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  • Segundo turno em São Paulo pode estar nas mãos de Lula

    Segundo turno em São Paulo pode estar nas mãos de Lula

    Vi que Valter Pomar respondeu ao meu artiguinho sobre o envelhecimento do PT e, agora, responde ao apelo de Leonardo Boff para apoio ao Boulos (citando Lula). Decidi não polemizar com Pomar por dois motivos.

    Rudá Ricci, cientista político e presidente do Instituto Cultiva

    Primeiro, admiro Pomar. Eu o conheci muito jovem, nos seminários que o Vladimir organizava sobre a revolução russa e marxismo em uma sala, se não me engano, no Paraíso, na capital paulista. Ele já se revelava brilhante. Mas, há um segundo motivo para não desejar polemizar.

    Minha intenção não é fazer ping-pong. Muito menos com dirigente do PT. Minha intenção era, com o artiguinho, motivar um debate sobre os erros do PT, já que a direção raquítica do partido interdita qualquer autocrítica por puro medo. Infelizmente, o PT vive sua maior crise.

    Contudo, Valter Pomar parece ter decidido retrucar o apelo ou declaração de voto de Leonardo Boff. É louvável esta disposição de um líder como Pomar em polemizar com essas críticas que surgem a partir do desastre do desempenho eleitoral do PT em São Paulo.

    Aqui, vale a pena uma breve observação sobre uma passagem do texto de Pomar. Diz, a certa altura: “Boff : seria “um gesto político generoso e amigo dos pobres e sem-teto apoiar a chapa BOULOS/ERUNDINA”. Pois é: de boas intenções o inferno está cheio. Se eu fosse apoiador de Boulos, eu pediria exatamente o oposto: que a candidatura Tatto continuasse na disputa, tirando votos principalmente de Russomano”.

    Valter está muito pressionado. Daí apresentar um argumento tão frágil, o que não lhe é comum. Argumento frágil porque, primeiro, Russomanno está em queda e Boulos em ascensão. Em uma semana, tendem a estar em empate técnico ou muito próximo disso. Tendência, não prognóstico, que fique claro. Se ocorrer, a onda do voto útil deverá destruir de vez a candidatura do PT.
    Aliás, foi este o movimento na eleição que elegeu Haddad como prefeito de São Paulo. Erundina, candidata do PSOL naquele pleito, chegou a se aproximar de 10% e, com o voto útil pregado pelo PT, desabou. A questão da desistência do PT não tem relação com Tatto, mas com Lula.

    Se Lula apoiar nos próximos dias a candidatura de Boulos, a força de seu nome e deste simbolismo da unidade das esquerdas em São Paulo garantiria, possivelmente, a esquerda no segundo turno.
    Para deixar claro, na minha leitura, seria algo ainda maior. Uma entrada de Lula, neste momento, na terra que o projetou no cenário nacional, alteraria o estado de letargia em que o PT se encontra. Não será o apoio de Lula e a desistência de Tatto que fará o PT menor. O maior partido da esquerda brasileira não depende de uma capital. A sinalização de Lula pode alterar este cenário de letargia interna, provocando um forte debate sobre mudança de perspectiva e atuação política do PT. Tal oxigenação pode levar o PT a ser novamente de esquerda. Porque seria uma aproximação do PT ao PSOL.

    E é aí que tudo poderia ficar mais emocionante porque esta aproximação do PT à candidatura de Boulos também alteraria a composição interna do PSOL, fortalecendo a corrente de Ivan Valente, projetando Erundina. Estaria lançada a ponte para formarmos a “Geringonça” brasileira.

    Já disse que quando Antônio Costa, líder do PS português, anunciou, em 2014, a aliança com o Bloco de Esquerda, eu estava em Portugal. E li os editoriais da grande imprensa, ironizando esta guinada à esquerda. Resultado: a aliança governa Portugal com muito sucesso.

