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  • Justiça restaurativa: convite para transformação

    Justiça restaurativa: convite para transformação

    por Luís Bravo *

    Pluralidade de justiças e restauração

    No texto publicado em 09 de agosto último, por este Observatório do Judiciário, Denise da Veiga Alves e Giselle Mathias iniciam sua reflexão com a seguinte constatação: “naturalizou-se nomear o Poder Judiciário de ‘Justiça’.” De início, durante a minha época de estagiário de Direito, eu ficava perplexo em ver nas capas dos diversos autos que eu manuseava a palavra “Justiça Pública” no campo “autor(a)”, isto é, a parte responsável por ajuizar a ação criminal. Como que aquele grandioso ideal, fim mesmo do Direito como ciência e corpo normativo, há milênios objeto da exploração obstinada de filósofos, pensadores, militantes, enfim juristas de todos os cantos do mundo, se apresenta processualmente personificado nos autos de quase todas as ações criminais, reduzido a uma prerrogativa institucional para o exercício da pretensão acusatória? Pensava eu.

    Sob uma perspectiva mais pragmática, eu me via algo desmotivado na medida em que os réus defendidos por mim estavam colocados contra ninguém menos que a própria Justiça Pública. Isso me levava a ponderar como o apelo simbólico disso poderia se traduzir, como de fato se traduz, numa perniciosa desigualdade processual. É como se a mesma censura jurídica, resultante de uma decisão condenatória, já estivesse declarada desde o início, a despeito de qualquer devido processo.

    No final das contas, eu acabei, também, naturalizando essa referência parcializada à Justiça Pública, não sem, entretanto, trazer comigo um grande desconforto pelo testemunho, como advogado criminalista, de que a fisiologia do sistema de justiça criminal vigente alimenta ciclos viciosos de trauma e humilhação que perpetuam mais injustiças.

    Saber é uma atitude proativa (i)

    Na minha busca por possibilidades menos destrutivas de como se lidar com conflitos sociais, juridicamente rotulados como criminalmente relevantes, deparei-me com o conceito de Justiça Restaurativa. Desacompanhado de qualquer predicado, o significado mais corrente de justiça já traz consigo um peso retributivo: nos esquecemos com muita facilidade que isso é fruto de uma construção humana.

    A sacralidade mitológica a envolver o conceito retributivo de justiça, tão vivo na nossa cultura ocidentalizada, inibe olhares curiosos dedicados a uma exploração dos seus sustentáculos culturais.

    Indispensável nos propormos a uma reflexão baseada no reconhecimento de que o conceito de justiça, como qualquer um outro na infinitude do repertório linguístico humano, é uma construção cultural, e, por isso mesmo, temporário, impermanente, circunstancial. Isto é, contingente a contextos históricos.

    O ser humano produtor, ou perpetuador, de conhecimento está, sempre, inserido em um contexto cultural que o sustenta e o influencia. Por mais importante que seja a noção, ou noções, de justiça como (re)equilíbrio convivial, há de se atentar para tendências de imposições universais que, por se colocarem como conceitos absolutos, acabam justificando violências e autoritarismos. Acho importante ter-se consciência disso.

    Em 1973, ao apresentar uma crítica às formas e verdades jurídicas como relações de poder, Michel Foucault (ii) afirmou: “o próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história.”

    Diante da crise de legitimidade do sistema de justiça criminal, sinto uma urgência por se contextualizar historicamente o conceito de justiça retributiva para, desmistificando-a, abrir possibilidades para outras justiças, menos violentas e mais construtivas, benfazejas às necessidades humanas exteriorizadas em cada contexto conflitivo.

    He oikoumene ge (iii)

    Após a explosão de culturalidade do Paleolítico Superior, há uns 50 mil anos atrás, comunidades humanas passaram a se organizar em torno do poder do feminino. A fertilidade da terra, que provia vida, era representada por deidades femininas. A ordem social era matriarcal. Paz era resultante de constantes esforços para a manutenção de harmonia dos fluxos energéticos que regiam um ambiente ainda pouco compreendido. Nessa época, grande parte da orla oriental do Mar Mediterrâneo era composta por povoados matriarcais.

