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  • Sobreviventes negros tomam a cena na Festa Literária mais importante do país

    Sobreviventes negros tomam a cena na Festa Literária mais importante do país

    Luara Wandelli Loth especial para os Jornalistas Livres

    “Lima Barreto não escrevia com tranquilidade, escrevia com assombro”, define o professor, poeta e ensaísta, Edimilson de Almeida Pereira, o homenageado da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Essa edição, que terminou no domingo 30/07, contou com a maior presença de mulheres e escritores negros de sua história.

    O escritor e jornalista carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881–1922), morto precocemente no ano da Semana de Arte Moderna de 1922, sabia que escrevia suas críticas ácidas, típicas de um “escritor do contra”, como ele mesmo se definia, em um terreno inóspito e incapaz de reconhecer a genialidade de um intelectual negro e pobre.

    Nascido exatamente sete anos antes da proclamação da Lei Áurea, fato que comemorou com os companheiros de escola, deslumbrado com a promessa de liberdade, o autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) ganhou o título de “Triste visionário” de sua mais recente biógrafa, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Clara dos Anjos, publicado apenas em 1948, quase três década após a morte do autor, possui o mérito de ter sido um dos primeiros romances brasileiros a eleger uma mulher negra como protagonista.

    Por meio da indignação e da amargura expressas em seu estilo inconfundível, Lima Barreto percebeu que o fim da escravidão não abalara as estruturas profundamente racistas, elitistas e excludentes da sociedade brasileira.

    A atualidade de sua obra também assombra. Os grandes temas sobre os quais se debruçava, mirando a transformação radical da sociedade, e as contradições que insistia em vasculhar em sua literatura militante continuam assolando o país.

    Para alcançar o povo, Lima Barreto era claro e sincero e recusava a arrogância e a afetação, que acometiam alguns literatos de seu tempo, para ele, empenhados em reproduzir a cultura europeia e dos Estados Unidos.

    A literatura de Lima Barreto era “de urgência”, como concordaram os especialistas, Beatriz Resende, Edimilson de Almeida Pereira e Felipe Botelho Corrêa na mesa Arqueologia de um escritor, realizada na quinta-feira, 27/07. Lima Barreto precisava sobreviver na marginalidade, no subúrbio, pois não era bem-vindo no centro da cidade e da vida cultural. Anarquista, conhecia a violência do Estado brasileiro contra seus críticos.

    Na juventude, Lima Barreto não conseguiu concluir os estudos de Engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Em comunicado divulgado, na sexta-feira, 28/07, a diretoria da Escola Politécnica reconheceu que o Lima Barreto foi vítima de racismo dentro da instituição e saudou a homenagem promovida pela Flip 2017.

    O pai de Lima Barreto começou a enlouquecer no início do século XX. Com o passar dos anos, o escritor desenvolveu alcoolismo. Aposentou-se por invalidez em um cargo do estado, carreira que inspirou muitas de suas vorazes críticas ao funcionalismo público. Defendeu o anarquismo e os grevistas com paixão. Elogiou a Revolução Russa. Troçou da arrogância de doutores e literatos, aproximando-se do povo e das ruas da cidade por onde deambulava em meio à boemia. Condenou os feminicídios de sua época, tão semelhantes aos de nosso século XXI.

    Lima Barreto foi internado à força em um manicômio por duas vezes. A última internação deu-se pouco antes de sua morte. No diário, escreveu sobre a violência com a qual o Estado submetia os internos, quase todos negros. A experiência resultou na autoficção de confinamento O cemitério dos vivos. O livro também foi publicado postumamente, em 1953, graças ao trabalho do primeiro biógrafo do autor, Francisco de Assis Barbosa.

    Em um desencontro entre vanguardistas, Lima desentendeu-se com os modernistas de São Paulo, após uma crítica feroz contra a revista Klaxon, considerada pelo carioca uma cópia do futurismo europeu e que podia ser facilmente confundida com uma “propaganda de automóveis”.

    Praticamente isolado dos movimentos literários, Lima Barreto foi considerado por muito tempo um pré-modernista na academia, mas a curadoria da 15ª Flip apresenta outra tese: “Lima foi um moderno antes do modernismo”.

    Edimilson de Almeida faz balanço sobre a Flip, durante a mesa de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves

    Sobreviventes

    Outros convidados e convidadas da 15ª Flip — pela primeira vez a maioria é de mulheres — revelam que o perigo de ser negro não é uma tragédia datada de quase um século atrás, da Primeira República brasileira, época de reformas urbanas higienistas e repressões como a Canudos e à Revolta da Vacina. Ser negro em sociedades desiguais é um risco enfrentado por todos os escritores da diáspora africana.

    Na noite de quinta-feira, 27/07, a mesa “Em nome da mãe” trouxe um diálogo entre duas filhas. Uma delas, a sobrevivente ruandesa, Scholastique Mukasonga mareou os olhos do público ao compartilhar memórias transcritas nos livros Inyenzi ou les Cafards, de 2006, e nos romances A mulher dos pés descalços e Nossa senhora do Nilo, recentemente traduzidos para o português e que serão publicados no país pela editora Nós.

    Scholastique reverencia sua mãe, Stefania, “morta como uma barata”, durante o genocídio de 1994 em Ruanda. Foi a mãe Stefania, que tinha a habilidade de “enxergar com os pés”, que ensinou Scholastique a sobreviver: “Meus pés me levaram ao Burundi e eu estava descalça”, referindo-se ao drama da fuga de uma guerra fratricida. A guerra civil em Ruanda dizimou pelo menos 500 mil pessoas, a maioria da etnia tutsis, entre elas, a mãe e as quatro irmãs, dezenas de familiares de Scholastique e todas as pessoas do povoado onde nasceu.

    “Eu tinha mortos sem corpos. Eu tinha que construir as sepulturas com as palavras, túmulos de papeis”, descreve sua luta árdua contra o esquecimento por meio da literatura, que, para ela, tirou a mãe Stefania da vala comum. Escrevendo a história de sua terra na França, onde mora desde 1992, Scholastique pode cumprir seu dever de testemunha e recompensar a mãe por não ter podido “cobrir seu corpo com um pano”, pedido reiterado diversas vezes quando Stefania era viva.

    Outro escritor da diáspora celebrado na atualidade é o jamaicano James Marlon. Radicado nos Estados Unidos desde 2007 e ganhador do importante prêmio Man Booker Prize. No início da carreira, o livro de James Marlon foi rejeitado 78 vezes por editores. Desolado, chegou a apagar o original do romance, como contou na coletiva imprensa na manhã de sexta-feira, 28/07. Mas, com ajuda de um aplicativo, um ano depois de ter apertado a tecla “delete”, Marlon recuperou as páginas e finalmente conseguiu a publicação sonhada.

