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  • Professor de SC denuncia perseguição e demissão ideológica ao MP

    Professor de SC denuncia perseguição e demissão ideológica ao MP

     

    Escola Municipal Oswaldo dos Reis, em Itapema, de onde professor foi demitido por discutir texto sobre tortura, classificado como crime hediondo e inafiançável. (Foto: Arquivo da Prefeitura de Itapema)

    Era a Semana do 55° aniversário da Ditadura Militar brasileira. A quadra de Educação Física da Escola Municipal de Educação Básica Oswaldo dos Reis estava perigosa com as reformas inacabadas. O professor da disciplina, Willian Meister, se viu levado a desenvolver um conteúdo pedagógico em sala com os alunos do sétimo ano. Decidiu apresentar um texto poético sobre a ditadura para discussão dentro do projeto de incentivo à leitura que integra todas as disciplinas. O texto escolhido foi o do poeta paraibano Alex Polari, preso e torturado pelos militares aos 20 anos, suplício que inspirou um conjunto de poemas sobre os porões da ditadura. Polari tornou-se célebre também pelas cartas que escreveu à estilista Zuzu Angel, revelando-lhe ter testemunhado o assassinato, sob violenta tortura, do filho Stuart Angel Jones, desaparecido político que ela procurava obstinadamente há quatro anos. Na carta, Polari descreve os requintes de crueldade sofridos pelo jovem até o último suspiro, calvário de horror que ele conseguiu espiar por um buraco na parede do cárcere.

    As cartas e poemas sobre a tortura na obra de Polari, hoje seguidor do Santo Daime, fazem parte indelével da literatura memorial sobre o Golpe de 64. Já foram inclusive objeto de encenação em especial da rede Globo sobre Zuzu Angel. Embora esses fatos sejam de amplo conhecimento público, a aula provocou a ira de um pai de aluno, o radialista e ex-militar do Exército, Marcelo Fidêncio, que compareceu ao gabinete da prefeita Nilza Simas (PSL) para prestar queixa contra o conteúdo da leitura. Foi o pretexto para Willian Diógenes Meister receber uma advertência por conduta inadequada da direção da escola pública, localizada no bairro Várzea, no município de Itapema, Litoral Norte de Santa Catarina. Na terça-feira, véspera do Dia do Trabalhador, quando deveria renovar o seu contrato como professor Admitido em Caráter Temporário (ACT), a secretária municipal de Educação, Alessandra Simas Ghiotto, irmã da prefeita e ambas aliadas do Governo Bolsonaro, comunicou-o da dispensa do posto que ocupava de forma intermitente desde 2012 através de concurso público. O último contrato se referia ao seletivo do final de 2017, quando ficou em segundo lugar na sua área para escolha de vagas nos dois anos seguintes.

    Professor Willian Meister, ao lada da esposa, também professora: livros em vez de armas. (Foto: arquivo pessoal)

    Em linguagem de ACT, não renovar o contrato significa demissão. Casado com a também professora Alessandra Silva, dois filhos e desempregado, o professor não pensou um momento sequer em se curvar à arbitrariedade. No mesmo dia, entrou com representação no Ministério Público de Santa Catarina – MPSC denunciando a direção da EMEB Oswaldo dos Reis e a Secretaria de Educação da prefeitura por improbidade administrativa, assédio moral e violação da liberdade de cátedra.

    DESEMPREGADO NO PRIMEIRO DE MAIO

    Formado em Educação Física e dedicado à pedagogia, Willian Meister declarou em entrevista aos Jornalistas Livres que o caso dos poemas sobre tortura, classificado como crime hediondo, foi o ápice de um longo processo de perseguição político-ideológica. Assessorado pelo advogado Luiz Fernando Ozawa, ele explica o teor do documento jurídico: “Nossa representação ao MP contra a minha demissão denuncia vários indícios de assédio moral, com farta documentação, ocorridos desde o início do ano, que levaram a gestão da escola a cometer crime de improbidade administrativa”, afirma ele, que atua como militante social nas áreas de direitos humanos, políticas públicas e meio ambiente, hoje não mais filiado a nenhum partido.

    Marcelo Fidêncio, ex-militar do Exército que denunciou professor por abordar tema da tortura. (Foto do perfil do Facebook)

    A representação argumenta que a demissão fere o princípio da legalidade porque está baseada em uma advertência irregular, amparada unicamente na queixa do pai contra a discussão de um texto sobre a ditadura. No dia 14/04 último, coincidentemente data do 43° assassinato de Zuzu Angel, a reprimenda foi formalizada pelo diretor da escola sem direito à defesa, como pressupõe a lei, segundo afirma o professor: “Não fui ouvido, ninguém mais foi ouvido, não houve direito ao contraditório”, afirma, lembrando que os textos foram contextualizados e discutidos com os alunos para que levassem a uma compreensão histórica do período da ditadura. Acusado pelo pai de ministrar um conteúdo inapropriado para a disciplina, afirmou que o incentivo à leitura está previsto no projeto pedagógico interdisciplinar da escola.

    O advogado alega também quebra do princípio da impessoalidade, sustentado no fato de que a dispensa se caracteriza como punição a adversário político. Explica-se: em 2012, Willian Meister se candidatou a prefeito de Itapema pelo PSoL e, novamente em 2016, quando fez oposição à chapa vencedora do PSD, encabeçada por Nílza Simas. Eleita, a prefeita nomeou sua irmã Alessandra, também do PSD, ao cargo de secretária municipal de Educação e ambas se engajaram na campanha pela eleição de Bolsonaro (PSL), alinhadas com o diretor da escola, Emílio César da Silva (também presidente do Conselho Municipal de Educação de Itapema).