    Há, aproximadamente, 3 mil anos, a ascensão da cultura Greco-helênica. Ao mesmo tempo em que disseminava tecnologias inovadoras, no âmbito da linguagem, da escrita, da matemática, da geometria e da filosofia, ela, em grande parte, se baseava em visões de mundo patriarcais que, para a expansão do poder, via o diferente, o outro, como inadequado, inferior. A tensão dessa fronteira entre a cultura Greco-helênica e outras culturas se fazia clara na forma como, então, se descrevia a ideia de civilização: “a parte habitada do mundo” (he oikoumene ge). Ou seja, o mundo além dos limites, geográficos e culturais, conhecidos pelos gregos era tido como não habitado.

    O outro, para ser reconhecido humano, devia se submeter às leituras de mundo impostas pela expansão civilizatória Greco-helênica. Uma das formas mais sutis e, ao mesmo tempo, violentas de sustentar esse tipo de expansão dominadora era pela apropriação e distorção dos símbolos e mitos das culturas tidas como não civilizadas. Deidades femininas de povos matriarcais do mediterrâneo, que representavam paz pela fertilidade, luxúria, e a sazonalidade da mãe-natureza, sofreram dessa apropriação. Um grande exemplo disso são as horae, que em sua essência serviam a uma necessidade de organizar visões de mundo com base em representações dos ciclos naturais, mais especificamente das estações climáticas. Nomeadas, a partir de então, como horae, se tornaram filhas de Zeus e Themis, em número de três nas versões mais correntes: Eunomia (ordem); Eirene (paz); Diké (justiça).

    Iustitia: Diké de olhos vendados

    Constituído sobre o etos da guerra, que passou a predominar em quase toda região do Mediterrâneo, o Império Romano ascende apoiado no referencial cultural Greco-helênico. Ocorre, então, uma série de outras usurpações culturais. Dentre elas, Diké, de olhar altaneiro, espada e balança em riste, torna-se Iustitia, doravante com venda nos olhos, símbolo de uma institucionalização inédita: a da apropriação, pela autoridade imperial, das divergências e conflitos sociais para a prescrição de uma fórmula resolutiva com o intuito de se impor a violenta Pax Romana. Um modelo de perpetuação de dominação a serviço da preservação de privilégios por relações de poder. Um sistema de controle baseado em regras criadas, compiladas e aplicadas por um poder centralizado em homens, patriarcas, que se assumiam detentores de uma capacidade quase que sobre-humana para pronunciar o bom do mau, o certo do errado.

    A raiz etimológica ius significa depurar. (iv) A partir disso, Iustitia pode ser traduzida como o rito de tornar puro. Uma visão de mundo a reforçar o distanciamento do diferente tido como desviante, impuro, que facilita a desumanização para a inflição de violências supostamente expiatórias.

    Essa essência mitológica se faz presente na nossa atual realidade jurídica. Com 3,30 metros de altura a Iustitia zela pelo nosso Supremo Tribunal Federal, com a espada no colo e livre de qualquer balança: escultura em granito de Alfredo Ceschiatti.

    Para além de, não menos potentes, simbolismos, a seletividade e nocividade do sistema de justiça criminal vigente são escancaradas pelos altos índices de encarceramento, de letalidade policial, de mortandade policial, e por todos os efeitos colaterais decorrentes disso, como o problema do crime organizado e a própria criminalidade urbana. Kenarik Boujikian, desembargadora de uma câmara criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma com todas as letras: “A seletividade é um marco da justiça brasileira.”

    Justiças e Pazes

    O sistema de justiça criminal funciona como um monopólio de resolução prescritiva de conflitos. Desse modo, ele desconsidera a necessidade de as pessoas avaliarem as próprias dores e frustrações, conceberem as formas mais apropriadas para amainarem-nas e, então, vislumbrarem um sentido de paz verdadeiramente tangível e significativo.

    Com base em dado texto legal desrespeitado por uma conduta tida como criminosa, é colocado foco na pessoa do infrator para, declarando-o culpado, impor-lhe a punição prevista em lei. Geralmente assoladas por sensações de injustiça, insegurança, incerteza, as vítimas são postas de lado, meros anteparos para a deflagração de um portentoso aparato baseado numa mecânica aparentemente asséptica que objetiva a desumanização pela privação da liberdade e a estigmatização humilhante.