    “Mesmo em um país onde 99% da população é negra, a invisibilidade do negro é uma realidade. Essa é uma das heranças do colonialismo”, responde sobre as semelhanças entre Brasil e Jamaica quando o assunto é invisibilidade de escritores e intelectuais afrodescendentes. Epopeia de quase 700 páginas, seu romance Breve história de sete assassinatos, é uma ficção narrada por 70 personagens sobre um fato histórico ainda obscuro Jamaica: o atentado contra o astro Bob Marley em 1976, pouco antes das eleições.

    O escritor conta que dorme em paz, não teme ser perseguido por iluminar assuntos do passado, que os poderosos querem esquecer. Marlon James afirma não ter medo de fantasmas, nem dos vivos.

     

    Orçamento pobre, riqueza em diversidade

    Com um corte no orçamento de mais de um milhão de reais em relação ao ano passado, principalmente no dinheiro captado via Lei Rouanet, a 15ª Flip entra para a história pela diversidade, destacando as mulheres, indígenas e quilombolas, buscando recompensar os séculos de invisibilidade em relação aos autores negros no Brasil e convidando criadores notáveis de países periféricos como Ruanda, Angola e Jamaica. A Flip 2017 se propôs a subverter as fronteiras entre o cânone e o popular, a forma e o conteúdo, a arte desinteressada e o engajamento.

    Álvaro Tukano, autor de O Mundo Tukano Antes dos Brancos, participou da mesa Aldeia, ao lado de lideranças Guarani e quilombolas

    Não foram apenas os temas das mesas que geraram reflexão. A nova configuração espacial da Flip foi considerada por uns inovadora, por outros inusitada. Para se adaptar às dificuldades financeira, os organizadores receberam o apoio do padre Roberto Carlos Pereira, pároco da Igreja Matriz de Paraty, que cedeu o templo para a realização da maioria das mesas. O ato do pároco provocou controvérsia. Os ingressos sem desconto para assistir às discussões dentro da Igreja Matriz foram vendidos por R$ 57,00, mais caro da história do evento, levando-se em conta a inflação, segundo o Nexo. Os 400 lugares acabaram em poucos minutos. No intuito de contornar a falta de espaço para todos na matriz, a Flip montou um telão com acesso gratuito em praça. Ali o público muitas vezes foi o protagonista.

    Amplamente divulgada na imprensa e nas redes sociais, a participação da professora Diva Guimarães comoveu Lázaro Ramos e todo o auditório na primeira mesa do dia 28/07. Aos 77 anos e dona de uma história de vida de tirar o fôlego, Diva Guimarães lavou a alma de todos os que lutam e lutaram contra o racismo no Brasil. Ela tomou o microfone para fazer uma pergunta e, inspirada, não parou de compartilhar reflexões e vivências avassaladoras sobre o racismo e a desigualdade e, como não podia deixar de ser, saiu ovacionada.

    “Eu sobrevivo e sobrevivi hoje como brasileira, porque tive uma mãe que fez de tudo, passou por tudo que era humilhação para que nós estudássemos”, disse com a voz embargada logo no início de sua fala, encorajada pelo exemplo de Lázaro Ramos, que lançou A cor que habito, e pelas memórias compartilhadas pela autora ruandesa Scholastique Mukasonga na noite anterior.

    A crise política e econômica esteve presente nos debates e nas manifestações do público. Nunca o momento político do país esteve tão latente na atmosfera da Festa. O público vibrou e gritou com frases como “Se Lima Barreto estivesse aqui, também gritaria Fora Temer”, ditas pelo ator Lázaro Ramos, que emocionou com sua interpretação dos fragmentos de Lima Barreto na noite de estreia, 26/07, ao lado da biógrafa Lilia Schwarcz.

    A abertura da Festa Literária também foi marcada por uma manifestação realizada por servidores públicos do estado do Rio de Janeiro, inconformados com os salários atrasados e a crise que mergulhou o estado em uma verdadeira calamidade. Organizado principalmente por professores, o protesto parabenizou a escolha do homenageado.

    “Recomendamos aos governantes a leitura da obra de Lima Barreto. Se estivesse vivo, ele estaria indignado com a gente com o número de escolas públicas fechadas ”, afirmou Clarice Ávila, diretora do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro e professora de Língua Portuguesa em Barra Mansa. “Se tivéssemos escutado o Lima antes não estaríamos assim”, disse a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista na obra, Beatriz Resende, sobre a conjuntura política atual.

    Das chamadas Jornadas de Junho de 2013, a única pessoa ainda atrás das grades é Rafael Braga. A prisão injusta do jovem negro foi um dos fatos paradigmáticos da atualidade, que estiveram entre os temas abordados pela obra audiovisual do artista André Vallias, moteto verbivocodigital, exibida no sábado, 29/07. André Vallias partiu das dezenas de pseudônimos do homenageado Lima Barreto e de algoritmos para alcançar imagens e sons. À lembrança da prisão de Rafael Braga relacionada à trajetória — por vezes clandestina de Lima Barreto — sucederam-se palmas e palavras de ordem em nome da liberdade.

    Apesar das tremendas dificuldades que moldaram a trajetória de Lima Barreto, Beatriz Resende, lembra: “É admirável a certeza que Lima tinha sobre a qualidade de sua obra. Ele sabia que seria valorizado no futuro”. Para a estudiosa, a lucidez do autor está no fato de ele ter deixado seus escritos inéditos e diários organizados. Talvez Lima pensasse no futuro e nos especialistas que hoje se debruçam sobre sua obra visionária, buscando explicações sobre o passado, o futuro e o presente do Brasil.

    Como o poeta simbolista catarinense, Cruz e Sousa, morto dez anos após o fim da escravidão, Lima Barreto teve uma história trágica e não conheceu reconhecimento em vida. Felizmente, com o passar das décadas, ambos são cada vez mais valorizados e, quem sabe um dia, serão redimidos por uma sociedade sem racismo e desigualdades.

    Confira e (se enamore por) um trecho de O Destino da Literatura (1921), no qual Lima Barreto enaltece uma literatura militante, que aproxime a humanidade. O texto foi interpretado por Lázaro Ramos na abertura da 15ª Flip:

    Portanto, meus senhores, quanto mais perfeito for esse poder de associação; quanto mais compreendermos os outros que nos parecem, à primeira vista, mais diferentes, mais intensa será a ligação entre os homens, e mais nos amaremos mutuamente, ganhando com isso a nossa inteligência, não só a coletiva como a individual. A arte, tendo o poder de transmitir sentimentos e ideias, sob a forma de sentimentos, trabalha pela união da espécie; assim trabalhando, concorre, portanto, para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade.