    Portanto, a eleição de São Paulo teria este condão de abrir janelas para a esquerda nacional. Alteraria o cenário de composição da centro-esquerda com o liberalismo e social-liberalismo. Algo que ocorreu com o PS português quando se aproximou do Bloco de Esquerda.

    Ao PT, talvez, o momento doloroso tenha sido providencial. Era preciso uma chacoalhada para filiados e dirigentes perceberem as consequências de erros em série. Para retornarem ao ninho da esquerda.

    Continuo admirando Valter Pomar. Sincero, honesto, comprometido e… fiel. Talvez, só falte a ele ser menos fiel ao PT atual e ser mais fiel à esquerda brasileira. Sendo mais fiel ao projeto da esquerda, ajudará imensamente seu partido.

    Pomar pode ser uma liderança importante no “aggiornamento” tão necessário deste partido que ainda é o maior do sistema partidário brasileiro, mas que sangra nestas eleições não porque seja alvo de ataques externos. Sangra porque suas direções não sabem o que fazer.

    Artigos relacionados de Rudá Ricci em 18 e 13/10:

    PT ENVELHECEU

    Por Rudá Ricci

    O PT vive um paradoxo: tem, hoje, as piores direções de sua história, mas se mantém como principal partido do sistema político nacional. Para mim, um paradoxo que nasce do que denomino de neopetismo ou a geração que emerge à direção do PT (e de novos filiados) no pós-2002, ou seja, com o advento do lulismo. Gente que não vivenciou o período de adversidades e ataques da construção de um partido que se definiu socialista.

    Em relação aos dirigentes neopetistas, seu perfil passou a ser pragmático, marcado pela lógica rebaixada do marketing (que não se propõe a disputar, mas meramente absorver o ideário popular, mesmo que contrário à linha partidária) e “parlamentarizada”. Por “parlamentarizada” me refiro à uma direção composta por quase exclusivamente deputados, em especial, federais. A prática parlamentar, como sabemos, é afeita a arroubos retóricos e práticas dóceis. Esta é a marca das direções petistas atuais.

    Uma ilustração deste novo perfil de dirigente petista é a dos “gestores públicos”, com nítido perfil gerencialista, pouco afeto ao debate ideológico, como Fernando Haddad e Fernando Pimentel. Também envolve dirigentes protocolares, sem capacidade para qualificar o debate nacional ou aprofundar reflexões junto à militância, caso de Gleisi Hoffmann. A diferença com o perfil de dirigentes históricos como José Dirceu ou Genoíno, ou governantes petistas como Erundina é desconcertante.

    O fato é que filiados e direções pós-2002 criaram uma lógica de retroalimentação: baixa exigência estratégica, foco no campo institucional, prioridade na consolidação da hegemonia no sistema partidário, criação de clima político de acomodação e baixo conflito, reforço das cúpulas.

    O PT passou a declinar da identidade socialista. Da tradição de partido de massas, passou por uma transição para a noção de partido de quadros que, na medida em que se tornava um partido palatável, acabou se inclinando para ser um “partido de notáveis”.O personalismo e certo mandonismo forçaram o declínio dos mecanismos de participação das instâncias de base no processo de tomada de decisão partidária.

    O encaixe pareceu perfeito porque liberou as direções para acordos de cúpula. As famosas análises de conjuntura que eram realizadas em diretórios municipais com participação frequente de dirigentes nacionais do PT, sumiram do mapa. Nem sombra da época em que os diretórios zonais e os núcleos profissionais tinham peso. Lembro do núcleo de historiadores petistas que lançou uma importante coletânea de discursos de Lula.

    Toda esta trajetória de mudança de perfil, ideário e organização acelerou na segunda metade dos anos 1990. As campanhas nacionais de 1994 e 1998 mudaram completamente a ordem das coisas no interior do PT: cúpula e marketing desconstruíram as decisões coletivas.Ao se acomodar ao pensamento médio brasileiro – sem qualquer intenção de questioná-lo ou mesmo assumir um papel pedagógico da ação política – o PT ganhou em musculatura eleitoral, mas perdeu em termos de vigor criativo e empolgação.A base passou a ser menos exigente e mais idólatra. De sujeito da construção do PT, passou a ser objeto das manipulações marqueteiras.

