É, vivemos novamente o declínio dentro da área cultural. Em 1990, Fernando Collor de Mello extinguiu o Ministério da Cultura. Itamar Franco, em 92, reativou o MinC. Fernando Henrique Cardoso pouco fez em sua gestão. Com a chegada de Lula, Gilberto Gil e assessores capacitados elevaram a Cultura do nosso País em grandes saltos, como diria Antônio Carlos Rubim em seus textos. Em 2018, Michel Temer fechou o MinC, depois voltou atrás e reabriu. Nunca vi isso amigos! Agora, sob a regência de um governo populista semelhante ao de 1990, novamente o MinC foi enxugado, praticamente extinto e se tornou um agregado do Ministério da Cidadania junto com o Esporte, o que aliás, rende outra matéria rs.
Em virtude dessas ações que embalaram as mídias nas últimas semanas, dialoguei com artistas e produtores, estudiosos, lideranças, agentes públicos e ex-agentes públicos, que são trabalhadores da cultura dentro dos seus segmentos assim como eu, talvez você, e outros amigos, para entender o que os mesmos pensam, cada um com seu posicionamento sobre os últimos ocorridos.
Carlos Kotte é captador de recursos e contato publicitário. Por telefone, disse acreditar que o que vem ocorrendo com o setor é uma falta de comprometimento com os brasileiros e os trabalhadores da área.
“A Cultura assim como qualquer atividade econômica, é potencialmente geradora de empregos, e sem uma pasta de governo própria, milhares de pessoas que nem artistas são certamente perderão seus postos de trabalho também. O que me consola é que no futuro a política novamente terá de ter novos desdobramentos, com outra posição ideológica”.
Alfredo Manevy é doutor em Audiovisual pela Universidade São Paulo e atualmente, é docente e pesquisador especialista em Gestão Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atuou como Presidente da SP Cine; Secretario Executivo e Secretário de Políticas Culturais do MinC e, Secretario Adjunto da Cultura no município de São Paulo. Sobre o que ocorre na política atual, Manevy afirma:
“A cultura e arte são áreas em que o Brasil é internacionalmente reconhecido pela sua criatividade e diversidade. Acabar com o Ministério da Cultura, responsável pelas políticas públicas culturais do país, é uma decisão que vai na contramão das democracias civilizadas. É o MinC quem implanta, por exemplo, bibliotecas públicas em cidades que não as possuem. São os valores básicos do iluminismo que estão sendo jogados fora. Bolsonaro e Paulo Guedes não compreendem sequer que a cultura está entre as 10 economias do mundo, e trazem como velha novidade a indústria poluente de commodities (soja e boi) que vem derrubando e queimando as florestas indiscriminadamente. Tirar a cultura do rol de prioridades nacionais é passaporte seguro para atrasar o patamar educacional do país, justamente no momento em que a sociedade deveria estar alfabetizada e mais preparada para o Século XXI, em temas como tolerância, convivência e democracia”.
Foto: Alfredo Manevy (Fonte: Vanhoni)
Fernando AC é graduado em História; mestre em Ciência Política e Professor de Política. Atualmente também é membro do Conselho Gestor do Fundo Municipal de Cultura, da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, no município de São José dos Campos. Com relação à pauta, o mesmo diz:
“Acredito que a incorporação da Cultura ao Ministério da Cidadania, demonstra a incapacidade deste governo em dialogar, mas principalmente expõe o enfraquecimento das políticas públicas para o setor e atenção aos valores culturais que formam uma nação. O aniquilamento do MinC só denota o obscurantismo deste governo, que conseguiu disseminar a ideia de que as leis de incentivo tiram os recursos de hospitais e escolas”.
Ricardo Alexino é graduado em Comunicação Social; mestre em Ciências da Comunicação; doutor em Ciências da Comunicação. Atuou como diretor da Rádio Universitária da Universidade Estadual Paulista (UNESP) entre 2005 a 2008. É atualmente Professor Associado/Livre-docente da Universidade de São Paulo. Em uma conversa muito interessante. O Dr. Prof. Alexino está na África, e em um bate papo rico em detalhes, deu suas considerações sobre a extinção do MINC e sobre o cenário político atual no qual atravessamos no geral.
“Considero que o atual governo que assumiu a presidência é inominável. Não é da direita e tampouco neoliberal. Não se consegue ter uma identificação precisa para as suas tendências. Parece uma seita, constituída por pessoas desequilibradas emocionalmente e com baixa capacidade intelectual. Esse governo é marcado por ignorância dos processos históricos, políticos e culturais. Nessa perspectiva três alvos principais nesse processo, por parte desse governo, seriam a Cultura, a Educação e a Ciência, mesmo porque, dar destaque a essas áreas explicitaria a própria ignorância.”
“Em relação à extinção do Ministério da Cultura fica explícito o que é valor para esse governo. Minimizar a Cultura expõem os valores essenciais para esse governo, em que os aspectos culturais são acessórios. Qualquer país que pensa em seu desenvolvimento histórico-social-político valoriza a Cultura. Isso porque não é possível abordar qualquer aspecto sem pensar a Cultura. A Cultura desenvolve qualquer nação. Mesmo os regimes autocráticos e autoritários, como o Nazismo alemão, valorizaram a Cultura. De forma enviesada, mas valorizaram, mesmo para reforçar as suas ideologias. Esse governo tem forte tendência teocrática e isso interfere muito em seus posicionamentos. Como não tem a inflexão intelectual para pensar a Cultura em formas transversais, não consegue nem pensar a Cultura na perspectiva religiosa, base em que se ancora, apesar do Brasil ser constitucionalmente um país laico. Somente posso lamentar que esse homem, que chegou à Presidência, seja governante de um país; que tenha composto um ministério tão “surreal”, com pessoas equivocadas e que tenha extinto não apenas o MinC, mas também o Ministério do Trabalho e tenha modificado outros ministérios. Sem dúvida, a extinção do Ministério da Cultura deixará muitos trabalhadores da área sem trabalho. Também vários projetos culturais serão, provavelmente, extintos ou deixados de lado. Isso implica uma gama muito grande (museus, teatros, pontos de cultura, festivais, atividades culturais, cinema, Educação e muitos outros setores). Inclusive há o projeto de acabar com instituições como o Sesc, que desenvolve produção cultural significativa no Brasil. O propósito é a redução drástica de verbas. Não sei o que pensar da situação atual do Brasil e, tão pouco, o que pode levar uma população a votar em indivíduo como esse. Neste momento, estou na África do Sul, na Cidade do Cabo, e somente regresso em Junho deste ano. Além de desenvolver pesquisa aqui, foi à forma que encontrei (e foi sincrônica) de me manter longe desse momento trágico na história do país. Talvez a sombra que Jung tanto comenta, tomou conta do Brasil”.
Foto: Ricardo Alexino (Fonte: Fuvestibular)
Jai Mahal é radialista na Rádio Cultura Brasil AM (São Paulo) e músico do projeto “Jai Mahal e os Pacíficos da Ilha”. Segundo o radialista, o governo extinguiu o MinC porque os trabalhadores da cultura são, em sua maioria, articuladores e formadores de opiniões, o que é contra os interesses deste atual governo. Mahal também crê, que foi a única maneira que conseguiram pensar para sufocar (calar) a classe artística.