    Ela sempre fez baixar das altas regiões, das abstrações da Filosofia e das inacessíveis revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e interessam à perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, umas às outras, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais diversas épocas, das mais divergentes raças; ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à guilhotina; ela, não cansada de ligar as nossas almas, umas às outras, ainda nos liga à árvore, à flor, ao cão, ao rio, ao mar e à estrela inacessível; ela nos faz compreender o Universo, a Terra, Deus e o Mistério que nos cerca e para o qual abre perspectivas infinitas de sonhos e de altos desejos.

    Lima Barreto. Revista Sousa Cruz, ns. 58–59, outubro e novembro de 1921.

  • FLIP INSURGENTE: Minorias políticas rodam a baiana e avisam que não deixam mais o palco literário de Paraty

    FLIP INSURGENTE: Minorias políticas rodam a baiana e avisam que não deixam mais o palco literário de Paraty

    Os leitores de hoje têm mais fome de realidade do que de ficção? Essa pergunta dirigida aos  debatedores estrangeiros da Festa Literária Internacional de Paraty saiu do painel “Trótski e os trópicos” sem uma resposta contundente. Mas tudo o que aconteceu na 15ª edição do evento, encerrado neste domingo (30/07), mostra que escritores e leitores brasileiros tendem a ver a literatura, mais do que nunca, como um espaço privilegiado para a tomada de consciência da realidade do país. Com Lima Barreto, mas não só com ele, se aprende que realidade e ficção não formam uma oposição, mas dois elementos inseparáveis na compreensão do jogo político pelas artes. Esse parece ser o grande recado da quinzenária Festa Literária, que debutou este ano, por força do duríssimo cenário político brasileiro, no mundo das lutas sociais.

    A reverência tardia à obra e à vida do escritor negro, pobre e anarco-comunista Lima Barreto foi o gatilho que faltava para colocar o racismo à frente de qualquer outra tragédia contemporânea, como a mácula vergonhosa deste tempo que a literatura ensina a não mais admitir. E em nome do racismo, todas as formas de exclusão social contra pobres, mulheres, indígenas, quilombolas, jovens das periferias foram tratadas como questões caras e urgentes nessa grande assembleia literária pela qual passaram mais de 50 mil pessoas, segundo os organizadores.

    Do  professor que fazia seu protesto contra o fechamento de escolas públicas no Rio de Janeiro na abertura do FLIP ao mero ouvinte, do pesquisador história e literatura ao leitor curioso; do biógrafo e escritor ao ativista social: todos de alguma forma inscreveram na FLIP seu brado contra a persistência dessa ferida colonial no Brasil moderno. Todos o fizeram com brilhantismo, como Conceição Evaristo, ao denunciar o retardo que a associação do racismo ao machismo produziu no seu ingresso, e no de outras escritoras negras, no campo da literatura.  Ou como o historiador baiano João José Reis, que se manifestou contra a perda das cotas raciais nas universidades como uma tentativa do governo ilegítimo de travar a escalada vitoriosa de acesso de negros à educação superior.

    Público subverteu modelo elitista dos auditórios, concentrando-se no espaço dos não-pagantes, onde as manifestações eram mais efusivas

    No mesmo caminho, a antropóloga Lilia Schwarz chamou a atenção para a espantosa atualidade da literatura de Lima Barreto na denúncia à hipocrisia e à crueldade da sociedade da República velha, representada pela Academia Brasileira de Letras, na figura do pernóstico Coelho Neto, baluarte do pensamento conservador na época. Um Lima Barreto é muito pouco para lutar contra a permanência desse Brasil de ontem. “Para combater esse horror precisamos de muitos mais Limas e menos Coelhos Netos”, lacrou o teórico Antônio Arnoni Prado, um dos primeiros pesquisadores de Lima.

    Nas árvores, os caiçaras protestam contra o roubo das águas de Paraty

    Michel Temer é, para Arnoni, a expressão mais acabada dos personagens do Brasil corrupto e escravagista desenhado pelo autor. Político arrogante e empolado, adepto às mesóclises e avesso às camadas populares, que chegou onde chegou sem outro mérito a não ser pertencer às elites que tomaram o poder. Na mesma linha da historiadora Beatriz Resende, a jornalista e pesquisadora Luciana Hipólito, autora de “Literatura de urgência: Lima Barreto no domínio da loucura”, chegou a afirmar que se tivéssemos ouvido mais essa voz negra da literatura nos primeiros anos do século XX, e aprendido com ela, não teríamos chegado ao horror da realidade de hoje.

    Muitos outros palestrantes fizeram manifestações políticas semelhantes e foram apoiados pela maioria do público em todos os espaços de debate e encenação artística. Mas foi uma professora de escola pública do Paraná que tomou a palavra para fazer a literatura oral mais eloquente e perturbadora dos cinco dias de intensiva assembleia literária. A voz anônima surgiu num corpo negro de cabelos brancos no meio da plateia, como o espasmo de um soluço. Foi essa neta de escravos, filha de uma mãe pobre, que lavava roupa em troca de lápis, caderno ou qualquer material escolar para que os filhas pudessem estudar, a narradora mais potente do maior evento literário do Brasil. Diva Guimarães, como ela se identificaria ao final, a pedido do ator Lázaro Ramos, fez do testemunho político de sua vida a mais literária e sincera narrativa.

    Ao tomar a palavra, desculpando-se pela ousadia e prometendo ser rápida, Diva se disse profundamente tocada e encorajada pelo painel do dia anterior, no qual “as moças contam que escrevem em homenagem as suas mães”. Diva assistiu à mesa “Em nome da mãe”, com  a escritora Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de ruanda, que criou no livro “A mulher de pés descalços”, um sepultamento simbólico de papel para dar um ritual imaginário de morte à mãe. A ruandense compartilhou sua história com a brasileira Noemi Jaffe, autora de “O que os cegos estão sonhando”, obra criada a partir do diário da mãe, uma sobrevivente do holocausto nazista. Ambas disseram que escrevem para suportar a dor.

