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  • Zé Dirceu percorre Brasil para lançar memórias e estratégias de resistência

    Zé Dirceu percorre Brasil para lançar memórias e estratégias de resistência

    Entrevista exclusiva a Nícolas Horácio/EstopimColetivo

    “O povo brasileiro não é como Bolsonaro. Dos 55% de votos que ele teve, seguramente, o núcleo duro dele é de 15 a 20 milhões de votos. Esse é o eleitorado que abraça as teses de violência pra resolver o problema da segurança, de preconceito, de racismo, de desqualificação da mulher, de desprezo pela democracia, pela liberdade de expressão, a visão pró norte-americana e esse abraço de urso ao neoliberalismo de mercado, que é, na verdade, entregar o país ao capital financeiro, na nossa opinião, evidentemente. Acho que nós temos que fazer essa disputa também com o eleitorado dele. O eleitorado não vai ficar com ele” (José Dirceu)

    Ele esteve no centro do poder no governo Lula e foi cogitado para a sucessão presidencial depois de chefiar a Casa Civil, um dos mais estratégicos ministérios do país. Condenado a mais de 30 anos de prisão, teve a trajetória política interrompida e, no estilo Graciliano Ramos, escreveu um livro de memórias no período do cárcere. Fundador do PT, ex-militante do PCB e da luta armada, José Dirceu responde os processos em liberdade como um dos mais polêmicos personagens da política brasileira na atualidade. Por fora do tabuleiro político, continua atuando como um importante intelectual para a militância do PT, através de sua força e influência.

    Em Florianópolis desde o dia 15 de novembro, foi recepcionado pela amiga e ex-ministra Ideli Salvatti, conversou com lideranças de outros partidos da esquerda, como PSOL e PCdoB, com militantes da juventude do PT e dos partidos aliados. Na segunda-feira (19/11), realizou sessão de autógrafos do livro “Zé Dirceu – Memórias Volume 1”, no qual narra momentos importantes da história brasileira e deixa seu ponto de vista sobre a conquista do poder pelo Partido dos Trabalhadores, o legado dos seus dois governos e a análise do processo intervencionista que culminou com a violação da democracia.

    Em entrevista ao Estopim Coletivo, de Florianópolis, Dirceu conta detalhes do livro que será lançado em pelo menos 25 capitais brasileiras e indica como o PT, agora na oposição, deve se comportar nos próximos anos.

    A Entrevista

    No lançamento do seu livro em Brasília, você disse que o PT está em uma defensiva e precisa de estratégia política. Qual deve ser essa estratégia? E qual a sua participação nela?

    Zé Dirceu: Minha participação vai ser como filiado. Eu não pretendo, nem devo voltar para a direção do PT e muito menos participar diretamente do partido.

    Eu quero andar pelo Brasil, lançar meu livro, fazer palestras e participar de seminários. Quero estar com os movimentos, com a CUT, o MST, os partidos aliados. Eu tenho diálogo com PCdoB, com PSB e quero estar com a juventude. Eu tenho priorizado esses três eixos.

    Quando eu digo que estamos em uma defensiva, não é só o PT.

    Essa coalizão que elegeu Bolsonaro não é só uma coalizão religiosa, com os setores militares e partidos. Ela tem uma cabeça que é o capital financeiro internacional e tem uma política que é pró Estados Unidos.

    É uma coalizão que pretende fazer grandes mudanças no Brasil, basta olhar a pauta dele. Começa pela política externa, que ele vai virar totalmente, não só a nossa política externa, como a dos tucanos também. Por isso que pelo menos alguns tucanos estão contra.

    Nós temos força, mas nós viemos sofrendo derrotas desde 2013.

    Você se refere às grandes manifestações de 2013?

    Zé Dirceu: Sim, porque eram manifestações contra o aumento das tarifas em São Paulo e foram capturadas, com papel muito forte da Rede Globo e dos setores que financiaram aquela mobilização, para um movimento contra o governo da Dilma, o PT e que com a Lava Jato fez uma escalada de criminalização do PT e do próprio Lula, levando ao impeachment da Dilma e a prisão do Lula, que culmina com a eleição do Bolsonaro.

    Nesse sentido, nós temos que reconhecer a derrota, ao mesmo conhecer as nossas forças e a necessidade de repensar o que vamos fazer nos próximos anos.

    Temos algumas tarefas óbvias: a liberdade do Lula; a oposição a pautas como Escola sem Partido que, na verdade, é escola com partido, o deles.