    Criou-se um encaixe entre cúpulas centralizadoras e de baixa capacidade de direção política e base pouco politizada e de alta passividade militante. Tudo favoreceu a entrada de propostas programáticas de tipo social-liberal (preocupação com políticas sociais e mercado).

    O PT se tornou, de fato, o fiel do sistema partidário brasileiro. Explico: com alta desigualdade, o maior partido político brasileiro (escolhido como de sua preferência por 25% dos eleitores) se tornou um canal das demandas sociais organizadas.

    O passado do PT e suas relações atávicas com pastorais sociais, intelectuais de esquerda, movimentos sociais nacionais, movimento sindical e ONGs progressistas criou o perfil institucional que dialoga com desvalidos.Uma das características desta mudança profunda no perfil das direções petistas é a acelerada transição para o que a literatura especializada denomina de “partido cartel”. Trata-se de partido que independe do eleitor ou da base social, vivendo dos recursos públicos. Em outras palavras, o partido cartel profissionaliza seus quadros a partir de cargos comissionados; alimenta seus prefeitos com emendas parlamentares ou conquista de convênios com o Estado; faz campanha com fundos eleitorais… enfim, a relação com a base social é efêmera.

    Como já afirmei, a base petista (ou neopetista) que se forjou nos anos de gestão lulista se acomodou e até mesmo alimentou esta transformação do PT num partido tradicional. Com baixa formação política e acostumada com vitórias e o poder, passou a refutar todas críticas. Ao ouvirem a trajetória de mudança organizativa e de mecanismos internos de tomada de decisão no PT, os neopetistas acusam de saudosismo. O que levaria, assim, à extinção de todo estudo histórico. Outro argumento raso é que se não tivessem mudado, não venceriam eleições.O problema é que as derrotas eleitorais, para os neopetistas, não são fruto de erro de direção e escolhas partidárias, mas resultado de uma campanha de destruição da imagem do partido. A lógica circular vem empacando o PT: nada muda, nada deve mudar, se alguém tem que mudar é o mundo.Durkheim já havia nos ensinado como a solidariedade mecânica (de natureza grupal) é autorreferente. Fechada em relações afetivas e defensivas, qualquer crítica ao grupo ou membro do grupo cria um fechamento ainda maior dos seus membros. A bolha, enfim, é seu habitat.

    Mas, mesmo assim, o PT se mantém como partido-líder ou partido-âncora do sistema partidário. Vejamos: Datafolha de 2017 indicava o PT como o de preferência de 21% dos eleitores. No ano passado, pesquisa do Atlas Política indicava se manter nesta posição (com 15%). Tendo 21% ou 15% da preferência dos eleitores brasileiros, o fato é que o segundo partido da preferência aparece com 5%. Mais: o PT é o único partido que, desde 1989, chegou no segundo turno (quando ocorreu) de todas eleições para Presidente da República.

    Ainda mais: com Haddad – um candidato sem força eleitoral até mesmo na cidade em que foi prefeito – o PT venceu na maioria dos municípios brasileiros em 2018. Demonstrou, portanto, capilaridade e interiorização. Uma potência eleitoral consolidada.Assim, PT é o partido mais consolidado e enraizado do sistema partidário brasileiro. Sistema, é verdade, que vem demonstrando fortes rachaduras, com cada vez menor impacto junto ao eleitorado. Então, o que estaria acontecendo? Minha hipótese é: PT se acomodou.

    Como um camaleão, de partido rebelde se tornou um partido da Ordem. O passado lhe confere um perfil aguerrido; os governos lulistas criaram a imagem de partido com preocupação social; mas, na sua definição estratégica, não é mais um partido da mudança social ou política.Acomodado, criou regras e controles internos que impedem a renovação de quadros e limitam drasticamente a disputa no seu interior. Daí ter se tornado mais um partido de “cabeça branca”.