    Dois dias antes de receber a advertência, Meister soube pelo diretor que havia uma denúncia anônima de um pai “youtuber” à prefeita Nilza Simas por questões político-partidárias. Por conta disso, a secretária de Educação, irmã da prefeita, solicitou ao diretor e à supervisora que gerassem um relatório para apresentar ao “pai-denunciante”, mas não houve consulta ao denunciado. Desde a sua chegada à escola, em 2018, começaram os desentendimentos com Emílio que, segundo a representação, começou a deixar claro que a sua presença era indesejável na instituição. “No início, com divergências de ideias, metodologias e práticas, em discussões dentro dos limites do processo educacional. Porém, a partir do início do ano letivo de 2019, o diretor passou a intensificar suas ações no sentido de expulsar Meister de ‘sua’ escola, usando da burocracia para constranger o professor, seus alunos e suas práticas de ensino”.

    O professor demitido garante que não vai se submeter à sanção sem recorrer à justiça porque tem muito respeito e afeto pelos alunos e pela instituição, tanto é que escolheu a mesma escola onde trabalhou no período da seleção anterior, em 2016. “Quero levantar a cabeça e retornar à sala de aula. Acho importante passar essa mensagem à comunidade escolar de que o poder político cometeu excessos contra o professor, mas isso depende da interpretação do judiciário. Vou aguardar confiante”. Ainda que o tema seja forte, considera necessário conscientizar adolescentes e jovens sobre a tortura como crime contra a humanidade, considerado hediondo, inafiançável, imprescritível e não suscetível à anistia pelo Art. 5º, inciso XLIII da Constituição Federal.

    ESCOLA SEM TORTURA

    Governada por um militar reformado, o comandante Carlos Moisés, Santa Catarina tem sido cenário de assédios constantes de partidários do Projeto Escola Sem Partido a escolas e professores, como ressalta também a representação ao MP/SC. Deputada Ana Caroline Campagnolo (PSL), que se declara antifeminista e uma das baluartes desse projeto, embora sua inconstitucionalidade já tenha sido atestada pelo STF por violar a liberdade de ensino, estabeleceu sua base na região do Litoral Norte, à qual pertence o município de Itapema.

    Foto de Otávio Magalhães (O Globo), que comprova o assassinato de Zuzu Angel pelo coronel Perdigão (de branco, encostado no poste)

    Há 43 anos, fortemente impactada pela carta do poeta Alex Polari, Zuzu Angel deslanchou sua campanha nacional e internacional contra as atrocidades da ditadura militar e o assassinato do seu filho, cujo corpo nunca foi devolvido pelos militares. Só se calou ao morrer no dia 14 de abril de 1976, num sinistro acidente na Estrada da Gávea (Rio de Janeiro), na saída do túnel que hoje leva seu nome. O acidente é atribuído a uma sabotagem criminosa no seu Karmann Ghia executada pelo coronel do Exército Freddie Perdigão, identificado como torturador por vários presos políticos no governo Geisel. Além de vários outros indícios, ele foi flagrado numa foto jornalística ao lado do carro capotado, revelada somente em 2014, pelo ex-agente de repressão Cláudio Guerra.

    Em depoimento para a Comissão Nacional da Verdade, o advogado José Bezerra da Silva, outra testemunha da morte de Stuart, relatou que assistiu, no dia 14 de junho de 1971, à sessão de suplício final em que o jovem foi amarrado pela boca ao cano de descarga do jipe de um oficial militar e arrastado. Bezerra, que era soldado da Aeronáutica na época, reclamou da covardia e em resposta foi levado para a guarda e torturado. Por conta do espancamento, sofreu uma hemorragia no tórax e passou por uma cirurgia e ainda em recuperação foi arrancado da cama pelo tenente, seu chefe, para nova sessão de tortura. Parece que a prática de eliminar do cenário mães, poetas, militantes, jornalistas, professores e até militares que insistem em dar o testemunho das crueldades indecorosas do regime autoritário às futuras gerações voltou à cena nessa marcha-ré da história brasileira.

    Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)

     

    Por Alex Polari

    Poesia de Alex Polari denuncia a própria tortura e a de outros jovens nos porões da ditadura. (Foto: Socialista Morena)
    Eles costuraram tua boca
    com o silêncio
    e trespassaram teu corpo
    com uma corrente.
    Eles te arrastaram em um carro
    e te encheram de gases,
    eles cobriram teus gritos
    com chacotas.
    Um vento gelado soprava lá fora
    e os gemidos tinham a cadência
    dos passos dos sentinelas no pátio.
    Nele, os sentimentos não tinham eco
    nele, as baionetas eram de aço
    nele, os sentimentos e as baionetas
    se calaram.
    Um sentido totalmente diferente de existir
    se descobre ali,
    naquela sala.
    Um sentido totalmente diferente de morrer
    se morre ali,
    naquela vala.
    Eles queimaram nossa carne com os fios
    e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
    Igualmente vimos nossos rostos invertidos
    e eu testemunhei quando levaram teu corpo
    envolto em um tapete.
    Então houve o percurso sem volta
    houve a chuva que não molhou
    a noite que não era escura
    o tempo que não era tempo
    o amor que não era mais amor
    a coisa que não era mais coisa nenhuma.
    Entregue a perplexidades como estas,
    meus cabelos foram se embranquecendo
    e os dias foram se passando.

     

    Abaixo, cenas do especial da Globo sobre Zuzu Angel, no qual sua filha, Hildegard, fala do impacto da mãe ao receber a carta de Alex Polari, em maio de 1975, dando detalhes sobre a tortura e a morte de seu filho Stuart:

     

     

    Leia a matéria publicada pelo DIARINHO, de Itajaí, sob o título “Professor denuncia perseguição”, assinada por Sandro Silva

    Professor denuncia perseguição ideológica

    O professor Willian Meister, de Itapema, apresentou ontem no MP uma denúncia de perseguição político-ideológica praticada, segundo ele, pela direção da escola onde trabalhava e pela secretária de Educação da prefeitura de Itapema. Na terça-feira, Willian não teve o contrato de trabalho temporário renovado porque, segundo a secretaria, aplicou conteúdos inadequados. O professor havia lido com os alunos um texto-poema sobre tortura na ditadura militar.