    Por outro lado, o governo vai anunciar uma série de medidas, nós temos que apontar alternativas. Não podemos apenas ficar contra. Se ele vai fazer uma Reforma Tributária, temos que apresentar nossa visão e para a Reforma na Previdência, a mesma coisa.

    Você vem articulando essas conversas nos estados?

    Zé Dirceu: Não. Eu não articulo. Eu Tenho relações, porque desde 1965 eu sou militante político e eu participei dos principais eventos do país a partir de 1979.

    Participei da clandestinidade, da luta armada, participei da geração de 1968, fui do PCB, depois, fui um dos fundadores do PT, então tenho muitas relações.

    Procuro, sou procurado e converso, exponho a minha opinião e tentando ajudar nesse sentido, nessa linha.

    Mas exerce influência, certo?

    Zé Dirceu: É. Influência eu exerço, mas não significa que eu vá participar de direções do PT, disputar mandatos ou participar de governos. Eu nem posso, porque estou inelegível.

    Aqui em Santa Catarina você fez algumas conversas com militantes de outros partidos. Sentiu possibilidade de unificação da esquerda aqui? Há caminhos pra isso?

    Lançamento e palavra de resistência em Florianópolis

    Zé Dirceu: Eu acredito que há sim, na base. Temos que começar pelas lutas concretas em cada cidade, em cada estado, pelas agendas que estão colocadas.

    Acho que a Reforma da Previdência é uma questão fundamental, a Escola sem Partido é outra, a defesa da liberdade de manifestação, esses ataques ao MST, ao MTST, ao João Pedro Stédile e ao Guilherme Boulos, nós não podemos aceitar.

    A agenda da anulação da condenação do Lula é importante e nós devemos construir uma agenda a partir dos sindicatos e da juventude, da luta das mulheres.

    Nós devemos construir uma agenda de oposição, porque temos legitimidade e fomos para oposição por decisão do eleitorado. Nós temos 47 milhões de brasileiros e brasileiras para representar e, no caso do PT, um mínimo de 30 milhões, que foi a votação do Haddad no 1° turno em aliança com PCdoB e com o PROS.

    Então, nós temos obrigação de exercer essa oposição, essa fiscalização, apresentando propostas e alternativas e temos que resolver nossos problemas, como a debilidade na área das redes.

    Quais redes? As redes sociais?

    Zé Dirceu: Isso. Elas são importantes desde 2008, na eleição de Obama, depois na eleição do Trump, que gerou uma crise internacional, e quando chega a eleição aqui nós não estamos preparados?! Alguma coisa tá errada.

    Mesma coisa a nossa presença nos bairros, na luta do dia a dia do povo trabalhador no bairro. Temos que analisar e tomar medidas com relação a isso.

    Você acha que faltou ser mais presente nas redes sociais para ganhar o público?

    Zé Dirceu: Sem dúvida nenhuma. A rede social é um potencializador e quando você tá ausente também lá no bairro, o potencial aumenta, porque você não tem como contraditar e responder. Se você não responde nas redes, não responde nas casas, na igreja, na lotérica, no açougue, no cabeleireiro, no supermercado.

    Depois que nós saímos na rua com o Vira Voto, nós crescemos muito. Porque é sempre importante o contato pessoal, o diálogo, o olho no olho, o debate, a reunião, a experiência de vida em comum. Eu aposto muito também na juventude nesse sentido. Acho que ela pode e dever ter um papel importante.

    Você disse recentemente que o PT perdeu a eleição ideologicamente. O povo brasileiro é como o Bolsonaro?

    Zé Dirceu: O povo, não é como Bolsonaro. Dos 55% de votos que ele teve, seguramente, o núcleo duro dele é 15 a 20 milhões de votos. Esse é o eleitorado que abraça as teses de violência pra resolver o problema da segurança, de preconceito, de racismo, de desqualificação da mulher, de desprezo pela democracia, pela liberdade de expressão, a visão pró norte-americana e esse abraço de urso ao neoliberalismo de mercado, que é, na verdade, entregar o país ao capital financeiro, na nossa opinião, evidentemente.

    Acho que nós temos que fazer essa disputa também com o eleitorado dele. O eleitorado não vai ficar com ele. Essa questão dos médicos cubanos, que é uma coisa totalmente estúpida que ele fez, porque os médicos nunca se envolveram em política no Brasil, nunca participaram de nenhuma atividade que não fosse trabalho médico, ele não pensou nos 30 milhões de brasileiros, brasileiras, as famílias, as mães, os idosos, as crianças que são atendidos por esses médicos.