    Assim, PT se tornou a expressão viva do sistema partidário brasileiro. Um partido potente porque acomodado ao ideário conservador e pragmático de uma base eleitoral desconfiada e pouco exigente (que deseja sobreviver e se inserir numa sociedade profundamente desigual).Um alto dirigente petista me disse recentemente que percebe que PT tem garantido entre 20% e 30% dos votos nacionais. Tem força eleitoral, mas não gera mais paixões. Não é mais o partido da mudança. Esta é a minha tese.

    Artigo de 13/10:

    SOBRE A CANDIDATURA CAPENGA DE JILMAR TATTO

    1) Eu conheço muito bem a cidade de São Paulo, como jornalista ou como militante de várias causas. E sei que o Partido dos Trabalhadores ainda é respeitado por muita gente.

    2) As pesquisas recentes confirmam que é o partido preferido dos paulistanos, com 23% dos eleitores.

    3) O resultado é ótimo, considerada a campanha de calúnias e difamações contra a legenda. Trata-se de um projeto articulado de desconstrução de imagem, iniciado há anos, com forte participação da mídia hegemônica.

    4) Os tais 23% de base seriam o suficiente para, com algum esforço, botar a estrela no segundo turno das eleições municipais, mesmo com a parcela de 36% de antipetistas declarados.

    5) Efetivamente, com a mensagem certa, a propaganda adequada e as melhores alianças, seria possível até mesmo vencer uma eleição na maior cidade do país.

    6) A escolha partidária, no entanto, foi extremamente equivocada, e fará o partido encolher perigosamente na cidade. Pior, a votação minúscula do majoritário certamente vai reduzir a representação do partido da estrela na Câmara Municipal.

    7) Há quem diga que é “democracia”, que é preciso respeitar a escolha interna do partido. Francamente, sistemas de escolha em partidos, movimentos e instituições nem sempre são efetivamente democráticos, ainda que tenham toda a pinta de serem.

    8) Na verdade, as votações internas são realizadas por nichos de militantes fortemente ligados a mandatos e gabinetes. Pouco representam as ideias da maioria dos petistas, muitos hoje distantes da estrutura partidária. Gente com história de décadas no partido nem mesmo vota nesses processos internos.

    9) Por quê? Porque faz muito tempo que a cartolagem do PT se contenta com esses simulacros de democracia interna. Muito mais gente deveria estar agregada a esses processos.

    10) É preciso conversa de muro com o Seu Gervásio da Cidade Tiradentes, antigo militante do movimento por moradia, que botava bandeirinha do partido na janela desde 1982, mas que nunca se filiou à agremiação.

    11) Ele é o cara que defende Lula no bar do Miltinho. O veterano Gervásio deveria ter participado da escolha do representante do partido. Sua voz, entretanto, não foi ouvida.

    12) Não me venham, por favor, com esse papo de “ah, era só se filiar”. Nem como essa de “ah, mas essa gente não se mobiliza”. Esse papo, no caso, é de direita. Agregar à participação partidária é tarefa da militância estruturada de vanguarda, hoje presa em gabinetes, dialogando somente com os currais eleitorais já constituídos.

    13) No debate, os outros candidatos se aproveitaram maldosamente do antipetismo. Atacaram o pobre Tatto com vigor. Ele, no entanto, aturdido, não teve competência para defender o valioso legado petista na cidade de São Paulo. Precisa de aulas de oratória e retórica.

    14) Tatto quis se apresentar como gestor, citando repetidamente seu trabalho como secretário de Transportes. Meu Deus!!!! Foi justamente por isso que o PT perdeu tantos eleitores. De novo, pergunte ao Chicão da Hidráulica se ele morre de amores pelo cara que inviabilizou o uso de sua Pampa 1989.

    15) Tatto – que até pode ser um bom sujeito – é um cara de “dentro” do partido, na hora em que precisávamos de um cara de “fora”, identificado com a rua. Havia, sim, essa opção nos quadros da legenda. Mais de uma, aliás.