Alcemir Palma, graduado em Ciências Sociais pela PUC/SP e que já atuou pela SMC- Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; foi Assessor Parlamentar (ALESP); Diretor de Eventos da Fundação Cultural José Maria de Abreu, no município de Jacareí; Diretor Presidente da FCCR – Fundação Cultural Cassiano Ricardo (SJC) e Diretor de Cultura e Patrimônio Histórico da Prefeitura de Pindamonhangaba. Atualmente é Secretario de Cultura e Turismo de Pindamonhangaba também quis dar sua opinião. Palma foi detalhista: “Primeiro que é uma visão reducionista de que diminuindo Ministérios, o Estado será mais eficiente. Segundo, que o grau de importância da Cultura para o desenvolvimento humano deixa de estar no mesmo patamar de outras áreas. Quando havia Ministério, já era difícil, agora mais ainda. Não podemos negar o papel fundamental do Estado no fomento e articulação dos vários setores da Cultura para que possamos ter um país que respeite todas as expressões de nossa diversidade cultural.
“Com a extinção do MinC, isso pode virar um efeito cascata. Estados e municípios podem também adotar o fim de suas secretarias. É importante destacar que a indicação de um órgão gestor específico para a cultura está no Sistema Nacional de Cultura, que desde de 2012, faz parte de nossa Constituição. Em nível nacional, estamos na verdade indo na contramão dos avanços em políticas culturais que tivemos até agora. Como sensibilizar um município a ter sua própria Secretaria, se no Governo Federal faz-se o contrário?”
“A Lei Rouanet também precisa ser alterada. O projeto Procultura está engavetado no Congresso. Foi fruto de muitas discussões e visava, entre outras ações, fortalecer o Fundo Nacional de Cultura e descentralizar o valor destinado à renúncia fiscal. Este deveria ser o caminho da mudança. Mas o que atualmente falam sobre a Lei, não procede, como por exemplo que “financia só artistas de esquerda”, ou seja, passam uma visão de um possível tratamento ideológico. São necessárias tais alterações, inclusive todos os benefícios que ela já proporciona”, diz Palma.
Foto: Alcemir Palma (Fonte: Portal R3)
Efrén Colombani é especializado em Teatro Brasileiro e possui MBA em Bens Culturais: Cultura, Economia e Gestão. É servidor público de carreira do Estado de São Paulo, já tendo atuado como técnico das Comissões Especializadas do extinto Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas; Assessoria de Artes Cênicas e Comissão Estadual de Teatro; foi Diretor de Produção do Núcleo de Teledramaturgia da TV Cultura e Diretor Técnico do ProAC ICMS. Atualmente exerce o cargo de Executivo Público na atual Secretaria da Cultura e Economia Criativa, no departamento de Gêneros e Etnias. Seu ponto de vista também é pessimista:
“Não vejo prós. Considero a extinção um danoso retrocesso. Além de tudo é simbólico e pode gerar um efeito cascata em estados e municípios. A cultura é direito fundamental. É da maior importância na construção e valorização de nossa identidade, de nossa cidadania e juntamente com a educação formam um binômio fundamental no processo de desenvolvimento social. Ainda que ao longo de sua vida tenha ficado esvaziado e com uma redução orçamentária significativa, a integridade e fortalecimento institucional deveriam ser mantidos para melhor execução das políticas públicas. O MinC necessitava capilaridade. Como uma Secretaria, creio que deve perder autonomia para definir seu orçamento e que programas devem ser ou não criados. Ele precisa de uma estrutura adequada para promover o acesso aos bens e serviços culturais, para formular, planejar, implementar e avaliar as políticas culturais de incentivo, de fomento às artes, de preservação do patrimônio cultural e de promoção e valorização da diversidade cultural brasileira. Mais do que uma conquista setorial de artistas, produtores, gestores e fazedores de artes e culturas, o Ministério da Cultura foi uma conquista da sociedade e do povo brasileiro”.
“A cultura para além de sua dimensão simbólica e social impacta positivamente a nossa economia, gerando emprego e renda. Como já é sabido, o setor cultural gera 2,7% do PIB e mais de um milhão de empregos diretos, atingindo mais de duzentas mil empresas e instituições públicas e privadas. Tendo em vista outros setores da economia brasileira são números muito relevantes. É importante considerar também que com relação à tão injustamente atacada Lei Rouanet, foram divulgados estudos que apontam que a cada real investido, retorna R$ 1,59 para a economia do país”.
Dorberto Carvalho é graduado em Letras pela Universidade São Paulo. É ator, diretor e dramaturgo e, atual Presidente do SATED-SP. Sobre o episódio, ele comenta: “É lamentável porque se configura como mais uma ação deliberada contra a produção e o acesso à cultura no Brasil, a despeito do que já havia sido feito o Governo Temer voltando atrás e mantendo o MINC, que pouco ou quase de nada relevante fez pela cultura no Brasil. Penso que ter um Ministério da Cultura num Governo Bolsonaro pouco valeria, até mesmo como vitória simbólica. O governo Bolsonaro afeta negativamente os trabalhadores da classe que atuam no setor cultural e os demais trabalhadores brasileiros. Nesse momento não há como salvar o setor cultural isoladamente sem estratégias conjuntas com todos os trabalhadores.”
“A extinção do MinC afeta tanto os trabalhadores do setor quanto todas as outras ações propostas pelo governo Bolsonaro. Esse governo se utiliza de estratégias muito eficazes e não podemos gastar munição atirando contra todos os pratos lançados. O Movimento Cultural irá resistir e avançar se tivermos nossa própria estratégia e não ficarmos sendo pautados pelo governo a todo momento”.
Fábio Riani Costa Perinotto é graduado em Pedagogia Plena (UNESP) e atualmente especializa-se em Cultura: Plano e Ação, na Escola das Artes da Universidade de São Paulo. Atuou como Gerente de Coordenação Cultural e Gerente de Fomento e Formação Cultural, na Fundação Cultural José Maria de Abreu, no município de Jacareí. Atualmente é Assessor na mesma Fundação Cultural. Sobre a extinção da pasta exclusiva ao setor cultural, Fábio comenta: “Um perigoso sinal para que talvez alguns Estados e Municípios também abram mão de seus órgãos gestores de cultura de primeiro escalão. O Sistema Nacional de Cultura, por exemplo, é hoje parte integrante da nossa Constituição Federal Brasileira no Art.216-A, e nele consta que caberia ao Ministério da Cultura – órgão coordenador do Sistema Nacional de Cultura – fomentar a ampliação da adesão dos entes federados ao SNC e acompanhar a implantação dos sistemas em todos os municípios e estados brasileiros, além do Distrito Federal. O Sistema é Lei, é Constitucional. E mais uma vez a Constituição não é respeitada. O Sistema é basicamente constituído de no mínimo o órgão gestor de cultura e seu “CPF” (Conselho e Conferências, Plano Decenal, Fundo de Cultura). O Sistema Nacional, desde a sua criação, contribuiu para que muitos municípios reorganizassem suas linhas de fomento e financiamento e crédito tendo Fundos e/ou outras leis de incentivo, de modo a contribuir no alcance de metas contidas nos Planos que por serem decenais teriam as priorizações em longos, médios e curtos prazos; e tanto os Editais locais de acesso às verbas e recursos, quanto o planejamento de prioridades frente às demandas tendo maior e melhor acomodamento e sugestões por parte da sociedade civil via participação social. Ou seja, contribuindo na superação da cultura política de a política cultural não ser mais só a de repasse de grana por balcão para quem é “amigo do rei” – e assim tendo maior regramento, transparência e fiscalização, republicanismo e democracia. Neste momento o que tem me preocupado é a possibilidade do efeito cascata e municípios também regredirem não tendo mais a Cultura nos seus primeiros escalões das tomadas de decisões sobre os destinos das suas cidades.”
