significará, apenas, que herdou os votos. Haddad não é capaz de herdar o lulismo. O lulismo não lhe cai bem, é traje que não lhe serve.

    Se for eleito, Haddad, para sua sobrevivência política, terá que fazer outra coisa, inventar uma outra forma de governar, uma outra maneira de conversar com a população, com o risco de se tornar um poste caso não consiga fazê-lo.

    Mas isso é conversa pra um futuro que não sabemos se chegará. Por hoje, só é possível dizer que o lulismo foi obrigado a escolher um bacharel para chamar de seu e, com isso, acabou morrendo um pouco.

     

  • Lula deu um nó nas forças do golpe neoliberal

    Lula deu um nó nas forças do golpe neoliberal

    Artigo de Rodrigo Perez  Oliveira, professor de Teoria da História na UFBA, com foto de Francisco Proner

    Que Lula há muito tempo deixou de ser homem e se tornou uma instituição é consenso à direita e à esquerda. O que está em jogo, em disputa, é o significado da instituição, o que ela representa.

    Lula é o maior corrupto da história do Brasil ou a principal liderança popular que esse país já teve?

    A disputa está ai. No atual estado da situação não sobrou muito espaço para meio termo. Ou é uma coisa ou é a outra. Cada um que escolha seu lado.

    Na condição de instituição, todo gesto de Lula tem dimensão simbólica, é lido e interpretado por todos, por detratores e admiradores. Lula pega o microfone e o país paralisa em frente à TV. Os admiradores choram. Os jornalistas a serviço da mídia hegemônica silenciam. Ninguém fica indiferente a uma instituição desse tamanho.

    Lula sabe perfeitamente que está sendo observado, conhece muito bem o tamanho que tem e explora com extrema habilidade sua capacidade de fabricar símbolos.

    Aqui neste ensaio, trato de uma parte muito pequena da biografia de Lula, mas que talvez seja, na perspectiva simbólica, a mais importante. Talvez seja até mais importante que os oito anos de seu governo.

    Falo das 34 horas em que Lula esteve no sindicato dos metalúrgicos, sob os olhares do mundo, construindo a narrativa de seu próprio martírio.

    Não falo em “resistência”, pois desde a condenação no Tribunal da Quarta Região, em 24 de janeiro, que o destino de Lula já estava selado. Os advogados cumpriram sua função, recorrendo a todos as instâncias e tentando um habeas corpus, mas todos já sabiam que Lula seria preso.

    Por isso, seria ingênuo dizer que o que aconteceu em São Bernardo do Campo foi um ato de resistência. Lula é um político experiente demais para resistir em causa perdida.

    Alguns companheiros e companheiras, no auge da emoção, tentaram usar a força. Lula fugiu da custódia dos trabalhadores e se entregou à Polícia Federal, pois sabe que contra o braço armado do Estado ninguém pode. Lula sabe que aqueles que ali estavam eram trabalhadores e trabalhadoras, pais e mães de família. Não eram soldados. Não eram guerrilheiros. A resistência não era possível.

    Lula sabe que seria impossível sustentar aquela mobilização durante muito tempo e por isso não resistiu. Mas daí a se entregar resignado como boi manso para o abate a distância é grande, muito grande.

    Penso mesmo que Lula fez mais que resistir, já que a resistência seria quixotesca, irresponsável. Lula pautou a própria prisão, saiu da posição de simples condenado pela Justiça para se tornar o dono da narrativa. Lula foi sujeito do próprio encarceramento, deu um nó nas forças do golpe neoliberal.

    Muitos achavam que Lula deveria ter fugido para uma embaixada amiga e de lá partido para o exílio no exterior. Confesso que também pensei assim. Mas Lula é muito mais inteligente que todos nós juntos.

    Lula sabe que já viveu muito, sabe que não lhe sobra muito tempo de vida. O que resta agora é a consolidação da biografia, o retorno às origens, seu renascimento como ícone da esquerda brasileira, imagem que ficou um tanto maculada pelos oito anos em que governou o Brasil.

    É que no capitalismo não existem governos de esquerda. Governo de esquerda só com revolução e Lula nunca foi revolucionário, nunca prometeu uma revolução.

    Todo governo legitimado pelas instituições burguesas será sempre burguês. No máximo, no melhor dos cenários, será um governo de centro sensível às demandas populares. O lulismo foi exatamente isso: uma prática de governo de centro sensível às necessidades dos mais pobres. O lulismo transformou o Brasil pra melhor, com todos os seus limites, com todas as suas contradições.

    Mas para encerrar a vida em grande estilo carece de algo mais. Era necessária a canonização política. E só a esquerda canoniza líderes políticos. A direita é dura, cinza, sem poesia.

    O golpe neoliberal conseguiu reconciliar Lula com as esquerdas, o que há poucos anos parecia algo impossível de acontecer.

    É que pra ser canonizado pelas esquerdas nada melhor que ser perseguido pelo Poder Judiciário, habitat histórico das elites da terra. Basta lançar no Google os sobrenomes da maioria dos nossos juízes, procuradores e desembargadores e veremos os berços de jacarandá que embalaram os primeiros sonhos dos nossos magistrados.