    16) Há quem diga que “ele tem voto” na periferia. Tem, mas em termos… A família tem um reduto eleitoral localizado, e só. Não é o suficiente para disputar uma eleição majoritária.

    17) Lideranças importantes do partido foram reticentes em relação a Tatto. Ou se demoraram em demonstrar apoio ou foram efetivamente pouco enfáticas em suas declarações. O eleitor não é bobo e percebe. É improvável que revertam essa situação.

    18) O candidato pode ainda obter alguns pontos, pois parte do eleitorado ainda não o conhece. Pode até cativar alguns petistas nesta fase final de campanha. Mas é pouco provável que passe perto do segundo turno.

    19) O democratismo burocrático petista, razão do próprio declínio da legenda, cria um vazio no eleitorado progressista da cidade, posto que nem tantos se animam com as candidaturas de Guilherme Boulos e Orlando Silva. E todo mundo sabe que França é apenas um pragmático oportunista, que veleja ao sabor dos ventos.

    20) É bobagem dizer que os petistas estão votando massivamente no psolista Boulos. Talvez um terço deles esteja, de fato. Outros muitos estão desencantados com a política. Talvez aleguem febre e nem apareçam para votar.

  • “Estive preso e me impediram de visitar-te”

    “Estive preso e me impediram de visitar-te”

    Artigo de frei Leonardo Boff*
    Há uma cena de grande dramaticidade no evangelho se São Mateus quando se trata do Juízo Final”, quer dizer, quando se revela o destino último de cada ser humano. O Juiz Supremo não perguntará a que Igreja ou religião alguém pertenceu, se aceitou os seus dogmas, quantas vezes frequentou os ritos sagrados.