“Não vejo prós no rebaixamento do posto político da Cultura. Há muitas manifestações e expressões tanto artísticas quanto culturais que não são entretenimento, principalmente destaco aqui as culturas populares e tradicionais, e as quais os subsídios e repasses via recursos públicos são o que as mantêm vivas e ativas. E não é tanto dinheiro quanto há, por exemplo, no perdão público da dívida de planos privados de saúde. Acaba sendo bem menos que incentivos e isenções fiscais destinadas às indústrias automobilísticas também, dentre outros exemplos possíveis de se mencionar. E assim como qualquer área ou setor, a maioria das pessoas trabalhadoras que vivem de seus ramos de atuação não são as que têm grande repercussão e visibilidade – nas artes e culturas não é diferente”.
Para Perinotto, a única e forte diferença é que: “neste nosso ramo de trabalho e atuação carregamos a inovação, a criticidade e a criatividade com sensibilidades próprias das Artes, junto com os costumes, as tradições, as identidades, os valores e os patrimônios das Culturas. Um país que não prioriza a ampla diversidade das Artes e Culturas que o compõe não se reconhece e se fragmenta, não se agrega como pluralidade de nações que se coexistem em seu território federal”.
Foto: Yaskara Manzini na Comissão de Frente da X9 Paulistana (Créditos: Bruno Falconeri)
Yaskara Manzini (55 anos) é mestre e doutora em Artes pela UNICAMP, leciona para jovens na ETEC de Artes em São Paulo; é professora na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e, é a Coreógrafa da Escola de Samba X9 Paulistana. Sobre o que vem acontecendo não só com o cenário cultural mas com o tudo, sua visão foi direta:
“Vivemos no retrocesso. O impacto da extinção do MinC provavelmente será negativa, principalmente para os Estados e Municípios que não possuem políticas específicas para o setor. Os mais prejudicados deverão ser os artistas da cena popular e experimental, cuja produção é simbólica e por vezes não comercial. Também há de se pensar como será o impacto deste ato nas grandes festas nacionais como Carnaval, que além de empregar milhares de pessoas, gera dinheiro através do Turismo tanto no Rio de Janeiro, Salvador, quanto em São Paulo”.
Além disto, segundo ela, “há a questão dos investimentos em Educação estarem congelados nos próximos dezoito anos (PEC 241) e a Cultura ficou vinculada ao Ministério da Educação. Muito provavelmente não haverá verba para investimento na Cultura. Dói na alma não ver ou projetar perspectivas interessantes para o setor em nível federal, pois uma Nação que não reflete e investe em suas práticas simbólicas, artísticas, patrimoniais, não possui “como dizem os mais antigos no samba” o fundamento, e sem fundamento não somos nada, não temos identidade. Mas talvez, quem sabe, seja este mesmo o plano do atual governo”.
E por falar em Carnaval, neste último dia 14 de janeiro, o Prefeito Bruno Covas (São Paulo) pronunciou oficialmente o novo Secretario de Cultura do Município, o produtor cultural Alê Youssef (responsável por um dos maiores blocos de rua da cidade de São Paulo, o Acadêmicos do Baixa Augusta). Vamos lembrar que em entrevista à CBN em Dezembro de 2018, Youssef deu uma cutucada nos governantes. Em nota, após aceitar a indicação, ele afirmou: “Em 2018, a Cultura ficou sob ataque gerado por uma polarização nunca antes vista. Diversos artistas foram acusados de coisas absurdas, através de fake news. Fomos todos chamados de vagabundos e desocupados. Passado o calor eleitoral, pesquisas mostraram que a Cultura gera muito emprego, renda e oportunidades no Brasil”. Agora, é preciso acompanhar as ações do novo Secretário de Cultura, já que em suas produções, o ativismo é utilizado de maneira muito incisiva. Uma pergunta não quer se calar: Alê Youssef será uma resistência dentro do PSDB?
Humberto Meratti é produtor cultural e de eventos, ativista, e ama escrever porque fala muiiiito com todo mundo.
O ex-governador Anthony Garotinho (PRP) obteve uma liminar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para continuar na disputa estadual do Rio de Janeiro neste domingo (16). O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) havia impugnado sua candidatura no dia 6 de setembro. O argumento do TSE é que Garotinho ainda pode recorrer da sentença do TRE, portanto tem direito a continuar fazendo campanha eleitoral até serem esgotados os recursos jurídicos.
Segundo advogados consultados pelo Brasil de Fato, a situação jurídica do candidato a governador do Rio de Janeiro é similar à de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que, no entanto, teve todas as tentativas de obtenção de liminares negadas.
Para estes advogados, todas as candidaturas impugnadas com chance de recursos devem ser consideradas sub judice, ou seja, são casos que ainda podem ter uma nova determinação judicial. Se essa tivesse sido a posição do Judiciário sobre Lula, ele poderia ter obtido uma liminar.
Fernando Amaral explica que o termo “sub judice” deve incluir candidaturas que pudessem ser debatidas em instância acima do TSE.
“Esgotaria quando não tivesse mais recursos. Só há trânsito em julgado, ou seja, deixa de estar sob judice, quando esgotadas as fases recursais. E no registro, apesar de entender que para presidencial se inicia no TSE, na última instância eleitoral, há sempre possibilidade de recurso para o Supremo”, afirma.
Destacando que a decisão sobre Garotinho encontra amparo na legislação, Bruno Caires também critica o entendimento que o Tribunal vem adotando para os julgamentos que se iniciam no próprio TSE.
“A diferença que existe entre os dois casos é que o TSE é o órgão legitimado para o pleito de presidente da República. A liminar [para Garotinho] foi concedida em relação a uma decisão do [Tribunal] Regional. A gente nunca teve uma impugnação de candidato a presidente da República, e foi dada essa interpretação [no caso Lula]. Eu entendo de forma diversa, cabendo recursos previstos em lei de competência do STF, seria incoerente dizer que o Eleitoral seria a última instância”, argumenta.
Garotinho foi condenado em julho pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por improbidade administrativa. O TRE enquadrou o político na chamada Lei da Ficha Limpa, também aplicada pelo TSE no caso de Lula.
O ministro do TSE, Og Fernandes determinou que a inelegibilidade seja suspensa até que o mérito da questão seja julgada por pelo próprio TSE. “O candidato cujo registro esteja sub judice poderá prosseguir na campanha eleitoral – inclusive com o nome e foto na urna eletrônica – até o julgamento pelo Tribunal Superior Eleitoral em única ou última instância”, afirma parte da decisão.
Como Garotinho aguarda decisão sobre recurso ao próprio TSE, foi beneficiado pela interpretação do Tribunal.
Segundo a visão de ambos advogados, com a impugnação no TSE, o Judiciário deveria ter concedido a liminar para que o PT decidisse continuar ou não com a candidatura de Lula, mesmo sob o risco de ter seus votos anulados entre o primeiro e o segundo turno, o que aconteceria caso o STF confirmasse a negação de sua candidatura.
Notas
1 Esse artigo foir originalmente publicado em https://www.brasildefato.com.br/2018/09/17/decisao-que-permite-candidatura-de-garotinho-contradiz-impugnacao-de-lula/
2 Essa matéria recebeu o selo 044-2018 do Observatório do Judiciário.
3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.
A condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, não foi surpresa, nem para os que por ela ansiavam nem para os que a temiam ou a ela se opunham. Foi o desenlace esperado e até mesmo anunciado daquilo que se tramava havia muito tempo. Os atos e declarações dos componentes da assim denominada Operação Lava Jato – desde delegados da Polícia Federal, passando por membros do Ministério Público Federal e chegando ao juiz acima mencionado, assumidamente integrante e sob muitos aspectos até mesmo “chefe” da referida operação, por mais incompatível que isso possa ser com a postura que se espera de um juiz – apontavam sempre no sentido de uma “convicção” de culpa que só enxergava como “provas” aquilo que a reforçasse, o que evidenciava que o processo não passava de uma encenação para que a preconcebida sentença condenatória fosse proferida.
