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  • João Torrecillas Sartori: O modelo de propaganda de Bolsonaro entre Freud e Adorno

    João Torrecillas Sartori: O modelo de propaganda de Bolsonaro entre Freud e Adorno

    Por João Torrecillas Sartori, médico no SUS, psicanalista e doutorando em Ciência Política

     

     

    Muitos conceberam o pronunciamento oficial de Bolsonaro na noite de 31 de março como o mais moderado daqueles últimos dias. Alguns concluíram, atribuindo expressiva importância ao então recente isolamento político do Presidente, que este estaria recuando e se sentindo compelido a certa cooperação. Ainda mais ousadamente, em redes sociais, outros chegaram a afirmar a iminência de um impeachment. Factualmente, Bolsonaro se isolara politicamente: até mesmo alguns de seus ministros mais alinhados – como Mandetta, da Saúde – contrariaram abertamente suas declarações absurdas sobre a Pandemia da COVID-19. A contrariedade dos seus ministros certamente indicaria a instabilidade de seu governo. Naquele momento, acuado, solicitando de modo insatisfatório apoio do setor militar, Bolsonaro talvez tenha sentido a necessidade de uma revisão em seu discurso oficial.

    Contudo, embora Bolsonaro se encontrasse mesmo em isolamento político, o aparente recuo do dia 31 se inclui mais amplamente em um movimento cíclico, característico da sua estratégia de propaganda. Esta estratégia se alterna entre recuos e o uso de certo modelo de propaganda. Qual seria este modelo, no entanto? Recorrendo à obra de Adorno – referenciada na obra de Freud, criador da psicanálise –, o modelo de propaganda mais utilizado pelo presidente seria consistentemente considerado como mais um dentre muitos outros exemplos do denominado modelo de propaganda fascista.

    Em 1951, em sua obra intitulada Teoria freudiana e Modelo fascista de propaganda, Adorno utilizou a expressão agitadores fascistas na designação de líderes de massas os quais discursam de um mesmo modo, utilizando-se de um “complexo de medidas” rigidamente estabelecido. Para o autor, os variados agitadores, desde os menos valorizados socialmente, até os mais importantes, se comportam e se expressam semelhantemente em certos aspectos; monotonamente, embora de modo enérgico e extremamente ruidoso em muitas situações. Adorno escreveu que “a reiteração constante  e a escassez de ideias seriam elementos necessários ao método”. O material da propaganda fascista constituiria uma unidade estrutural, de modo que cada enunciado do agitador se determinaria por esta unidade.

    Dentro do marco estabelecido pela obra de Freud intitulada Psicologia das massas e Análise do Eu (1921), Adorno considerou que o agitador seria, ele mesmo, em alguma medida, convicto das ideias externalizadas às massas. Analisando o discurso de Bolsonaro nas últimas três décadas, é consistente a suposição de que as estruturas narrativas paranoicas externalizadas por ele aos bolsonaristas norteariam também as suas próprias ideias e atitudes.

    De outro lado, Adorno escreveu que a agitação fascista veio a ser um “meio de subsistência”, os agitadores aprimorando suas técnicas “empiricamente”, ao longo dos anos. O aprimoramento resultaria em certa padronização das técnicas, as quais, por sua vez, estão compatibilizadas com o modo de pensamento estereotipado dos indivíduos mais suscetíveis à propaganda fascista. Os agitadores menos eficientes não obteriam maiores êxitos e deixariam de ser considerados. De algum modo, mesmo que auxiliado por uma indústria de Fake News, Bolsonaro convenceu sua massa, obtendo o carisma medíocre de um agitador. Mas quais seriam as técnicas usadas pelos agitadores, entre os quais o Presidente?

    Para Adorno, entre os elementos constitutivos do método dos agitadores, estão as enunciações motivadas ao “apontamento do inimigo”, descrito na obra freudiana como um dos mecanismos de coesão das massas.  Neste contexto, Adorno estabeleceu que os agitadores se utilizam da denominada “técnica da unidade”. Discursam de modo a aumentar as diferenças concebidas entre os membros da massa e os não-membros da massa e, de modo a minorar as diferenças internas, entre os membros daquela, somente mantendo ressaltadas as diferenças hierárquicas. Justamente neste sentido, Adorno escreveu que os agitadores comumente atacam os intelectuais, os esnobes e os hedonistas, os quais, subversivos, contrariam a “técnica da unidade”. Estes três, mesmo não conscientemente, ameaçam o narcisismo do líder e, consequentemente, o de cada um dos membros da massa, evidenciando a inconsistência de suas crenças norteadoras.