    Esse Juiz se voltará aos bons e dirá: ”Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino preparado para vós desde a criação do mundo; porque tive fome e de me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes, estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, estava preso e viestes me ver… todas as vezes que fizestes a um destes meus irmãos e irmãs menores, foi a mim que o fizestes…e quando deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes (Evangelho de S.Mateus,25, 35-45).”
    Neste momento supremo, são as práticas e não as prédicas para com os sofredores deste mundo que contarão. Se os tivermos atendido, ouviremos aquelas palavras benditas.
    Esta experiência foi vivida pelo Prêmio Nobel da Paz de 1980, o argentino Adolfo Perez Esquivel (1931), arquiteto e renomado escultor, grande ativista dos direitos humanos e da cultura da paz, além de ser profundamente religioso, e por mim. Ele solicitara às autoridades judiciais brasileiras a permissão de visitar no cárcere o ex-presidente Lula, amigo de muitos anos.
    Da Argentina Esquivel me telefonou e no twitter foi resumida a conversação numa espécie de Youtube. Iríamos juntos, pois eu havia recebido também o assim chamado Nobel Alternativo da Paz em 2001 (Award The Right Livelihood) do Parlamento sueco. Mas lhe adiantei que minha visita era para cumprir o preceito evangélico, o de “visitar quem está encarcerado” além de abraçar o amigo de mais de 30 anos. Queria reforçar-lhe a tranquilidade da alma que sempre manteve. Confessou-me pouco antes de ser preso: “Minha alma está serena porque ela não me acusa de nada e me sinto portador da verdade que possui uma força própria e que no seu devido tempo se manifestará”.
    Chegamos em Curitiba, Esquivel e eu, em horários diferentes, no dia 18 de abril. Fomos diretamente ao grande auditório da Universidade Federal do Paraná repleta de gente, para um debate sobre democracia, direitos humanos e a crise brasileira que culminou com a prisão de Lula. Lá estavam autoridades universitárias, o ex-ministro das relações exteriores Celso Amorim, representantes da Argentina, do Chile, do Paraguai, da Suécia e de outros países. Alternadamente cantaram-se belíssimas músicas latino-americanas especialmente com a voz sonora da atriz e cantora Letícia Sabatella. Afrodescendentes dançaram e cantaram com suas roupas belamente coloridas.
    Fizeram-se vários pronunciamentos. O desalento geral, como por um passe de mágica, deu lugar a uma aura de benquerença e de esperança de que o golpe parlamentar, jurídico e mediático não poderia desenhar nenhum futuro para o Brasil. Antes, encerrar-se-ia um ciclo de dominação das elites do atraso para abrir caminho para uma democracia que vem de baixo, participativa e sustentável.
    Já antes da sessão foi-nos comunicado que a juíza Catarina Moura Lebbos, braço direito do juiz Sérgio Moro, havia proibido a visita que queríamos fazer ao ex-presidente Lula.
    Essa juíza não deu-se conta do alto significado de que é portador um Prêmio Nobel da Paz. Ele tem o privilégio de correr o mundo, visitar prisões e lugares de conflito no sentido de promover o diálogo e a paz. Agarramo-nos ao documento da ONU de 2015 que se convencionou chamar de “Regras de Mandela”, que trata de Prevenção ao Crime e a Justiça Criminal. Aí se aborda também a parte da visita aos encarcerados. O Brasil foi um dos mais ativos na formulação destas Regras de Mandela, embora não as observe em seu território.
    Mas de nada nos valeu. A juíza Lebbos simplesmente negou, No dia seguinte, dia 19 de abril, chegamos ao acampamento, onde centenas de pessoas fazem vigília junto ao Departamento da Polícia Federal, onde Lula está preso. Gritam-lhe “Bom dia, Lula”, “Lula livre” e outras palavras de ânimo e esperança que ele em seu cárcere pode escutar perfeitamente.
    Policiais estavam por todo os lados. Tentamos falar com o chefe para podermos ter uma audiência com o superintendente da Polícia Federal.
    Sempre vinha a resposta: não pode, são ordens de cima. Após muito insistir, com chamadas de telefone indo e vindo, Perez Esquivel conseguiu uma audiência com o Superintendente. Explicou-lhe os motivos da visita, humanitária e fraterna a um velho e querido amigo. Por mais que Perez Esquivel argumentasse e fizesse valer seu título de Prêmio Nobel da Paz, mundialmente reconhecido e respeitado, ouvia sempre o mesmo ritornello: Não pode. São ordens de cima.
    E assim, cabisbaixos, retornamos para o meio do povo. Eu pessoalmente insistia que minha visita era meramente espiritual. Iria levar-lhe dois livros ”O Senhor é meu pastor e nada me falta”,um comentário minucioso que realmente alimenta a confiança. O outro de nosso melhor exegeta Carlos Mesters “A missão do povo que sofre”, descrevendo o desamparo do povo hebreu no exílio babilônico, como era consolado pelos profetas Isaías e Jeremias e como a partir daí se fortaleceu o sentido de seu sofrimento e sua esperança.
    No Departamento da Polícia Federal tudo era proibido. Sequer um bilhete era permitido para ser enviado ao ex-Presidente Lula.
    No meio do povo, falaram vários representantes dos grupos, especialmente um casal da Suécia que sustenta a candidatura de Lula ao Prêmio Nobel da Paz. Falei eu e Perez Esquivel, reforçando a esperança que finalmente é aquela energia ponderosa que sustenta os que lutam pela justiça e por um outro tipo de democracia. Ele anunciou que lançara a campanha mundial para Lula como candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Há já milhares de subscrições em todo o mundo. Lula preenche todos os requisitos para isso, especialmente as políticas sociais que tiraram milhões da fome e da miséria e seu empenho pela justiça social, base da paz.
    Muitas foram as entrevistas aos meios de comunicação nacionais e internacionais. Algumas fotos do evento começaram girar pelo mundo e vinha a solidariedade de muitos países e grupos.
    Aí nos demos conta de que efetivamente vivemos sob um regime de exceção na forma de um golpe brando que sequestra a liberdade e nega direitos humanos fundamentais.
    A pequenez de espírito de nossos juízes da Lava Jato e a negação de um direito assegurado a um Prêmio Nobel da Paz de visitar um seu amigo encarcerado, no espírito de pura humanidade e de calorosa solidariedade envergonha nosso país, apenas comprovam que, efetivamente, estamos sob a lógica negadora de democracia num regime de exceção.
    Mas o Brasil é maior que sua crise. Purificados, sairemos melhores e orgulhosos de nossa resistência, de nossa indignação e da coragem de resgatar a partir das ruas e pelas eleições um Estado de direito.
    Não esqueceremos jamais as palavras sagradas: ”Eu estava preso e tu me impediste de visitá-lo”.

