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  • Golpe pra quê?

    Golpe pra quê?

    Um dos principais gestos analíticos para a devida compreensão do atual momento da crise democrática brasileira é a distinção entre a figura pessoal do presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarisimo, entendido como projeto político disruptivo.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Sim, por mais estranho que possa parecer, fica cada vez mais claro que uma coisa não está, necessariamente, vinculada à outra.

    Explico.

    Há Jair Bolsonaro na política brasileira desde a década de 1990. Já bolsonarismo começou a nascer em 2014, quando o até então parlamentar de baixo-clero, inexpressivo, animador de auditório, aumentou seu capital eleitoral em quase 400%, tornando-se o deputado federal mais votado pelo Estado do Rio de Janeiro.

    O bolsonarismo é o resultado de um conjuntura específica de crise, alimentado por uma sociedade que se vê colapsada e impulsionada por outro projeto político disruptivo: o lava-jatismo.

    Durante algum tempo, bolsonarismo e lava-jatismo estiveram na mesma trincheira, mas nunca foram a mesma coisa. Juntos, mas não misturados!

    Bolsonaro soube se aproveitar do clima. Havia concorrentes. Marina Silva era a principal. Jair acabou vencendo a corrida. Venceu, também, porque foi mais esperto.

    Parece que agora, no exato momento em que escrevo este texto, o presidente Jair Bolsonaro começa a fazer o movimento de descolamento do bolsonarismo, abandonando a agenda da ruptura disruptiva e adotando a estratégia do aparelhamento institucional.

    Novamente, vem agindo com astúcia política, e se mostrando ainda mais perigoso para o contrato social inaugurado na redemocratização e instituído pela Carta de 1988.

    Olhando daqui, com certo distanciamento, creio que seja possível localizar na crônica os dois momentos que marcaram a inflexão do Bolsonaro disruptivo, que acreditava estar liderando uma revolução saneadora, para o Bolsonaro sistêmico, manipulador das instituições.

    Foram dois momentos que mostraram ao presidente que se continuasse marchando com os insanos, provavelmente não terminaria o mandato.

    O primeiro foi o dia 22 de maio, quando o presidente Bolsonaro, diante da possibilidade de ter seu aparelho de celular apreendido para perícia por ordem do ministro Celso de Melo, decidiu que, sim, interviria no Supremo Tribunal Federal. Em seus devaneios golpistas, Bolsonaro acreditou mesmo que bastava enviar um destacamento militar ao STF para fechar a corte superior da Justiça brasileira. O mais assustador é que ele não estava sozinho no projeto. Entre os generais palacianos houve quem apoiasse a ideia.

    Ao perceber que generais da ativa, com comando efetivo de tropas, não o acompanhariam na quartelada, o presidente recuou. Os bastidores da conspiração foram revelados na edição de agosto da Revista Piauí, em matéria assinada por Mônica Gugliano.

    O segundo momento foi o dia 18 de junho, quando Fabrício Queiroz, depois de mais de um ano desaparecido, foi preso.

    Queiroz é o fio solto do esqueminha de corrupção de baixo clero que enriqueceu o clã Bolsonaro. O presidente sabia perfeitamente que estava ali o seu ponto fraco e, acuado, se convenceu de que não tinha vara longa o suficiente para bancar o conflito com as outros poderes da República.

    A partir de então, vimos outro Bolsonaro, mais habilidoso no jogo político institucional. Aproximação com o centrão, piscadelas para medidas de transferência de renda, afastamento do núcleo ideológico mais radicalizado e liderado por Olavo de Carvalho, constantes pitos públicos em Paulo Guedes. Tudo isso indica que Bolsonaro está tentando se afastar do bolsonarismo.

    Os pilares do bolsonarismo são o neoliberalismo ortodoxo de Guedes e a guerra ideológica olavista. Ao que parece, Bolsonaro está dando de ombros para ambos. A ver se sustenta.

    Precisamos mencionar ainda o dedo certeiro na escolha do comando do Ministério Público. A dupla Augusto Aras e Lindoura Araújo não está apenas esvaziando a Operação Lava Jato. Está ocupando o território.

    Quando começou o governo, Sérgio Moro parecia muito maior e mais perigoso para as garantias democráticas que o próprio Bolsonaro.

    Moro era o herói laureado pela grande imprensa, o lorde gentil e educado, premiado, capa de revista, maxilar quadrado, terno preto alinhado, com caimento perfeito nos ombros. Já Bolsonaro era o aloprado desajeitado, feioso, o “burro chucro” que prometia tropeçar nas próprias pernas na primeira esquina.

    Nas crises, o tempo corre especialmente rápido.

    Hoje, Moro, sem nenhum poder efetivo de decisão, tenta se manter no jogo, contando com a lealdade de seus aliados na grande mídia e no poder Judiciário. Não é algo irrelevante, mas parece pouco para o homem que, em algum momento, foi o mais poderoso player em atuação no tabuleiro da política nacional.

    Já Bolsonaro demonstra ter aprendido a operar, e manipular, as instituições da República.

    Um dos mais importantes e inesperados acontecimentos nesta “temporada 2020” da crise democrática brasileira é o apequenamento de Moro e o amadurecimento político de Bolsonaro. Como os dados estão rolando, nada garante que até 2022 a situação continuará assim. A fotografia do momento é essa.

    Os dias 28 de agosto e 1º de setembro são outros dois momentos cruciais na recente crônica da crise.

    Em 28 de agosto, Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, foi afastado do mandato por decisão monocrática de Benedito Gonçalves, ministro do Superior Tribunal de Justiça, em episódio inédito na história da moderna democracia brasileira. Witzel foi afasto à revelia da Assembleia Legislativa, sem que seus advogados tenham sequer recebido denúncia formal do Ministério Público. O processo foi manipulado pelo Palácio do Planalto, diretamente pelo gabinete do presidente da República.

    Parte da esquerda comemorou a derrocada de Witzel, como se fosse a redenção da memória de Marielle Franco. A derrocada de Witzel é vitória de Bolsonaro, mais uma. Nada além disso.

    Ao abater Witzel, Bolsonaro matou dois coelhos com única paulada: eliminou um desafeto político e controlou o processo de escolha do próximo procurador Geral do Estado do Rio de Janeiro, a quem caberá decidir o futuro de Flávio, o 01.

    Em 1º de setembro, dando desculpa esfarrapada, Deltan Dallagnol se desligou da operação Lava Jato. Dallagnol enfrenta dificuldades no STF e no Conselho Nacional do Ministério Público, onde Gilmar Mendes e Augusto Aras afiam a lâmina da guilhotina. Dallagnol não seria o primeiro a perder o pescoço na mesma guilhotina que ajudou a montar.

    Caiu, assim, o último grande símbolo da Lava Jato, deixando o terreno livre para que Bolsonaro se aproprie da força-tarefa, direcionando a artilharia lava-jatista aos seus adversários, à esquerda e à direita.

    Vamos combinar, né? É muito melhor do que, simplesmente, extinguir a operação, que ainda conta com sólido capital político. Mas vale usar a marca e manter a narrativa do combate à corrupção, fazendo do Ministério Público uma política “soft”, sem armas de fogo.

    Nem precisa de arma de fogo não. O monopólio do processo penal é mais mortal que fuzil. Além do mais, essa coisa de canhão na rua e milico fechando tribunal é tão demodê.

    Claro que tudo pode mudar, que Dallagnol e Moro podem se recuperar, que os quadros lava-jatistas ainda leais à República de Curitiba podem virar o jogo, novamente. Mas a fotografia do momento, repito, é essa.

    Fato fato mesmo é que nos últimos dias Jair Bolsonaro está dormindo mais tranquilo, assistindo a recuperação de sua popularidade e se sentindo cada vez mais confortável nos corredores do poder. A cadeira já não queima tanto.

    Talvez esteja perguntando a si mesmo: onde eu estava com a cabeça? Golpe pra quê?