Não é meu objetivo neste pequeno texto pôr a ênfase da análise sobre o mérito em si da condenação, seja no que se refere à sua materialidade, seja no concernente à (in)observância das formas, limites e garantias processuais.
Não posso deixar de registrar, entretanto, o meu indignado entendimento de que Lula foi condenado com base em meros indícios e presunções, que foram tomados como provas suficientes no julgamento.
Isso ficou claro desde o início e atingiu seu ápice como espetáculo naquela patética cena e m que, empregando o recurso de um PowerPoint durante entrevista coletiva realizada ao vivo em rede nacional de televisão em setembro de 2016, procuradores federais, tendo à frente Deltan Dallagnol, apresentaram à população, de modo pretensamente “didático”, a tese acusatória de que o Estado brasileiro estaria tomado por vasta e sofisticada organização criminosa, cujo líder supremo seria o ex-presidente Lula.
Uma vez estabelecido antecipadamente tal veredito, restava encontrar – e, se nada fosse efetivamente encontrado, restava inventar – as provas que fundamentariam a sentença condenatória.
O famoso tríplex no Guarujá foi artificiosamente constituído enquanto prova, na falta de coisa melhor para a acusação, com a qual, por sinal, o comportamento do juiz muitas vezes se misturava. Essa confusão do lugar do juiz com o do acusador, essa alternância, na mesma pessoa, do trabalho de produzir provas contra o acusado e julgá-lo com base nessas mesmas provas, levou o juiz a tomar indícios, ilações e suposições como provas suficientes, na medida em que lhe pareciam ordenadas conforme uma narrativa “verossímil” que no entanto foi logo tomada como “verdadeira” e que sedimentou a convicção da culpa do réu, presente desde antes mesmo do início do processo e agora tornada inabalável. A certeza inabalável que então se instaura e determina a sequência dos atos processuais que culminarão na condenação contém traços paranoicos, conforme já examinei em outro lugar (1).
Outro ponto que não posso deixar de registrar é a inusitada e suspeitíssima “coincidência” de ter sido a sentença condenatória de Lula proferida precisamente no dia seguinte àquele em que o Senado Federal aprovou a abominável “reforma” trabalhista que na prática aboliu os direitos dos trabalhadores. É preciso ser muito ingênuo para acreditar que tal “co-incidência” tenha sido fortuita.
A condenação de Lula, ícone dos trabalhadores e candidato mais cotado para vencer as eleições presidenciais de 2018, obscurece, desvia para Lula o foco dos holofotes das “reformas” trabalhistas e da carga cerrada de acusações de delitos contra o ilegítimo presidente Michel Temer, e com isso reforça o desmonte da legislação do trabalho, ao mesmo tempo em que visa a afastar da disputa o único candidato com condições de, uma vez no exercício do cargo, empenhar-se com alguma chance de êxito no sentido de reverter o imenso retrocesso imposto no campo das relações de trabalho e dos programas sociais em geral.
Se perguntarmos a quem tudo isso beneficia, veremos sem dificuldade que o grande favorecido é o capital, sobretudo o rentista e financeiro, dentro das condições impostas pelo modelo neoliberal dominante em nível internacional.
É ele que mais decisivamente esteve por trás do golpe de 2016 que depôs Dilma Rousseff da presidência da República precisamente para implantar autoritariamente as tais “reformas”, que jamais obteriam o aval do voto popular. É perfeitamente coerente com esse objetivo que, ao mesmo tempo em que o juiz Moro condenava Lula, era negado seguimento a processos por improbidade movidos contra políticos comprometidos com as “reformas”, como a comissão de ética do Senado fez em relação a Aécio Neves e a Câmara dos Deputados em relação a Michel Temer. Estes, por sinal, são perfeitamente descartáveis na ótica das elites dominantes, para as quais o que de fato interessa é a aprovação das reformas que lhes garantam a exploração sem restrições dos trabalhadores e o aumento desmedido do seu enriquecimento, não importando que custo social isso possa acarretar. O que isso tudo evidencia é que, por trás da condenação de Lula, há um objetivo inconfessado que é o verdadeiro objetivo das elites economicamente dominantes: inviabilizar, no nascedouro, a candidatura de Lula à presidência da República em 2018.
Mas essas e outras considerações de fundo jurídico e político não são o principal objeto do meu interesse neste trabalho. Elas foram e continuam sendo matéria de análises e artigos muito bem fundamentados de autoria de juristas, penalistas, processualistas e constitucionalistas renomados, que as têm examinado exaustivamente sob as mais diversas perspectivas. Vários desses autores têm trabalhos publicados no presente livro.
O objetivo primordial deste trabalho é selecionar e pôr em evidência algumas passagens da sentença condenatória em que o juiz Sérgio Moro, acreditando que falava de Lula, ou do processo, ou das suas provas por ilação, ou que se queixava dos advogados de defesa, ou da imprensa, ou que rebatia críticas a ele dirigidas (tudo isso compõe o “conteúdo manifesto” da sentença), falava também e sobretudo de si mesmo, de sua posição subjetiva, de sua visão de mundo, do código moral implícito a seus atos e declarações, de sua concepção de direitos e garantias processuais e constitucionais e, acima de tudo, do que para ele significa fazer justiça, e qual o papel do juiz (ou seja, ele próprio, Moro) na perseguição desse alvo. Meu enfoque predominante será, portanto, de fundo psicanalítico, embora não me seja possível deixar de abordar também, aqui e ali, aspectos jurídicos e políticos do caso.
Ele falava dessas coisas sem saber, talvez, que estava falando muito mais do que supunha. É aí que se situa o “conteúdo latente” de sua fala. Assim como acontece com os sonhos, toda fala, todo discurso (e a sentença judicial é uma forma de discurso) apresenta conteúdos manifestos e latentes.
Estes últimos muitas vezes correspondem a representações e desejos recalcados e inconscientes, que não cessam de buscar expressão e satisfação. E se presentificam como acidentes da fala, como lapsos, atos falhos, atos sintomáticos, descontinuidades, hesitações, associações superficiais e como que “forçadas”. Esses acidentes, denominados por Lacan de formações do inconsciente, são as formas pelas quais o inconsciente se manifesta, os desejos recalcados afloram, fazendo emergir a verdade do sujeito, oculta tanto para os outros quanto para ele mesmo. É nesse contexto que os psicanalistas afirmam que os atos falhos têm função de verdade, evocando o ensinamento de Lacan segundo o qual verdade, em Psicanálise, é presença de inconsciente na fala. Brincando um pouco com as palavras, posso dizer que é na falha da fala que o inconsciente se revela, que o sujeito é “flagrado” e se trai.
É aí, também, que os determinantes dos sintomas se manifestam. Nesse sentido, as sentenças dos juízes constituem, não poucas vezes, alusões e referências aos sintomas desses juízes. Se desviarmos um pouco o olhar do conteúdo manifesto da sentença, isto é, da sua dimensão de enunciado, e o pousarmos na dimensão de enunciação, ou seja, o lugar simbólico a partir do qual o enunciado é emitido, muito podemos apreender da posição subjetiva em que o juiz se coloca (mesmo que inconscientemente, e neste caso a coisa tem ainda mais força) ao proferir a sentença. A questão a considerar aqui é a seguinte: que posição de sujeito torna possível esse discurso?
Trata-se, fundamentalmente, de uma posição de arrogância, própria de um sujeito que, encarnando visceralmente a função de “justiceiro”, identificando-se inteiramente com ela, se sente autorizado a impor a sua convicção – e a condenar com base nessa autorização –, não hesitando, quando lhe parece necessário para a consecução de tal propósito, em espezinhar os princípios e garantias constitucionais e processuais, como, por exemplo, o princípio da presunção de inocência, a observância do devido processo legal, o direito à ampla defesa e ao contraditório, que são verdadeiras “cláusulas pétreas” da cidadania numa sociedade democrática.