    Willian dava aulas de educação Física na escola Básica Municipal Oswaldo Reis, na Várzea. Há cerca de 10 dias, como estava chovendo, a quadra estava em reforma e a última aula integrava um projeto de incentivo à leitura dos alunos, ele apresentou a uma turma da sétima série a coletânea de textos “A Tortura na Poesia de Alex Polari”.

    O poeta paraibano Alex Polari foi um dos muitos presos políticos do Brasil e foi quem, por exemplo, alertou a socialite e estilista Zuzu Angel que o filho Stuart havia sido preso, torturado e assassinado pela ditadura. Zuzu, na busca pelo filho, também foi assassinada pela ditadura. O professor diz que recebeu uma advertência sobre isso, mas sequer lhe apontaram detalhes de uma suposta denúncia de pai e que não teve direito à defesa.

    A Secretaria de Educação confirmou que a não renovação do contrato de trabalho de Willian tem a ver com o caso. “As denúncias foram realizadas por pais dos alunos referentes a prática e conteúdos abordados que não estavam de acordo com o planejamento pedagógico da disciplina de educação física”, informou a nota.

    Na representação contra a prefeitura e a direção da escola, Willian pede à promotoria que saia em defesa ao chamado direito de cátedra, que permite ao professor conduzir as aulas sob seu ponto de vista. Também pede a abertura de um inquérito civil para apurar crime de improbidade administrativa. “Esses ataques à educação, à liberdade de cátedra e à atuação do professor não são normais e não podem ser aceitos dentro de um estado democrático de direito”, argumenta.

    A coletânea de texto de Alex Polari, usada pelo professor, pode ser lida no link: encurtador.com.br/vKQY3

     

    Pai que denunciou professor é ex-militar

    O trabalho em sala de aula despertou a ira do ex-militar Marcelo Fidêncio, pai de um aluno de 12 anos. Foi ele quem, por duas vezes, procurou a escola e a secretaria de Educação para reclamar do professor.

    Marcelo sabe do programa de incentivo à leitura. Mas não concorda com o conteúdo do texto apresentado por Willian. “O texto dizia palavrões, que as crianças que ficavam enfileiradas para cantar o hino nacional eram retardadas e endemonhados”, diz o pai, que também não gostou do fato do professor ter citado que um prefeito de Balneário Camboriú (Higino Pio) chegou a ser torturado pela ditadura.

    “Ele é professor de educação e poderia ter dado texto sobre o Pelé ou sobre qualquer coisa”, entende o pai, que ainda acusa o professor de ter feito uma pressão generalizada nos alunos quando descobriu a denúncia e mesmo sem saber quem era o autor o chamou de “covarde” em sala de aula.

    Fidêncio esteve no Exército durante três anos.

    Tem 31 anos de jornalismo, formado em pedagogia pela Udesc e com MBA em Gestão Editorial. geral@diarinho.com.br

     

    https://diarinho.com.br/noticias/geral/professor-denuncia-perseguicao-ideologica/

     

     

     

     

  • FLIP INSURGENTE: Minorias políticas rodam a baiana e avisam que não deixam mais o palco literário de Paraty

    FLIP INSURGENTE: Minorias políticas rodam a baiana e avisam que não deixam mais o palco literário de Paraty

    Os leitores de hoje têm mais fome de realidade do que de ficção? Essa pergunta dirigida aos  debatedores estrangeiros da Festa Literária Internacional de Paraty saiu do painel “Trótski e os trópicos” sem uma resposta contundente. Mas tudo o que aconteceu na 15ª edição do evento, encerrado neste domingo (30/07), mostra que escritores e leitores brasileiros tendem a ver a literatura, mais do que nunca, como um espaço privilegiado para a tomada de consciência da realidade do país. Com Lima Barreto, mas não só com ele, se aprende que realidade e ficção não formam uma oposição, mas dois elementos inseparáveis na compreensão do jogo político pelas artes. Esse parece ser o grande recado da quinzenária Festa Literária, que debutou este ano, por força do duríssimo cenário político brasileiro, no mundo das lutas sociais.

    A reverência tardia à obra e à vida do escritor negro, pobre e anarco-comunista Lima Barreto foi o gatilho que faltava para colocar o racismo à frente de qualquer outra tragédia contemporânea, como a mácula vergonhosa deste tempo que a literatura ensina a não mais admitir. E em nome do racismo, todas as formas de exclusão social contra pobres, mulheres, indígenas, quilombolas, jovens das periferias foram tratadas como questões caras e urgentes nessa grande assembleia literária pela qual passaram mais de 50 mil pessoas, segundo os organizadores.

    Do  professor que fazia seu protesto contra o fechamento de escolas públicas no Rio de Janeiro na abertura do FLIP ao mero ouvinte, do pesquisador história e literatura ao leitor curioso; do biógrafo e escritor ao ativista social: todos de alguma forma inscreveram na FLIP seu brado contra a persistência dessa ferida colonial no Brasil moderno. Todos o fizeram com brilhantismo, como Conceição Evaristo, ao denunciar o retardo que a associação do racismo ao machismo produziu no seu ingresso, e no de outras escritoras negras, no campo da literatura.  Ou como o historiador baiano João José Reis, que se manifestou contra a perda das cotas raciais nas universidades como uma tentativa do governo ilegítimo de travar a escalada vitoriosa de acesso de negros à educação superior.