  • Reportagem mostra relações ilegais entre FBI e a operação Lava Jato

    Reportagem mostra relações ilegais entre FBI e a operação Lava Jato

    Por: Natalia Viana, Rafael Neves, Agência Pública/The Intercept Brasil

    ESPECIAL: VAZA JATO
    Agente que atuou em investigações da Lava-Jato no Brasil virou chefe da Unidade de Corrupção Internacional do FBI
    Polícia americana tem foco crescente em combater corrupção na América do Sul e abriu escritório para isso em Miami
    Deltan e PF preferiram tratar de extradição diretamente com americanos: “entendemos que não vale o risco de passar pelo executivo”, escreveu o procurador
    Nos seus pouco mais de 20 anos no FBI, a agente especial Leslie R. Backschies esteve diversas vezes no Brasil. Backschies, cujo nome do meio é Rodrigues, com a grafia portuguesa, é fluente na língua nacional e vem ao país desde pelo menos 2012, ano em que há um primeiro registro de uma visita sua à Polícia Militar de São Paulo. É, também, a única foto que se encontra na internet dessa notável agente do FBI – embora esteja longe da câmera e de óculos escuros. O objetivo daquela visita era firmar parcerias para capacitação de policiais para responder a ameaças terroristas antes da Copa de 2014.

    Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública – Foto: Site Piloto Policial
    Leslie R. Backschies, a segunda à esquerda, e mais quatro agentes do FBI visitaram o Grupamento de Radiopatrulha Aérea (GRPAe) da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP)

    Ao longo de sua carreira, Leslie trabalhou na divisão de Segurança Nacional do FBI, atuando nas áreas de contraterrorismo e resposta a armas de destruição em massa – ela foi co-autora de um guia sobre armas biológicas para o site Jane’s Defense.

    Trabalhando para a Divisão de Operações internacionais do FBI, em 2012 Leslie mudou-se para a América do Sul, passando a viver em local não revelado, de onde supervisionava os escritórios do FBI nas capitais do México, Colômbia, Venezuela, El Salvador e Chile, além dos agentes do FBI lotados na embaixada em Brasília. No mesmo posto, comandou operações da polícia federal americana em Barbados, República Dominicana, Argentina, Panamá e no Canadá.

    Mas nos últimos anos, a carreira de Leslie deu uma guinada. De especialista em armamentos e terrorismo, ela passou a se dedicar a investigar casos de corrupção e lavagem de dinheiro na América Latina – com destaque para o Brasil.

    Em 2014, Leslie foi designada pelo FBI para ajudar nas investigações da Lava Jato. A informação consta de reportagem do site Conjur sobre evento promovido pelo escritório de advocacia CKR Law em São Paulo, em fevereiro de 2018, que contou com presença dela. A atuação de Leslie foi considerada “um trabalho tremendo” e “crítico para o FBI” pelos seus supervisores, segundo seu ex-chefe afirmou em um evento sobre o combate à corrupção em Nova York no ano passado acompanhado por uma colaboradora da Pública.

    Leslie se tornou especialista na legislação FCPA, Foreign Corrupt Practices Act, uma lei americana que permite que o Departamento de Justiça (DOJ) investigue e puna nos Estados Unidos atos de corrupção praticados por empresas estrangeiras mesmo que não tenham acontecido em solo americano. Foi com base nessa lei que o governo americano investigou e puniu com multas bilionárias empresas brasileiras alvos da Lava Jato, dentre elas a Petrobras e a Odebrecht, que se comprometeram a desembolsar mais de US$ 4 bilhões em multas para os EUA, Brasil e Suíça.

    Hoje morando de novo nos Estados Unidos, Leslie comanda a Unidade de Corrupção Internacional do FBI, cuja grande novidade no ano passado foi um escritório aberto em março em Miami apenas para investigar casos de corrupção na América do Sul, o Miami International Corruption Squad.

    A unidade conta com seis agentes especiais, um supervisor e um contador forense que atuam na cidade conhecida por receber exilados cubanos, venezuelanos e, mais recentemente, uma enxurrada de ricos brasileiros. “Você não pode apenas ter um agente ou dois em um escritório em campo trabalhando com isso…. Não dá para trabalhar com isso apenas duas ou três horas por semana. Assim não vai funcionar. Você precisa de recursos dedicados em período integral”, afirmou Leslie à à Agência de Notícias Associated Press.

    O esquadrão para América do Sul é o quarto esquadrão do FBI especializado em corrupção internacional. Todos foram abertos nos últimos cinco anos – ao mesmo tempo que a maior investigação de corrupção da história brasileira varria o continente.

    A reportagem pediu uma entrevista a Leslie Backschies, mas não obteve resposta até a publicação.

    Cinco anos depois, Leslie parece bastante satisfeita com os resultados. “Nós vimos muita atividade na América do Sul — Odebrecht, Petrobras. A América do Sul é um lugar onde… Nós vimos corrupção. Temos tido muito trabalho ali”, disse ela à Agência de Notícias Associated Press no começo de 2019.

    “Não dá pra ser melhor do que isso”, ela afirmou no evento da CKR Law em São Paulo. “Nossa relação com o Brasil é o modelo de colaboração para países lutando contra crimes financeiros”.

    “Isso é apenas o começo. Temos o enquadramento correto, a vontade e os fundos para continuar trabalhando juntos”.

    “Agentes do FBI já apoiaram” 10 medidas contra a corrupção

    Em outubro de 2015, Leslie fez parte da comitiva de 18 agentes americanos que foram a Curitiba se reunir com procuradores e advogados de delatores sem passar pelo Ministério da Justiça, órgão que deveria, segundo a lei, intermediar todas as matérias de assistência jurídica com os EUA, segundo revelaram Agência Pública e The Intercept Brasil.

    A proximidade com a equipe da Lava Jato era tanta que Leslie foi um dos agentes do FBI que posaram com um cartaz apoiando o projeto de lei das 10 Medidas Contra a Corrupção, bandeira da Força-Tarefa e em especial do seu chefe, Deltan Dallagnol, que foi derrotada no Congresso Nacional.

    Em um chat com Deltan em 18 de maio de 2016 constante do arquivo entregue ao site The Intercept Brasil, a procuradora Thaméa Danelon, ex-coordenadora da Força-Tarefa em São Paulo, brincou antes de uma viagem para os EUA: “Vou tentar tirar uma foto c a Jennifer Lopes e o cartaz das 10 Medidas”, brinca ela. “Os agentes do FBI já apoiaram. Mas não pode publicar a foto ok? Eles não deixaram”, explica Thaméa, enviando a foto a seguir.

    Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública – Foto: Rovena Rosa/MPF
    Thaméa Danelon, ex-coordenadora da Força-Tarefa em São Paulo, e Deltan Dallagnol, chefe da Força-Tarefa da Lava Jato

    A imagem foi posteriormente apagada e não consta do arquivo entregue ao Intercept. Se divulgada, ela poderia causar uma saia justa ao MPF por se tratar de autoridades estrangeiras atuando em uma campanha legislativa nacional.

    Thaméa diz que na foto todos são agentes, com exceção de uma tradutora brasileira. Mostrando familiaridade com a agente americana, Deltan Dallagnol se entusiasma e diz que a imagem lembra o filme Missão Impossível, estrelado por Tom Cruise. “Legal a foto! A Leslie está em todas rs”.

    Arte: Larissa Fernandes/Agência Pública

    A foto havia sido tirada em São Paulo um dia antes, em 17 de maio de 2016, quando Thaméa participou, junto com Leslie, de uma palestra para 90 membros do MPF paulista. Estavam lá também os agentes Jeff Pfeiffer e Patrick Kramer, além de George “Ren” McEchern, então diretor do Esquadrão de Corrupção Internacional do FBI em Washington – e chefe de Leslie.

    Promovida pela Secretaria de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Procuradoria da República em São Paulo, a palestra teve como objetivo ensinar o funcionamento da FCPA. “Foi uma excelente oportunidade para aprendermos sobre um eficiente sistema de combate à corrupção”, ressaltou Thaméa no evento.