    Adorno asseverou que, embora em alguns casos os agitadores tenham recomendado medidas concretas contra seus opositores – tais como a expatriação de sionistas e a realocação de estrangeiros aos campos de concentração – comumente o seu discurso se restringe, sobretudo, a argumentos ad hominem, por meio dos quais os opositores mencionados são sistematicamente atacados, sua imagem sendo convertida na de “inimigos da nação”, não se enunciando, entretanto, as citadas medidas concretas. Bolsonaro, mais comumente, não centrou o seu discurso em medidas concretas direcionadas ao combate aos seus repudiados opositores – chamados genericamente no bolsonarismo de comunistas, petistas ou esquerdistas –; mas, sim, na veiculação do ódio a estes últimos e na sua caracterização como “inimigos” do povo brasileiro – povo implicitamente concebido em seu discurso como não-comunista, não-petista e não-esquerdista.

    Muito comumente, os agitadores fascistas obtêm uma satisfação indireta de seus impulsos agressivos. Os seus liderados intuem de seu discurso estes impulsos e concluem sobre o modo como devem vir a agir: concretizando, eles mesmos, os impulsos agressivos de seu líder. As medidas do líder, sobretudo discursivas e não concretas, autorizam simbolicamente – isto é, validam socialmente – estes atos violentos. Já em meio às campanhas presidenciais, em 2018, se constataram mais comumente, em indivíduos e em movimentos de massa, certos comportamentos autoritários, agressivos e discriminatórios, a sua maioria, mantendo como alvos, indivíduos contrários à candidatura de Bolsonaro ou, aqueles identificados em “minorias identitárias” – étnico-raciais, sexuais, de gênero, entre outras. A maioria destes comportamentos teria sido constatada em apoiadores de Bolsonaro. O discurso de ódio deste último autorizou simbolicamente, e ainda autoriza, variadas modalidades de violência contra aqueles; e, inclusive, as modalidades físicas.[1]

    Por outro lado, Adorno sustentou que cada uma das variadas medidas constituintes do método dos agitadores se relaciona – mesmo que inconscientemente – com o estabelecimento ou com a manutenção de um certo vínculo afetivo, característico da massa. Este vínculo, denominado idealização, foi considerado, décadas antes na teoria de Freud (1921), como de natureza libidinal, uma modalidade de “enamoramento”, na qual certa disposição crítica individual desapareceria. Adorno evidenciou que mesmo Hitler mostrou saber da natureza libidinal da constituição das massas.

    Entretanto, Freud concluiu que o vínculo constitutivo da massa, correspondente a uma idealização de um indivíduo – isto é, à sua consideração como líder –, não consiste em um investimento libidinal direto. As suas metas sexuais são inibidas. Os integrantes da massa são muito excitáveis e sugestionáveis pelo seu líder, mas não estão conscientemente intencionando a atividade sexual explícita com este último. Freud entendeu que a “sugestionabilidade” dos integrantes da massa pelo seu líder, isto é, sua receptividade à sugestão deste último, se ocasiona pela sua relação de idealização.

    O Líder como encarnação do Eu Ideal

    Em 1921, Freud concluiu que em muitos casos o narcisismo estabelecido no indivíduo o condiciona à seleção, como seu líder, de um objeto semelhante a si mesmo, mas “caricaturado e demaculado” – isto é, contendo de modo exagerado os seus aspectos idealizados e contendo minorados os seus aspectos não aceitos. O líder seria aproximado imaginariamente do seu Ideal. Precisamente, seria a idealização de si mesmo pelos outros, aquilo que o líder intencionaria, inconsciente ou conscientemente, suscitar ou reiterar em seus seguidores.

    Adorno concebeu a propaganda fascista como relacionada com a “técnica da personalização”; e, assim, como motivada a ocasionar nos indivíduos a idealização – ou, mesmo, a mitificação –, de certo agitador. Não envolve, deste modo, a discussão objetiva de questões sociais e econômicas. Os membros da massa “se renderiam” a esta imagem idealizada. A sua rendição, assim como sua sugestionabilidade e a sua irracionalidade, são intencionalmente ocasionadas pelos expedientes mencionados. Freud, mesmo, considerou a escolha do líder como evento inconscientemente condicionado e, em seus termos, como “resultante não do raciocínio, mas, da vida erótica”. Isto é, considerou-a como resultante da ressonância individual de certos circuitos afetivos.

