HAITI: País está em nova convulsão após assassinato do presidente Jovenel Moïse

Haiti: assassinato do presidente Jovenel Moïse pode deixar a democracia haitiana numa encruzilhada se as frágeis instituições democráticas do país não garantirem a constituição e convocarem nova eleição presidencial.
Foto: Igor Rugwiza / Fotos Públicas

Na última quarta-feira (7), aproximadamente 1h da manhã, um grupo armado invadiu a residência oficial de Jovenel Moïse, na capital Porto Príncipe, e assassinaram o presidente do Haiti à tiros. O assassinato de Jovenel Moïse é o primeiro de um presidente nas Américas desde o americano Kennedy, em 1963. Ao longo do século XX dezenas de golpes derrubaram presidentes no Haiti. Golpes protagonizados principalmente pelo exército, pelo parlamento ou pelo poder judiciário; geralmente com apoio do EUA. Nos últimos 35 anos, desde o fim da ditadura Duvalier em 86, o Haiti teve quase 20 governos entre golpes, tentativas e contestação de eleições. No entanto, é inédito o assassinato de um presidente eleito democraticamente no Haiti.

Por Diego Ruas para Inédita Brasil e Jornalistas Livres

Moïse, com a primeira-dama, Martine Moïse, durante a cerimônia de posse no parlamento, em 9 fevereiro de 2017. 

Foto: Igor Rugwiza / Fotos Públicas
Jovenel Moïse, com a primeira-dama, Martine Moïse, durante a cerimônia de posse no parlamento, em 9 fevereiro de 2017. Ambos morreram no atentado ocorrido no dia 7 de julho.
Foto: Igor Rugwiza / Fotos Públicas

A crise política que culminou em tal barbárie tem inicio em 2017, quando o político neoliberal Jovenel Moïse assume a presidência. A primeira eleição que Moïse venceu, em 2015, foi anulada com acusações de fraude. Um novo pleito foi realizado em 2016, quando Moïse venceu novamente com 55% dos votos em primeiro turno. Apesar dos números, a “hegemonia” esconde uma fragilidade: Moïse teve cerca de 600 mil votos num país com uma população de quase 12 milhões de habitantes. Sua votação não chega a 10% do quórum total. O fenômeno da baixíssima participação da população nas eleições revela um presidente com frágil legitimidade.

Protestos contra Moïse

Ainda em 2017, explodiram protestos em todo o país devido às denúncias sobre esquemas de corrupção do governo envolvendo doações de gasolina da Petrocaribe, estatal venezuelana, ao Haiti. Cabe registrar que os desvios não envolviam a estatal em si: recursos que estavam em mãos do governo haitiano e deveriam ser utilizados no orçamento público. Os anos de 2018 e 2019 seguiram com manifestações e crescimento da oposição ao governo na sociedade civil. A cada aumento do preço da gasolina, discussão do orçamento público anual (Budget), ou uma nova denúncia de corrupção envolvendo o governo mobilizava uma massa expressiva de pessoas à rua, principalmente na capital Porto Príncipe.

No início de 2020, o presidente Moïse dissolveu o parlamento haitiano, passando a governar por decretos desde então. As manifestações continuaram, mesmo em meio à pandemia da Covid-19. Em fevereiro de 2021, o então mandatário deveria entregar seu mandato e realizar novas eleições, de acordo com a Constituição do Haiti. Porém, Jovenel Moïse alegava que seu mandato só começou efetivamente no início de 2017, por isso como Haiti possui mandatos com duração de 5 anos, o presidente afirmou que só sairia do cargo em fevereiro de 2022. Vale notar que apesar do discurso o presidente não anunciou nenhuma previsão de eleição presidencial este ano para garantir sua sucessão em 2022, já que ele não poderia concorrer.

Embora o imbróglio político, Moïse já havia perdido sua legitimidade. Os protestos no início deste ano foram duramente reprimidos, levando inclusive a morte de dezenas de manifestantes. Jovenel ainda propôs realizar uma polêmica reforma constitucional, que não abarcava nenhuma bandeira da oposição nas ruas, além de denunciar publicamente uma suposta conspiração para assassiná-lo, mandando prender um membro da alta cúpula do judiciário e mais 21 pessoas que estariam envolvidas. Enfrentando grandes manifestações desde fevereiro e uma onda de violência na capital ao longo do mês de junho, Moïse sabia dos riscos envolvendo seu apego ao poder, porém seu mandato terminou de uma forma ainda mais trágica do que a história do Haiti poderia sugerir.