    (*) Um dos iniciadores da teologia da libertação na igreja católica. É assessor de movimentos populares e conhecido como professor e conferencista no Brasil e no estrangeiro nas áreas de teologia, filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Em 1985 foi condenado a um ano de silêncio obsequioso pelo ex-Santo Ofício, por suas teses no livro Igreja: carisma e poder (Record).

  • De esperança em esperança!

    De esperança em esperança!

    Reunimos aqui alguns trechos de artigos que compõem o livro Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns: Pastor das periferias, dos pobres e da justiça.

    O Cardeal que salvou minha vida – Adriano Diogo

    Eu conheci D. Paulo quando estava preso no presídio do Hipódromo. Dom Paulo foi nos visitar dentro da cela, ele estava acompanhado de Hélio Bicudo, e nós entregamos a eles documentos sobre a tortura. Eu me lembro deles os esconderem por debaixo da roupa. Estávamos cercadíssimos, mas conseguimos passar as preciosas informações.

    Munido desses papéis, e de outros documentos que retirou no presídio Tiradentes, Dom Paulo fez uma denúncia a entidades internacionais e divulgou a tortura que era realizada no Brasil para o mundo inteiro.

    Isso foi em agosto de 1973. Eu não sabia, mas D. Paulo já havia salvado a minha vida.

    Um Cardeal amigo da inteligência e dos pobres – Leonardo Boff

    A sociedade brasileira lhe deve [a D. Paulo] uma contribuição inestimável com o livro “Brasil nunca mais”, relato de torturas a partir de fontes oficiais dos tribunais militares. Corroborou assim a desmantelar o regime e acelerar a volta à democracia.

    Uma bomba em casa – Ana Flora Anderson

    Ainda durante a ditadura militar Leonel Brizola pediu uma entrevista e foi atendido por Dom Paulo […] Enquanto eles conversavam uma das irmãs chamou Dom Paulo ao telefone. Era um militar que queria entrar na propriedade em vista de uma ameaça recebida sobre uma bomba. Dom Paulo respondeu que só tinha uma bomba na casa – Brizola!

    O Franciscano que antecedeu Francisco – Padre Ticão e Professor Waldir

    “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” [palavras proferidas pelo Papa Francisco]

    Paradoxalmente podemos dizer: “Dom Paulo entendeu e atendeu o chamado do bispo de Roma”. Dizemos paradoxalmente porque falamos de períodos opostos. Francisco inicia seu Pontificado 15 anos depois que Dom Paulo tornara-se Arcebispo Emérito. Como pode, então, ao que veio antes, atender o chamado do que veio depois?

    A Vizinha da Cúria Arquidiocesana – Ana Flora Anderson

    A Cúria, situada na Avenida Higienópolis, tinha como vizinha na época a Secretária Estadual de Segurança que se interessava muito pelas atividades da Igreja. Numa dessas reuniões, Maria Ângela BBorsoi, secretária de Dom Paulo, estranhou a presença de um senhor desconhecido, sentado perto da porta com um gravador. Ela disse a Dom Paulo que achava que era um espião do DOPS e que queria avisar frei Gorgulho e Ana Flora a tomarem cuidado na apresentação dos textos litúrgicos.

    Dom Paulo reagiu prontamente dizendo que Ana Flora e frei Gorgulho deviam falar tudo o que tinham no coração. Afinal, os agentes do DOPS tinham poucas chances para ouvir o Evangelho.