    Para Adorno, cada uma das medidas constituintes do método dos agitadores fascistas se motiva, mais restritamente, (1) à execução da “técnica da personalização”, antes evidenciada, ou (2) à concretização da ideia do “pequeno grande homem”. Esta ideia, por sua vez, consiste na crença de que o líder, ao mesmo tempo superior e vigoroso, seria um indivíduo comum, apresentando certos traços também apresentados pelos membros de sua massa. Para os bolsonaristas, o seu líder “botaria ordem na casa” tendo sido “capacitado por Deus”; mas, simultaneamente, seria em muitos aspectos exatamente como eles mesmos. Aparentemente, mesclaria entre si o extraordinário e o comum.

    Mesmo não sendo exaustiva, esta análise contribui a uma aproximação entre o modelo de propaganda comumente utilizado pelo Presidente e o modelo fascista de propaganda descrito por Adorno. Embora Bolsonaro tenha recuado ante as ameaças resultantes de seu isolamento político, e tenha revisado momentaneamente o seu discurso, não seria inconsistente a suposição de que, em seguida, retomaria o seu modelo de propaganda mais utilizado, caracterizado anteriormente. Foi o que ocorreu. A “estratégia” de comunicação do Presidente inclui, periodicamente, recuos e recrudescências, em uma espécie de movimento cíclico. A novidade deste recuo, ocorrido na noite de 31 de março, estaria mais em sua intensidade e no seu contexto que na sua ocorrência em si.

    [1] Ribeiro, Alexsandro; Zanatta, Carolina; Ferrari, Caroline; Roza, Gabriele; Lázaro Jr., José; Simões, Mariana; Lavor, Thays. Violência eleitoral recrudesceu no segundo turno. Agência Pública, São Paulo, 18 nov. 2018. Disponível em: https://apublica.org/2018/11/violencia-eleitoral-recrudesceu-no-segundo-turno/

     

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  • João Torrecillas Sartori: Bolsonaro, o inconsciente e o negacionismo da pandemia

    João Torrecillas Sartori: Bolsonaro, o inconsciente e o negacionismo da pandemia

    Por João Torrecillas Sartori, médico no SUS, psicanalista e doutorando em Ciência Política

     

    Nos últimos dias, em meio à Pandemia da COVID-19, uma atitude negacionista tem sido comumente constatada, não somente em redes sociais, mas também no espaço público. Muitos estariam relativizando a gravidade da situação brasileira. Mais séria ainda seria outra constatação: entre os negacionistas, se incluiriam ainda profissionais de saúde; inclusive, médicos. O negacionismo de parte da população, consistindo em uma atitude de algum modo esperada em momentos de crise, não seria restrito ao Brasil, mas estaria ocorrendo mais frequentemente no País. O que motivaria uma coletividade a este negacionismo?

    Freud, criador da psicanálise, considerou que certas ideias do indivíduo, ao acessarem a sua consciência, causariam excessivo desprazer sendo por isso recalcadas, mantidas inconscientes. A ideia monstruosa de uma Pandemia, em si, já tenderia a compelir muitos a um mecanismo psíquico de defesa, a uma relativização negacionista de sua gravidade. Embora o recalcamento, relacionado com esta relativização, mantenha controlado o nível de tensão do indivíduo, também inviabiliza certas atitudes importantes deste no enfrentamento de uma crise. Assim como a febre de um indivíduo que, embora melhore as suas condições de combate a uma infecção, será nociva caso aumente acima de um certo nível. Embora esperado em alguma medida, o negacionismo não seria de modo algum a maior tendência dos indivíduos nesta situação. Contudo, no Brasil, esta reação tem sido mais comum entre os apoiadores de Bolsonaro. Como se explicaria esta sua atitude?

    No início da Pandemia, ansiosos pelas declarações do Presidente, em um momento de apreensão, seus seguidores acríticos se acalentaram enormemente ao escutarem algumas de suas mentiras, tais como a consideração da COVID-19 como uma “gripezinha” e a consideração dos posicionamentos oficiais de sérias instituições internacionais de saúde como uma “histeria”. Freud considerou que o discurso do líder, enquanto a massa existisse, seria necessariamente considerado como verdadeiro pelos seus membros comuns. O negacionismo do líder resultaria no negacionismo dos liderados.