    É claro que Lula não planejou a perseguição. É óbvio que ele não queria ser perseguido. Se pudesse escolher, estaria tendo um final de vida mais tranquilo, talvez afastado da política doméstica e atuando nas Nações Unidas. Mas já que a vida deu o limão, por que não espremer, misturar com açúcar, cachaça, mexer bem e mandar pra dentro?

    Lula fez exatamente isso: uma caipirinha com os limões azedos que seus adversários togados lhe deram.

    Primeiro, ele fez questão de esgotar todos os mecanismos legais. A sentença de Moro, os votos dos desembargadores, os votos dos ministros da Suprema Corte não são palavras ao vento. São “peças”, para falar em bom juridiquês, que ficarão arquivadas e disponíveis para a consulta, para análise.

    Imaginem só, leitor e leitora, os historiadores que no futuro, afastados da histeria e das disputas que hoje turvam nossos sentidos, examinarão a sentença de Sérgio Moro, verão que o juiz não foi capaz de determinar em quais “atos de ofício” Lula teria beneficiado a OAS para fazer por merecer o tal Triplex do Guarujá.

    É como se Moro estivesse falando: “Não sei como fez, mas que fez, ah, fez”.

    E o voto dos desembargadores do TRF-4, atravessados de juízos de valor, quase sem relar no mérito da sentença?

    E o voto de Rosa Weber? Por Deus, o que foi aquele voto de Rosa Weber?

    Sei que estou votando errado, mas vou continuar votando errado só porque a maioria votou errado. Uma maioria que só vai votar porque eu vou votar errado também.”

    Lula, ao se negar a fugir, obrigou cada um desses togados a deixar impressos na história os rastros da própria infâmia.

    Uma vez decretada a prisão, o que fez Lula?

    Deu um tiro no peito? Se entregou em São Paulo? Foi pra Curitiba? Fugiu?

    Não!

    Lula se aquartelou no sindicado mais simbólico da redemocratização brasileira, o sindicado que representa as expectativas que nos anos 1980 apontavam para um Brasil mais justo, mais solidário.

    No apogeu da crise que significa o colapso do regime político fundado na redemocratização, Lula decidiu encenar o seu martírio onde tudo começou.

    Naquele que talvez seja o último grande ato de sua vida pública, Lula voltou às origens.

    Protegido pela massa de trabalhadores, Lula não cumpriu o cronograma estipulado por Sérgio Moro. Cercado por uma multidão, o Presidente operário transformou o sindicato dos metalúrgicos numa embaixada trabalhista.

    A Polícia Federal, o braço armado do governo golpista, disse que não usaria a força. A Polícia Federal sabia que o povo resistiria, que sem negociação não tiraria Lula do sindicado sem deixar uma trilha de sangue.

    Lula negociou e, nos limites dados por sua posição de condenado pela Justiça, venceu e humilhou as instituições ocupadas pelo golpe neoliberal.

    Lula não estava foragido. O mundo inteiro sabia onde ele estava e mesmo assim o Estado brasileiro não foi capaz de prendê-lo no prazo determinado pela Justiça golpista. Durante um pouco mais de 30 horas, Lula foi um exilado dentro do Brasil, como se São Bernardo do Campo fosse um República independente, a “República Popular dos Trabalhadores”.

    Lula fez de uma missa em homenagem a Dona Marisa Letícia um ato político e aqui temos mais um lance simbólico do Presidente operário: restabeleceu as pontes entre a esquerda brasileira e a Igreja Católica, aliança que tão importante nos anos 1970, quando sob as bênçãos da Teologia da Libertação foi fundado o Partido dos Trabalhadores.

    No palanque, junto com o padre, estavam Lula e as futuras lideranças da esquerda brasileira. Lula dividiu seu espólio em vida, tomou pra si esse ato mórbido ao abençoar Boulos, Manuela e Fernando Haddad.

    Lula unificou em vida a esquerda brasileira. Não só unificou, mas pautou, apresentou o programa, cantou o caminho das pedras.

    Lula deixou claro que o povo mais pobre precisa comer melhor, precisa consumir, viajar de avião, estudar na universidade. Lula, o operário que durante a vida inteira foi humilhado por não ter diploma de ensino superior, foi o professor de milhões de brasileiros que sonham com um país melhor.

    É como se Lula estivesse dizendo: “Num país como o Brasil, a obrigação mais urgente da esquerda é transformar o Estado burguês em agente provedor de direitos sociais”.

    Lula discursou durante uma hora em rede nacional, se defendeu das acusações. Não foi uma defesa para a Justiça, mas sim para o tribunal moral da nação. Não foi um discurso para o presente. Foi um discurso para a história.

    Não, meus amigos, acuado pelas forças do atraso, Lula não deu um tiro no próprio peito.

    Lula mandou trazer cerveja e carne e fez um churrasco com seus companheiros e companheiras. Foi carregado pelos seus iguais, foi tocado, beijado. Saliva, suor, pele.

    Lula não deu um tiro no próprio peito.

    Getúlio é gigante, sem dúvida, mas também era herdeiro das oligarquias. Lula é o único trabalhador que, vindo da base da sociedade, conseguiu governar e transformar o Brasil. Lula já é maior que Getúlio.

    Diferente de Getúlio, Lula entrou pra história sem precisar sair da vida.