Em síntese, quando a lei lhe parece um obstáculo à aplicação daquilo de cuja justiça ele tem certeza, ele simplesmente “cria” uma lei específica para aquele caso e aplica a sua justiça. Chegou mesmo a criar a figura de uma “propriedade de fato”, inexistente na legislação, mas que ele viu materializada na circunstância, para ele decisiva, de que o apartamento do Guarujá estava “reservado desde o início” para Lula e sua família e que por essa razão havia sido reformado pela construtora OAS, e utilizou essa criação como um dos principais fundamentos “fáticos” da condenação. Sempre em nome do Bem, é claro…
E o fez respaldado na propaganda da grande mídia e no maciço apoio daí resultante que ele cultiva junto à opinião pública, que o enxerga como um herói nacional, e também amparado na cumplicidade de instâncias superiores do Judiciário, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, que tem validado vários dos seus abusos, dando a impressão, não raras vezes, de fazê-lo por falta de coragem e de firmeza para assumir posições contramajoritárias.
Esse apoio ao avanço de julgamentos penais de exceção encontrou um de seus mais escandalosos exemplos quando o Tribunal Regional Federal da 4ª Região validou, em 22 de setembro de 2016, com apenas um voto em contrário, medidas abusivas e excepcionais tomadas pelo juiz Sérgio Moro, dentre as quais o ilegal vazamento para a imprensa de conversa telefônica entre a então presidenta Dilma e o ex-presidente Lula, além do grampeamento dos telefones de escritórios de advocacia e da admissão como provas de elementos obtidos ilegalmente.
Em texto publicado não muito depois de tão esdrúxula e perigosa decisão do TRF da 4ª Região, afirmei que “para tal decisão, o Tribunal baseou-se na premissa de que a operação Lava Jato não precisa seguir as regras dos processos comuns, e empregou, como fundamentos de tão insólito entendimento, argumentos que não encontram guarida na ordem jurídica vigente, nem tampouco sustentação ética consistente, como os de que vivemos uma ‘situação inédita’ que exige ‘soluções inéditas’, o que tornaria admissíveis ‘métodos especiais de investigação’ e ‘remédios excepcionais’” (2).
Trata-se, evidentemente, da convalidação da posição perversa de um juiz que confunde o ato de julgar com o de legislar e não se acanha de julgar com base em provas que ele mesmo produz ou ajuda a produzir. E como acontece em toda posição perversa, há uma arbitrária imposição de limites para os outros e ao mesmo tempo uma supressão de todos os limites para os seus próprios atos. Isso transparece no item 961 da sentença, quando o juiz afirma que “prevalece, enfim, o ditado ‘não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você’ (uma adaptação livre de ‘be you never so high the law is above you’)”. Moro parece nem desconfiar de que, nessa passagem, ele deixa escapar, implicitamente, que “você” é sempre o outro, o acusado , o réu, não o juiz que, no caso, não se considera abaixo da lei pela simples razão de ter – se identificado com ela.
Em vários trechos de sua sentença, o juiz Moro se utiliza de um discurso denegatório que tem valor de ato falho. Freud introduziu o conceito de “denegação” (Verneinung) para designar aquelas situações em que o sujeito tenta afastar uma representação que de repente lhe ocorre, enunciando – a sob forma negativa, uma maneira de “repúdio, por projeção, de uma ideia que acaba de ocorrer” (3), um mecanismo de defesa que consiste em projetar para o exterior do sujeito um conteúdo que lhe é interior. Freud diz que a denegação é uma Aufhebung do recalque, que ao mesmo tempo traz à tona o conteúdo recalcado e mantém o essencial do recalque.
Um dos exemplos que ele dá, e que se tornou famoso, é o de quando um sujeito diz em análise: “O senhor pergunta quem pode ser a pessoa no sonho. Não é a minha mãe”. Freud indica que a regra técnica a observar em tal caso é a de simplesmente suprimir a negativa e acolher apenas o conteúdo da declaração: “Então, é a mãe dele” (4).
Como o espaço que me resta para concluir é extremamente exíguo, limito-me a apontar duas passagens da sentença em que Moro, rebatendo associações que a ele mesmo iam ocorrendo, utiliza um discurso visivelmente denegatório que, na tentativa de encobrir, acaba por escancarar pensamentos e sentimentos inconscientes que revelam o “conteúdo latente” que sobredetermina a sentença condenatória.
Uma dentre inúmeras situações dessa espécie ocorre quando, no item 961 de sua sentença, após ter dedicado no início longas páginas para defender-se de acusações de abusos e falta de imparcialidade e para tentar demonstrar que não é suspeito para julgar Lula, Moro afirma que “por fim, registre-se que a presente condenação não traz a este julgador qualquer satisfação pessoal, pelo contrário”. Ora, o fato inusitado de um juiz sentir a necessidade de falar de seus próprios sentimentos, declarando, na sentença, que a decisão não lhe traz satisfação pessoal, é um eloquente indicativo de que ele primeiro (consciente ou inconscientemente, pouco importa neste contexto) admitiu experimentar, sim, essa satisfação, para em seguida negá-la sem observar ou pouco se importando com o fato de que existe uma afirmação anterior, implícita na negação. O adendo “pelo contrário” é o índice da denegação, “um certificado de origem, como se fosse um ‘made in Germany’” (5), como diz Freud. Basta, no caso, seguir a regra técnica que Freud indica e eliminar a partícula negativa, para que a satisfação denegada se revele como a causa oculta e determinante do desfecho da sentença. Essa denegação é forte candidata a vir a compor uma futura antologia de atos falhos reveladores das verdadeiras motivações de sentenças judiciais…
Outra revelação de “conteúdo latente” da sentença ocorre quando o juiz, para fundamentar a sentença condenatória, se baseia, não em atos ilícitos comprovadamente praticados pelo acusado, como manda a lei, mas em avaliações de sua conduta e postura durante o desenrolar do processo e em declarações públicas por ele feitas. Com isso, o juiz se aproxima temerariamente de um direito penal de autor, em que o sujeito não é julgado pelo que fez, mas pelo que é, ou pelo que parece ser aos olhos do julgador.
No item 958 da sentença, por exemplo, Moro afirma que, em sua defesa, Lula, orientado por seus advogados, tem adotado:
“táticas bastante questionáveis, como de intimidação do ora julgador, com a propositura de queixa-crime improcedente, e de intimidação de outros agentes da lei, Procurador da República e Delegado com a propositura de ações de indenização por crimes contra a honra. […] Tem ainda proferido declarações públicas no mínimo inadequadas sobre o processo, por exemplo sugerindo que se assumir o poder irá prender os Procuradores da República ou Delegados da Polícia Federal. […] Essas condutas são inapropriadas e revelam tentativa de intimidação da justiça, dos agentes da lei e até da imprensa para que não cumpram o seu dever”.
Moro vê aí “atos de hostilidade” contra os agentes da Justiça. Ainda que verdadeiros os conteúdos de tal afirmação, as declarações de Lula não são, por si sós, delitos prévia e expressamente tipificados no ordenamento penal, não podendo constituir, por isso mesmo, base para uma condenação. Além disso, propor ações em juízo é direito inalienável do cidadão, não podendo gerar consequências penais a não ser nos casos de litigância de má-fé e outros expressamente determinados por lei.