    Essa história de que os médicos cubanos foram nomeados no lugar dos brasileiros, todo mundo sabe que não é verdade, porque os médicos não querem ir para essas cidades.

    Dois terços [dos recursos] vão para o governo, mas os filhos deles estudam em escolas públicas até o ensino universitário. Eles têm hospitais públicos fantásticos. Em Cuba tem atendimento, o país não tem violência. O país tem segurança e um bem estar básico.

    As dificuldades e a escassez ocorrem em parte por causa do bloqueio e por uma série de questões que os cubanos estão procurando resolver agora.

    Poucos sabem que os cubanos estão fazendo uma Constituinte, agora, que se discute em todos os bairros, fábricas, escritórios, lojas, no campo. Milhões e milhões de cubanos estão discutindo a Constituição do país. Poucos sabem disso.

    O que o Brasil vai descobrir no seu livro? O que há de novo nele, por exemplo, em relação ao seu processo?

    Zé Dirceu: Eu procuro contar a história do Brasil, contando a minha história e da minha geração, que lutou contra a ditadura e foi pra clandestinidade, participou de ações armadas de resistência.

    Depois as vitórias do MDB, o que foram os governos militares, particularmente, o governo Geisel e, depois, o que foi o surgimento da luta contra a carestia, das pastorais, das comunidades eclesiásticas de base, do sindicalismo autêntico, do PT, da CUT.

    O livro passa pelas Diretas, o Collor e o impeachment dele e conta a trajetória das eleições até o Lula ser presidente. Eu procuro sempre mostrar como o Brasil era no cinema, no teatro, na música, como eram os meios de comunicação.

    Existe algum fato na sua biografia que ninguém sabia ainda?

    Zé Dirceu: Tem fatos que eu relato pela primeira vez, como o dia em que eu pedi demissão e eu conto como foi a reunião. Chorei naquele momento e explico o que significava aquilo para mim. Foi uma reunião com Lula feita para concretizar minha demissão.

    O depoimento do Carlos Cachoeira, que mostra toda a operação Valdomiro Diniz, CPI dos correios, mensalão, hotel Naoum, foram tudo escutas telefônicas dirigidas contra o PT negociadas com a direção da Veja, o Policarpo Jr. com o Cachoeira, com os Arapongas, com escutas ilegais para montar fatos políticos negativos pra fazer matérias contra os adversários deles.

    Veja passou impune. A CPI não teve condições de convocar o Roberto Civita. O Policarpo Jr. nunca respondeu perante a justiça sobre isso.

    Contando o que vivi, busco contar a história do Brasil, tentando tirar lições disso. Conto, por exemplo, como foi possível lutar e derrotar uma ditadura e de onde surgiu a luta.

    Nós vamos enfrentar esse problema agora. Como lutar? De que forma lutar? Com quem lutar? Eu procuro, na verdade, transmitir para as novas gerações a minha experiência, com erros, acertos e a experiência do PT, da esquerda, inclusive recontando a experiência do Brasil com relação à esquerda, o papel do PCB.

    Os tenentes, qual foi o papel dos tenentes? O que foram as Forças Armadas da República até a Constituição de 1988? Elas sempre foram uma força determinante na disputa política brasileira.

    A revolução de 1930 foi uma revolução militar e civil. Toda a luta dos tenentes, a Coluna Prestes também é, 1935 é, 1932 é, 1937 é, 1946 é.

    Em 1950 e 1955 eles tentam dar o golpe. Em 1961, eles tentam dar o golpe e a resistência popular armada impede e, em 1964 eles dão, governam o país até 1985 e voltam agora a exercer um papel moderador no país.

    Transmissão em Porto Alegre (SC): https://www.facebook.com/blogdozedirceu/videos/335362210574885

    Transmissão da palestra de lançamento do livro em Florianópolis (SC)

    https://www.facebook.com/PTdeSantaCatarina/videos/333184410568854/

  • Histórias da ditadura militar – parte III

    Histórias da ditadura militar – parte III

    São Paulo, 19 de outubro de 1974.

    O DEIC – Departamento Estadual de Investigações Criminais, órgão que atuava como braço do aparato de repressão da ditadura militar à época, prendeu e torturou naquela data 93 meninos com idades entre 11 e 17 anos.

    Os garotos, presos e torturados, eram meninos pobres, filhos de famílias de baixa renda, a maioria moradores de favelas, sendo que alguns viviam absolutamente largados pelas ruas da Capital.