    Em virtude da nossa realidade relacional, o conflito é um elemento inerente à experiência humana. Subjacente a qualquer episódio conflitivo um complexo feixe de almejos e aflições que gritam por atenção. Queiramos ou não, toda essa complexidade precisa ser atendida e reelaborada. Nenhuma medida punitiva, por si só, dá conta disso. Ao contrário, seu caráter opressivo e não relacional contribui para a perpetuação de ciclos viciosos de (re)vitimização e de (re)traumatização.

    Cada situação conflitiva pede por um delicado e dinâmico equilíbrio entre justiça, segurança, verdade, harmonia, dentre outros almejos, a comporem uma paz possível a dado contexto e a dado momento. (v) O reconhecimento da pluralidade de justiças e pazes, para além de respostas institucionais preconcebidas, convoca o cuidado às necessidades humanas expostas e abre espaço a possibilidades de restauração.

    Ceticismo à alternativa restaurativa e o receio pelo novo, geralmente, está atrelado a um automático apego ao sistema vigente, frequentemente pelo desconhecimento de outras possibilidades de como se lidar com conflitos juridicamente rotulados como crime. Contudo, a resposta punitiva não é o único, muito menos o melhor, caminho para se lidar com conflitos.
    Ana Messuti, (vi) jusfilósofa argentina, exemplifica essa resistência por alternativas ao penal ao dizer que “precisamente porque a prisão restou como única modalidade da pena, pretende-se justificar a pena justificando a prisão.”

    Justiça restaurativa: convite para transformação

    Howard Zehr, (vii) acadêmico norte-americano, um dos pioneiros no movimento contemporâneo de Justiça Restaurativa, gosta de afirmar que “crime é uma violação de pessoas e de relacionamentos interpessoais”. Uma mudança de foco, da lei desrespeitada para os seres humanos afetados pelos efeitos destrutivos do conflito.

    Efeitos esses que, frequentemente, originam ou reforçam traumas que precisam ser cuidados para aplacar sensações, por exemplo, de insegurança, de medo, de vergonha, de ódio, de pesar. Tais necessidades são incomensuráveis: o critério de retribuição pelo sofrimento no qual se sustenta o Direito Penal é insuficiente, quando não contraproducente, para a efetivação de esforços transformativos.

    A partir da vítima, passando pelos círculos familiares próximos, pela comunidade mais expandida, e pela pessoa do ofensor, leva-se em consideração as necessidades de todos os envolvidos, incentivando a (co)responsabilização para a tomada de providências para tornar as coisas melhores.

    Ao lidar com o incomensurável, o esforço restaurativo se propõe à (re)construção dos significados afetados, um empenho imprescindível para o resgate de sentidos de vida abalados pelas consequências contundentes de dado conflito.

    Não se trata de uma inércia diante de condutas juridicamente classificadas como crime, mas de se honrar o dever de mobilização e de ação inspirado por uma ética de cuidado baseada no respeito às relações.

    De maneira abrangente, as práticas restaurativas dependem do provimento de espaços incondicionais para o acolhimento, a escuta e, possivelmente, o encontro entre as pessoas envolvidas em dado conflito para que protagonizem suas próprias transformações.

    Já são significativas as iniciativas no Poder Judiciário brasileiro que promovem metodologias de Justiça Restaurativa, especialmente no âmbito da Justiça da Infância e Juventude e dos juizados especiais criminais, como a mediação vítima-ofensor e os círculos de construção de paz, por exemplo.

    A meu ver, uma das maneiras mais profundas e empoderadoras de justiça restaurativa é a implementação de práticas comunitárias que, independentemente do sistema de justiça criminal, colocam esforços transformativos em prática, de maneira não-violenta, concretizando a preservação e o fortalecimento do tecido coletivo.

    Nesse sentido, o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo, um polo, na Zona Sul da cidade de São Paulo, de formação de facilitadores, de disseminação e de concretização de projetos de práticas restaurativas, promoverá o Fórum de Justiça Restaurativa Comunitária no Brasil entre 28 e 30 de novembro.

    • Luis Bravo é professor e facilitador. Atualmente integra a linha de Justiça Restaurativa do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo – CDHEP.

