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  • Violência marca despejo de 5 mil sem-terras na Bahia

    Violência marca despejo de 5 mil sem-terras na Bahia

     

     

     

    Cerca de 700 famílias sem terra dos acampamentos Abril Vermelho, Irmã Dorothy e Irany de Souza, nos municípios de Casa Nova e Juazeiro, no Norte da Bahia, começaram a ser despejadas violentamente, hoje, por homens da Polícia Federal, Polícia Militar e milícias rurais armadas da região às margens do Rio São Francisco. Os agentes “chegaram atirando” e as casas foram destruídas com violência. Um sem-terra foi baleado na cabeça com bala de borracha, enquanto a polícia bloqueava as vias de acesso aos acampamentos, impedindo a entrada de pessoas.

    As áreas acampadas fazem parte do perímetro irrigado Nilo Coelho, Casa Nova, e o projeto Salitre e Juazeiro. (Leia mais sobre a área aqui: Estamos aqui há quatro anos lutando e resistindo. E daqui não sairemos

    As famílias estão acampadas nas áreas desde 2007, mediante acordo entre o Governo Federal, o Governo Estadual, o Incra, Ouvidoria Agrária, a Codevasf e o Ministério Público. Entretanto, com as investidas violentas contra os movimentos sociais do atual governo, os acordos estão sendo quebrados e as famílias trabalhadoras estão sendo vítimas uma vez mais da truculência do Estado. Por estarem próximas do Rio São Francisco, as terras dos acampamentos são valorizadas para uso de irrigação, daí a investida das milícias do agronegócio.

    As 700 famílias estão vendo seus sonhos sendo destruídos pelo governo, que manda uma mensagem bem clara de que não quer ver sem-terra trabalhando ou produzindo alimentos. A economia de Juazeiro e região deverá sofrer uma queda muito grande, porque os acampamentos estavam produzindo por ano mais de 7.200 toneladas de alimentos, gerando trabalho e renda para mais de 5 mil pessoas, como destacou a direção do MST.

    Os acampamentos integram as áreas de perímetro irrigado, fruto do processo de transposição do Rio São Francisco, cujo objetivo é levar as águas do manancial aos pequenos agricultores e às comunidades carentes.

    As famílias sem terra denunciam há bastante tempo diversas ações articuladas por latifundiários que possuem terras nos arredores, para enfraquecer a produção e, consequentemente, garantir a desistência dos acampados, buscando a apropriação das terras para o agronegócio.

    Sem-terra atingido por bala de borracha

     

    Gás lacrimogênio usado contra os acampados

  • A morte é um vento

    A morte é um vento

    Por Luís Osete especial para os Jornalistas Livres

     

    No 11 de agosto deste ano a bandeira nacional amanheceu a meio mastro em frente à prefeitura de Cardeal da Silva, distante 150 quilômetros da capital Salvador (BA). Na véspera, a mais antiga moradora do município, Izaura Maria da Conceição, mais conhecida como dona Lourença (por ter nascido no dia de São Lourenço – 10 de agosto), morreu de insuficiência respiratória aos 122 anos. As coincidências entre o seu nascimento e morte, como se revelassem o fechamento de um ciclo natural da vida ou um renascimento para a eternidade, foi talvez o último ensinamento deixado por aquela senhora de modos raros.

    Entre as tradições de antanho que carregara ao século 21 em seu baú de memórias corporais, estava o costume de sempre deixar um restinho da bebida. E as paredes de sua casa, borradas de doses de café pela baixa acuidade visual que lhe acompanhou nos últimos anos, registravam a cerimônia cotidiana, sempre acompanhada de outro rito: o agradecimento pela refeição. Fazia questão de sustentar seu corpo centenário em um cajado para louvar aos céus o prazer de sorver, na ausência de dentes, os alimentos pastosos que recebia diariamente pelas mãos de vizinhos e parentes de criação.