    A Operação Camanducaia

    Presos na sede do DEIC, no Centro de São Paulo, os menores foram amontoados dentro de um ônibus e agredidos ao longo de toda a viagem, cujo destino desconheciam, já que as cortinas do ônibus estavam fechadas.

    A história nos revela que, obrigados a tirar suas roupas e jogados à beira da Rodovia Fernão Dias, os menores foram abandonados à própria sorte nas cercanias da cidade de Camanducaia, no Estado de Minas Gerais.

    Os policiais retiraram os menores do ônibus e dispararam às cegas em sua direção, para que se dispersassem no meio do mato ao longo da rodovia.

    Machucados e nus, os meninos conseguiram chegar na cidade e foram acolhidos e amparados pela população.

    Três dias depois, foram recolhidos pelas autoridades locais e levados de volta para São Paulo, onde permaneceram, novamente detidos.

    Embora as afirmações dos agentes de Segurança Pública lotados naquele órgão à época fossem de que se tratava de delinquentes, jamais foi encontrada qualquer indício de acusação formal contra aqueles menores.

    O caso foi denunciado pela imprensa e chocou a opinião pública brasileira, tornando-se um dos maiores escândalos de violação de Direitos Humanos do país.

    Apesar de todo o celeuma causado pelo caso, as investigações judiciais nunca avançaram no sentido de responsabilizar os culpados.

    A promotoria pública chegou a oferecer denúncia contra 14 delegados e 7 policiais, mas o caso acabaria arquivado, sem que qualquer autoridade fosse sequer investigada.

    Para dar certa aparência de que havia alguma intenção de punir os responsáveis, o DEIC realizou uma sindicância interna, que foi denunciada na época como farsa, e puniu um funcionário, um escrivão suspenso por 30, sob a acusação de ter comandado toda a operação.

  • Desde o século XIX que “intervenção militar” é prática frequente no Brasil

    Desde o século XIX que “intervenção militar” é prática frequente no Brasil

    Ensaio de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Aqui neste ensaio, quero apresentar uma síntese das intervenções militares que ao longo da história republicana desestabilizaram o sistema político brasileiro. Meu objetivo principal é utilizar este exercício de história comparada para mostrar as especificidades da atual intervenção, dessa que está acontecendo no Rio de Janeiro. O conhecimento histórico é sempre útil à vida.

    Bom, começo meu exercício de síntese histórica em 1889, com a proclamação da República.

    A intervenção militar liderada pelo Marechal Deodoro da Fonseca que em 15 de novembro de 1889 destituiu o gabinete ministerial chefiado pelo Visconde de Ouro Preto a princípio não era um golpe militar republicano. A intervenção somente se tornou um golpe militar republicano no dia seguinte, quando o Imperador D. Pedro II convidou o político gaúcho Silveira Martins para ser o novo chefe de governo.

    Ao que parece, Silveira Martins era um desafeto pessoal de Deodoro da Fonseca, que, contrariado, cedeu ao assédio de republicanos civis como Quintino Bocaiuva. De republicano, Deodoro não tinha nada, muito pelo contrário, pois ele devotava grande respeito ao velho Imperador. O que aconteceu naquela tarde de 15 de novembro foi o desfecho de uma década de conflitos.

    Parte do oficialato do Exército e os políticos civis brigaram durante toda a década de 1880, num ciclo de conflitos que costumamos chamar de “questão militar”. Os militares se achavam moralmente superiores aos políticos civis, já que poucos anos antes tinham “salvado a pátria” na Guerra do Paraguai. Já os políticos civis, como sempre acontece, tinham medo dos militares, pois sabem como é, né? Mílico quando se mete a fazer política sempre vem armado.

    É importante destacar que nesse período o Exército tinha duas agendas corporativas: a busca por mais prestígio institucional, e, pra isso, os militares frequentemente evocavam memórias da Guerra do Paraguai, representando a si mesmos como messias da nação. A outra agenda consistia num projeto político inspirado na filosofia positivista, que seduzia uma parcela mais jovem dos oficiais do Exército, liderados por um sujeito chamado Benjamin Constant.

    Saltamos trinta anos, chegamos na década de 1920 e encontramos mais uma vez os militares em conflito com os políticos civis, novamente atuando como um ator de desestabilização do sistema político.

    Temos aqui o movimento que aprendemos a chamar de Tenentismo.

