Jornalistas Livres

Tag: lava-jatismo

  • Moro versus Bolsonaro: peças da crise democrática

    Moro versus Bolsonaro: peças da crise democrática

    ARTIGO

    Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ
    O divórcio entre Bolsonaro e Moro põe em xeque peças decisivas da crise democrática. A parceria entre grande imprensa e Judiciário, geradora da Operação Lava-Jato e seu protagonista Sérgio Moro, tiveram papel determinante na queda de Dilma e prisão de Lula, acontecimentos fundamentais da crise. Precisamos saber como esta engrenagem irá se movimentar diante do bolsonarismo e será capaz de detê-lo. Levando-se em conta, ainda, uma condição específica ao nosso presente mais imediato, isto é, a pandemia de coronavirus.
    O primeiro passo para entender este xadrez é reconhecer as diferenças (e são muitas), entre estes dois sentimentos políticos, peças fundamentais neste jogo: Lava-jatismo e Bolsonarismo. O primeiro foi gerado na crise; o segundo, é anterior e foi impulsionado por ela.
    Lava-jatismo: narrativa gerada na crise
    Primeiro, o Lava-jatismo. A Operação Lava-Jato se construiu como força determinante do jogo político não apenas por sua função judicial-investigativa, mas por seu apelo midiático, como nos mostram as pesquisas do cientista político André Singer. A grande imprensa narrou a Lava-Jato para a população a colocando como se estivesse imune à podridão política, capaz de cumprir um papel saneador a atacar o maior dos problemas brasileiros, a corrupção. Transformou ações policiais em espetáculos televisivos, impôs o consenso da isenção e despolitização dos órgãos do Judiciário, traduziu à sua maneira o vocabulário jurídico (especializado) para o grande público consumidor de notícias. Quem não se lembra das operações da Lava-Jato às 6h, 7h da manhã transmitidas ao vivo como grande furo e notícia do dia? Ou ainda, o episódio da condução coercitiva de Lula, em março de 2016, com helicóptero ao vivo e câmeras a postos para filmar o carro de Lula pela via área? O “Japonês da Federal” se tornou personagem conhecido do público, motivo de conversas de bar, falado na feira, na fila dos elevadores, até em marchinha de Carnaval ele entrou.
    Sérgio Moro se tornou o maior representante do lava-jatismo justamente por conseguir controlar a grande mídia e transformá-la na porta-voz de suas ideias. A fala de Moro nunca foi vista como expressão de um ponto de vista. Sempre foi a verdade. Despolitizada, neutra, justa. Inteiramente ajustada ao contexto de sentimento antipolítica tradicional despertado desde 2013. E este apelo midiático-popular transformou a imagem sóbria de um juiz em uma figura pop, herói nacional.
    E isto que podemos chamar de populismo judicial contaminou parte significativa do corpo judiciário, que se sentiu “empoderada” para intervir cada vez mais no processo político, movido pela ideia de “popular” traçada pela grande imprensa. Exemplo desse ativismo é a postura do ministro do Supremo, Luis Roberto Barroso, cujas sentenças, muitas das vezes, se tornam verdadeiros discursos políticos voltados para a atenção do grande público, em favor deste saneamento moral. Foi dessa forma que Moro, ou o sentimento “morista” a contaminar juízes de diferentes instâncias, criou o clima para derrubar Dilma (sem crime de responsabilidade) e pôs Lula na cadeia (sem provas). Desse jeito, aliás, o PT foi retirado da presidência: pelas leis anticorrupção e instituições autônomas que fomentou, Ministério Público e Polícia Federal, sobretudo. Moro criou a hipótese de que Lula era o chefe do esquema de corrupção e torceu o processo jurídico em função daquela narrativa, que, em determinado momento, já não era só dele, mas também da grande mídia. Bolsonarismo: dois ressentimentos antidemocráticos.
    O bolsonarismo não é uma força política gerada apenas na crise democrática atual. A crise impulsionou o bolsonarismo, mas não o gerou. Ele é resultado de dois ressentimentos antidemocráticos acumulados da época do deputado federal Jair Bolsonaro, mobilizados agora na presidência, ora com mais ora com menos intensidade. Primeiro, o ressentimento sobre rumos da redemocratização. Ele se manifesta, por exemplo, no sentimento de nostalgia da Ditadura de 64, na retórica de ataque aos direitos humanos e no recurso à ditadura como modelo político ideal. Isso se manifestou claramente nas recentes participações de Bolsonaro em atos antidemocráticos que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e, até mesmo, o AI-5.