    Afinal, não deixou descendentes. Seu único irmão morreu solteiro aos 20 anos e a filha que teria com seu esposo Zé Grande foi abortada quando dona Lourença caiu de um pé de jaca. Sentiu ao mesmo tempo as dores de uma perna quebrada e de uma filha nascida morta. “Nasceu, morreu”, recordava-se, na única síntese possível. Curiosamente, foi uma das principais responsáveis por povoar o município, tendo se dedicado com afinco ao ofício de parteira. “Nossa Senhora do Parto veio me ensinar aqui dentro de casa. Se estivesse chovendo, eu entrava debaixo da chuva e ia. Quando chegava, fazia o pelo sinal [sinal-da-cruz] e pegava a mulher. Se ela tivesse de mau jeito, eu ia ajeitando. Graças a Deus, nenhum [bebê] nunca morreu, nem mulher”, orgulhava-se.

    Na ausência de um celular com câmera que pudesse transmitir ao vivo o primeiro choro de um recém-nascido, os pais dos tempos áureos da parteira Lourença anunciavam os nascimentos dos seus filhos soltando foguetes e distribuindo a Meladinha, bebida preparada à base de cachaça, mel, alho e folhas, e servida para celebrar ocasiões especiais. A propósito, não faltavam ocasiões especiais a celebrar. O som de um pandeiro feito com couro de raposa misturava-se às palmas em um samba ritmado pelo encontro do sagrado e do profano. Era um refrigério para os dias de intenso trabalho na lavoura, em um tempo distante do atual modelo de produção agrícola que faz a monocultura em larga escala de eucalipto avançar sobre as tradições produtivas locais e empurrar os nativos da mata atlântica para as áreas urbanas.

    “Viva Deus que eu já cheguei no lugar onde eu queria. Me abra a porta que eu morro, não abra que eu já morri. Não me faça eu perder arma, que eu a vida já perdi”, cantava dona Lourença, com sua “voz de bambu rachado tinindo, esganiçada, linda, polindo o cristal”² do tempo, como se a cantiga tivesse sido entoada no dia anterior. “Quando queria fazer um samba, a gente fazia. Amanhecia o dia cantando e dançando, sambando. Ali não tinha barulho, zoada. Hoje só tem putaria”, afirmava, saudosa de quando dançava equilibrando uma garrafa na cabeça e desgostosa das músicas que embalam os festejos atuais.

    Em um século, duas décadas e dois anos de vida, revelou que só fez um mal: passou casca de Maturi, a castanha do caju ainda verde, no corpo de um rapaz, queimando-lhe a pele. “Minha mãe foi pro rio mariscar. Quando foi perto de meio-dia, ele chegou lá em casa cantando e me chamou pra nhanhar. Aí eu disse: ‘Que diacho é nhanhar?’ Aí ele disse: ‘Pra foder’. ‘Perainda corno, eu vou dizer a minha mãe’. Aí cheguei, peguei ele, amarrei, panhei cascas de Maturi e passei nele todo. O mal que eu fiz no Brasil foi esse e mais nada, nunca briguei mais ninguém, nunca discuti”, revelou. Sempre seguiu os preceitos deixados pela mãe Bernardina Maria da Conceição: “Minha fia, faça como sua mãe: Não sei, não vi; não vi, não sei. Nunca pegue em nada dos outros, sua mãe lhe criou com caranguejo e peixe do rio”.

    As lembranças sobre sua mãe e seus avós maternos, João Pereira dos Santos e Josefa Maria da Conceição, faziam dona Lourença remontar ao maior conflito armado da América do Sul, a Guerra do Paraguai (1864-1870). Segundo ela, seus antepassados vieram correndo da Guerra até se assentar no Riacho da Areia, localidade que pertence atualmente à comunidade do Campo Grande. Por serem negros, provavelmente ocuparam a linha de frente das tropas brasileiras e, após a contenda, foram se refugiar nas áreas mais reclusas do interior. “Quem venceu a Guerra do Paraguá foi nós no Riacho da Areia”, contava, altiva e vaidosa.