    Diva se sentiu “profundamente tocada” com o gesto das moças e também achou que tinha o dever de se levantar no meio da multidão, enfrentar a dor e a timidez e ser mais forte do que o próprio pranto para reverenciar a sua mãe preta de pés descalços. “Eu também sobrevivi e sobrevivo como brasileira porque tive uma mãe que fez de tudo, que passou todo tipo de humilhação para que nós estudássemos”. Por isso ela lutava de cabeça baixa para controlar a comoção que o testemunho lhe causava: tinha de ser forte para cumprir até o fim a sua homenagem diante daquela multidão toda de leitores. Com os olhos faiscantes da insurgência dos humildes, contou que ela e outras meninas foram recolhidas no interior do Paraná por uma missão da Igreja a pretexto de ir estudar em Curitiba, e antes de completar cinco anos, se tornou uma escrava das freiras católicas num colégio interno.

    E por que Diva foi capaz de levar às lágrimas e de levantar para aplaudi-la vigorosamente a plateia em peso do auditório da Praça, incluindo o próprio Lázaro Ramos, que falava sobre a própria experiência como negro no painel “A pele que habito”? Por que ela, mais do que qualquer um dos 44 sábios oradores e especialistas mobilizados pela feira, produziu essa tomada venal de consciência que só a literatura é capaz de provocar, segundo Lima Barreto?

    Certamente porque na voz dessa senhora ao mesmo tempo trêmula e destemida, que chegou a ser amparada para prosseguir no seu jorro de fala, a literatura e a vida tenham se reunido novamente. Na sua boca, a literatura, sempre utilizada pelos esnobes para marcar a linha divisória entre as classes, finalmente mostrou sua potência de arrebatar as almas e de promover a solidariedade entre os homens, como propunha Lima Barreto em seu manifesto por uma “literatura militante”. Por que a sua narrativa singela e vigorosa foi tão comovente?

    Talvez porque nela se materialize aquilo que Conceição Evaristo, entrevistada por Ana Conceição Gonçalves no painel “Amadas”, que encerrou a programação na tarde de domingo, chamou de “arte da escrevivência”. Com esse neologismo, a autora de “Um defeito de cor” e “Insubmissas lágrimas de mulheres” quer nomear a literatura brotada e talhada da própria vivência ou da própria sofrência dessas vozes brasileiras escreventes.

    Como se fosse uma das “amadas” saídas dos romances de Conceição, Diva revelou que conheceu a discriminação aos seis anos, quando as freiras do colégio interno contaram a história que explicaria a pele escura de uns e clara de outros. Para quem foi “recolhida no mato”, como ela, as freiras diziam que quando o mundo começou, deus criou um rio e mandou todos tomarem banho, “naquela água abençoada do maldito rio”, diz dona Diva com a autoridade de seus 77 anos de opressão, sem esconder a rebeldia. Então, todas as pessoas inteligentes e trabalhadoras que se esforçaram para chegar ao rio conseguiram se lavar e ficaram brancas. “Mas nós, como negros preguiçosos” – e ela interrompe, bate no peito e bufa de dor e se cala por uns instantes eternos, calma Diva, calma Diva e continua, sob os aplausos que tentam encorajá-la – “nós chegamos no final, quando todos já tinham se banhado e só havia lama”. Então, os negros só tiveram tempo de lavar a palma das mãos e a sola do pés. Por isso, concluiu ela, erguendo para a plateia a palma das mãos, e afirmando o que os olhos arregalados de torpor desmentiam, “porque somos preguiçosos, temos apenas essas duas partes do corpo claras”.

    Diva arrancou essa dolorosa narrativa do fundo de um espasmo, como se no instante mesmo da sua fala, ela e toda a multidão da FLIP, ela e todas as meninas e meninos negros e pobres escravizados pelas igrejas no interior do Paraná vivessem o horror de um segredo revelado.

     

    O testemunho de Diva Guimarães insurgiu na multidão da FLIP, assombrando os leitores como um romance sobre luta e opressão que provoca por dentro um silencioso furacão

    Mas a fábula racista sobre a cor negra, que muitos brasileiros ouviram nas escolas regidas por brancos, não convenceu a menina Diva. “Se fôssemos preguiçosos, não teríamos sobrevivido. Se o Brasil existe é porque os meus antepassados o construíram”. Estimulada pela mãe, ela estudou mais do que era devido a uma menina pobre. Sempre que pensava em desistir da escola por causa do racismo, era vencida pelo argumento da mãe de que se não estudasse teria o mesmo destino dela. Quando se formou em Educação Física e se tornou professora da rede pública de Curitiba, em plena ditadura, ensinou o mesmo aos seus alunos: que deveriam estudar se quisessem ser livres. Por isso foi perseguida e combatida: “Eu era considerada uma subversiva!”.  Ela, que teve o direito à infância roubado, que teve a liberdade usada como moeda de troca para estudar, tornou-se uma defensora ferrenha da educação pública e nunca mais parou de estudar. “Eu sou uma sobrevivente da educação e sou uma sobrevivente da luta”, afirmou Diva, inconformada com o fato de o governo do Paraná ter cortado a bolsa dos cotistas negros, que recebiam R$ 400,00 para se manter nas universidades.

    Ao desnudar a violência do racismo desencantando a lenda da diferença, a professora paranaense aposentada deu a resposta exata à questão inicial. Mostrou que ficção e realidade sempre caminharam juntas, seja para separar a humanidade imiscuindo nas histórias a ideologia da dominação, ou para libertar os povos oprimidos com a narrativa da resistência. Toda literatura digna de ser chamada como tal busca a verdade coletiva de um povo – ou como disse a repórter-escritora argentina Leila Guerriero, não existe literatura que não se refira à realidade. Prenhe de vigor estético e apuro ético, o depoimento da professora negra viralizou na internet e nas redes sociais. E segue impactando muitos mais leitores do que a FLIP teria capacidade de reunir no elitizado auditório da Igreja Matriz ou mesmo na tenda de projeção.

    A COLETIVA DE ENCERRAMENTO

    Curadora Josélia Aguiar, à esquerda, pediu que  coletivos negros e ativistas sociais não deixem a FLIP caso próximo homenageado não seja negro

    Numa entrevista coletiva fria e burocrática, com poucas perguntas e respostas curtas e evasivas, a equipe responsável pela organização da 15ª FLIP fez o balanço de encerramento para cerca de 20 jornalistas. A mais entusiasmada, a curadora Joselia Aguiar, falou rapidamente, se disse feliz com os resultados, destacou os ganhos com a diversidade e se retirou antes do término para participar das mesas de encerramento. Nem ela, nem o diretor presidente da Fundação Casa Azul, Mauro Munhoz, pareceram conscientes da revolução que ocorreu no evento por conta do espaço rasgado pelas minorias políticas, com a acolhida de sua própria direção.