    Público subverteu modelo elitista dos auditórios, concentrando-se no espaço dos não-pagantes, onde as manifestações eram mais efusivas

    No mesmo caminho, a antropóloga Lilia Schwarz chamou a atenção para a espantosa atualidade da literatura de Lima Barreto na denúncia à hipocrisia e à crueldade da sociedade da República velha, representada pela Academia Brasileira de Letras, na figura do pernóstico Coelho Neto, baluarte do pensamento conservador na época. Um Lima Barreto é muito pouco para lutar contra a permanência desse Brasil de ontem. “Para combater esse horror precisamos de muitos mais Limas e menos Coelhos Netos”, lacrou o teórico Antônio Arnoni Prado, um dos primeiros pesquisadores de Lima.

    Nas árvores, os caiçaras protestam contra o roubo das águas de Paraty

    Michel Temer é, para Arnoni, a expressão mais acabada dos personagens do Brasil corrupto e escravagista desenhado pelo autor. Político arrogante e empolado, adepto às mesóclises e avesso às camadas populares, que chegou onde chegou sem outro mérito a não ser pertencer às elites que tomaram o poder. Na mesma linha da historiadora Beatriz Resende, a jornalista e pesquisadora Luciana Hipólito, autora de “Literatura de urgência: Lima Barreto no domínio da loucura”, chegou a afirmar que se tivéssemos ouvido mais essa voz negra da literatura nos primeiros anos do século XX, e aprendido com ela, não teríamos chegado ao horror da realidade de hoje.

    Muitos outros palestrantes fizeram manifestações políticas semelhantes e foram apoiados pela maioria do público em todos os espaços de debate e encenação artística. Mas foi uma professora de escola pública do Paraná que tomou a palavra para fazer a literatura oral mais eloquente e perturbadora dos cinco dias de intensiva assembleia literária. A voz anônima surgiu num corpo negro de cabelos brancos no meio da plateia, como o espasmo de um soluço. Foi essa neta de escravos, filha de uma mãe pobre, que lavava roupa em troca de lápis, caderno ou qualquer material escolar para que os filhas pudessem estudar, a narradora mais potente do maior evento literário do Brasil. Diva Guimarães, como ela se identificaria ao final, a pedido do ator Lázaro Ramos, fez do testemunho político de sua vida a mais literária e sincera narrativa.

    Ao tomar a palavra, desculpando-se pela ousadia e prometendo ser rápida, Diva se disse profundamente tocada e encorajada pelo painel do dia anterior, no qual “as moças contam que escrevem em homenagem as suas mães”. Diva assistiu à mesa “Em nome da mãe”, com  a escritora Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de ruanda, que criou no livro “A mulher de pés descalços”, um sepultamento simbólico de papel para dar um ritual imaginário de morte à mãe. A ruandense compartilhou sua história com a brasileira Noemi Jaffe, autora de “O que os cegos estão sonhando”, obra criada a partir do diário da mãe, uma sobrevivente do holocausto nazista. Ambas disseram que escrevem para suportar a dor.

    Diva se sentiu “profundamente tocada” com o gesto das moças e também achou que tinha o dever de se levantar no meio da multidão, enfrentar a dor e a timidez e ser mais forte do que o próprio pranto para reverenciar a sua mãe preta de pés descalços. “Eu também sobrevivi e sobrevivo como brasileira porque tive uma mãe que fez de tudo, que passou todo tipo de humilhação para que nós estudássemos”. Por isso ela lutava de cabeça baixa para controlar a comoção que o testemunho lhe causava: tinha de ser forte para cumprir até o fim a sua homenagem diante daquela multidão toda de leitores. Com os olhos faiscantes da insurgência dos humildes, contou que ela e outras meninas foram recolhidas no interior do Paraná por uma missão da Igreja a pretexto de ir estudar em Curitiba, e antes de completar cinco anos, se tornou uma escrava das freiras católicas num colégio interno.

    E por que Diva foi capaz de levar às lágrimas e de levantar para aplaudi-la vigorosamente a plateia em peso do auditório da Praça, incluindo o próprio Lázaro Ramos, que falava sobre a própria experiência como negro no painel “A pele que habito”? Por que ela, mais do que qualquer um dos 44 sábios oradores e especialistas mobilizados pela feira, produziu essa tomada venal de consciência que só a literatura é capaz de provocar, segundo Lima Barreto?

    Certamente porque na voz dessa senhora ao mesmo tempo trêmula e destemida, que chegou a ser amparada para prosseguir no seu jorro de fala, a literatura e a vida tenham se reunido novamente. Na sua boca, a literatura, sempre utilizada pelos esnobes para marcar a linha divisória entre as classes, finalmente mostrou sua potência de arrebatar as almas e de promover a solidariedade entre os homens, como propunha Lima Barreto em seu manifesto por uma “literatura militante”. Por que a sua narrativa singela e vigorosa foi tão comovente?

    Talvez porque nela se materialize aquilo que Conceição Evaristo, entrevistada por Ana Conceição Gonçalves no painel “Amadas”, que encerrou a programação na tarde de domingo, chamou de “arte da escrevivência”. Com esse neologismo, a autora de “Um defeito de cor” e “Insubmissas lágrimas de mulheres” quer nomear a literatura brotada e talhada da própria vivência ou da própria sofrência dessas vozes brasileiras escreventes.

    Como se fosse uma das “amadas” saídas dos romances de Conceição, Diva revelou que conheceu a discriminação aos seis anos, quando as freiras do colégio interno contaram a história que explicaria a pele escura de uns e clara de outros. Para quem foi “recolhida no mato”, como ela, as freiras diziam que quando o mundo começou, deus criou um rio e mandou todos tomarem banho, “naquela água abençoada do maldito rio”, diz dona Diva com a autoridade de seus 77 anos de opressão, sem esconder a rebeldia. Então, todas as pessoas inteligentes e trabalhadoras que se esforçaram para chegar ao rio conseguiram se lavar e ficaram brancas. “Mas nós, como negros preguiçosos” – e ela interrompe, bate no peito e bufa de dor e se cala por uns instantes eternos, calma Diva, calma Diva e continua, sob os aplausos que tentam encorajá-la – “nós chegamos no final, quando todos já tinham se banhado e só havia lama”. Então, os negros só tiveram tempo de lavar a palma das mãos e a sola do pés. Por isso, concluiu ela, erguendo para a plateia a palma das mãos, e afirmando o que os olhos arregalados de torpor desmentiam, “porque somos preguiçosos, temos apenas essas duas partes do corpo claras”.