    A fala de Leslie Backschies não foi reproduzida online. A reportagem pediu as fotos do evento à procuradoria, mas a assessoria de imprensa respondeu que “infelizmente tivemos um problema no nosso backup e perdemos alguns registros de anos anteriores, inclusive esse evento”. Questionado via Lei de Acesso, o MPF fez uma dupla negativa: “E mesmo que tivéssemos estas imagens, elas precisariam de autorização de uso das pessoas fotografadas (palestrantes e espectadores), documento que não foi requisitado no evento”.

    Meses depois, foi a vez de Thaméa ir a Washington para dar um curso ao FBI sobre a Lava Jato, conforme revela um diálogo com Deltan Dallagnol em 11 de Outubro de 2016 a partir das 16:47:23. “O FBI pediu pra eu falar sobre a Lavajato no curso em Washington, tudo bem? Vc me mandaria um material em Inglês? Eles tb. querem q eu fale sobre as 10 Measures!!!! show heim? até eles já sabem da campanha!!!”

    Deltan responde: “Animal. Não é tudo bem. É tudo excelente!!!!!”

    As mensagens foram reproduzidas com a grafia encontrada nos arquivos originais recebidos pelo The Intercept Brasil, incluindo erros de português e abreviaturas.

    Segundo um documento constante dos arquivos da Vaza Jato, em 2015 havia nove policiais americanos lotados na embaixada de Brasília e no Consulado de São Paulo, incluindo do FBI, da Polícia de Imigração e Alfândega e do Departamento de Segurança Interna.

    Com base nos diálogos e em apuração complementar, a Agência Pública conseguiu localizar, além de Leslie Backschies, 12 nomes de agentes do FBI que atuaram nos casos da Lava Jato em solo brasileiro.

    Pela lei, nenhum agente americano pode fazer diligências ou investigações em solo brasileiro sem ter autorização expressa do Ministério da Justiça, pois as polícias não têm jurisdição fora dos seus países de origem. O FBI e a embaixada dos Estados Unidos se negam a detalhar publicamente o que fazem seus agentes no Brasil. Mas um documento da própria embaixada, obtido pela Pública, revela como funciona esse trabalho. Trata-se de um anúncio em 19 de outubro de 2019 em busca de um “investigador de segurança” para trabalhar na equipe do adido legal e passar 70% do tempo fazendo investigações. “Essas investigações são frequentemente altamente controversas, podem ter implicações sociais e políticas significativas”, diz o texto do anúncio, escrito em inglês. O anúncio avisa que o policial terá de viajar de carro, barco, trem ou avião por até 30 dias “para áreas remotas de fronteira e para todas as regiões do Brasil”.

    Questionada pela Pública sobre a atuação de agentes do FBI em território brasileiro e sobre a parceria com os membros da Lava Jato, a embaixada americana respondeu através de uma nota: “O FBI colabora com as autoridades brasileiras, que conduzem todas as investigações no Brasil, inclusive todas as investigações que envolvem o Brasil e os EUA. As autoridades federais e estaduais brasileiras trabalham rotineiramente em parceria com as agências policiais dos EUA em uma ampla gama de questões. Os Estados Unidos e o Brasil mantêm uma excelente cooperação policial na FCPA, mas também no combate ao crime transnacional e em muitas outros ámbitos de interesse mútuo. Procuramos oportunidades de aprender com todas as nossas investigações. Um intercâmbio de boas práticas faz parte da boa cooperação que desfrutamos com nossos colegas brasileiros”.

    Há dezenas de menções ao FBI e seus agentes nos diálogos constantes da Vaza-Jato analisados pela Agência Pública e Intercept Brasil. Fica claro que o relacionamento mais constante é entre membros da PF brasileira e agentes do FBI.

    “A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta”

    À frente da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da Procuradoria-Geral da República, o procurador Vladimir Aras alertou diversas vezes para problemas legais envolvendo a colaboração direta com agentes do FBI.

    Uma conversa bastante tensa, em 11 de fevereiro de 2016, revela até que ponto a PF mantinha proximidade com o FBI e desconfiava do governo de Dilma Rousseff. A ponto de o próprio chefe da Lava Jato, Deltan Dallagnol, admitir ao secretário de Cooperação Internacional da PGR que a PF preferia tratar direto com os americanos a seguir as vias formais.

    Às 11:27:04, Deltan pede que Aras olhe um email enviado para os Estados Unidos. Aras se surpreende com o teor: tratava-se de um pedido de extradição de um suspeito da Lava Jato. Não fica claro quem é a pessoa a quem se referem. O pedido, informal, havia sido enviado ao Escritório de Assuntos Internacionais (OIA, na sigla em inglês) diretamente por Dallagnol, sem passar pela Secretaria Cooperação Internacional da PGR nem pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), do Ministério da Justiça, autoridade central responsável, de acordo com um tratado bilateral. O diálogo dá a entender que um mandado de prisão ainda estava por ser decretado pelo então juiz Sergio Moro.

    “Passa o nome e os dados que vamos atrás. Fizemos isso com o advogado de Cerveró”, responde Aras. “Nosso parceiro preferencial para monitorar pessoas tem sido o DHS, mas podemos trabalhar com o FBI também. Quanto antes tivermos os dados, melhor”, explica Aras, referindo-se ao Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS, na sigla em inglês). Aras prossegue explicando que o pedido de extradição teria que passar pelo DEEST, o Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça, além do Ministério de Relações Exteriores, “um parceiro importante”.

    “Não é bom tentar evitar o caminho da autoridade central, já que, como vc sabe, isso ainda é requisito de validade e pode pôr em risco medidas de cooperação no futuro e a “política externa” da PGR neste campo”, explica Vladimir.

    “O que podemos fazer agora é ajustar com o FBI e com o DHS para localizar o alvo e esperar a ordem de prisão, que passará pelo DEEST. Podemos mandar simultaneamente aos americanos”, ele prossegue.

    Em resposta, Deltan é direto. “Obrigado Vlad por todas as ponderações. Conversamos aqui e entendemos que não vale o risco de passar pelo executivo, nesse caso concreto. Registra pros seus anais caso um dia vá brigar pela função de autoridade central rs”, escreveu, deixando no ar a sugestão para que Aras se ocupasse do assunto se um dia comandasse o MPF ou o Ministério da Justiça. “E registra que a própria PF foi a primeira a dizer que não confia e preferia não fazer rs”.

    Vladimir insiste: “Já tivemos casos difíceis, que foram conduzidos com êxito”.

    “Obrigado, Vlad, mas entendemos com a PF que neste caso não é conveniente passar algo pelo executivo”.

    Vladimir responde que “A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta. O tratado tem força de lei federal ordinária e atribui ao MJ a intermediação”.

    Para a professora de direito penal e econômico na Fundação Getulio Vargas, Heloísa Estellita, o episódio é “lamentável”. “Não temos notícia de como o procurador procedeu e se procedeu a alguma medida. Mas não deixa de ser lamentável que, mesmo corretamente orientado por colega especialista em cooperação internacional e zeloso pela legalidade, o procurador tenha manifestado que, em tese, preferiria outro caminho”, avalia. “Como o procurador especialista alerta, a hipótese de circundar a autoridade competente poderia não só causar problemas institucionais no Brasil, como gerar descrédito para as instituições brasileiras perante autoridades estrangeiras”.

    Arte: Larissa Fernandes/Agência Pública

    Procurada pela reportagem, a Força-Tarefa da Lava Jato reiterou, através de nota, que “além dos pedidos formais por meio dos canais oficiais, é altamente recomendável que as autoridades mantenham contatos diretos. A cooperação inclui, antes da transmissão de um pedido de cooperação, manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias, com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações a serem pedidas e recebidas”. Leia a resposta completa no final desta reportagem.