    A primeira pergunta veio questionando se o tom político da feira era determinado pelo momento brasileiro atual e se tenderia a persistir nos próximos eventos. Tanto Joselia quanto Munhoz procuraram neutralizar as manifestações contra Temer, contra o extermínio de jovens negros pela polícia,  o aprofundamento do racismo e o corte das cotas,  o atraso no pagamento dos salários de professores no Rio de Janeiro ou o fechamento de escolas. Ambos argumentaram que era natural os painelistas se posicionarem a partir das demandas do público. Mesmo os estrangeiros se manifestaram contra Trump, no caso do escritor jamaicano Marlon James e do poeta estadunidense Paul Beatty, como lembrou Josélia. Antes de sair, a curadora deixou no ar um pedido que soou ambíguo como uma ameaça velada numa calorosa acolhida: “Quero pedir aos coletivos negros e ativistas sociais que permaneçam para sempre na FLIP, mesmo caso o próximo homenageado não seja uma mulher ou não pertença a uma minoria”.

    O diretor da fundação que patrocina o evento reafirmou que a feira economizou R$ um milhão com o novo formato, eliminando a grande tenda gigante próxima ao canal, as oficinas, a biblioteca na Mangueira e  as iniciativas descentralizadas em municípios mais carentes para concentrar todas as atividades no centro de Paraty. “Antes tínhamos um país que estava se expandindo e a FLIP tinha esse movimento de descentralização da cultura. Agora vivemos em outro país que precisa se concentrar e se fortalecer pra voltar a pensar nesses projetos mais complexos que dependem de mais investimento público”.

    Debates ao vivo dentro do auditório da Igreja Matriz foram muitas vezes preteridos pelo público, que preferiu a projeção na praça

    Com um discurso conformista, defendendo a “adaptação da feira aos novos tempos”, Munhoz insistiu no sucesso do auditório para pagantes na Igreja Matriz, onde se concentraram a maioria dos paineis “ao vivo”. Garantiu que todos os 400 ingressos para cada uma das sessões foram vendidos e utilizados, embora todos tenham testemunhado o esvaziamento progressivo desse espaço privatizado em favor do crescimento da audiência gratuita na tenda de projeção. Em torno dela o público chegou a pelo menos menos duas mil pessoas em vários momentos, ultrapassando em muito a lotação de 700 lugares com cadeiras fixada por ele. Isso significa que o próprio público subverteu o modelo elitista e a separação dos auditórios ao se manifestar de forma muito mais efusiva e espontânea no local de livre acesso. Apesar disso, Munhoz afirmou que o espaço intimista será mantido porque é “mais adequado para determinados tipos de paineis”.

     

     

    Ao final de sua mesa, Conceição Evaristo afirmou que mulheres e negros fizeram a ocupação da FLIP e não pretendem mais sair dela. “Vai ser muito difícil voltar atrás e nos tirar daqui, porque não sairemos mais”. Para outro grande estudioso de Lima, o professor da UFMG Edmilson de Almeida Pereira, poeta e especialista na diáspora africana no Brasil, o espaço foi uma conquista dos movimentos sociais que qualificou o evento. “Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, lembra o pesquisador. Muitas vezes os painelistas e artistas referenciaram Rafael Braga, Ricardo Nascimento e Jonathan Bidoia Neres e os jovens negros presos, torturados ou mortos pela polícia de extermínio. “Essa dimensão política da arte sempre esteve presente e tende a se agudizar com o estado de exceção no país”, sustenta Edmilson.

     

    “Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, afirma o pesquisador Edmilson de Almeida Pereira

    O melhor emblema de tudo isso talvez seja a performance multimidiática “Fruto estranho”, apresentada pelo ator e poeta Ricardo Aleixo, na abertura do evento, a partir da mistura de fragmentos de textos de Lima Barreto e de sua própria lavra. A imagem de um artista como um livro vivo onde a pele é a própria escritura do mundo evoca esse movimento de hibridização com as lutas sociais. Se o negro é uma invenção do branco, como diz o poema, cabe a literatura reinventá-lo como uma fabulação de si e por si.

     

    TROPEÇANDO NAS RUAS DA LITERATURA

    Pelas ruas de Paraty, a literatura que todos os anos enche a cidade da algazarra dos diferentes acentos e línguas, de poesia, dança, música, teatro e livros, tropeça na escravidão em cada pedra do calçamento antigo, em cada construção que presentifica suor e sangue negros derramados. Ainda que queira, os olhos da escritura não podem se desviar do trabalho infantil em torno da presença dos turistas. A literatura do testemunho, que arrebatou o público nesta edição da FLIP, não pode mais ignorar os sobreviventes contemporâneos dos extermínios que desfilam diante dos olhos dos turistas.

    Não basta abrir um painel na programação para reconhecer a presença exótica de caiçaras, negros, quilombolas, indígenas: é preciso dedicar a eles toda a produção intelectual e artística brasileira. Eles não formam uma parte ou uma “aldeia” da literatura, mas são os verdadeiros anfitriões da festa como protagonistas da cultura nacional. E isso vale também para as centenas de coletivos de jovens artistas das tribos urbanas de todo o país que, atraídos todos os anos para o evento, fazem seu trabalho nas ruas de Paraty. São eles que trazem as artes para a plenitude da vida, promovendo saraus de literatura periférica, rodas de batuque, manifestos de poesia marginal, varais literários que aproximam a arte do povo, como fez Paulo Leminski ou Lindolf Bell. Eles continuam totalmente à margem da programação da feira.

     

     

    Depois de atingir 15 anos, a FLIP não pode mais ignorar a literatura dos Guarani Mbya sobreviventes da dizimação, que expõem seus artesanatos nas calçadas, sob pena de construir um evento tão fake quanto uma cidade onde tudo gira em torno do turismo. Os milhares de forasteiros que se esbaldam todos os anos nos restaurantes e hoteis de Paraty não podem continuar esquecendo que os primeiros habitantes desse paraíso estão em plena luta por território. E ainda são acusados de serem “índios falsificados do Paraguai” numa cidade onde tudo – praias, moradores, pratos típicos, danças, ritmos musicais – carrega nomes como Janaína, Catimbau, Cajaíba, Cachadaço, Saco do Mamanguá e cateretê.