    Além disso, não somente em rede nacional, mas também em vias públicas, Bolsonaro contrariou relatórios científicos, assim como orientações e recomendações das mais sérias instituições internacionais e nacionais no âmbito da saúde coletiva. Esta sua atitude, de modo algum inédita, embora indique desprezo pelas vidas dos não-membros de seu clã, reverbera em um contexto muito mais amplo, de expressiva ignorância coletiva sobre aquelas que viriam a ser as vantagens de se conceber a ciência como norteadora de Políticas Públicas.

    Bolsonaro, como líder de uma massa, influenciaria muitos diretamente –sugestionando bolsonaristas em certos sentidos, condicionando seus pensamentos, seus sentimentos e suas atitudes– e indiretamente –como efeito de uma “rede de arrasto” relacionada com as identificações estabelecidas entre bolsonaristas. Em meio à Pandemia, o discurso mentiroso do líder acerca de seus opositores (entre os quais, neste momento, a ciência e as instituições científicas) estaria contribuindo para uma situação de alienação coletiva capaz de acarretar aumento de agravos e de óbitos.

    Certamente, Bolsonaro não é o único agente da alienação acerca da importância da ciência e de suas instituições. Certos líderes religiosos, visando à manutenção de sua “indústria da fé”, vêm atacando a ciência. E, tendo sido idealizados pelos muitos membros de suas Igrejas – neste caso, sendo concebidos coletivamente como intermediários entre eles e sua divindade –, convenceram esses fiéis a ignorar recomendações científicas. Não raramente, inclusive, um deles tem utilizado os veículos midiáticos dos quais é dono para disseminar desinformação e mentiras em uma escala absurda. Reiteram –de modo perverso– a mencionada tendência, constituída na massa bolsonarista da idealização do Presidente. Por outro lado, quando o discurso de certos profissionais de saúde se alinha ao discurso de Bolsonaro, como resultado de seu apaixonamento pelo mesmo ou pela própria incapacidade momentânea de “encarar” a situação, os riscos são ainda maiores, se considerada a influência destes profissionais sobre a população.

    Freud (1921) considerou que a idealização de um indivíduo, a seleção deste como um líder da massa, ocorreria sob certas condições, entre as quais, o reconhecimento de uma similaridade entre os membros desta massa e este líder. Comumente, esta similaridade consistiria no mesmo desejo inconsciente ou no mesmo ódio a certa entidade, indivíduo ou grupo social. Nos últimos anos, o estabelecimento e a ampliação de certos “ideais sociais” – tais como o antipetismo, o anticomunismo e o ideal antissistema – contribuíram em muitos casos à idealização destes líderes religiosos ou políticos, os quais instrumentalizaram estes mesmos “ideais” estrategicamente, viabilizando seus negócios. Parte da população, alienada pelos seus líderes, seria norteada imaginariamente pelo delírio de que a suposta Pandemia seria uma narrativa comunista – ou, mais restritamente, petista – com o objetivo único de derrubar Bolsonaro.

    Despreocupados pelo Presidente, certos negacionistas da Pandemia não somente aumentam o seu risco de infecção pelo vírus – e, indiretamente, também o risco dos demais –; mas, também, “contaminam” a sociedade, psiquicamente, em decorrência de uma “rede de identificações”. Mesmo os não-bolsonaristas, ao notarem que indivíduos amados estão agindo normalmente, não receando a Pandemia, estarão mais dispostos, inconscientemente, a um negacionismo. A gravidade da situação, em si, já compele o indivíduo a um complicado trabalho psíquico de elaboração, o qual poderia ser insuportável. Caso Bolsonaro, apoiado por cerca de 30% da população, mantenha mesmo que de modo suavizado atitudes relativizadoras da situação, o risco de “contaminação” coletiva – não somente psíquica, mas corporal –, aumentará. Consequentemente, os danos serão imensuravelmente aumentados.