    Odebrecht: “O FBI já tem conhecimento total das investigações”

    Naquele mesmo ano, alguns meses depois, a relação com a polícia americana voltaria a ser tema de debate entre os procuradores, desta vez pelo Chat Acordo ODE, onde discutiam o contrato de leniência com a construtora Odebrecht.

    O tema da conversa, iniciada às 15:29:40 do dia 31 de agosto de 2016, era o sistema de informática My Web Day, que, assim como o Drousys, era usado pelo Setor de Operações Estruturadas, um departamento da Odebrecht que geria os pagamentos de propinas a políticos de vários países. Os membros da Lava Jato pediram informalmente ajuda ao FBI para quebrar as senhas de ambos os sistemas. O pedido foi feito em agosto de 2016, quase um ano antes da Lava Jato receber oficialmente os arquivos do Mywebday e Drousys a partir da assinatura do acordo de leniência com a Odebrecht, o que ocorreu em agosto de 2017, segundo reportagem de O Globo.

    Naquele dia o procurador Paulo Roberto Galvão explicou que pediu auxílio do FBI para “quebrar” ou “indicar um hacker” para acessar o sistema My Web Day. Em resposta, o promotor Sérgio Bruno, que coordenava a Lava Jato em Brasília, afirma que o então Procurador Geral da República Rodrigo Janot chegou a ter uma reunião na embaixada americana para pedir ajuda com os sistemas criptografados da Odebrecht.

    “O canal com o FBI é com certeza muito mais direto do que o canal da embaixada. O FBI tb já tem conhecimento total das investigações, enquanto a embaixada não teria”, informa Paulo Roberto. “De minha parte acho útil manter os dois canais”.

    Depois, ele explica: “A nossa foi sim com o adido, porém o que fica em SP. O mesmo que acompanha o caso LJ”.

    Arte: Larissa Fernandes/Agência Pública

    As trocas entre FBI e a Lava Jato em relação ao sistema My Web Day continuaram nos meses seguintes, mas parecem ter sido infrutíferas. Em outubro de 2016, Paulo Roberto Galvão compartilhou no chat “Acordo Ode” uma resposta em inglês de David Williams, adido do FBI na embaixada americana, sobre as possibilidades indicadas pelos experts em criptologia do FBI.

    A comunicação demonstra que o assunto já fora tratado, pessoalmente, com o procurador Carlos Bruno Ferreira, da Secretaria de Cooperação Internacional da PGR. “Se não me engano o assunto de baixo é o mesmo que o Carlos Bruno explicou para mim recentemente na despedida do Adido Frank Dick na embaixada do Reino Unido (certo Carlos?)”, escreve, em português fluente, prometendo consultar os “cyber experts” do FBI. O problema é que o MywebDay usava uma poderosa criptografia que só podia ser descriptografada usando 3 componentes. E a Odebrecht dizia que tinha perdido dois deles, tendo apenas a senha. A criptografia usava o programa Truecrypt.

    “Eu acho que em resumo o que eles estão falando é que sem os arquivos-chave, é impossível no cenário da Odebrecht destravar o volume do TrueCrypt apenas com uma senha”, escreveu como resposta David Williams. “Eles podem fazer uma análise forense nas imagens que têm os dados do TrueCrypt, e fazer uma tentativa para localizar os outros arquivos-chave. Se essa análise é algo que você gostaria de receber assistência, avise-nos e podemos ver se é algo que o FBI pode tentar”.

    “Caros, na Suíça aparentemente o pessoal da Odebrecht disse q teria condições de abrir o sistema. Vamos entender melhor isso”, encerra Paulo.

    No final de 2016, a Odebrecht, junto com sua subsidiária Braskem – à época uma joint-venture com a Petrobras – fez um acordo com o DOJ pelo qual ambas concordaram em pagar uma indenização de no mínimo US$ 3,2 bilhões aos EUA, Suíça e Brasil – total depois reduzido para US$ 2,6 bilhões – por práticas de corrupção ocorridas fora dos EUA.

    Procurada pela reportagem, a Lava Jato afirmou, através de nota, que “os dados do sistema Drousys, entregues ao MPF no bojo do acordo de leniência firmado pelo Grupo Odebrecht, já foram objeto de perícia submetida à avaliação do Poder Judiciário brasileiro e auxiliaram no fornecimento de provas a diversas investigações e acusações criminais”. A resposta completa está no final da reportagem.

    Porém, apenas em agosto de 2017 cinco discos rígidos com cópia de dados do software MyWebday foram entregues oficialmente aos procuradores da Lava Jato como parte do acordo, segundo reportagem de O Globo. Os arquivos para descriptografá-los continuavam desaparecidos – e mais uma vez a Lava Jato precisou da ajuda dos americanos.

    Discutindo a reportagem do Globo, o procurador Roberson Pozzobon, colega de Dallagnol em Curitiba que chegou a negociar a abertura de uma empresa de palestras em sociedade com ele, reclamou: “Da forma como ele colocou, parece que não nos empenhamos (e ainda estamos nos empenhando) para buscar acessar essas informações (quando os dispositivos foram enviados até o FBI para ver se seria possível acessar sem as senhas)”, escreveu ele no chat “Filhos do Januario 2 – SAIR” em 6 de fevereiro de 2018.

    A colaboração com o FBI nas investigações em relação à Odebrecht levou a um dos maiores acordos assinados até então pelo DOJ com uma empresa internacional, no valor de US$ 2,6 bilhões de multa.

    Como a Odebrecht não é uma empresa de capital aberto e portanto não tem suas ações vendidas na bolsa nos Estados Unidos – como era o caso da Braskem – o acordo descreve algumas situações que estariam sob a jurisdição americana.

    Por exemplo, a Odebrecht teria usado contas em bancos de Nova York para transferir dinheiro para contas Offshore em Belize e nas Ilhas Virgens Britânicas que, afinal, seria “em parte” usada para o pagamento de propina em países latino-americanos. O DOJ vai além. “A Odebrecht, os seus empregados e agentes, tomaram diversos passos enquanto nos Estados Unidos para aprofundar o esquema. Por exemplo, em 2014 e 2015, enquanto estavam em Miami, na Flórida, dois funcionários da Odebrecht tiveram condutas relativas a certos projetos dentro do esquema, incluindo reuniões com outros co-conspiradores para planejar ações a serem tomadas em conexão com a Divisão de Operações Estruturadas, a movimentação de produtos de crimes, e outras condutas criminosas”.

    Após ser alvo da Lava-Jato e de ter assinado acordo nos EUA, a Odebrecht passou a ser investigada em diversos países onde mantinha contratos na América Latina. Em junho de 2019, a empresa pediu recuperação judicial.

    Segundo o jornal Miami Herald, foi justamente a crença de que o dinheiro lavado pelos membros do regime de Hugo Chávez na Venezuela – incluindo a propina da Odebrecht – acabou no mercado imobiliário do sul da Flórida que levou à criação no ano passado de um Esquadrão de Corrupção Internacional em Miami. O esquadrão é subjugado à Unidade de Investigação liderado por Leslie Backschies, a agente que fala português fluentemente e apoiou as 10 medidas contra a corrupção de Deltan e companhia, segundo as mensagens da Vaza Jato.

    “Nós vimos presidentes derrubados no Brasil. Esses são os resultados de casos como esses”

    A expressão usada por Leslie Rodrigues Backschies para descrever o impacto político das investigações do FBI sobre corrupção estrangeira é que são “politicamente sensíveis”.

    “Esses casos são muito sensíveis politicamente, não somente nos Estados Unidos mas no exterior,” explicou a agente especial em entrevista à Associated Press. “Quando você está olhando para oficiais estrangeiros em outros governos — quer dizer, veja, na Malásia, o presidente não foi reeleito. Nós vimos presidentes derrubados no Brasil. Esses são os resultados de casos como esses. Se você está olhando para membros do alto escalão de governos, há muitas sensibilidades.”

    Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública – Foto: Reprodução
    A agente especial Leslie R. Backschies participou do evento ICC meet the enforcers em fevereiro de 2018

    É por conta de tamanhas “sensibilidades” que, diferentemente de outros casos criminais, todos os casos de FCPA são dirigidos pela unidade especializada do Departamento de Justiça em Washington – mesmo que tenham se iniciado em um distrito distante da capital. O DOJ é chefiado pelo Procurador-Geral dos Estados Unidos, uma espécie de Ministro da Justiça, nomeado diretamente pelo presidente.

    Segundo a reportagem da Associated Press, os supervisores do FBI se encontram com advogados do Departamento de Justiça a cada 15 dias para avaliar potenciais investigações e possíveis consequências políticas.

    Corrupção internacional vira prioridade

    A mudança na carreira de Leslie acompanhou uma mudança de foco do Departamento de Justiça e do FBI na última década. A partir de uma percepção de que a lavagem de dinheiro ajudava o financiamento do terrorismo, os agentes americanos passaram a se dedicar cada vez mais a casos de corrupção transnacional e lavagem de dinheiro usando a legislação FCPA, que tem jurisdição ampliada para o mundo todo. Hoje, a maioria dos casos de FCPA não tem nada a ver com terrorismo.

    A mudança trouxe dividendos para o DOJ e possibilitou uma renovada parceria com polícias e Ministérios Públicos de todo o continente americano. E se solidificou. Em 2017, pela primeira vez a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos – já sob o governo de Donald Trump – incluiu o “combate à corrupção estrangeira” como prioridade para a segurança interna dos cidadãos americanos.

    Antes dele, a estratégia definida por Barack Obama em 2015 já mencionava a corrupção internacional como ponto de atenção – mas ela não tinha uma lista de “ações prioritárias”.

    Em março de 2015, o FBI abriu três esquadrões dedicados à corrupção internacional em Nova York, Los Angeles e Washington, triplicando o número de agentes dedicados a investigar violações da FCPA e “crimes de cleptocracia” – foram de 10 agentes para 30. Até o final de 2017 os recursos para o FBI investigar corrupção transnacional aumentaram em 300%, segundo o seu ex-chefe “Ren” McEachern.

    O anúncio oficial explicava o foco na investigação de “cleptocracias”, “oficiais estrangeiros que roubam dos tesouros dos seus governos às custas dos seus cidadãos” e afirmava ainda que os agentes do FBI iriam contar com “operações secretas, informantes e fontes”, além de “parceria com nossas contrapartes internacionais – facilitada pela nossa rede de adidos legais situados estrategicamente ao redor do mundo”.

    A explicação de Leslie para o foco do FBI na corrupção internacional – e por que investigar empresas que cometeram corrupção fora dos Estados Unidos ajuda a melhorar a segurança dos cidadãos americanos – é rocambolesca. “Queremos que se cumpra a lei. Se a lei não é cumprida, você terá certas sociedades nas quais eles [os cidadãos] sentem que os governos deles são tão corruptos, que irão buscar outros elementos que são considerados fundamentais, que eles vêem como limpos ou algo contra o regime corrupto, e isso se torna uma ameaça para a segurança nacional [dos Estados Unidos]”.

    “Uma coisa quando eu falo com empresas, eu digo ‘Quando você paga um suborno, você sabe onde o dinheiro está indo? Sua propina está indo para financiar terrorismo?’”, completa, sem explicar como isso ocorre.

    Em julho de 2019, Leslie Backschies participou de mais um evento para discutir corrupção internacional, dessa vez em Washington, DC, e desvendou mais uma atuação “sensível” da polícia americana no exterior. Segundo o site Market Insight a agente especial afirmou que o FBI tem a estratégia de valer-se de membros de governos de outros países para buscar investigar casos de FCPA.

    Ela afirmou que, quando há uma mudança de regime, uma nova administração às vezes pede ajuda para investigar a corrupção no governo anterior. E quando um novo governo chega a um país, pode haver servidores restantes do governo anterior que querem relatar a corrupção.

    A atuação do FBI em casos fora do seu território tem gerado diversas críticas entre juristas, que apontam que os Estados Unidos se comporta como “polícia do mundo”.

    “Eu tenho alguns clientes que quase nem tocaram nos Estados Unidos, e eles perguntam: até onde isso vai se estender? E, você sabe, até certo ponto, qual o interesse dos EUA?” questiona o advogado Adam Kauffman, um ex-procurador do distrito de Nova York que trabalhou com Sergio Moro na investigação sobre o caso Banestado, quando ele era juiz federal.

    Ele deu uma entrevista à Agência Pública em Nova York em junho de 2019, antes do vazamento dos diálogos da Força-Tarefa. “Em muitos casos, quando o governo [americano] processa esses casos de corrupção, as pessoas admitem a culpa porque estão com medo, e conseguem um acordo bom, então o governo garante jurisdição sobre coisas que são muito tênues. Mas ninguém questiona isso, então se torna mais e mais comum e a jurisdição vai para mais e mais longe”.

    “Porque jurisdição”, reflete Adam, “é como gravidez. Ou você tem ou você não tem. Você não pode ter um pouquinho de jurisdição e você não pode estar um pouquinho grávida. Onde está o limite?”.

    Respostas da Lava Jato

    Procurada pela Pública, a força-tarefa da Lava Jato respondeu por email. Leia a íntegra das respostas a seguir:

    Um dos diálogos vazados ao The Intercept Brasil atesta que em 31 de agosto de 2016 o FBI tinha “total conhecimento” das investigações feitas pela Lava Jato sobre a empresa Odebrecht. Como funcionava essa atuação do FBI em parceria com os investigadores da Lava Jato? Como se dava essa transmissão de informações?

    Não se trata de atuação em parceria, mas de cooperação entre autoridades responsáveis pela persecução criminal em seus países, conforme determinam diversos tratados internacionais de que o Brasil é signatário. O intercâmbio de informações entre países segue igualmente normas internacionais e também leis brasileiras. Além dos pedidos formais por meio dos canais oficiais, é altamente recomendável que as autoridades mantenham contatos diretos. A cooperação inclui, antes da transmissão de um pedido de cooperação, manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias, com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações a serem pedidas e recebidas.

    A parceria com o FBI, que incluiu a busca de quebrar a criptografia do sistema Drousys, foi criticada por alguns advogados como um possível risco à soberania nacional por poder ser usada contra uma empresa brasileira por um governo estrangeiro. Qual é a posição da Lava Jato sobre isso?

    Não recebemos da jornalista dados sobre a “busca de quebrar a criptografia do sistema Drousys”, nem sobre “foi criticada por alguns advogados como um possível risco à soberania nacional por poder ser usada contra uma empresa brasileira por um governo estrangeiro”. De todo modo, os dados do sistema Drousys, entregues ao MPF no bojo do acordo de leniência firmado pelo Grupo Odebrecht, já foram objeto de perícia submetida à avaliação do Poder Judiciário brasileiro e auxiliaram no fornecimento de provas a diversas investigações e acusações criminais.

    Os diálogos demonstram ainda que em pelo menos uma ocasião o chefe da Lava Jato manteve contatos diretor com o DOJ em temas de extradição e cooperação internacional – uma atribuição do DRCI /MJ – e expressou a decisão de evitar passar pelo Executivo, no caso o Ministério da Justiça, durante o governo de Dilma Rousseff. Por que a Lava Jato preferia evitar a Autoridade Central e se comunicar diretamente com o Departamento de Justiça Americano? Esse tipo de postura não poderia prejudicar a imagem internacional das instituições brasileiras perante autoridades estrangeiras?

    Conforme respondido no item “1”, além dos pedidos formais por meio dos canais oficiais, é altamente recomendável que as autoridades mantenham contatos diretos. A cooperação inclui, antes da transmissão de um pedido de cooperação, manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias, com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações a serem pedidas e recebidas.

    A Lava Jato continua trocando informações e colaborando com o FBI em solo brasileiro? Existem ainda empresas brasileiras que são investigadas pelo FBI com base na legislação FCPA?

    A força-tarefa da Lava Jato no Paraná não comenta sobre eventuais investigações em curso.