    Antes tarde do que nunca, os amantes das letras se depararam também com as manifestações políticas e culturais dos quilombolas do Campinho da Independência, que estão em luta por seus direitos. Viram os estudantes cotistas protestando contra o prefeito de Paraty, Carlos José Miranda (PMDB), que suspendeu o transporte público para a universidade dos municípios vizinhos.  E os caiçaras denunciando o roubo da água natural para engarrafamento e comercialização a preço de ouro. Ao mesmo tempo que reconhece a conquista de um espaço cultural e intelectual dominando pela identidade masculina e branca, a jornalista Tatiana Carvalho Costa, integrante do coletivo Elas Pretas, de São Paulo, que está em Paraty fazendo um filme sobre a obra de Ricardo Aleixo, se sentiu constrangida com o assédio às mulheres negras. “Pessoas se aproximam da gente, como se nossa presença na feira fosse algo extraordinário, como se o nosso corpo negro fosse um lugar de expiação do sentimento de culpa”.

    A verdade mais nua e crua sobre o impacto negro na festa das elites, quem disse foi ela, dona Diva: “Aparentemente tivemos uma libertação que não existe até hoje”. Já na abertura, uma enorme faixa do Sindicato Estadual dos Profissionais na Educação do Rio de Janeiro, protestando contra o sucateamento da educação pública, recomendava que os participantes da FLIP lessem a obra de Lima Barreto para entender a realidade brasileira atual. Ao final a faixa exclamava: “Salve Lima Barreto!” Salve também Diva Guimarães e todas as negras e negros que rasgam seu lugar na literatura. Subversivas e subversivos!

     

     

     

  • Cidinha da Silva: Vozes da bibliodiversidade na FLIP e noutras festas e feiras literárias

    Cidinha da Silva: Vozes da bibliodiversidade na FLIP e noutras festas e feiras literárias

    O romancista gaúcho Jeferson Tenório, no artigo “Se Lima Barreto fosse usuário do Facebook” exortou os analistas da obra de Lima na FLIP 2017, a não reduzi-lo à sua biografia, posto que a obra é o mais importante. Mesmo que a trajetória do autor seja fundamental e nos ajude a compreendê-la. Desse modo, seus livros, “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Clara dos Anjos”, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, “Os Bruzundangas”, entre outros, são maiores do que Lima Barreto. E Tenório conclui: “dizer isso parece óbvio, mas em certos casos o óbvio tem de ser dito, principalmente para quem vai falar de um autor negro no Brasil”.

    Deu certo. Os augúrios de Tenório, possivelmente escaldado pelas águas geladas e poluídas que costumam lançar à literatura de autoria negra, foram ouvidos. Lima não foi ensimesmado em sua biografia. A obra foi discutida. Mas Tenório ainda palpitou, conclusivo, se convidado, Lima, o homenageado, não compareceria à FLIP.

    Edimilson de Almeida Pereira, o maior conhecedor de cultura Banto-mineira de todos os tempos, a quem um jornalista, de maneira precisa, mas lamentável, caracterizou como desconhecido do grande público (a ponto dele, o jornalista, chamá-lo de Andrade – será que foi por ter ouvido ali, na igreja, ecos de Drummond?) roubou a cena na catedral de Paraty. Reverenciou aqueles que vieram depois dos donos da terra, mesmo deslizando no léxico e chamando-os de “escravos”, não de escravizados, como deveria. Pediu licença a eles, agradeceu por seu legado.

    Ainda sobre a troca de nomes, tão comum com escritores negros, vale lembrar que Carolina Maria de Jesus é comumente chamada de Maria Carolina de Jesus.

    Edimilson, o mestre-sala, quebrou o protocolo, o paradigma e colocou uma epistemologia nova para girar. E Dona Diva Guimarães, atenta, sentiu-se inspirada a também nos oferecer seu legado sereno de quem domou o ódio e a raiva gerados pelo racismo para continuar estudando, mas acionou-os para sobreviver e levantar a voz na FLIP 2017. Não se tornou sonsa por um minuto sequer, e se insurgiu quando depois de transformada em celebridade literária, foi indagada por um jornalista sobre o valor de seu salário de professora aposentada. Dona Diva não era boba e sabia que a estratégia da branquitude era transformá-la em protagonista da comiseração que pudesse entretê-los. Ela se rebelou, como a criança rebelde que nos contou ter sido, e Conceição Evaristo arrematou: “se vocês disserem que é mimimi ou vitimização eu vou rasgar o jornal”! É isso! Vamos para cima. Rasguemos os jornais que nos desprezam e nos querem como bichos de circo.

    Scholastique Mukasonga também foi citada como inspiração de Dona Diva Guimarães. Sua intervenção caracterizou a fala de uma igual, libertadora de outras tantas. Por isso o racismo estrutural (e institucional das festas literárias e de variados lugares de formação de opinião) nos quer ausentes, ou mudas, quando por lá passamos. Porque uma pode inspirar a outra e para resguardar os privilégios da branquitude é mais seguro que nos invisibilizem e nos emudeçam.  “Uma sobe e puxa a outra”, como lembrou Ana Maria Gonçalves em alusão ao lema da Marcha de Mulheres Negras Contra o Racismo e Pelo Bem-viver, de 2015.

    Mas, o que mesmo significa participar da FLIP e de outras vitrines literárias (festas, feiras) de grande cobertura midiática? Significa, acima de tudo, visibilidade para autoras e autores e isso impulsiona a venda de livros, faz circular as idéias, atitudes e formas de trabalho do pessoal em tela; atrai as editoras mais estruturadas e com mais poder de fogo no mercado; expande o campo de pesquisa sobre autores e obras em evidência; aumenta a fortuna crítica; faz com que a crítica e a mídia os olhem com outros olhos ou, no caso das expressões literárias não-canônicas, que pelo menos as vejam em seu lugar de existência.

    No limite, se tudo der certo, se tudo confluir para o desejado sucesso, o autor ou autora pode ascender à condição de celebridade literária, passando assim a compor o casting de autores cobiçados, lembrados com assiduidade. E mais bem pagos, afinal, como vocês sabem, em várias feiras e festas literárias é praticada uma hierarquização de cachês de acordo com o nome, trânsito do autor e artilharia da editora.

    Por falar em circulação de idéias, uma das entrevistas de Edimilson A. Pereira (A de Almeida, não de Andrade, por favor) problematizando a rigidez do cânone literário, levou o entrevistador a pontificar a necessidade de criação de um cânone extra-oficial, um cânone B, presumo.

    Só que o aprendizado mineiro de quando o adversário vier com o milho, já termos o fubá pronto, nos assegura que não interessa um cânone para a literatura de autoria negra e outras também massacradas. Isso teria duas utilidades: geraria trabalho e campo de ação legitimado para estudiosos dessas produções. Estes mesmos pesquisadores tratados como párias por seus colegas estudiosos de “alta literatura”. A segunda seria cristalizar num lugarzinho de destaque, certo setor da literatura de autoria negra e afins, mais estabelecido.