    Segundo, o ressentimento quanto à perda de valores morais associados à família conservadora, branca e patriarcal (o que ele chama de valores da maioria e não das minorias). Este movimento ocorre, sobretudo, a partir de 2011, no início do governo Dilma, quando o PT já somava oito anos de governo. Sua agenda passa a ser não somente a nostalgia da Ditadura, mas a reação aos avanços sociais e perspectivas de democratização abertas pelo governo Lula, sobretudo em relação às agendas de raça, gênero e políticas pública de fortalecimento dos direitos sociais – por exemplo, Bolsa Família e Mais Médicos, atacados por Bolsonaro ao longo do governo Dilma. Não por acaso, ele ganha tanta projeção em torno de causas morais e defesa da família: desde o “kit gay”, “ideologia de gênero”, contra o aborto, feminismo, gayzismo e tantas outras. Até a crise mais aguda, aberta pelas manifestações de junho de 2013, Bolsonaro atua no horizonte dessas duas perdas possibilitadas pela democracia: no público (desordem, corrupção e violência gerada pela inépcia do jogo político democrático) e no ambiente privado (família sem o comando do pai e do marido, desvirtuação homossexual e feminista).
    A crise democrática aberta em 2013, concretizada em 2016 no impeachment, aprofundada em 2018 na prisão de Lula, potencializa estes valores antidemocráticos e é neste momento que o parlamentar se transforma em Mito: na esteira do lava-jatismo e na crítica antissistema político (iniciada em 13), incluindo o anti-petismo. Há, entretanto, uma particularidade, decisiva, na forma de narrar do bolsonarismo. É nas redes sociais e no submundo do Whatsapp que ele ganha forma; ao contrário da Lava-Jato e Moro, que sempre contou com os meios tradicionais de manipulação discursiva, isto é, o centro difusor das empresas de comunicação. Bolsonaro se apresenta não só como outsider antissistêmico do jogo democrático, mas também da grande imprensa, a mesma que fabricou Moro e a Operação Lava-Jato.
    Crise e futuro aberto em tempos de Covid-19
    É com este instrumental histórico e conceitual que devemos operar para entender o divórcio entre Moro e Bolsonaro, iniciado na saída de Moro do Ministério da Justiça em 24 de abril e ainda em curso, com o mais recente episódio do vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro. Há uma condição fundamental a ser colocada aqui neste presente imediato: a pandemia do coronavirus. Bolsonaro já deu várias demonstrações de que não age em função de uma ética de valorização da vida; a crise da Covid tem mostrado de maneira radical este comportamento. Ele não apenas desmerece a comoção em torno da Covid, desfazendo o pacto mínimo em torno do cuidado com a vida, como se aproveita desta circunstância para avançar em seu projeto político. Ele age na esteira de uma (natural) desmobilização política na rua e no Parlamento – afinal, como priorizar um processo de impeachment agora?
    A Covid se torna não só a oportunidade para promover um rearranjo de seu governo, mas esticar a corda com Moro. Se a crise na Polícia Federal é inevitável, e é, diante do descontrole de investigações que caminham para implodir sua família e seu governo, a hora de agir é agora e não depois da Covid. Por outro lado, do ponto de vista de Moro, se ele gozava de tanto prestígio na Polícia Federal quando estava fora do governo (parte de Dilma e todo governo Temer), por que Moro toparia perder este controle, contraditoriamente, de dentro do governo? A princípio, contra Bolsonaro, Moro dispõe dos mesmos instrumentos de que dispunha contra Dilma e Lula: grande mídia e judiciário. Por um lado, não possui mais o cargo de juiz e a narrativa em torno da Operação Lava-Jato. Por outro, mantém prestígio popular acumulado da Lava-Jato, a despeito do escândalo (materialmente comprovado) da Vaza-Jato pelo site The Intercept Brasil. Judiciário, sobretudo STF, parece disposto a segui-lo. Nesta direção estão as decisões dos ministros Alexandre Moraes, impedimento da posse de Alexandre Ramagem como diretor da Polícia Federal, e Celso de Mello, pelo andamento do processo de investigação das denúncias feitas por Moro.
    Bolsonaro não formou base parlamentar no ano passado e parece disposto a fazer este movimento agora, mas não sabemos se isto será suficiente para deter um processo de impedimento. Terá ao seu lado, militância e milícia digital, que vão narrar essa experiência em contraponto à grande mídia. O “combate à corrupção” perde força, não só pela queda de Moro, mas pela aproximação com os parlamentares do “centrão”. Os dois ressentimentos antidemocráticos, no entanto, se mantém intactos. A tendência é que o discurso bolsonarista avance ainda mais nas pautas de ordem moral, como apontaram Géssica Guimarães e Amanda Danelli em seu artigo no site Jornalistas Livres.
  • OS DONOS DA CRITICA