    Diva arrancou essa dolorosa narrativa do fundo de um espasmo, como se no instante mesmo da sua fala, ela e toda a multidão da FLIP, ela e todas as meninas e meninos negros e pobres escravizados pelas igrejas no interior do Paraná vivessem o horror de um segredo revelado.

     

    O testemunho de Diva Guimarães insurgiu na multidão da FLIP, assombrando os leitores como um romance sobre luta e opressão que provoca por dentro um silencioso furacão

    Mas a fábula racista sobre a cor negra, que muitos brasileiros ouviram nas escolas regidas por brancos, não convenceu a menina Diva. “Se fôssemos preguiçosos, não teríamos sobrevivido. Se o Brasil existe é porque os meus antepassados o construíram”. Estimulada pela mãe, ela estudou mais do que era devido a uma menina pobre. Sempre que pensava em desistir da escola por causa do racismo, era vencida pelo argumento da mãe de que se não estudasse teria o mesmo destino dela. Quando se formou em Educação Física e se tornou professora da rede pública de Curitiba, em plena ditadura, ensinou o mesmo aos seus alunos: que deveriam estudar se quisessem ser livres. Por isso foi perseguida e combatida: “Eu era considerada uma subversiva!”.  Ela, que teve o direito à infância roubado, que teve a liberdade usada como moeda de troca para estudar, tornou-se uma defensora ferrenha da educação pública e nunca mais parou de estudar. “Eu sou uma sobrevivente da educação e sou uma sobrevivente da luta”, afirmou Diva, inconformada com o fato de o governo do Paraná ter cortado a bolsa dos cotistas negros, que recebiam R$ 400,00 para se manter nas universidades.

    Ao desnudar a violência do racismo desencantando a lenda da diferença, a professora paranaense aposentada deu a resposta exata à questão inicial. Mostrou que ficção e realidade sempre caminharam juntas, seja para separar a humanidade imiscuindo nas histórias a ideologia da dominação, ou para libertar os povos oprimidos com a narrativa da resistência. Toda literatura digna de ser chamada como tal busca a verdade coletiva de um povo – ou como disse a repórter-escritora argentina Leila Guerriero, não existe literatura que não se refira à realidade. Prenhe de vigor estético e apuro ético, o depoimento da professora negra viralizou na internet e nas redes sociais. E segue impactando muitos mais leitores do que a FLIP teria capacidade de reunir no elitizado auditório da Igreja Matriz ou mesmo na tenda de projeção.

    A COLETIVA DE ENCERRAMENTO

    Curadora Josélia Aguiar, à esquerda, pediu que  coletivos negros e ativistas sociais não deixem a FLIP caso próximo homenageado não seja negro

    Numa entrevista coletiva fria e burocrática, com poucas perguntas e respostas curtas e evasivas, a equipe responsável pela organização da 15ª FLIP fez o balanço de encerramento para cerca de 20 jornalistas. A mais entusiasmada, a curadora Joselia Aguiar, falou rapidamente, se disse feliz com os resultados, destacou os ganhos com a diversidade e se retirou antes do término para participar das mesas de encerramento. Nem ela, nem o diretor presidente da Fundação Casa Azul, Mauro Munhoz, pareceram conscientes da revolução que ocorreu no evento por conta do espaço rasgado pelas minorias políticas, com a acolhida de sua própria direção.

    A primeira pergunta veio questionando se o tom político da feira era determinado pelo momento brasileiro atual e se tenderia a persistir nos próximos eventos. Tanto Joselia quanto Munhoz procuraram neutralizar as manifestações contra Temer, contra o extermínio de jovens negros pela polícia,  o aprofundamento do racismo e o corte das cotas,  o atraso no pagamento dos salários de professores no Rio de Janeiro ou o fechamento de escolas. Ambos argumentaram que era natural os painelistas se posicionarem a partir das demandas do público. Mesmo os estrangeiros se manifestaram contra Trump, no caso do escritor jamaicano Marlon James e do poeta estadunidense Paul Beatty, como lembrou Josélia. Antes de sair, a curadora deixou no ar um pedido que soou ambíguo como uma ameaça velada numa calorosa acolhida: “Quero pedir aos coletivos negros e ativistas sociais que permaneçam para sempre na FLIP, mesmo caso o próximo homenageado não seja uma mulher ou não pertença a uma minoria”.

    O diretor da fundação que patrocina o evento reafirmou que a feira economizou R$ um milhão com o novo formato, eliminando a grande tenda gigante próxima ao canal, as oficinas, a biblioteca na Mangueira e  as iniciativas descentralizadas em municípios mais carentes para concentrar todas as atividades no centro de Paraty. “Antes tínhamos um país que estava se expandindo e a FLIP tinha esse movimento de descentralização da cultura. Agora vivemos em outro país que precisa se concentrar e se fortalecer pra voltar a pensar nesses projetos mais complexos que dependem de mais investimento público”.