    A bibliografia especializada já desmatou uma Amazônia inteira problematizando a natureza do movimento e a origem social dos militares envolvidos, quase todos jovens oficiais, chamados na época de “tenentes”. Fundamental para o argumento que estou desenvolvendo é que os tenentes afirmavam que o sistema político da época (a Primeira República) era corrupto e se diziam os moralizadores da nação.

    Acabou que em 1929 aconteceu uma racha no pacto oligárquico que então governava o Brasil e os tenentes emprestaram suas armas ao movimento político que ficou conhecido como “Aliança Liberal”. Era um movimento bastante plural. Vários grupos reunidos.

    O que reunia essa gente toda era a existência de um inimigo em comum: o Partido Republicano Paulista, a principal força política da Primeira República.

    Foi assim que a aliança liberal apresentou a candidatura de Getúlio Vargas às eleições de 1930. Na época a eleição era toda zoada, não tinha justiça eleitoral, os votos eram abertos. Getúlio acabou perdendo, mas não aceitou a derrota e a aliança liberal tomou o poder na marra, contando com o apoio de parte dos tenentes.

    Mais um salto e pousamos em meados da década de 1960, em mais uma intervenção militar na política.

    Desde 1949 existia no Brasil uma instituição chamada Escola Superior de Guerra, dedicada aos “altos estudos políticos e estratégicos” que funcionava como centro de formulação de uma doutrina político-militar. Numa cena internacional marcada pela polarização ideológica da Guerra Fria, essa doutrina ganhou contornos anticomunistas.

    Isso fez com que ao longo da década de 1950, uma parte considerável do oficialato militar tenha se aproximado da UDN. É que nesse momento, a UDN, sob a liderança do político fluminense Carlos Lacerda, tornou-se a principal porta-voz do anticomunismo no sistema político-partidário brasileiro.

    Desde o final do Estado Novo, em 1945, a UDN construía sua identidade política em oposição ao trabalhismo getulista, que no começo tinha uma relação muito conflituosa com os comunistas. Porém, quando, já nos anos 1950, ficou claro que João Goulart herdaria o capital político de Getúlio, aconteceu uma importante mudança na ideologia trabalhista, que passou a ter vínculos mais estreitos com os comunistas.

    Basta lembrar que na época o PCB estava na ilegalidade e o PTB contribuía para a “lavagem ideológica” dos políticos comunistas, que disputavam as eleições pela legenda trabalhista, mas na prática representavam os interesses do partido comunista. Isso não quer dizer que Jango e o PTB fossem comunistas. Quer dizer apenas que mantiveram uma relação de intenso diálogo com o comunismo brasileiro. Brigaram muito também.

    Nos anos 1950, portanto, a UDN tornou-se a representação do anticomunismo e do anti-trabalhismo, o que atraiu quadros importantes do oficialato das forças armadas, que estavam sendo formados na ESG, numa doutrina anticomunista.

    Quando o governo do Presidente João Goulart propôs o programa das “reformas de base”, a ação foi considerada ousada demais por essa aliança UDN/Militares e interpretada como um prelúdio para revolução comunista no Brasil. O golpe civil-militar de 1964, então, teve o saneamento ideológico do sistema político como primeiro objetivo, o que na prática significava tirar lideranças trabalhistas e comunistas do jogo.

    Depois do golpe, a aliança entre a UDN e os militares fez água e o próprio Carlos Lacerda sentiu o coturno dos milicos no lombo. Pra utilizar as palavras de Dom Casmurro: “Que a terra lhe seja leve”.

    Resumindo o que foi dito até aqui:

    Tivemos três intervenções militares efetivas na política brasileira ao longo da história republicana: a intervenção que proclamou a República nos anos 1880, a intervenção que ajudou a derrubar a Primeira República na década de 1920 e a intervenção que golpeou a República Popular em meados dos anos 1960. Cada uma dessas intervenções possui suas singularidades, mas acho que não é loucura afirmar a existência de um certo padrão, caracterizado por três aspectos: a presença de uma doutrina militar inspirando os milicos, a presença de um projeto específico para as forças armadas e a intervenção sendo efetivada contra o governo instituído.

    Nenhum destes três elementos podem ser encontrados na atual intervenção do governo federal na segurança pública do Rio de Janeiro, porque, simplesmente, não se trata de uma intervenção militar. Isso não quer dizer que a ação do governo golpista seja legítima, pois nada que um governo golpista faça pode ser considerado legítimo.