    OS DONOS DA CRITICA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia (UFBA)

     

    Até agora, o dia 24 de abril de 2020 foi o momento mais importante na cronologia da crise democrática brasileira. Aconteceu aquilo que já vinha sendo ensaiado há algum tempo: o divórcio definitivo entre lava-jatismo e bolsonarismo.

    Antes de tudo, é preciso investir alguma energia de análise na diferenciação entre lava-jatismo e bolsonarismo. Nunca foram iguais. Durante algum tempo, foram aliados táticos. A partir de agora serão inimigos mortais, disputando na unha aquele que é o capital político mais valioso no Brasil dos nossos dias: a crítica anti-sistêmica.

    Desde que nasceu, em 2014, o lava-jatismo se alimenta de uma velha, e poderosa, narrativa de interpretação do Brasil que define a corrupção como o grande motivo do atraso nacional. Só que dessa vez foi mobilizada com mais eficiência. Com o apoio da grande mídia, a Lava Jato apresentou ao público o espetáculo da eficiência. Grandes empresários e políticos poderosos, até então imunes à Justiça, sendo algemados e presos. Como não amar?

    É certo que a Lava Jato sempre foi seletiva: pegou empresários do ramo das obras de infraestrutura, mas não empresários ligados ao capital financeiro. Prendeu políticos da base de sustentação dos governos petistas, mas nem incomodou o tucanato paulista.

    Mas, diante do espetáculo do justiçamento, pouca gente deu importância para a seletividade. Havia sentimento de impunidade represado e a Lava Jato deu vazão a isso.

    A Lava Jato venceu e convenceu a nação de que a política brasileira precisava ser refundada. A Lava Jato implantou no imaginário nacional um afeto revolucionário, entendendo aqui revolução como ruptura com o passado e aceleração do tempo rumo a um futuro visto como progresso.

    Já em 2014, quando a Lava Jato ainda engatinhava, o afeto revolucionário foi elemento importante nas eleições presidenciais. Marina Silva, sem estrutura partidária e sem tempo de propaganda na TV, falando em “nova política”, quase foi eleita. Tivesse passado para o segundo turno, fatalmente seria eleita, e com alguma facilidade. É difícil imaginar os eleitores de Aécio Neves migrando para Dilma.