    Debates ao vivo dentro do auditório da Igreja Matriz foram muitas vezes preteridos pelo público, que preferiu a projeção na praça

    Com um discurso conformista, defendendo a “adaptação da feira aos novos tempos”, Munhoz insistiu no sucesso do auditório para pagantes na Igreja Matriz, onde se concentraram a maioria dos paineis “ao vivo”. Garantiu que todos os 400 ingressos para cada uma das sessões foram vendidos e utilizados, embora todos tenham testemunhado o esvaziamento progressivo desse espaço privatizado em favor do crescimento da audiência gratuita na tenda de projeção. Em torno dela o público chegou a pelo menos menos duas mil pessoas em vários momentos, ultrapassando em muito a lotação de 700 lugares com cadeiras fixada por ele. Isso significa que o próprio público subverteu o modelo elitista e a separação dos auditórios ao se manifestar de forma muito mais efusiva e espontânea no local de livre acesso. Apesar disso, Munhoz afirmou que o espaço intimista será mantido porque é “mais adequado para determinados tipos de paineis”.

     

     

    Ao final de sua mesa, Conceição Evaristo afirmou que mulheres e negros fizeram a ocupação da FLIP e não pretendem mais sair dela. “Vai ser muito difícil voltar atrás e nos tirar daqui, porque não sairemos mais”. Para outro grande estudioso de Lima, o professor da UFMG Edmilson de Almeida Pereira, poeta e especialista na diáspora africana no Brasil, o espaço foi uma conquista dos movimentos sociais que qualificou o evento. “Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, lembra o pesquisador. Muitas vezes os painelistas e artistas referenciaram Rafael Braga, Ricardo Nascimento e Jonathan Bidoia Neres e os jovens negros presos, torturados ou mortos pela polícia de extermínio. “Essa dimensão política da arte sempre esteve presente e tende a se agudizar com o estado de exceção no país”, sustenta Edmilson.

     

    “Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, afirma o pesquisador Edmilson de Almeida Pereira

    O melhor emblema de tudo isso talvez seja a performance multimidiática “Fruto estranho”, apresentada pelo ator e poeta Ricardo Aleixo, na abertura do evento, a partir da mistura de fragmentos de textos de Lima Barreto e de sua própria lavra. A imagem de um artista como um livro vivo onde a pele é a própria escritura do mundo evoca esse movimento de hibridização com as lutas sociais. Se o negro é uma invenção do branco, como diz o poema, cabe a literatura reinventá-lo como uma fabulação de si e por si.

     

    TROPEÇANDO NAS RUAS DA LITERATURA

    Pelas ruas de Paraty, a literatura que todos os anos enche a cidade da algazarra dos diferentes acentos e línguas, de poesia, dança, música, teatro e livros, tropeça na escravidão em cada pedra do calçamento antigo, em cada construção que presentifica suor e sangue negros derramados. Ainda que queira, os olhos da escritura não podem se desviar do trabalho infantil em torno da presença dos turistas. A literatura do testemunho, que arrebatou o público nesta edição da FLIP, não pode mais ignorar os sobreviventes contemporâneos dos extermínios que desfilam diante dos olhos dos turistas.

    Não basta abrir um painel na programação para reconhecer a presença exótica de caiçaras, negros, quilombolas, indígenas: é preciso dedicar a eles toda a produção intelectual e artística brasileira. Eles não formam uma parte ou uma “aldeia” da literatura, mas são os verdadeiros anfitriões da festa como protagonistas da cultura nacional. E isso vale também para as centenas de coletivos de jovens artistas das tribos urbanas de todo o país que, atraídos todos os anos para o evento, fazem seu trabalho nas ruas de Paraty. São eles que trazem as artes para a plenitude da vida, promovendo saraus de literatura periférica, rodas de batuque, manifestos de poesia marginal, varais literários que aproximam a arte do povo, como fez Paulo Leminski ou Lindolf Bell. Eles continuam totalmente à margem da programação da feira.

     

     

    Depois de atingir 15 anos, a FLIP não pode mais ignorar a literatura dos Guarani Mbya sobreviventes da dizimação, que expõem seus artesanatos nas calçadas, sob pena de construir um evento tão fake quanto uma cidade onde tudo gira em torno do turismo. Os milhares de forasteiros que se esbaldam todos os anos nos restaurantes e hoteis de Paraty não podem continuar esquecendo que os primeiros habitantes desse paraíso estão em plena luta por território. E ainda são acusados de serem “índios falsificados do Paraguai” numa cidade onde tudo – praias, moradores, pratos típicos, danças, ritmos musicais – carrega nomes como Janaína, Catimbau, Cajaíba, Cachadaço, Saco do Mamanguá e cateretê.

    Antes tarde do que nunca, os amantes das letras se depararam também com as manifestações políticas e culturais dos quilombolas do Campinho da Independência, que estão em luta por seus direitos. Viram os estudantes cotistas protestando contra o prefeito de Paraty, Carlos José Miranda (PMDB), que suspendeu o transporte público para a universidade dos municípios vizinhos.  E os caiçaras denunciando o roubo da água natural para engarrafamento e comercialização a preço de ouro. Ao mesmo tempo que reconhece a conquista de um espaço cultural e intelectual dominando pela identidade masculina e branca, a jornalista Tatiana Carvalho Costa, integrante do coletivo Elas Pretas, de São Paulo, que está em Paraty fazendo um filme sobre a obra de Ricardo Aleixo, se sentiu constrangida com o assédio às mulheres negras. “Pessoas se aproximam da gente, como se nossa presença na feira fosse algo extraordinário, como se o nosso corpo negro fosse um lugar de expiação do sentimento de culpa”.

    A verdade mais nua e crua sobre o impacto negro na festa das elites, quem disse foi ela, dona Diva: “Aparentemente tivemos uma libertação que não existe até hoje”. Já na abertura, uma enorme faixa do Sindicato Estadual dos Profissionais na Educação do Rio de Janeiro, protestando contra o sucateamento da educação pública, recomendava que os participantes da FLIP lessem a obra de Lima Barreto para entender a realidade brasileira atual. Ao final a faixa exclamava: “Salve Lima Barreto!” Salve também Diva Guimarães e todas as negras e negros que rasgam seu lugar na literatura. Subversivas e subversivos!