    Alguns dos efeitos de certas atitudes, tais como as presidenciais, contrárias à efetiva mobilização de esforços no combate à disseminação da COVID-19, serão irreversíveis. De outro lado, certamente, existem alternativas a serem realizadas no intuito de uma redução dos danos ocasionados pela COVID-19 no cenário nacional. Mas, caso o Presidente mantenha o seu discurso anti-científico e não se contenha imediatamente, este negacionismo certamente agravará a crise sanitária e as mortes decorrentes, em meio a uma situação que inclui as conhecidas limitações do sistema público de saúde e as complicadas condições de vida da maioria dos brasileiros. O enfrentamento da Pandemia no Brasil, que apresenta agora uma curva ascendente aproximadamente como a da Itália, depende não somente de um montante expressivo de recursos materiais, mas de uma ampla e coordenada capacidade de aceitar a realidade.

     

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  • João Torrecillas Sartori: O líder e o bolsonarismo em meio à pandemia

    João Torrecillas Sartori: O líder e o bolsonarismo em meio à pandemia

    O bolsonarismo consiste em um grupo social e, de modo indireto, em um movimento identitário. Alguns de seus aspectos mais marcantes são exatamente aqueles atribuídos por Freud, em 1921, a certas massas desorganizadas. Quase um século atrás, o autor escreveu sua obra intitulada Psicologia das Massas e Análise do Eu. Nesta obra, considerou uma massa como resultante de seus vínculos afetivos, isto é, das identificações entre seus membros comuns e da idealização do líder pelos mencionados membros. Deste modo, o bolsonarismo seria concebível não como a massa constituída pelos eleitores de Bolsonaro, indistintamente; mas, sim, menos amplamente, como a massa constituída pelos seus apoiadores irrestritos, os quais o idealizaram e se comportam como seus liderados, membros comuns de sua massa.

    Freud concluiu que as duas modalidades de vínculo afetivo resultantes na massa – a idealização e a identificação – ocasionariam coordenadamente aos membros comuns da massa a redução de suas iniciativas próprias. A idealização do líder por estes últimos, sozinha, resultaria na inibição de suas disposições críticas àquele. Neste contexto, o membro comum aguardaria ansiosamente pelo discurso do líder, o qual orientaria seus pensamentos, ocasionaria seus sentimentos e o mobilizaria em certos sentidos. Declarada a Pandemia do COVID-19, ansiosos pelas orientações do Presidente em um momento de angústia coletiva, seus seguidores acríticos se acalentaram enormemente ao escutarem algumas de suas mentiras, tais como a sua consideração da COVID-19 como uma “gripezinha” e a sua consideração dos posicionamentos oficiais de sérias instituições internacionais de saúde como uma “histeria”. Alguns destes seguidores, consequentemente, despreocupados pelo Presidente, aumentaram o seu risco de infecção pelo vírus – e, assim, também o risco dos demais.

    De outro lado, Freud considerou que o discurso do líder, enquanto a massa existisse, seria necessariamente concebido como verdadeiro pelos seus membros. Até mesmo suas contradições internas seriam relativizadas por estes últimos. Inclusive, muito comumente, estes se empenhariam no intuito de explicar tais contradições aos seus opositores, utilizando-se de artifícios teóricos os quais eles mesmos considerariam como ridículos em um outro momento, anterior ao de sua integração à massa. Contudo, em massas tais como a bolsonarista, embora o líder comumente mantenha inalterados certos aspectos de seu enredo conspiracionista e os maiores alvos de suas ofensivas, altera conteúdos expressivos de seu discurso em acordo com mudanças situacionais, no intuito da viabilização de seus interesses. E os membros, então, são compelidos à elaboração de novos artifícios – elaboração esta, motivada pela explicação das alterações discursivas.

    Além disso, nesse contexto de idealização, a qual consiste em uma modalidade de apaixonamento, muitos agem de modo masoquista em sua relação com o líder. Muito comumente, nesse sentido, se submetem euforicamente a situações às quais não se submeteriam prazerosamente em outros momentos. Movidos pelos ideais da massa corporificados no líder, assumiriam riscos acriticamente caso seu líder os relativizasse.

    Por outro lado, apesar deste masoquismo e embora concebam o discurso do líder como necessariamente verdadeiro, até mesmo a sua idealização poderia encontrar limites, cessando sob certas condições. Os vínculos afetivos estão sujeitos à dissolução, mesmo esta tendendo a ser evitada inconscientemente.  Freud considerou que, em cada massa, independentemente de seu nível de organização, os membros comuns manteriam, ainda que de modo inconsciente, a convicção – ilusória – de que são igualmente e justamente amados pelo seu líder. Caso esta convicção cessasse, cessaria também a idealização e a massa se desagregaria.