Dando-se ou não conta disso, Moro se deslocou do lugar de juiz (lugar de imparcialidade, portanto) para o lugar de um contendor ou oponente do réu. Havia todo um fundo de verdade naquelas revistas de circulação nacional que estamparam em suas capas, na mesma semana, Moro e Lula como pugilistas ou gladiadores em plena luta… O juiz chega mesmo a reprovar, na sentença (item 795), o fato de que Lula, quando presidente, não promoveu emenda no sentido de desconsiderar a exigência constitucional de trânsito em julgado da sentença condenatória para o início do cumprimento da pena, bem como de não ter tentado reverter a jurisprudência então dominante no STF sobre a matéria.
Essas considerações evidenciam que a sentença condenatória e a fixação da pena (alta o suficiente para garantir o início do cumprimento em regime fechado) obedeceram a critérios subjetivos do juiz, o que configura flagrante erro técnico.
Psicanalista. Professor universitário nas áreas de Filosofia do Direito e Filosofia Política. Membro fundador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná.
Referências
1 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. “O Juiz como Protagonista do Espetáculo: a Paranoia como Metáfora para Pensar essa Posição”. IN: PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; TENENBAUM, Marcio & RAMOS FILHO, Wilson (organizadores). A Resistência ao Golpe de 2016. Bauru: Canal 6, 2016, p. 21
3 FREUD, Sigmund. “A Negativa” [1925]. IN: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução de José Octavio de Aguiar Abreu, sob a direção-geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XIX, p. 295.
4 Id. Ibid., v. XIX, p. 295
5 Id. Ibid., v. XIX, p. 297
Notas
1 Esse artigo faz parte do livro “Comentários a uma Sentença Anunciada: o Processo Lula”. Para baixar o livro completo: https://drive.google.com/file/d/1T_TFknjaV5gVkgsGRg_bp0vlYQbmRfGO/view
2 Essa matéria recebeu o selo 043-2018 do Observatório do Judiciário.
3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.
Os grandes escritórios de advocacia norte-americano têm investigadores privados contratados por eles para investigações independentes. Há uma desconfiança fundamentada com as investigações da policia e da promotoria, que quase sempre têm viés condenatório.
É surpreendente que essa prática não tenha se estendido aos grandes escritórios de advocacia nacionais, especialmente quando a AP 470 escancarou a parcialidade da Procuradoria-Geral da República.
Dia desses, o Extra publicou reportagem sobre um casal que decidiu investigar por conta própria o indiciamento do filho no Rio de Janeiro. Sozinhos, pai e mãe conseguiram imagens de vídeo que contradiziam as versões da polícia.
Por tudo isso, jamais entendi o caso Visanet.
Quando estourou o “mensalão”, em meio à barafunda de indícios, delações e o escambau, eu tinha apenas uma certeza: não houve desvios da Visanet. E o caso Visanet foi a espinha dorsal que permitiu à Procuradoria-Geral da República enquadrar o inquérito na modalidade organização criminosa e estender as ilações para dentro do governo.
Minha certeza era baseada em indícios muito concretos. O marketing do Banco do Brasil tinha profunda implicância com Pizolatto. Depois, soube que o próprio Secretário de Comunicação Social, Luiz Gushiken também tinha desconfianças. Mas, os técnicos do marketing diziam que não tinha havido desvios porque, ao contrário da Petrobras, o BB dispunha de modelos eficientes de governança.
Depois, um diretor do BB me passou a informação definitiva. Para abater os gastos de campanha do balanço, a Visanet precisava comprovar que os gastos foram realizados. Foi contratado, então, o respeitabilíssimo escritório Pinheiro Neto que atestou a comprovação de R$ 73 milhões da verba de R$ 75 milhões do marketing. Os R$ 2 milhões restantes não eram desvio, mas simplesmente despesas ainda não comprovadas – com fotos e documentos dos eventos patrocinados. O dinheiro foi gasto com a Globo, com a Abril e com patrocínios de eventos, todos devidamente documentados.
Nem se diga o fato da Visanet não ser uma empresa pública, mas uma sociedade entre várias instituições, entre as quais o BB.
Há anos tenho um grilo falante que sempre ameniza as críticas que tenho em relação ao Ministério Público Federal. E ele me dizia: não é possível, pois o inquérito passou por vários procuradores confiáveis, por dois Procuradores Gerais (Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel) e pelo Ministro Joaquim Barbosa, ex-procurador da República. Cada vez que me dizia isso, em vez de me convencer da impossibilidade da manipulação, me deixava em pânico, pela comprovação de uma conspiração em andamento.
Mas o argumento que me deixava balançado era outro: os réus estão sendo defendidos pelos maiores escritórios de advocacia do país. Eles não deixariam passar essa questão. Bastaria uma conversa com a diretoria do BB para saberem do trabalho da Pinheiro Neto que desmontaria definitivamente a acusação.
Não houve nada disso. Nem mesmo depois das informações que demos aqui, no GGN, mencionando o tal trabalho. Havia também um inquérito da Polícia Federal que confirmava a não ocorrência de desvios. Mas Joaquim Barbosa manteve o inquérito sob sigilo, longe do alcance da defesa. E os advogados se limitaram a espernear, para ter acesso ao inquérito.
Na entrevista com José Dirceu, indaguei a respeito disso. E ele admitiu que, apenas quando o inquérito da PF foi divulgado, com o sigilo quebrado pelo sub-relator Ricardo Lewandowski, os advogados conseguiram comprovar a falsidade da acusação. Mas, àquela altura, a sorte estava lançada.
Com essa postura passiva, os advogados deixaram livres, leves e soltos, o Ministério Público e setores da Polícia Federal para construírem suas narrativas livremente, com o apoio acrítico da imprensa.
Pior, a AP 470 foi uma graça divina, ao alertar o governo, com toda a estridência, do espírito conspiratório que se instalara na PGR, e, mais que isso, a metodologia de parceria com a mídia. Em vez dos factoides inverossímeis, do período anterior, a mídia tinha agora factoides oficiais, chancelados pela PGR e pelo Supremo. O efeito foi arrasador. Não se derrubou o governo devido à genialidade de Lula com a crise internacional, dois anos que o consagraram como um dos grandes estadistas mundiais.
Mas a serpente continuava sendo alimentada diariamente pela mídia e os conspiradores continuavam infiltrados na máquina pública.
Era nítido que haveria uma segunda rodada quando a economia vacilasse, conforme alertávamos aqui, em 2012. Mas o PT e os governos Lula e Dilma, não dispunham de nenhuma visão prospectiva sobre os fundamentos da conspiração. Mesmo com a comprovação da conspiração, envolvendo PGRs e Ministros do Supremo, trataram com absoluta leniência as nomeações de Ministros do Supremo, do STJ, o Procurador Geral da República, a Polícia Federal.
Foi a crônica da morte anunciada da democracia brasileira.
Espero que ainda haja tempo de segurar a besta do apocalipse que se avizinha.
A democracia tem no Estado de Direito seu sustentáculo. Este, por sua vez, é construído sobre o pilar das normas que regem a organização do Estado. No caso brasileiro, os papéis das instituições e a separação de poderes estão bem delineados na Constituição Federal de 1988.
O art. 142 do texto constitucional consigna que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares que atuam sob a autoridade do Presidente da República e cujas funções precípuas são a defesa do país em caso de guerra e a garantia dos poderes constitucionais, só podendo agir por determinação expressa de um dos poderes da República.
O Brasil atravessou uma penosa ditadura civil-militar que durou 20 anos. Muitas vidas foram sacrificadas nos porões das casas de tortura. A redemocratização ocorreu, porém não sem fraturas e divergências na forma, de tal modo que até hoje existe um pungente debate acerca da lei de anistia. Também remanesce na sociedade brasileira e nas instituições públicas um incômodo entulho autoritário.