     

    Notas

    i Para essa reflexão, me inspirei, especialmente, nos pensamentos dos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, e dos filósofos Michel Foucault e Gianni Vattimo.

    ii Palestra proferida por Michel Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1973. Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2002. P 08.

    iii Para essa reflexão, me inspirei, especialmente, nos pensamentos do historiador Arnold Toynbee, da historiadora Barbara G. Walker, e de Florencia Benitez-Schaefer e Wolfgang Dietrich, de quem tive a honra de ser aluno no programa de mestrado em Estudos de Paz e Conflitos da Cátedra de Estudos de Paz da UNESCO, na Universidade de Innsbruck, na Áustria, em 2014 e 2015.

    iv Conclusão baseada no trabalho etimológico de P.G.W. Glare, de Douglas Harper, e de Santiago Segura Munguiá.

    v Uma paz que Wolfgang Dietrich descreve como transracional (Dietrich, Wolfgang. Interpretations of Peace in History and Culture. Houndmills, Basingtoke and Hampshire: Palgrave Macmillan, 2012).

    vi Messuti, Ana. O tempo como pena. Tradução: Tadeu Antonio Dix Silva, Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: RT, 2003. P. 46.

    vii Zehr, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução: Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. P. 31.

    1 Essa matéria recebeu o selo 040-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Haddad e os desígnios insondáveis da acusação

    Haddad e os desígnios insondáveis da acusação

    por Marco Aurélio de Carvalho *

    A verdade é sempre provisória. Assim caminham a ciência e o conhecimento. Valores éticos, sociais ou individuais desempenham papel importante na apuração dos fatos. Para afastar os valores, o ideal da imparcialidade requer vigilância constante. Até porque a isenção exige, à luz da realidade, a capacidade de examinar as evidências com a incorporação de todos os valores e de todos os interesses em disputa.

    Será tal exercício possível? A indagação é procedente na ciência, na apuração dos fatos jornalísticos e no terreno —hoje minado e controvertido— dos “veredictos” do Judiciário e dos órgãos auxiliares da Justiça.
    O avanço do ativismo judicial, amplamente denunciado por expressivos nomes do direito, com merecido destaque para Pedro Serrano, Lenio Streck, Leonardo Isaac e Rubens Casara, mostrou mais uma vez sua face perigosa nos últimos dias.

    Na sequência do noticiário informando que o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad poderia ser o candidato do ex-presidente Lula no pleito de outubro, o MP paulista passou a acusar Haddad de ter recebido pagamento para quitar dívidas de campanha –contra, inclusive, a robusta prova de inocência produzida nos próprios autos.

    Denúncia dirigida a interesses inconfessáveis e circunstanciais, cujo destino esperado é o arquivamento por “falta de justa causa”, inépcia ou por excesso de criatividade e ausência de fundamentação jurídica.
    Como escreveu o jornalista Alberto Dines (1932-2018), “a socialização do denuncismo não é prova de isenção, é a sua caricatura”. Os vícios de apuração da Promotoria raramente são captados de imediato.

    Os equívocos podem perdurar anos,

    arrastando personalidades para o limbo político,

    com prejuízos pessoais e eleitorais irreparáveis.

    Uma vez que as acusações são levadas ao conhecimento da sociedade, os efeitos do tribunal midiático são implacáveis. Para a imprensa, é natural que a autoridade constituída dispense a presença vigorosa do contraditório. Assim, ao emprestar credibilidade para a versão das autoridades, o outro lado é contemplado de forma burocrática e formal. Ao atingir com velocidade uma ampla audiência, a acusação adquire notável peso simbólico.

    A enorme responsabilidade de promotores diante do fato de que sua atuação desequilibra o jogo político deve merecer amplo debate, já que a premissa da imparcialidade esbarra no muro tênue das paixões, dos interesses, da coloração ideológica e da motivação política.

    Oculta sobre a blindagem do aparato da carreira de Estado —encorajada pela admiração da mídia e estimulada pela plateia ávida por “justiçamentos”—, a ação “moralizadora” de agentes de Estado segue colocando em risco a própria democracia. Para quem a compreende como valor absoluto, a pergunta persiste como desafio: de que modo administrar as preferências e valores individuais e como fazer a boa gestão das prerrogativas sem influenciar o jogo político?