    Obviamente, enamorados pelo líder, os membros da massa tenderiam à manutenção imaginária desta ilusão. Entretanto, se a intensidade dos motivos inconscientes relacionados com esta idealização não se mantiver suficiente à manutenção da convicção no amor recíproco do líder pela massa, a dissolução desta última será iminente. Deste modo, se certos ideais estabelecidos socialmente e instrumentalizados pelo Presidente, tais como o antipetismo e o anticomunismo, não mais reverberassem como antes em certos bolsonaristas – vindo a ser menos intensos do que suas percepções de que o Presidente não amaria a sua massa –, adviria certo arrependimento destes de tê-lo apoiado irrestritamente.

    Em dezembro de 2019, meses antes da declaração de Pandemia pela OMS (ocorrida em 11 de março deste ano), aproximadamente 29%[1] do eleitorado brasileiro ainda apoiava de algum modo Bolsonaro, considerando seu governo como “ótimo” ou “bom”. Contudo, naquele momento, era estimado em 12-14%[2] o percentil do eleitorado enamorado pelo Presidente, constitutivo do bolsonarismo propriamente dito, seus apoiadores irrestritos. Aproximadamente metade dos seus apoiadores o estariam idealizando. Não se divulgaram dados oficiais acerca do contingente de bolsonaristas após a declaração da Pandemia, mas, mais amplamente, se estimou em 15% o número dos eleitores de Bolsonaro os quais declararam arrependimento do seu voto nele em 2018. Além disso, considerando-se as muitas declarações virtuais recentes de arrependimento de ex-bolsonaristas, seria consistente a suposição de que o bolsonarismo está, em alguma medida, se deteriorando.

    Certamente, não seria verdadeira a suposição de que o amor a Bolsonaro encontrou amplamente, agora, os seus limites. O bolsonarismo ainda existe e, inclusive, como um núcleo duro de apoiadores irrestritos do Presidente, ideologizados em conformidade com este último, concordantes com seus “valores” – mesmo alguns não o admitindo publicamente. Inclusive, neste sentido, muitos de seus membros novamente, em 25 de março, se acalentaram ao escutar uma vez mais as mesmas mentiras do Presidente, o qual sugeriu o retorno às atividades normais em rede nacional, ignorando recomendações das mais sérias instituições de saúde internacionais acerca da situação pandêmica. Porém, não somente entre alguns de seus seguidores “não apaixonados”, mas também entre alguns dos até então bolsonaristas, as declarações de Bolsonaro soaram indicativas de seu desprezo à massa. Neles, o desprazer ocasionado por estas declarações superou a intensidade dos motivos relacionados com a idealização daquele. A angústia atual destes ex-bolsonaristas indicaria o rompimento com seu líder.

    Nos últimos dias, Bolsonaro, atentando abertamente contra a saúde pública, em troca da manutenção do apoio de certos setores do Capital (um de seus grupos de apoiadores mais importantes), estaria arriscando as vidas mesmo dos seus mais “apaixonados” seguidores – muitos dos quais incluídos em ao menos um grupo de risco, tal como o dos idosos.

     

    A economia deteriorada seria, sim, complicadora da situação relacionada com a Pandemia. Contudo, neste caso, a amenização de uma crise econômica e o combate apropriado à Pandemia – o qual inclui o isolamento horizontal como meio de continência do colapso dos sistemas de saúde – não são mutuamente excludentes, conforme apontam economistas inclusive situados à direita do espectro político, nada comunistas. O enamoramento dos bolsonaristas pelo seu líder, a sua enorme sugestionabilidade pelo mesmo, caso não cesse, aumentará o número de óbitos expressivamente em meio a uma situação que inclui a disseminação de um novo vírus altamente contagioso, as conhecidas limitações do sistema público de saúde e a necessidade de uso deste sistema pela maioria dos brasileiros.

    João Torrecillas Sartori é médico no SUS, psicanalista e doutorando em Ciência Política

    [1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/12/20/governo-bolsonaro-tem-aprovacao-de-29percent-e-reprovacao-de-38percent-diz-pesquisa-ibope.ghtml

    [2] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/02/nas-crises-bolsonaro-se-orienta-pelas-redes-sociais-para-manter-sua-base-coesa.shtml