    Matéria original com links para outros materiais no site da Agência Pública: https://apublica.org/2020/06/o-fbi-e-a-lava-jato/?mc_cid=503eeec927&mc_eid=ca8dd03443

  • Justiça censura jornalista por crítica a colunista que apoia AI-5

    Justiça censura jornalista por crítica a colunista que apoia AI-5

    É o rabo abanando o cachorro! Com toda a mídia focada nas ações que o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, finalmente abriu contra as redes de fake news, seus financiadores e dos fascistas que ameaçam autoridades e instituições, em Mato Grosso o jogo foi invertido. Aqui, quem está sob ameaça da justiça é quem denuncia os participantes e apoiadores de atos antidemocráticos que pedem abertamente o fechamento do Congresso e a volta do Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5, que permitiu a censura à imprensa, as prisões políticas e, por consequência, a instituição da tortura, morte e desaparecimento de milhares de pessoas.

    No início do mês, a juíza Maria Aparecida Ferreira Fago, do 2º Juizado Cível de Cuiabá, em decisão liminar, resolveu censurar duas postagens do jornalista Enock Cavalcanti, com mais de 30 anos de atividade nos principais veículos do estado. Nelas, o profissional publicou uma foto que retirou de uma postagem da colunista social Rosely Arruda Ferri no qual a também veterana na imprensa matogrossense posa ao lado de uma faixa com  a inscrição “AI-5 JÁ”, afixada na grade do 44º Batalhão de Infantaria Motorizado do exército em 19 de abril.

    Colunista social posa com bandeira do Brasil ao lado de faixa que pede o AI-5 em dia de manifestações antidemocráticas em Cuiabá. Foto: redes sociais

    Na primeira postagem censurada, no Facebook, Cavalcanti alertava outros jornalistas sobre a atitude da colega e questionava se a “cuiabania” tradicional se sentia representada por essa atitude. Já em seu blog Página do E (https://paginadoenock.com.br/), ele trazia um texto bem mais longo junto à imagem, falando sobre as manifestações verde-amarelas contra o governo de Dilma Rousseff e como tinham diminuído para as atuais que pedem abertamente a volta à ditadura.

    No texto, Cavalcanti lembra vários jornalistas perseguidos em Mato Grosso durante o regime militar, entre os quais um está hoje “bem acomodado” no Tribunal de Contas do Estado. Ele cita, ainda, que já trabalhou com a colunista e lhe tem apreço, para em seguida pedir: “alguém mais chegado do que eu deveria visitá-la para um chá da tarde em louça delicada, conversar com calma, recordar à velha senhora alguns fatos históricos”. Em seguida, cita um longo trecho do poema de Vinícius de Moraes “O desespero da piedade” e termina publicando a Carta Aberta à Sociedade Brasileira em Defesa da Democracia, assinada por 20 dos 27 governadores de estado atuais, incluindo o de Mato Grosso, Mauro Mendes, do DEM.

    O fato é que Roseli Arruda se irritou com as postagens e entrou com uma ação de indenização por danos morais no Tribunal Especial Cível contra o jornalista. Mas ao invés da juíza juntar as provas contra a colunista no inquérito sobre as manifestações golpistas ocorridas no estado, rapidamente arquivado pelo Procurador do Ministério Público Federal Carlos Augusto Guarilha de Aquino Filho, como mostra o próprio Enock Cavalcanti em seu blog, a doutora Maria Aparecida Ferreira Fago resolveu acatar a reclamação da colunista e antecipar a decisão impondo via liminar a censura sobre os posts sob multa diária de R$5.000,00  (veja a peça completa aqui).

    Várias entidades, como o Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso, repudiaram a atitude. Para o Sindicato, “a concessão da decisão liminar é um duplo atentado à democracia, pois tolhe o exercício da liberdade de expressão e imprensa do jornalista Enock Cavalcanti e referenda o atentado aos Poderes Legislativo e Judiciário, vez que este foi um dos efeitos da decretação do Ato Institucional N°5 em 1968, quando o Brasil vivia sob ditadura.”

    Em vídeo exclusivo para os Jornalistas Livres, Enock Cavalcanti explica o processo e a importância de nos unirmos nesse momento em que as forças mais reacionárias e violentas se levantam contra a jovem democracia brasileira.

    https://vimeo.com/431634319

    Como explica o também jornalista e professor de jornalismo Gibran Lachowski:

    “Não foi pontual o que ocorreu em abril quando três bolsonaristas agrediram uma equipe de jornalismo da TV Brasil Oeste em frente ao Hospital Universitário Júlio Müller, em Cuiabá, impedindo que eles colhessem dados sobre casos de Covid-19. Também não foi pontual a ameaça feita no mesmo mês pelo deputado federal do Podemos/MT, José Medeiros, contra o jornalista Jacques Gosch, do RD News/Cuiabá, dizendo que uma futura notícia em seu desabono seria revidada “no tiro”. Como não é pontual que centenas de outras pessoas em várias cidades do país agridam jornalistas verbalmente e fisicamente, reforçadas pelo facínora Jair Bolsonaro. Como também não é pontual que o deputado estadual pelo PSL/MT, Silvio Favero, tenha feito postagem em redes sociais no dia 31 de março elogiando o golpe de 1964. Ou seja: a questão é maior. O foco é o combate ao bolsonarismo/fascismo, que significa a Defesa da Democracia. E deve envolver diversos setores da sociedade.”

     

     

  • QUEM DARÁ O GOLPE NO BRASIL?

    QUEM DARÁ O GOLPE NO BRASIL?

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Em 1962, no calor de uma grave crise institucional, Wanderley Guilherme dos Santos publicou o livro “Quem dará o golpe no Brasil?”. Texto de intervenção, rápido, atravessado por marcas de oralidade. O jovem cientista político, na época filiado ao Partido Comunista, verbalizou aquele ambiente de incerteza, deixando para nós o testemunho de uma geração que via o futuro se fechar diante de seus olhos.

    Wanderley Guilherme dos Santos não está mais entre nós. Morreu recentemente, deixando um vazio impreenchível na inteligência nacional. Sua pergunta é mais atual que nunca. Novamente, estamos vivendo situação de crise institucional. Outra vez, a possibilidade da ruptura está no horizonte. Mais uma vez, o futuro está sendo bloqueado.

    Quem dará o golpe no Brasil?

    Há mais de um projeto golpista.

    Nas últimas semanas, os generais palacianos foram com frequência às paginas da imprensa. Augusto Heleno e Eduardo Ramos ameaçaram explicitamente o país com golpe militar. Mourão defende o governo. Generais da reserva escrevem manifesto apoiando Bolsonaro.

    Militares da ativa ocupam o governo em centenas de cargos de segundo e terceiro escalões. Resta pouca dúvida de que os militares se tornaram os mais poderosos aliados do bolsonarismo.

    Mas esse casamento é recente. Nunca é demais lembrar que Mourão foi a última opção para a vaga de vice-presidente na chapa que venceu as eleições presidenciais de 2018. Bolsonaro tentou o centrão, tentou Janaína, tentou o sujeito que se diz príncipe. Tentou Magno Malta. Ninguém quis apostar. Ninguém levou fé em Bolsonaro. Magno Malta achou mais seguro tentar a reeleição para o Senado pelo Espírito Santo. Perdeu. Foi escanteado no governo. Se arrependimento matasse, o cabra já estaria morto e enterrado. Deve chorar em posição fetal todos os dias pela manhã.

    Ao longo do primeiro ano de governo, o núcleo ideológico foi hegemônico nas disputas internas e constantemente ofenderam e humilharam os generais. Chegaram mesmo a derrubar Santos Cruz, que comandava a pasta da Secretaria de Governo.

    Bolsonaro passou 2019 inteiro tentando tirar das Forças Armadas o controle sobre a comercialização de armas de fogo. O objetivo era claro: construir uma base armada miliciana que fosse capaz de sustentar um regime de força contra as instituições estabelecidas, incluindo aí as próprias Forças Armadas.