Em período recente, desde o ano de 2013, a partir das manifestações de rua de pautas pulverizadas, a crise institucional por que passa o país tem trazido autoridades das Forças Armadas para o centro da cena política, opinando sobre questões da conjuntura.
A entrevista do general Villas Boas, comandante do Exército, a um jornal de circulação nacional no último domingo (09/9) sobre as eleições de outubro causou perplexidade. No contexto pós atentado ao candidato Jair Bolsonaro, o comandante questiona a viabilidade ou legitimidade de determinadas candidaturas, o que se apresenta extremante grave e preocupante, por se tratar de uma manifestação de caráter político. O General chega a afirmar que uma vitória de candidatos pode vir a ser questionada, por “comprometer nossa estabilidade”. Qualifica, ainda, a decisão do comitê da ONU que ordenou que o ex-presidente Lula tivesse garantidos seus direitos políticos de candidato como “atentado à soberania nacional”, ignorando que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos foi soberanamente ratificado pelo Executivo Nacional e incorporado pelo Parlamento à ordem jurídica do país.
A entrevista é claramente uma tentativa de tutela sobre a democracia e de constrangimento da independência judicial, visto que o caso segue pendente na apreciação de recursos bem fundamentados. São declarações de caráter autoritário e sem reação institucional do Chefe do Poder Executivo, já que este ocupa o cargo sem legitimidade e força popular, pois nascido de golpe parlamentar. Tais declarações do Comandante militar só fazem agravar a crise social, política e econômica do país.
Desse modo, reafirmando seu compromisso na defesa dos valores e princípios democráticos a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD vem demonstrar sua preocupação e repúdio às declarações do General Villas Boas e reafirmar seu compromisso em defesa do Estado Democrático de Direito.
Notas
1 Publicado originalmente em http://www.abjd.org.br/2018/09/juristas-repudiam-declaracao.html
2 Essa matéria recebeu o selo 041-2018 do Observatório do Judiciário.
3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.
No texto publicado em 09 de agosto último, por este Observatório do Judiciário, Denise da Veiga Alves e Giselle Mathias iniciam sua reflexão com a seguinte constatação: “naturalizou-se nomear o Poder Judiciário de ‘Justiça’.” De início, durante a minha época de estagiário de Direito, eu ficava perplexo em ver nas capas dos diversos autos que eu manuseava a palavra “Justiça Pública” no campo “autor(a)”, isto é, a parte responsável por ajuizar a ação criminal. Como que aquele grandioso ideal, fim mesmo do Direito como ciência e corpo normativo, há milênios objeto da exploração obstinada de filósofos, pensadores, militantes, enfim juristas de todos os cantos do mundo, se apresenta processualmente personificado nos autos de quase todas as ações criminais, reduzido a uma prerrogativa institucional para o exercício da pretensão acusatória? Pensava eu.
Sob uma perspectiva mais pragmática, eu me via algo desmotivado na medida em que os réus defendidos por mim estavam colocados contra ninguém menos que a própria Justiça Pública. Isso me levava a ponderar como o apelo simbólico disso poderia se traduzir, como de fato se traduz, numa perniciosa desigualdade processual. É como se a mesma censura jurídica, resultante de uma decisão condenatória, já estivesse declarada desde o início, a despeito de qualquer devido processo.
No final das contas, eu acabei, também, naturalizando essa referência parcializada à Justiça Pública, não sem, entretanto, trazer comigo um grande desconforto pelo testemunho, como advogado criminalista, de que a fisiologia do sistema de justiça criminal vigente alimenta ciclos viciosos de trauma e humilhação que perpetuam mais injustiças.
Saber é uma atitude proativa (i)
Na minha busca por possibilidades menos destrutivas de como se lidar com conflitos sociais, juridicamente rotulados como criminalmente relevantes, deparei-me com o conceito de Justiça Restaurativa. Desacompanhado de qualquer predicado, o significado mais corrente de justiça já traz consigo um peso retributivo: nos esquecemos com muita facilidade que isso é fruto de uma construção humana.
A sacralidade mitológica a envolver o conceito retributivo de justiça, tão vivo na nossa cultura ocidentalizada, inibe olhares curiosos dedicados a uma exploração dos seus sustentáculos culturais.
Indispensável nos propormos a uma reflexão baseada no reconhecimento de que o conceito de justiça, como qualquer um outro na infinitude do repertório linguístico humano, é uma construção cultural, e, por isso mesmo, temporário, impermanente, circunstancial. Isto é, contingente a contextos históricos.
O ser humano produtor, ou perpetuador, de conhecimento está, sempre, inserido em um contexto cultural que o sustenta e o influencia. Por mais importante que seja a noção, ou noções, de justiça como (re)equilíbrio convivial, há de se atentar para tendências de imposições universais que, por se colocarem como conceitos absolutos, acabam justificando violências e autoritarismos. Acho importante ter-se consciência disso.
Em 1973, ao apresentar uma crítica às formas e verdades jurídicas como relações de poder, Michel Foucault (ii) afirmou: “o próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história.”
Diante da crise de legitimidade do sistema de justiça criminal, sinto uma urgência por se contextualizar historicamente o conceito de justiça retributiva para, desmistificando-a, abrir possibilidades para outras justiças, menos violentas e mais construtivas, benfazejas às necessidades humanas exteriorizadas em cada contexto conflitivo.
He oikoumene ge (iii)
Após a explosão de culturalidade do Paleolítico Superior, há uns 50 mil anos atrás, comunidades humanas passaram a se organizar em torno do poder do feminino. A fertilidade da terra, que provia vida, era representada por deidades femininas. A ordem social era matriarcal. Paz era resultante de constantes esforços para a manutenção de harmonia dos fluxos energéticos que regiam um ambiente ainda pouco compreendido. Nessa época, grande parte da orla oriental do Mar Mediterrâneo era composta por povoados matriarcais.
Há, aproximadamente, 3 mil anos, a ascensão da cultura Greco-helênica. Ao mesmo tempo em que disseminava tecnologias inovadoras, no âmbito da linguagem, da escrita, da matemática, da geometria e da filosofia, ela, em grande parte, se baseava em visões de mundo patriarcais que, para a expansão do poder, via o diferente, o outro, como inadequado, inferior. A tensão dessa fronteira entre a cultura Greco-helênica e outras culturas se fazia clara na forma como, então, se descrevia a ideia de civilização: “a parte habitada do mundo” (he oikoumene ge). Ou seja, o mundo além dos limites, geográficos e culturais, conhecidos pelos gregos era tido como não habitado.
O outro, para ser reconhecido humano, devia se submeter às leituras de mundo impostas pela expansão civilizatória Greco-helênica. Uma das formas mais sutis e, ao mesmo tempo, violentas de sustentar esse tipo de expansão dominadora era pela apropriação e distorção dos símbolos e mitos das culturas tidas como não civilizadas. Deidades femininas de povos matriarcais do mediterrâneo, que representavam paz pela fertilidade, luxúria, e a sazonalidade da mãe-natureza, sofreram dessa apropriação. Um grande exemplo disso são as horae, que em sua essência serviam a uma necessidade de organizar visões de mundo com base em representações dos ciclos naturais, mais especificamente das estações climáticas. Nomeadas, a partir de então, como horae, se tornaram filhas de Zeus e Themis, em número de três nas versões mais correntes: Eunomia (ordem); Eirene (paz); Diké (justiça).