     

     

     

  • LITERATURA MILITANTE: Maior evento literário do Brasil torna-se palco de protesto contra obscurantismo social do país

    LITERATURA MILITANTE: Maior evento literário do Brasil torna-se palco de protesto contra obscurantismo social do país

    É verdade que o escritor negro Lima Barreto morreu pobre, doente, desprezado e enlouquecido, sem o reconhecimento que seu talento e sua inteligência mereciam. Mas sua luta por um lugar na literatura do Brasil racista do início da República está longe de ter sido em vão, temor que deixou registrado num de seus últimos escritos. A reverência a sua obra pela 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty foi suficiente para tirar o evento de qualquer lugar de culto elitista à erudição separada da cultura popular e da realidade nacional, o que seria contraditório com o legado do autor. Como um ciclone capaz de levar o Brasil a retornar-se sobre si mesmo, a homenagem fez da Feira um evento também caracterizado pela reflexão sobre o atravessamento da tragédia política e social do país na sua produção literária.

    Única sobrevivente de sua família no genocídio de Ruanda, Scholastique representa a literatura do testemunho

    Num clima de denúncia, protestos e diversidade, a Festa de Paraty ficou menos elitista e um pouco mais coerente com o autor que ela reverencia, o cultíssimo descendente de escravos que defendia a cultura popular e propunha o manifesto de uma literatura militante contra o racismo, o machismo e toda a forma de opressão. Com Lima feito uma espécie de guerreiro póstumo no front de um expressivo cordão de autores que rasgou o seu espaço na FLIP, o evento também se tornou uma feira militante da diversidade. Fazem parte desse cordão mulheres feministas, negros, quilombolas, indígenas, testemunhas de guerras de extermínio, como a escritora da etinia tutsi, Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de Ruanda, que lança sua literatura de testemunho na FLIP com Pés descalços. E ainda a angolana Djaimilia Pereira de Almeida, autora de Esse cabelo, uma ficção que traz para a narrativa a questão do corpo como identidade étnica. Na noite do dia 27, Mukasonga compartilhou com a brasileira Noemi Jaffe, cuja obra reverencia a mãe sobrevivente do holocausto nazista, um dos mais densos e tocantes painéis. A ruandense disse que escreve para suportar o horror que ela e sua família viveram e fazer valer o privilégio de ter escapado viva.

    Desde a abertura na quarta-feira (26/7), a quinzenária FLIP promete não ser a mesma que reproduziu, na sua última edição, o modelo dominante de sociedade colonial, onde mulheres, índios, negros e pobres estão marginalizados do mundo da cultura. O reconhecimento público desses autores em nível nacional e internacional mostra que o boicote à “literatura militante” pelo cânone e pelo mercado não passa de preconceito. Mostra ainda que se o artista não se engaja às questões políticas que falam dos dramas humanitários do seu tempo, o seu tempo o engaja nessas tragédias. Nesse espírito de contraliteratura, a abertura e o primeiro dia da mostra foram marcados pela implicação do movimento político no estético que caracteriza as épocas sombrias.

    Manifestações políticas marcam a 15ª edição da Festa de Paraty

    Houve protesto, houve Fora Temer, Fora Pezão, manifestações efusivas durante o espetáculo de abertura que continuaram no dia seguinte. No recital que acompanhou a linha de tempo de sua dramática biografia, apresentada pela historiadora e professora de antropologia da USP Liliam Schwarz, a obra e a trajetória de Lima Barreto atingiram atualidade máxima. A leitura de Lázaro Ramos para os trechos mais primorosos de Lima acentuou a potência da retórica literária de Lima, que na mesma cena sintetiza um realismo cru com impagável humor popular, para em seguida alcançar o lirismo dos grandes clássicos. As passagens mostram a tragédia de personagens negros, negras e pobres idealistas que ousaram, como ele e seu Policaropo Quaresma, atravessar os territórios da cultura e da intelectualidade sob o domínio branco, masculino e burguês.

    Um retumbante brado de Fora Temer foi a forma do público aplaudir e agradecer a dupla que  surpreendeu a plateia maior de não-pagantes, limitada à tenda de projeção em frente à Praça, para refazer ao vivo a leitura dramática de encerramento. Diante de cerca de mil pessoas, Lázaro deu vida à voz de um Lima Barreto de clareza e refinamento encantadores ao apresentar as bases do que considerava ser a tarefa da literatura e das artes. À diferença dos poderosos diletantes, que elitizam a literatura para aprofundar a diferença entre as classes, a literatura, segundo Lima, serve para derrubar os muros entre os homens. Serve para tornar a humanidade mais tolerante, fazendo-a conhecer melhor sua condição, entendendo suas virtudes e fraquezas. “A missão da literatura é fazer comunicar umas almas às outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é ligá-las mais fortemente, reforçando assim a solidariedade humana, tornando os homens mais capazes para se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade”.

    Desde a abertura, as manifestações políticas marcam as conferências e debates, quando palestrantes são interrompidos para serem ovacionados cada vez que denunciam, através de Lima Barreto, o obscurantismo social que o Brasil vive hoje e a violência contra os que fogem aos padrões dominantes de subjetividade. Isso ocorreu muitas vezes quando o poeta e ensaísta negro Edmilson de Almeida Pereira, professor da Universidade de Juiz de Fora (MG), pesquisador das contribuições africanas na língua portuguesa, analisou o impacto da obra de Lima Barreto como a permanência de um passado que sabota as possibilidades de expressão artística para os marginalizados. Pereira dividiu o painel Arqueologia de um Autor, ocorrido na manhã do dia 27, com a professora Beatriz Resende (UFRJ), organizadora da obra principal de Lima Barreto, e o pesquisador Filipe Botelho Correa, professor do Kings´s College London, que recuperou textos inéditos de Lima Barreto. Beatriz foi igualmente ovacionada ao comentar a denúncia do autor carioca à corrupção sistêmica no Brasil republicano e lamentar a ausência de colegas da UERJ, como Ítalo Moriconi, entre outros, que não puderam vir à feira porque estão há quatro meses sem receber salário.