    O projeto golpista orgânico do bolsonarismo, portanto, é miliciano, é paramilitar. Ecoando a crítica da modernidade desenvolvida por Olavo de Carvalho na década de 1990, desde o primeiro dia de seu governo, Bolsonaro vem tentando armar suas milícias, construir sua tropa pessoal, encontrando nas PMs estaduais campo fértil para proselitismo ideológico. Isso fica muito claro na dinâmica dos protestos de rua que vêm acontecendo sempre aos domingos.

    As PMs são tchuchuca com os bolsominions e tigrão com os antifas.

    Mas nem tudo na vida acontece como o planejado. A ruptura com o PSL, a escalada crescente de reação por parte das instituições da República e o derretimento do apoio popular levaram o Bolsonaro a mudar a rota, não sem conflitos com o núcleo ideológico. O evento que marcou essa mudança de rumo foi a nomeação de Braga Netto para o comando do Ministério da Casa Civil, em fevereiro desse ano.

    Chegou-se a ventilar que Braga Netto seria o “presidente operacional” do Brasil, o que faria de Bolsonaro uma marionete manipulada pelos generais. Isso nunca aconteceu. Bolsonaro sempre foi o chefe do governo, e passou a fazer uso retórico da imagem das Forças Armadas, como quem diz “Não mexam comigo porque eles são meus amigos”.

    A crise com Sérgio Moro selou de vez a aproximação de Bolsonaro com os generais palacianos. Ao denunciar Bolsonaro, Moro colocou todos os ministros, incluindo os generais, no campo da prevaricação. Agora, mais do que nunca, Bolsonaro e os generais estão do mesmo lado, juntos contra o STF.

    Juntos irão até o fim. Se o fim vai ser a ruptura institucional, a derrocada, o sucesso eleitoral em 2022 é história ainda a ser escrita. Fato mesmo é que o governo se tornou um bunker onde Bolsonaro e seus generais resistem ao cerco institucional liderado por Celso de Melo, Rodrigo Maia e Alexandre de Moraes.

    As Forças Armadas não têm um projeto para o país. Foram reduzidas à constrangedora posição de guarda pretoriana de um governo formado por bandidos de baixo-clero. Com os generais montando guarda na porta do bunker, Bolsonaro tenta ganhar tempo para organizar suas milícias, mirando o golpe dos seus sonhos.

    Os generais da reserva, comandantes sem tropa, leões sem dentes, ameaçam a nação com um golpe porque estão até o pescoço atolados no esgoto bolsonarista.

    O bolsonarismo raiz vai construindo suas redes milicianas, apostando na sua agenda ideológica: transformar o Brasil num paraíso yankee tropical, com o Estado mínimo e a casa grande, com patriarcas armados, senhores da vida e da morte dentro de seus domínios, sem nenhum constrangimento institucional.

    Golpe miliciano e golpe militar-pretoriano. Dois projetos distintos. Bolsonaro está com um pé em cada barco.

    Em 1962, Wanderley Guilherme cravou: o golpe aconteceria, mas “por razões históricas” não seria um golpe militar, já que as Forças Armadas “jamais se projetaram como uma casta à frente da sociedade”. Na opinião do professor, seria um golpe civil liderado pelas elites entreguistas comandadas por Carlos Lacerda. No máximo, os militares escoltariam os golpistas civis, que seriam as mesmas elites que o PCB acreditava serem aliadas táticas no processo de modernização do Brasil.

    Como sabemos, Wanderley Guilherme errou na previsão. Acontece nas melhoras famílias.

    Hoje, parece claro que Bolsonaro tem duas cartas na manga, está investindo em dois projetos golpistas. Se vai dar certo não tem como saber. Golpe de Estado é operação complexa. A parte mais difícil de todo golpe de Estado é sempre o dia seguinte.

    Porém, a julgar pela radicalização dos conflitos entre o presidente e os outros poderes da República, acho improvável que não haja tentativa de golpe. Virou questão de sobrevivência para o bolsonarismo.

    Será golpe miliciano? Será golpe militar-pretoriano? A combinação entre ambos? Só o tempo dirá. É prudente evitar as previsões. Quase nunca a gente resiste à tentação.

     

     

  • Editorial – O “adulto na sala” ou ensaio para uma nova ditadura?

    Editorial – O “adulto na sala” ou ensaio para uma nova ditadura?

    O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, publicou na edição de ontem do jornal O Estado de S. Paulo um artigo de opinião intitulado Limites e Responsabilidades. No texto, o vice-presidente, que diversos setores da sociedade tentam vender como o “adulto na sala” e a opção “moderada” contra o governo de destruição nacional de Jair Bolsonaro, demonstra claramente não entender NADA sobre limites e responsabilidades. Ele ultrapassa todos os limites do cargo ao ameaçar, novamente, a imprensa, o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, os governadores dos estados que não estão alinhados incondicionalmente ao genocida que ocupa a presidência e até mesmo o direito de expressão individual de ex-presidentes da República. Portanto, Mourão não atenta à responsabilidade do cargo que possui atualmente e mata qualquer esperança de que numa eventual presidência pós-impeachment assumirá qualquer responsabilidade sobre os atos de Bolsonaro, a quem ajudou a eleger, sobre o apoio que segue dando ao genocida, ou mesmo sobre o papel fundamental de um governante que é unir a nação para resolver os problemas do povo.

    Ele ataca, mais uma vez, o jornalismo de modo geral ao dizer que “A imprensa, a grande instituição da opinião, precisa rever seus procedimentos nesta calamidade que vivemos. Opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação. Sem isso teremos descrédito e reação, deteriorando-se o ambiente de convivência e tolerância que deve vigorar numa democracia.” 

    Não, general, opiniões distintas NÃO devem ter o mesmo espaço quando se lida com vidas. Os jornalistas temos a responsabilidade de separar o que é fato, o que é opinião baseada em fatos e na ciência e o que é “achismo” ou declarações oportunistas de canalhas que querem se beneficiar do caos institucional sem se preocupar com as montanhas de cidadãos mortos. Se há intolerância na sociedade hoje, mais do que da imprensa a responsabilidade é de quem diz que os esquerdistas devem ser fuzilados e que torturadores assassinos são heróis, como fez o seu chefe e o senhor.

    As únicas frases corretas do texto estão no primeiro parágrafo: “Nenhum país do mundo vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil. Um estrago institucional, que agora atingiu as raias da insensatez, está levando o País ao caos”. No entanto, Mourão exclui do rol de limites e responsabilidades TODAS as ações do governo federal e joga sobre outros ombros a culpa pelo caos que vivemos, com perto de mil mortes diárias pela Covid-19 em números oficiais. Aliás, assim como seu ainda chefe, o general não fez qualquer referência no artigo ao sofrimento de milhares de famílias que perderam seus entes queridos, no dia em que o país somou oficialmente mais de 14 mil mortes. O tópico não faz parte dos quatro elencados por Mourão, mas e daí, né? Contudo, também a exemplo do chefe, o militar aproveitou o cargo no governo para dar o filé mignon ao filho, que foi promovido duas vezes no Banco do Brasil para ganhar mais de 36 mil reais.

    O estrago institucional em que estamos é consequência direta do golpe parlamentar/judiciário/midiático que tirou ilegalmente a presidenta Dilma Roussef do cargo. Quando um juiz de primeira instância grava e divulga ilegalmente uma conversa da presidenta e não é exonerado, há um enorme estrago institucional. Quando um ministro do STF impede que a presidenta escolha livremente um ministro da Casa Civil para se articular politicamente e impedir o impeachment, o golpe na institucionalidade é ainda maior. Quando um deputado federal vota pelo impeachment homenageando no Congresso um assassino e torturador e não sai de lá preso, a institucionalidade está ferida de morte. Quando um ex-presidente é condenado sem provas por “atos indeterminados” impedindo sua candidatura, rasgando até decisões em contrário da ONU e o ex-juiz responsável por isso vira ministro da justiça do candidato que beneficiou ilegalmente, é o fim da institucionalidade. Tudo o que temos hoje é fachada, é verniz, é disputa do butim. E os Jornalistas Livres avisaram disso em 2016.