Iustitia: Diké de olhos vendados
Constituído sobre o etos da guerra, que passou a predominar em quase toda região do Mediterrâneo, o Império Romano ascende apoiado no referencial cultural Greco-helênico. Ocorre, então, uma série de outras usurpações culturais. Dentre elas, Diké, de olhar altaneiro, espada e balança em riste, torna-se Iustitia, doravante com venda nos olhos, símbolo de uma institucionalização inédita: a da apropriação, pela autoridade imperial, das divergências e conflitos sociais para a prescrição de uma fórmula resolutiva com o intuito de se impor a violenta Pax Romana. Um modelo de perpetuação de dominação a serviço da preservação de privilégios por relações de poder. Um sistema de controle baseado em regras criadas, compiladas e aplicadas por um poder centralizado em homens, patriarcas, que se assumiam detentores de uma capacidade quase que sobre-humana para pronunciar o bom do mau, o certo do errado.
A raiz etimológica ius significa depurar. (iv) A partir disso, Iustitia pode ser traduzida como o rito de tornar puro. Uma visão de mundo a reforçar o distanciamento do diferente tido como desviante, impuro, que facilita a desumanização para a inflição de violências supostamente expiatórias.
Essa essência mitológica se faz presente na nossa atual realidade jurídica. Com 3,30 metros de altura a Iustitia zela pelo nosso Supremo Tribunal Federal, com a espada no colo e livre de qualquer balança: escultura em granito de Alfredo Ceschiatti.
Para além de, não menos potentes, simbolismos, a seletividade e nocividade do sistema de justiça criminal vigente são escancaradas pelos altos índices de encarceramento, de letalidade policial, de mortandade policial, e por todos os efeitos colaterais decorrentes disso, como o problema do crime organizado e a própria criminalidade urbana. Kenarik Boujikian, desembargadora de uma câmara criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma com todas as letras: “A seletividade é um marco da justiça brasileira.”
Justiças e Pazes
O sistema de justiça criminal funciona como um monopólio de resolução prescritiva de conflitos. Desse modo, ele desconsidera a necessidade de as pessoas avaliarem as próprias dores e frustrações, conceberem as formas mais apropriadas para amainarem-nas e, então, vislumbrarem um sentido de paz verdadeiramente tangível e significativo.
Com base em dado texto legal desrespeitado por uma conduta tida como criminosa, é colocado foco na pessoa do infrator para, declarando-o culpado, impor-lhe a punição prevista em lei. Geralmente assoladas por sensações de injustiça, insegurança, incerteza, as vítimas são postas de lado, meros anteparos para a deflagração de um portentoso aparato baseado numa mecânica aparentemente asséptica que objetiva a desumanização pela privação da liberdade e a estigmatização humilhante.
Em virtude da nossa realidade relacional, o conflito é um elemento inerente à experiência humana. Subjacente a qualquer episódio conflitivo um complexo feixe de almejos e aflições que gritam por atenção. Queiramos ou não, toda essa complexidade precisa ser atendida e reelaborada. Nenhuma medida punitiva, por si só, dá conta disso. Ao contrário, seu caráter opressivo e não relacional contribui para a perpetuação de ciclos viciosos de (re)vitimização e de (re)traumatização.
Cada situação conflitiva pede por um delicado e dinâmico equilíbrio entre justiça, segurança, verdade, harmonia, dentre outros almejos, a comporem uma paz possível a dado contexto e a dado momento. (v) O reconhecimento da pluralidade de justiças e pazes, para além de respostas institucionais preconcebidas, convoca o cuidado às necessidades humanas expostas e abre espaço a possibilidades de restauração.
Ceticismo à alternativa restaurativa e o receio pelo novo, geralmente, está atrelado a um automático apego ao sistema vigente, frequentemente pelo desconhecimento de outras possibilidades de como se lidar com conflitos juridicamente rotulados como crime. Contudo, a resposta punitiva não é o único, muito menos o melhor, caminho para se lidar com conflitos.
Ana Messuti, (vi) jusfilósofa argentina, exemplifica essa resistência por alternativas ao penal ao dizer que “precisamente porque a prisão restou como única modalidade da pena, pretende-se justificar a pena justificando a prisão.”
Justiça restaurativa: convite para transformação
Howard Zehr, (vii) acadêmico norte-americano, um dos pioneiros no movimento contemporâneo de Justiça Restaurativa, gosta de afirmar que “crime é uma violação de pessoas e de relacionamentos interpessoais”. Uma mudança de foco, da lei desrespeitada para os seres humanos afetados pelos efeitos destrutivos do conflito.
Efeitos esses que, frequentemente, originam ou reforçam traumas que precisam ser cuidados para aplacar sensações, por exemplo, de insegurança, de medo, de vergonha, de ódio, de pesar. Tais necessidades são incomensuráveis: o critério de retribuição pelo sofrimento no qual se sustenta o Direito Penal é insuficiente, quando não contraproducente, para a efetivação de esforços transformativos.
A partir da vítima, passando pelos círculos familiares próximos, pela comunidade mais expandida, e pela pessoa do ofensor, leva-se em consideração as necessidades de todos os envolvidos, incentivando a (co)responsabilização para a tomada de providências para tornar as coisas melhores.
Ao lidar com o incomensurável, o esforço restaurativo se propõe à (re)construção dos significados afetados, um empenho imprescindível para o resgate de sentidos de vida abalados pelas consequências contundentes de dado conflito.
Não se trata de uma inércia diante de condutas juridicamente classificadas como crime, mas de se honrar o dever de mobilização e de ação inspirado por uma ética de cuidado baseada no respeito às relações.
De maneira abrangente, as práticas restaurativas dependem do provimento de espaços incondicionais para o acolhimento, a escuta e, possivelmente, o encontro entre as pessoas envolvidas em dado conflito para que protagonizem suas próprias transformações.
Já são significativas as iniciativas no Poder Judiciário brasileiro que promovem metodologias de Justiça Restaurativa, especialmente no âmbito da Justiça da Infância e Juventude e dos juizados especiais criminais, como a mediação vítima-ofensor e os círculos de construção de paz, por exemplo.
A meu ver, uma das maneiras mais profundas e empoderadoras de justiça restaurativa é a implementação de práticas comunitárias que, independentemente do sistema de justiça criminal, colocam esforços transformativos em prática, de maneira não-violenta, concretizando a preservação e o fortalecimento do tecido coletivo.
Nesse sentido, o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo, um polo, na Zona Sul da cidade de São Paulo, de formação de facilitadores, de disseminação e de concretização de projetos de práticas restaurativas, promoverá o Fórum de Justiça Restaurativa Comunitária no Brasil entre 28 e 30 de novembro.
Luis Bravo é professor e facilitador. Atualmente integra a linha de Justiça Restaurativa do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo – CDHEP.
Notas
i Para essa reflexão, me inspirei, especialmente, nos pensamentos dos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, e dos filósofos Michel Foucault e Gianni Vattimo.
ii Palestra proferida por Michel Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1973. Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2002. P 08.
iii Para essa reflexão, me inspirei, especialmente, nos pensamentos do historiador Arnold Toynbee, da historiadora Barbara G. Walker, e de Florencia Benitez-Schaefer e Wolfgang Dietrich, de quem tive a honra de ser aluno no programa de mestrado em Estudos de Paz e Conflitos da Cátedra de Estudos de Paz da UNESCO, na Universidade de Innsbruck, na Áustria, em 2014 e 2015.
iv Conclusão baseada no trabalho etimológico de P.G.W. Glare, de Douglas Harper, e de Santiago Segura Munguiá.
v Uma paz que Wolfgang Dietrich descreve como transracional (Dietrich, Wolfgang. Interpretations of Peace in History and Culture. Houndmills, Basingtoke and Hampshire: Palgrave Macmillan, 2012).
vi Messuti, Ana. O tempo como pena. Tradução: Tadeu Antonio Dix Silva, Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: RT, 2003. P. 46.
vii Zehr, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução: Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. P. 31.
1 Essa matéria recebeu o selo 040-2018 do Observatório do Judiciário.
2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
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