    A leitura dramática de Lázaro Ramos funde-se com a escrita insurgente de Lima Barreto

    Empobrecida pelo corte violento de recursos federais e estaduais, esta Feira se tornou ainda mais seletiva para os que foram convidados ou conseguiram comprar ingressos para as apresentações, palestras e mesas-redondas concentrados no auditório da Igreja da Matriz Nossa Senhora dos Remédios. Mas a curadoria sensível de Joselia Aguiar impediu que o evento assumisse os ares de festa de esnobes diletantistas. Além de criar a tenda de projeção como um espaço para a inclusão gratuita de todos os que conseguiram chegar à belíssima Paraty, criou um espaço para discussão de literatura não-canônica no painel Aldeia. Na manhã de quinta-feira (27), o painel reuniu escritores e educadores de povos tradicionais para discutir a literatura oral e escrita que está intrinsicamente conectada a suas lutas coletivos pelo direito à vida e à identidade. Participaram Ivanildes Kerexú Pereira da Silva, ativista feminista e professora na Escola Paraty Mirim, na aldeia Guarani Mbya Itaxi; Laura Maria dos Santos, arte-educadora e militante pela educação e pela cultura quilombola na região de Paraty e Álvaro Tukano, pensador indígena do Alto do Rio Negro, que lançou na feira O mundo Tukano Antes dos Brancos. Um dos precursores do movimento indígena brasileiro, Álvaro Tukano mobilizou a plateia ao afirmar que no Brasil se procura imitar os europeus, quando a maior parte dos autores e dos leitores ignora a literatura indígena que deveria fazer parte da formação de todos os brasileiros.

    Pensador indígena Álvaro Tukano reclamou o lugar da literatura dos povos tradicionais na cultura brasileira

    CONTRA O FIM DOS POLICARPOS

    Antes mesmo da abertura, um manifesto liderado pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro quebrou a zona de conforto dos convidados e pagantes que avançavam na fila para a cerimônia de estreia no auditório da Igreja da Matriz. Empunhando faixas com dizeres irônicos, como “Triste fim para milhares de Policarpos Quaresmas”, professores, estudantes e servidores de escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro protestavam contra o fechamento de 300 escolas pelo governo do Rio de Janeiro e contra o atraso no pagamento dos educadores que, segundo eles, fará se repetir o destino de Policarpo Quaresma, condenando à morte cultural os estudantes das periferias. “Estamos aqui hoje abrindo a Flip para denunciar o descaso do governo do Estado com as escolas públicas do Rio de Janeiro, onde estudam a maioria dos filhos dos trabalhadores”, afirmou Clarice Ávila, diretora do SEPE e professora de Língua Portuguesa para mudos em Barra Mansa.  “Estamos aqui representando milhares de Limas Barretos que, na época do início da República também foi esquecido pelos cânones da literatura brasileira, que o acusavam de ser panfletário, simplesmente porque denunciava o racismo e toda a forma de opressão”.

    Outros educadores se alternaram ao microfone, contando a vida de Lima e recomendando a leitura de seus livros para que sua tenha um impacto verdadeiro nas decisões políticas e no comportamento do povo brasileiro. “Os participantes da Festa de Paraty, um evento que discute as questões da cultura, precisam saber que este governo não está atento à educação de qualidade para a maioria que dela precisa”, acrescentou a professora Cecília de Araújo Brás, do Sepe de Barra Mansa. Usando alto-falante, os professores lembraram que Lima Barreto está sendo homenageando tardiamente e em nome dele é preciso denunciar  todas as injustiças de Pezão e seus aliados contra o Rio de Janeiro e contra a educação pública que só fortalecem a elitização do ensino. “Não basta homenagear: é preciso refletir sobre a história de lima Barreto, que é muito atual. Tudo que ele denunciava estamos vivendo no século XXI”, lembra Clarice. Além de Barra Mansa, estavam presente professores de Barra do Piraí, Volta Redonda e São Gonzalo.

    Protesto na entrada do auditório da FLIP denunciou o fechamento de 300 escolas públicas

    Ao fundo, Lima Barreto e esta paradigmática edição da Festa Literária de Paraty mostram que não há oposição entre o estético e o político, assim como não há separação entre erudição e cultura popular. O sociólogo Walter Benjamin nos permite definir erudição justamente como a capacidade dos grandes narradores de buscar a experiência coletiva da cultura, subindo e descendo os escalões dessa experiência com a facilidade de quem percorre nos dois sentidos os degraus de uma mesma escada. “O grande narrador está sempre enraizado no povo”, escreveu Benjamin. Ao mesmo tempo em que avança para baixo e afunda seus pés na terra, enraizando-se na cultura popular, ele se esgueira para cima, perdendo-se além das nuvens, em direção ao clássico.

    A literatura moderna, em todas as suas formas de expressão, consiste, como defendeu Lima Barreto em seu manifesto por uma literatura militante, no talento de falar, em uma linguagem clara e capaz de mobilizar as massas sobre as estruturas de opressão invisíveis que só a arte pode fazer emergir de modo mais compungente. “A literatura trabalha pela união da espécie. Assim, trabalhando, concorre, portanto, para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade”, escreve o autor de uma das obras mais contundentes contra a soberba e a ignorância das elites brasileiras, excluído pela Academia Brasileira de Letras, morto aos 41 anos, mas imortalizado por sua literatura dos vencidos. O ilustradíssimo descendente de escravos continua botando o dedo na ferida da mentalidade colonialista.

    Lázaro Ramos: o Brasil ainda ceifa a vida de talentos como Lima Barreto