    Interessa pluralizar o cânone (já que não tenho ilusões de destruí-lo), ou seja, forçar a porta de entrada para que críticos, curadores, gente do mercado editorial, professoras e professores universitários, imprensa, autoras e autores, editoras, agentes negros e afins do mundo literário venham a compor o cânone.

    Toni Morrison e Alice Walker, por exemplo, só são autoras canônicas porque o cânone estadunidense é diverso e as contempla. Valoriza também, a autoria de mulheres oriundas de outros grupos raciais e étnicos, de pessoas indígenas, de estrangeiros, entre outros conjuntos de autorias tradicionalmente excluídas do cânone literário. É preciso dinamitar (por dentro) o cânone que aí está e construir outro, mais diverso. Não resolve criar um canonezinho de segunda para correr por fora das raias da competição real. Isso só reforça o que já está posto e acatado.

    Finda a FLIP 2017 fica o desejo de que ela não tenha sido apenas uma resposta às ausências e incongruências da FLIP 2016, tal qual a cerimônia do Oscar 2017 em resposta àquela do ano anterior e a criticada lacuna de premiação aos sujeitos negros da sétima arte. A expectativa é que haja mudanças reais e perenes na programação das feiras e festas literárias Brasil afora. Que elas se beneficiem e deixem de temer o belo, aguerrido, corajoso, dolorido, lírico, fecundo, tenaz, vingador, transformador, vigoroso, revitalizador que as autorias negras e outras rejeitadas pelo cânone representam. Oxalá, a literatura “fora dos radares” siga ampliando a multiplicidade e a polifonia da literatura brasileira.

  • LITERATURA MILITANTE: Maior evento literário do Brasil torna-se palco de protesto contra obscurantismo social do país

    LITERATURA MILITANTE: Maior evento literário do Brasil torna-se palco de protesto contra obscurantismo social do país

    É verdade que o escritor negro Lima Barreto morreu pobre, doente, desprezado e enlouquecido, sem o reconhecimento que seu talento e sua inteligência mereciam. Mas sua luta por um lugar na literatura do Brasil racista do início da República está longe de ter sido em vão, temor que deixou registrado num de seus últimos escritos. A reverência a sua obra pela 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty foi suficiente para tirar o evento de qualquer lugar de culto elitista à erudição separada da cultura popular e da realidade nacional, o que seria contraditório com o legado do autor. Como um ciclone capaz de levar o Brasil a retornar-se sobre si mesmo, a homenagem fez da Feira um evento também caracterizado pela reflexão sobre o atravessamento da tragédia política e social do país na sua produção literária.

    Única sobrevivente de sua família no genocídio de Ruanda, Scholastique representa a literatura do testemunho

    Num clima de denúncia, protestos e diversidade, a Festa de Paraty ficou menos elitista e um pouco mais coerente com o autor que ela reverencia, o cultíssimo descendente de escravos que defendia a cultura popular e propunha o manifesto de uma literatura militante contra o racismo, o machismo e toda a forma de opressão. Com Lima feito uma espécie de guerreiro póstumo no front de um expressivo cordão de autores que rasgou o seu espaço na FLIP, o evento também se tornou uma feira militante da diversidade. Fazem parte desse cordão mulheres feministas, negros, quilombolas, indígenas, testemunhas de guerras de extermínio, como a escritora da etinia tutsi, Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de Ruanda, que lança sua literatura de testemunho na FLIP com Pés descalços. E ainda a angolana Djaimilia Pereira de Almeida, autora de Esse cabelo, uma ficção que traz para a narrativa a questão do corpo como identidade étnica. Na noite do dia 27, Mukasonga compartilhou com a brasileira Noemi Jaffe, cuja obra reverencia a mãe sobrevivente do holocausto nazista, um dos mais densos e tocantes painéis. A ruandense disse que escreve para suportar o horror que ela e sua família viveram e fazer valer o privilégio de ter escapado viva.

    Desde a abertura na quarta-feira (26/7), a quinzenária FLIP promete não ser a mesma que reproduziu, na sua última edição, o modelo dominante de sociedade colonial, onde mulheres, índios, negros e pobres estão marginalizados do mundo da cultura. O reconhecimento público desses autores em nível nacional e internacional mostra que o boicote à “literatura militante” pelo cânone e pelo mercado não passa de preconceito. Mostra ainda que se o artista não se engaja às questões políticas que falam dos dramas humanitários do seu tempo, o seu tempo o engaja nessas tragédias. Nesse espírito de contraliteratura, a abertura e o primeiro dia da mostra foram marcados pela implicação do movimento político no estético que caracteriza as épocas sombrias.

    Manifestações políticas marcam a 15ª edição da Festa de Paraty

    Houve protesto, houve Fora Temer, Fora Pezão, manifestações efusivas durante o espetáculo de abertura que continuaram no dia seguinte. No recital que acompanhou a linha de tempo de sua dramática biografia, apresentada pela historiadora e professora de antropologia da USP Liliam Schwarz, a obra e a trajetória de Lima Barreto atingiram atualidade máxima. A leitura de Lázaro Ramos para os trechos mais primorosos de Lima acentuou a potência da retórica literária de Lima, que na mesma cena sintetiza um realismo cru com impagável humor popular, para em seguida alcançar o lirismo dos grandes clássicos. As passagens mostram a tragédia de personagens negros, negras e pobres idealistas que ousaram, como ele e seu Policaropo Quaresma, atravessar os territórios da cultura e da intelectualidade sob o domínio branco, masculino e burguês.

    Um retumbante brado de Fora Temer foi a forma do público aplaudir e agradecer a dupla que  surpreendeu a plateia maior de não-pagantes, limitada à tenda de projeção em frente à Praça, para refazer ao vivo a leitura dramática de encerramento. Diante de cerca de mil pessoas, Lázaro deu vida à voz de um Lima Barreto de clareza e refinamento encantadores ao apresentar as bases do que considerava ser a tarefa da literatura e das artes. À diferença dos poderosos diletantes, que elitizam a literatura para aprofundar a diferença entre as classes, a literatura, segundo Lima, serve para derrubar os muros entre os homens. Serve para tornar a humanidade mais tolerante, fazendo-a conhecer melhor sua condição, entendendo suas virtudes e fraquezas. “A missão da literatura é fazer comunicar umas almas às outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é ligá-las mais fortemente, reforçando assim a solidariedade humana, tornando os homens mais capazes para se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade”.