    Além de sobreviver à Guerra do Paraguai e à travessia do Atlântico, já que a presença dos chamados Negros da Costa era, assim como o de italianos e portugueses, eventos recentes da ocupação naquelas glebas, a família Conceição entregou ao mundo uma das suas mais longevas moradoras um ano antes do início do Massacre de Belo Monte. O Santo Conselheiro, como dona Lourença se referia, teve uma especial predileção pelas peregrinações nas profundezas do território que envolve a região nordeste da Bahia e sudoeste de Sergipe e os seus fiéis seguidores tinham o DNA daquele povo que abriu as janelas de suas casas para ouvir seus conselhos. Um desses foi Mané Basílio, pai de dona Lourença.

    Os conselhos, pregações e premonições do Santo Conselheiro são tão famosos quanto os cemitérios e igrejas que ele reformou ou edificou em municípios como Entre Rios, Esplanada, Crisópolis, Cristinápolis, Olindina, Itapicuru, Aporá, entre outras localidades do entorno. A experiência sociorreligiosa de Belo Monte era bombardeada pelas tropas militares da recém-proclamada República enquanto a menina Lourença aprendia as primeiras palavras. Não demoraria a se dar conta de que o estudo reservado para ela era o manejo da foice e da enxada, as “professoras” do lugar.

    De lá pra cá, sobreviveu aos exaustivos trabalhos na semeadura do fumo, herdando até os cento e tantos anos o tradicional hábito de fumar ou mascar o fumo de corda, atravessou incólume duas grandes guerras, passou desapercebida por alguns golpes de estado e planos econômicos frustrados, políticas de eugenia e mitos de democracia racial se sucederam como palimpsesto na paisagem intelectual brasileira e dona Lourença, já mulher feita, ainda teve de se proteger das indesejadas visitas do casal Lampião e Maria Bonita. “Quando Lampião aparecia por aqui eu ia me esconder no mato. Eu de longe abaixadinha vendo ele, mas ele nunca chegou de junto de mim. Meu pai dizia que ele matava gente, e era mesmo”, recordou, como se vislumbrasse o vulto do cangaceiro. “Agora, Maria Bonita era bonita mesmo”.

    Superou tudo, na ginga, no samba, na roda, no drible. Aos poucos, foi personificando em sua pele negra, em sua memória flamejante e em sua permanência no meio da mata a mais autêntica e representativa imagem da resistência, reunindo, se assim podemos dizer, as características da imortalidade: uma contemplação respeitosa do universo, uma harmonia entre as necessidades e os desejos, um humor amoroso que abraça tudo, um senso aguçado capaz de distinguir o que é realmente permanente e transitório.

    Equilibrando-se na linha tênue entre a vida e a morte, com os mais ambivalentes sentimentos que acompanham a arte de botar gente no mundo, dona Lourença ensinava que para viver bem, além de não pegar no que é dos outros, como recomendava a sua mãe, era preciso seguir outros preceitos básicos: “chamar por Deus, trabalhar e se alimpar”. “E a morte, é o quê?”, perguntei a ela, no dia de seus 120 anos, 10 de agosto de 2015. “A morte? A morte é um vento… sabe? É um vento… Bateu no cachaço, morreu. Comeu uma coisa, fez má, inchou, morreu”, afirmou, encolhendo o cachaço, como quem sopra uma brisa suave após ensinar uma simples e definitiva lição.

     

    Luis Osete é natural de Cardeal da Silva (BA) e radicado há 12 anos em Juazeiro (BA) e Petrolina (PE). É jornalista, psicólogo, ator, mestre em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos e colaborador do projeto “Memória e história cultural da cidade de Juazeiro (BA): Preservação do acervo Professora Maria Franca Pires e acessibilidade à informação”.