    Em quatro anos aconteceu muita coisa e a Lava Jato passou a pautar a política nacional, transformando definitivamente a crítica anti-sistêmica no mais valioso capital político. Como os bacharéis de Curitiba, naquele momento, ainda não estavam envolvidos no jogo eleitoral, a crítica foi disputada pelos que participavam das eleições, exceto o PT, que ao investir na memória do governo Lula, tentava convencer o eleitor de que o sistema ainda era viável.

    Se a Lava Jato era a revolução, o PT era o antigo regime.

    No segundo semestre de 2018, Jair Bolsonaro venceu não apenas as eleições. Venceu a disputa pela crítica. Ou melhor: venceu as eleições porque venceu a disputa pela crítica, porque deu forma ao afeto revolucionário produzido pela Lava jato.

    Deputado de baixo clero que ficou quase 30 anos no Congresso criticando a democracia e elogiando a ditadura, Bolsonaro nunca foi parte da democracia. Era, de fato, um outsider. Soube o que fazer quando o colapso do sistema caiu no seu colo. Soube performar a crítica. A nostalgia autoritária evoluiu, então, para a crítica anti-sistêmica com pretensões revolucionárias.

    Bolsonaro foi tão competente na apropriação da crítica que a mesma Marina Silva, que continuou falando em “nova política”, foi pulverizada nas urnas. É que os votos não pertenciam à Marina Silva. Pertenciam à crítica, ao afeto revolucionário. Marina não aparenta ter a força e o carisma necessários para liderar uma revolução.

    Daí vem a força política do bolsonarismo: a combinação do carisma pessoal de Jair Bolsonaro com o afeto revolucionário implantado pela Lava Jato no imaginário nacional. O bolsonarista típico se considera ator revolucionário, crítico em luta contra o sistema controlado pelos poderosos. É muito sedutor ser revolucionário. Quem não se sentiria orgulhoso em colaborar para uma revolução?

    Com o divórcio, o lava-jatismo quer controlar sozinho o afeto revolucionário que produziu. Ao aceitar o convite para fazer parte do governo, Moro entrou de vez para o mundo da política institucional. Ao romper com o governo, Moro entrou de vez no jogo eleitoral. Começa agora uma nova fase na disputa pela crítica.

    No próprio dia 24 de abril, Moro e Bolsonaro falaram, trocaram acusações.

    No dia 27 de abril, o instituto Datafolha divulgou uma pesquisa para averiguar o impacto do divórcio na opinião pública. Os tais 30% continuam onde sempre estiveram: leais a Bolsonaro. É certo que a rejeição ao presidente aumentou, com a metade a população apoiando a abertura de um processo de impeachment.

    Os números sugerem que, diferente do que a maioria dos analistas pensava, Moro e Bolsonaro talvez não disputem exatamente a mesma base social.

    É que há entre eles uma diferença fundamental, uma diferença, sobretudo, estética. Na política, estética nunca é apenas estética. Enquanto Moro é o bacharel limpinho, com verniz de civilização, Bolsonaro é o homem médio com barba por fazer e camisa amarrotada.

    É bem provável que Bolsonaro continue sendo apoiado pelos seus 30%, o que na prática inviabiliza a tramitação do impeachment, e Maia sabe muito bem disso. É impossível derrubar um presidente que conta com o apoio irrestrito de 30% da população.

    Do outro lado, porém, está a rejeição, em curva ascendente. Essa rejeição ainda não tem dono. É aqui que Moro tende a crescer, com potencial pra agradar a direita letrada, aqueles que com nojo, fazendo ânsia de vômito, engoliram Bolsonaro até aqui.

    Bolsonaro tem o apoio das milícias armadas entranhadas nas PMs estaduais. Moro tem o apoio das instituições jurídico/policiais do Estado, como Ministério Público e Polícia Federal.

    Antes de disputar a mesma base social, Moro e Bolsonaro estão disputando a crítica. Eles são os donos da crítica. Essa é uma péssima notícia, a pior possível.