    Desde a abertura, as manifestações políticas marcam as conferências e debates, quando palestrantes são interrompidos para serem ovacionados cada vez que denunciam, através de Lima Barreto, o obscurantismo social que o Brasil vive hoje e a violência contra os que fogem aos padrões dominantes de subjetividade. Isso ocorreu muitas vezes quando o poeta e ensaísta negro Edmilson de Almeida Pereira, professor da Universidade de Juiz de Fora (MG), pesquisador das contribuições africanas na língua portuguesa, analisou o impacto da obra de Lima Barreto como a permanência de um passado que sabota as possibilidades de expressão artística para os marginalizados. Pereira dividiu o painel Arqueologia de um Autor, ocorrido na manhã do dia 27, com a professora Beatriz Resende (UFRJ), organizadora da obra principal de Lima Barreto, e o pesquisador Filipe Botelho Correa, professor do Kings´s College London, que recuperou textos inéditos de Lima Barreto. Beatriz foi igualmente ovacionada ao comentar a denúncia do autor carioca à corrupção sistêmica no Brasil republicano e lamentar a ausência de colegas da UERJ, como Ítalo Moriconi, entre outros, que não puderam vir à feira porque estão há quatro meses sem receber salário.

    A leitura dramática de Lázaro Ramos funde-se com a escrita insurgente de Lima Barreto

    Empobrecida pelo corte violento de recursos federais e estaduais, esta Feira se tornou ainda mais seletiva para os que foram convidados ou conseguiram comprar ingressos para as apresentações, palestras e mesas-redondas concentrados no auditório da Igreja da Matriz Nossa Senhora dos Remédios. Mas a curadoria sensível de Joselia Aguiar impediu que o evento assumisse os ares de festa de esnobes diletantistas. Além de criar a tenda de projeção como um espaço para a inclusão gratuita de todos os que conseguiram chegar à belíssima Paraty, criou um espaço para discussão de literatura não-canônica no painel Aldeia. Na manhã de quinta-feira (27), o painel reuniu escritores e educadores de povos tradicionais para discutir a literatura oral e escrita que está intrinsicamente conectada a suas lutas coletivos pelo direito à vida e à identidade. Participaram Ivanildes Kerexú Pereira da Silva, ativista feminista e professora na Escola Paraty Mirim, na aldeia Guarani Mbya Itaxi; Laura Maria dos Santos, arte-educadora e militante pela educação e pela cultura quilombola na região de Paraty e Álvaro Tukano, pensador indígena do Alto do Rio Negro, que lançou na feira O mundo Tukano Antes dos Brancos. Um dos precursores do movimento indígena brasileiro, Álvaro Tukano mobilizou a plateia ao afirmar que no Brasil se procura imitar os europeus, quando a maior parte dos autores e dos leitores ignora a literatura indígena que deveria fazer parte da formação de todos os brasileiros.

    Pensador indígena Álvaro Tukano reclamou o lugar da literatura dos povos tradicionais na cultura brasileira

    CONTRA O FIM DOS POLICARPOS

    Antes mesmo da abertura, um manifesto liderado pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro quebrou a zona de conforto dos convidados e pagantes que avançavam na fila para a cerimônia de estreia no auditório da Igreja da Matriz. Empunhando faixas com dizeres irônicos, como “Triste fim para milhares de Policarpos Quaresmas”, professores, estudantes e servidores de escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro protestavam contra o fechamento de 300 escolas pelo governo do Rio de Janeiro e contra o atraso no pagamento dos educadores que, segundo eles, fará se repetir o destino de Policarpo Quaresma, condenando à morte cultural os estudantes das periferias. “Estamos aqui hoje abrindo a Flip para denunciar o descaso do governo do Estado com as escolas públicas do Rio de Janeiro, onde estudam a maioria dos filhos dos trabalhadores”, afirmou Clarice Ávila, diretora do SEPE e professora de Língua Portuguesa para mudos em Barra Mansa.  “Estamos aqui representando milhares de Limas Barretos que, na época do início da República também foi esquecido pelos cânones da literatura brasileira, que o acusavam de ser panfletário, simplesmente porque denunciava o racismo e toda a forma de opressão”.

    Outros educadores se alternaram ao microfone, contando a vida de Lima e recomendando a leitura de seus livros para que sua tenha um impacto verdadeiro nas decisões políticas e no comportamento do povo brasileiro. “Os participantes da Festa de Paraty, um evento que discute as questões da cultura, precisam saber que este governo não está atento à educação de qualidade para a maioria que dela precisa”, acrescentou a professora Cecília de Araújo Brás, do Sepe de Barra Mansa. Usando alto-falante, os professores lembraram que Lima Barreto está sendo homenageando tardiamente e em nome dele é preciso denunciar  todas as injustiças de Pezão e seus aliados contra o Rio de Janeiro e contra a educação pública que só fortalecem a elitização do ensino. “Não basta homenagear: é preciso refletir sobre a história de lima Barreto, que é muito atual. Tudo que ele denunciava estamos vivendo no século XXI”, lembra Clarice. Além de Barra Mansa, estavam presente professores de Barra do Piraí, Volta Redonda e São Gonzalo.

    Protesto na entrada do auditório da FLIP denunciou o fechamento de 300 escolas públicas

    Ao fundo, Lima Barreto e esta paradigmática edição da Festa Literária de Paraty mostram que não há oposição entre o estético e o político, assim como não há separação entre erudição e cultura popular. O sociólogo Walter Benjamin nos permite definir erudição justamente como a capacidade dos grandes narradores de buscar a experiência coletiva da cultura, subindo e descendo os escalões dessa experiência com a facilidade de quem percorre nos dois sentidos os degraus de uma mesma escada. “O grande narrador está sempre enraizado no povo”, escreveu Benjamin. Ao mesmo tempo em que avança para baixo e afunda seus pés na terra, enraizando-se na cultura popular, ele se esgueira para cima, perdendo-se além das nuvens, em direção ao clássico.

    A literatura moderna, em todas as suas formas de expressão, consiste, como defendeu Lima Barreto em seu manifesto por uma literatura militante, no talento de falar, em uma linguagem clara e capaz de mobilizar as massas sobre as estruturas de opressão invisíveis que só a arte pode fazer emergir de modo mais compungente. “A literatura trabalha pela união da espécie. Assim, trabalhando, concorre, portanto, para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade”, escreve o autor de uma das obras mais contundentes contra a soberba e a ignorância das elites brasileiras, excluído pela Academia Brasileira de Letras, morto aos 41 anos, mas imortalizado por sua literatura dos vencidos. O ilustradíssimo descendente de escravos continua botando o dedo na ferida da mentalidade colonialista.

    Lázaro Ramos: o Brasil ainda ceifa a vida de talentos como Lima Barreto