    Mas, como disse o vice escolhido por ter feito em 2017 defesa enfática da ditadura de 1964 a 1985 e de uma intervenção militar, ainda “Há tempo para reverter o desastre. Basta que se respeitem os limites e as responsabilidades das autoridades constituídas” . Neste momento é passada a hora das autoridades constituídas assumirem suas responsabilidades dentro de seus limites. O Tribunal Superior Eleitoral, por exemplo, deve julgar urgentemente as eleições de 2018 e cassar a chapa eleita (Bolsonaro E Mourão) por caixa-dois e uso massivo de fake news como fartamente provado pela imprensa. O Supremo Tribunal Federal deve urgentemente votar a suspeição de Sergio Moro como juiz nos casos envolvendo Lula e anular a condenação do ex-presidente, como é consenso no mundo jurídico sério. O presidente do Congresso, Rodrigo Maia, deve escolher o quanto antes um dos mais de 30 pedidos de impeachment contra Bolsonaro e colocar em votação, já que não faltam crimes de responsabilidade provados. E mais, votar também a proposta de lei que exige novas eleições em 90 dias no caso de impeachment. Afinal, o país só poderá retornar à normalidade democrática quando de fato houver eleições limpas, com debates sobre projetos de governo e a presença de todos os principais candidatos dos partidos.

     

    Foto: www.mediaquatro.com

  • Estúpido homem branco

    Estúpido homem branco

    Por: Roberto Ponciano*

     

     

    Wilhelm Reich é, sem sombra de dúvida, um dos comunistas mais malditos na história. Com sua teoria do orgasmo, conseguiu ser odiado pelos nazistas, pela sociedade de psicanálise, pelo Partido Comunista Alemão e pelo Comintern, e quando se julgava tranquilo, já no período final da vida, cantou loas à “democracia estadunidense”, com certeza seu maior engano, e foi preso e assassinado com algum tipo de veneno numa injeção. Ele pintou com maestria o nazismo, a “praga psíquica” que assolava a Alemanha, em seu livro ‘Psicologia de massas do fascismo’, e mostrava que o nazismo não era um fenômeno puramente econômico, mas tinha suas raízes na miséria moral, no recalque, na violência, no ressentimento. O nazista é, por definição, o homem ressentido.

    O homem branco estúpido, com seu terror homossexual (medo psiquiátrico das próprias pulsões sexuais), seu ressentimento pela própria estupidez e deslocamento na sociedade, seu naufrágio num mundo de empregos precários, em que ele cada vez e menos faz parte de uma classe média brasileira que nunca foi uma classe média clássica, e cada vez e mais faz parte de um lumpesinato de serviços precários; mas que quer salvar-se desta deriva ao criar uma imagem narcisista no espelho de ser o descendente do colonizador branco.

    Estes milhões de lumpesinato pobre ou remediado, sem nenhuma perspectiva de futuro e nenhum projeto ideológico social, esta massa difusa e caótica, foi o público que o nazismo bolsonarista achou para crescer como cogumelo na chuva.

    Junta-se a isto igrejas da terceira onda neopentecostal, da teologia da prosperidade, que cada vez são menos igrejas e cada vez mais são partidos políticos ultrafascistas (de submissão das mulheres, homofóbicos, de pregação do medo ao comunismo imaginário). Estas entidades se organizam como verdadeiras células, bairro a bairro, rua a rua, e o que elas menos fazem é pregar a transcendência. Além da magia simpática mais primitiva, prometendo curas impossíveis, através de indulgências, o que elas fazem é criar uma ideologia na qual Deus é Mamon, é o capital, e numa estranha jogada de consórcio de Deus, onde pessoas compram a ajuda divina visando a ter sucesso pessoal e financeiro.

    Esta mistura bizarra é o combustível e o exército que anima o bolsonarismo, o nazismo brasileiro. E não nos iludamos, vai sobreviver a Bolsonaro. E vai sobreviver por um fato. Eles são ideológicos. O fascismo saiu do armário e assumiu todas as suas posições: a misoginia (pregada inclusive por “mulheres antifeministas” – o que corrobora o fato que além de Marx é necessário ler Freud e Reich para entender o nazismo), a homofobia, o ódio à esquerda, a mitologia louca de um nacionalismo sem projeto, que não vai além de vestir verde e amarelo e clamar contra o comunismo, ao mesmo tempo que se entrega todo patrimônio nacional. O fantasma do comunista andante imaginário os anima e os une, da mesma forma que na Alemanha Hitler criou o mito do comunismo andante.

    Por sua vez a esquerda não tem combatido o nazismo por três razões:

    Não nomeia o bolsonarismo como nazismo ou fascismo e é tímida em combater, por exemplo, pastores que transformam suas igrejas em partidos fascistas, porque, como esquerda eleitoral e com projeto alicerçado sempre no coeficiente eleitoral, tem medo de “magoar” eleitores que seguem pastores de política assumidamente fascistas, como Malafaia e Feliciano;

    De outro lado, como uma esquerda com um projeto puramente eleitoral, a resposta à radicalização da direita é tentar disputar votos sem “se mostrar ideológica”, mesmo frente a setores da direita cada vez mais radicalizados e definidos, porque organizados ideologicamente. Portanto, a esquerda não trava combate ideológico com estes setores;

    Como o projeto passou a ser puramente eleitoral, as máquinas partidárias da esquerda não se organizam mais territorialmente e não formam militantes. Pelo contrário, formam e conformam máquinas eleitorais que são preparadas para disputar eleições de 2 em 2 anos.

    Assim, a direita fica cada vez mais ideológica e organizada enquanto a esquerda brasileira é cada vez mais pulverizada, “horizontal”, desorganizada e doente do chamado cretinismo parlamentar. Vive quase que inteiramente para eleição, sendo sua base no movimento social apenas uma base de apoio para os movimentos eleitorais. Isso explica a falta de reação ao golpe contra Dilma e as dificuldades para organizar grandes ações de rua contra Temer e agora contra Bolsonaro.

    É óbvio que este artigo não tem como objetivo dizer que não devemos dar importância às eleições, não é um artigo de um esquerdista lunático que vive repetindo nas redes sociais “vamos para as ruas”, mas faz algumas constatações óbvias:

    A. A direita nazifascista organizou-se e veio para ficar. É ideológica, ainda que sua ideologia seja caótica e confusa, mas suas máquinas de fake news e suas organizações financiadas por empresários (Mises, MBL, etc), tem formado militantes orgânicos que retroalimentam suas fileiras, fora as organizações paramilitares milicianas ligadas ao bolsonarismo e as células de algumas igrejas que hoje são organizações políticas fascistas.

    B. A resposta da esquerda foi fazer “autocrítica” eleitoral e das alianças. Mas não basta para enfrentar esta onda. É necessário repensarmos a organização territorial e a formação de militância, inclusive de vanguarda política, com formação política pesada financiada pelos partidos, assim como a profissionalização da nossa rede da web (que está na pré-história da web), com pesado investimento nestas duas vertentes, para podermos voltar a disputar corações e mentes, de igual para igual com a direita.

    A precarização do trabalho cria um exército de lumpesinato desesperado facilmente capturável pelo discurso atávico e de medo do Bolsonaro, ou de salvação mágica de igrejas que hoje são suas aliadas. E nós não estamos oferecendo nenhuma alternativa a isto. Ou voltamos a fazer a disputa ideológica cotidiana, rua a rua, bairro a bairro, ou não construiremos jamais os sujeitos coletivos capazes de derrotar o nazismo, a hegemonia da direita (fascista ou não) e nos dar a possibilidade de conseguir uma hegemonia junto ao povo para voltar ao poder.

     

    *Roberto Ponciano é professor, filósofo, escritor e comunista.