    É natural que 21 anos de ditadura traumatizem uma sociedade, mas precisamos parar de ler 2018 com a lente de 1964. São duas experiências completamente diferentes. O Brasil não está sob intervenção militar, tampouco vive uma ditadura militar. Trata-se de uma intervenção organizada pelo poder instituído, que convocou os militares, que não possuem doutrina e nem projeto corporativo.

    Não, definitivamente não; não temos no Brasil de hoje uma intervenção militar, para o desgosto das viúvas da ditadura e para a desilusão da esquerda romântica, que idealizando a “resistência” parece sonhar com uma ditadura para chamar de sua. É que nos últimos trinta anos a vida foi muito chata, monótona.

    Fato mesmo é que o Brasil vive sob o governo de um presidente golpista que usurpou o poder num golpe de Estado efetivado pela aliança entre parte do sistema político, setores do Judiciário e a mídia hegemônica, com o apoio, é claro, do neoliberalismo internacional.

    Desde que chegou ao poder, Michel Temer só fez se defender das denúncias de corrupção e atacar o Estado brasileiro, que há oitenta anos é um agente provedor de direitos sociais para os setores mais vulneráveis da nossa população.

    É certo que não aconteceram grandes mobilizações contra o golpe e contra o governo ilegítimo de Temer, mas todas as pesquisas de opinião mostram o golpista como o presidente mais impopular e odiado da história do Brasil. Isso é um sinal de que as pessoas estão reagindo ao golpe, à sua maneira, mas estão reagindo.

    Sem apoio popular, com seu capital político desgastado após as duas denúncias apresentadas por Rodrigo Janot, Michel Temer se agarrou à agenda da reforma da previdência, que é a menina dos olhos do neoliberalismo nacional e internacional.

    Conforme o tempo foi passando e as eleições se aproximando, a aprovação da reforma da previdência foi se tornando um projeto cada vez mais improvável, eu diria até mesmo impossível. Aposentadoria e seguridade social são elementos sagrados no imaginário do povo brasileiro. Nenhum parlamentar quer colocar sua assinatura num projeto tão impopular nas vésperas das eleições.

    Temer se tornou, com isso, um cadáver político, apodrecendo em praça pública. A intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro foi uma ousada cartada de Michel Temer, buscando uma agenda positiva que vitaminasse seu final de governo. Como a segurança pública é percebida por parte considerável da sociedade brasileira como o grande o problema da nação, o faro político de Temer identificou facilmente o tema com mais potencial para a tal agenda positiva.

    Como o Rio de Janeiro é a capital mais famosa do país, o “tambor do Brasil”, as terras fluminenses foram escolhidas como palco para a encenação política, ainda que quando comparadas com outros Estados não apresentem os piores índices de segurança pública.

    É que o interesse do governo golpista não é resolver o problema da segurança pública. O objetivo é fortalecer Michel Temer para as eleições, visando uma candidatura com alguma viabilidade ou, no mínimo, transformá-lo num cabo eleitoral relevante. Não acredito que a farsa da intervenção terá o efeito desejado. O tempo é curto e a impopularidade de Temer é muito alta.

    Pra concluir, o que estou querendo dizer é:

    É mais importante para o campo progressista brasileiro pensar com cuidado os impactos políticos dessa intervenção federal no Rio de Janeiro do que ficar remoendo antigos traumas, falando em intervenção militar e em ditadura militar.

    Talvez estejamos diante do tema mais espinhoso dos últimos anos. Não precisa ser um gênio pra saber que a intervenção é uma farsa e que não resolverá o problema. Mas ainda assim, com todas essas ressalvas, não podemos ignorar que a população está assustada, acuada, desesperada e que tanques e homens de verde armados nas ruas aumentam a sensação de segurança. Não estou falando que essa sensação seja correta. Só estou dizendo que ela existe e que não podemos desconsiderar o que as pessoas pensam e sentem. Não se faz política sem povo.

    Não dá pra, simplesmente, sair por aí dizendo “somos contra a intervenção”. Esse debate precisa ser feito com muito cuidado. Por isso, é importante entender, à luz da história do Brasil, que não se trata de uma intervenção militar, que não vivemos uma ditadura militar. Hoje, temos outros problemas, tão graves quanto. Hoje, estamos vivendo sob um golpe de Estado que está tentando se reinventar para as eleições. É isso que precisamos mostrar pra nossa gente. É esse lobo em pele de cordeiro que precisamos desnudar.

     Desde o século XIX que “intervenção militar” é prática frequente na história do Brasil.