    Dois Gritos – Dom Pedro Casaldáliga

    Têm dois gritos da rebelião profética de D. Paulo que sintetizam toda a sua vida:

    “De Esperança em Esperança” e “Nunca mais”.

    Insubstituível – Henri Sobel

    Nesses tempos de incerteza, de crescimento da intolerância e do fundamentalismo em todas as religiões, eu me lamento pela falta que D. Paulo faz. Mas, por outro lado, aproveito para transformar esse lamento em uma nova injeção de ânimo. É preciso formar não um, mas dez, cem, mil Paulos Evaristos, homens comprometidos com o destino do seu rebanho e de todos os rebanhos do Deus que é um só.

    Dom Paulo e a construção da cidadania na periferia de São Paulo – Luíza Erundina de Sousa

    Em 1973, três anos após tornar-se Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo resolveu trocar a residência oficial das Arquidiocese, transferindo-a do Palácio Episcopal Pio XII, imponente imóvel no Bairro Paraíso, para uma casa simples no Sumaré.

    Com os cinco milhões de dólares resultantes da venda do imóvel, ele determinou a construção de 1.200 imóveis, na periferia da cidade, para sediar centros comunitários, onde a população passou a se reunir para discutir só problemas dos seus bairros e organizar a luta por creches, escolas, postos de saúde, moradia, asfalto, transporte, enfim, por direitos sociais e políticas públicas.

    Dom Paulo Evaristo Arns – Recordações – Frei Betto

    A história é implacável e jamais esquece. Ela cobra da igreja católica seu silêncio perante o genocídio indígena no Brasil (com honrosas exceções, como Anchieta e Vieira), a servidão escrava dos negros (sem exceções) e o holocausto dos judeus. Mas não há como deixar de ressaltar o papel de considerável parcela da Igreja ao regime militar.

    (…)

    Para alguns, a ditadura acabou, a democracia voltou, a luta terminou. Dom Paulo, “a luta continua”, pois seu ideal evangélico ainda não foi alcançado: o direito dos pobres e o fim da desigualdade social.

    O Franciscano que antecedeu Francisco – Padre Ticão e Professor Waldir

    A “irrestrita solidariedade” assumida por Dom Paulo, se manifesta abertamente tempos depois. Em 17 de março de 1973. O estudante de Geologia da USP, Alexandre Vannucchi Leme, com 22 anos de idade, é assassinado sob torturamos cárceres da ditadura.

    (…)

    Diante das declarações mentirosas apresentadas [de que Alexandre teria se suicidado], numa clara manifestação de total desrespeito a qualquer direito da pessoa, estudantes da USP decidem procurar o Arcebispo de São Paulo e pedir-lhe a celebração de uma missa em memória do colega assassinado. A missa é marcada para 30 de março de 1973.

    Diante de mais de cinco mil pessoas e mesmo sob pressão dos órgãos de repressão para que o ato não acontecesse, Dom Paulo realiza a celebração. A partir daquele evento, entidades civis que até então permaneciam caladas, começaram a se manifestar contra a ditadura. O ato realizado após a missa transformou-se na primeira grande manifestação pública de oposição ao regime.

    Até que enfim entenderam! – Ana Flora Anderson

    O pai de Frei Betto era Juiz Militar e o responsável pela prisão [de Frei Betto] o chamou para conversar. Mostrou-lhe a Bíblia de Frei Betto com muitos textos sublinhados. O pai entendeu que era assim que Betto mandava mensagens aos outros presos. Mas, o militar bateu a Bíblia na mesa e exclamou: Todo esse livro é subversivo!

    Dom Paulo escutou toda a história e respondeu: “Até que enfim eles entenderam!”

    Nota

    Os trechos acima foram extraídos do livro Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns: Pastor das periferias, dos pobres e da justiça. Organizadores: Professor Waldir Augusti e Padre Ticão. São Paulo, Casa da Terceira Idade Tereza Bugolim, 2015. 479 p.