Desafio à democracia Haitiana

O assassinato do presidente pode deixar a democracia haitiana numa encruzilhada se as frágeis instituições democráticas do país não garantirem a constituição e convocarem nova eleição presidencial em conjunto com as eleições legislativas já previstas para este ano. No contexto atual, o judiciário e o parlamento têm ainda alguma legitimidade, e devem assumir o protagonismo na transição. Mas, para evitar um golpe ainda maior, a sociedade haitiana deve se mobilizar e restringir os movimentos destas elites políticas à ordem constitucional. Os oportunistas e usurpadores do poder certamente estão na espreita. Um de seus sucessores constitucionais, o primeiro-ministro Ariel Henry, recém nomeado nesta segunda-feira (5), ainda não assumiu o cargo. Outro sucessor da linha, o chefe da Corte Suprema do Haiti, morreu de Covid-19 no mês passado. O exército, que historicamente é protagonista em momentos como este na América Latina, não pode sê-lo por um simples motivo:

Moïse foi assassinado dentro de sua própria casa.

Foto: Igor Rugwiza / UN/MINUSTAH (07/02/2017)
Jovenel Moïse foi assassinado dentro de sua própria casa.
Foto: Igor Rugwiza / Fotos Públicas

As Forças Armadas foram extintas pelo presidente Aristide nos anos 90, em radical reação ao golpismo dos militares. Alguns destes passaram inclusive a integrar grupos paramilitares no país e na República Dominicana. No entanto, os militares perderam o grande poder de intervenção política que gozavam desde o século XIX. A guarda nacional criada ao longo das últimas duas décadas, com apoio da ONU durante a ocupação militar no país, garante um aparato repressivo do Estado contra as mobilizações populares que podem surgir, mas não tem força política própria, uma elite formada historicamente, além de não serem uma força de estado centenária como o Exército.

Perigo de intervenção imperialista

Se os EUA assumirem o mesmo discurso de 1915, 1991 e 2004, quando ocuparam militarmente o país com seus marines – a ameaça de “manter a segurança da região próxima às suas fronteiras” pode justificar uma intervenção militar no país caribenho. O Conselho de Segurança da ONU já convocou uma reunião de emergência para discutir a crise haitiana. O presidente de extrema-direita da Colômbia e lacaio dos interesses americanos, Ivan Duque, se precipitou e chegou a solicitar em declaração à imprensa que a OEA (Organização dos Estados Americanos) faça uma missão no país para “proteger a ordem democrática”.

Invés de promover ameaças à soberania do Haiti, a comunidade internacional deveria assumir o compromisso de respeitar a ordem constitucional do país; garantir a soberania nacional ao devolver ao povo o direito de escolher os rumos políticos de sua democracia. Os esforços solidários internacionais poderiam também se concentrar na doação de vacinas contra a Covid-19 – uma vez que o Haiti é o único país das Américas que não possui vacinas e ainda não iniciou nenhum plano de vacinação de sua população, que sofre com um aumento de casos da pandemia desde maio, enquanto os ricos vacinam “ali do lado”, na Flórida.

O Haiti, primeiro país das Américas a acabar com a escravidão: ao mesmo tempo em que proclamava sua independência, sofre há dois séculos com o intervenções frequentes das potências estrangeiras em seus assuntos internos e o golpismo de suas elites apartadas do povo e sedentas pelo poder. Que o poder interino obedeça realmente a sua condição de interinidade; e as incertezas que sucedem a tragédia do assassinato do presidente Jovenel Moïse sejam dissipadas pelo próprio povo haitiano e suas instituições democráticas, garantindo uma nova eleição até o fim de 2021.

Diego Ruas é poeta, escritor e engenheiro florestal, mestrando em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural pela Universidade de Brasília. Viveu e trabalhou no Haiti entre os anos de 2017 e 2018.

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