    Imiscuir-se, sem transparência, nas preferências eleitorais pode revelar sinal de força no presente. Infelizmente, entretanto, o enfraquecimento dos pilares constitucionais das instituições será o legado para o futuro.

    *  Marco Aurélio de Carvalho é advogado, especialista em direito público e ex-coordenador jurídico do PT (2011-2017)

     

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 039-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • “Precisamos enfrentar essa casta”

    “Precisamos enfrentar essa casta”

    por Marco Weissheimer, para o Sul21

     

     

    Pela quinta vez em sua vida, Frei Sérgio Antonio Görgen adotou a greve de fome como uma forma de luta e de protesto.

    Desta vez, o frade franciscano e integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) integrou um grupo de sete militantes de movimentos populares (além dele, Jaime Amorim, Zonália Santos, Rafaela Alves, Luiz Gonzaga, Vilmar Pacífico e Leonardo Soares) que foi a Brasília fazer uma greve de fome cujo alvo de protesto foi o núcleo duro do Judiciário do país, o Supremo Tribunal Federal.

    A escolha do método da greve de fome para realizar esse protesto foi resultado de uma avaliação política. Frei Sérgio resume a lógica que regeu essa escolha.

    “Em toda a sua história no Brasil, o movimento social nunca tinha colocado o Judiciário como centro de suas reivindicações e de sua pressão. Até então, era sempre o Legislativo, o Executivo ou os dois juntos. Agora, foi a primeira vez que as baterias dos movimentos sociais se voltaram para o Judiciário. Escolhemos o método da greve de fome porque ele é um protesto silencioso não ofensivo, mas apelativo. Avaliamos que qualquer outro instrumento de pressão que costumamos adotar para o Executivo ou o Legislativo poderia se voltar contra nós”.

    Na chuvosa manhã de sexta-feira (31), Frei Sérgio recebeu o Sul21 na sede provincial dos franciscanos no Rio Grande do Sul, na zona sul de Porto Alegre, para fazer um balanço da greve de fome de 26 dias, a mais longa da qual já participou. Ele considera que o protesto cumpriu o papel a que se propunha: sensibilizar a população, confrontar o Judiciário e demonstrar que ele é o responsável principal pelo que esta acontecendo no país e pela continuidade do golpe. O frade franciscano saiu de Brasília com uma visão que define como “muito dura” sobre a experiência que teve no STF e sobre o papel que o Judiciário desempenha hoje no país:

    “O que não queríamos no Império se preservou no Judiciário. Um dos motivos que nos levou a criar a República hoje se preserva no Judiciário. Temos um grupo de famílias que se reproduzem lá dentro. Um exemplo disso é o desembargador Thompson Flores, presidente do TRF4. Temos aí uma relação de pai para filho que vem desde o golpe de 1964 e vai mais para trás ainda. O bisavô de Thompson Flores chefiou as últimas expedições para destruir Canudos. É uma família de elite anti-povo. Precisamos enfrentar essa casta”.

    (Vídeo com a entrevista no final da matéria)

    Sul21: Esta foi a sua quinta greve fome. Ela teve um elemento novo, que foi o questionamento do papel que o STF vem desempenhando no país. Neste período de 26 dias de greve de fome, como avalia o contato que vocês tiveram com o Supremo Tribunal Federal e alguns de seus ministros?

    Frei Sérgio Görgen: Esta foi a minha quinta greve de fome e foi a mais longa. Até então, a mais longa da qual eu tinha participado foi uma de 22 dias, em 1992, depois da crise da Praça da Matriz aqui em Porto Alegre, que foi acompanhada por uma onda de violência muito grande. Agora, a questão do Judiciário é uma novidade em todos os sentidos para o movimento social. Em toda a sua história no Brasil, o movimento social nunca tinha colocado o Judiciário como centro de suas reivindicações e de sua pressão. Até então, era sempre o Legislativo, o Executivo ou os dois juntos. Agora, foi a primeira vez que as baterias dos movimentos sociais se voltaram para o Judiciário. Mais do que isso, se voltaram para o núcleo duro das decisões judiciais e da capa de proteção do Judiciário. A nossa pressão foi dirigida ao STF, mais especificamente a seis ministros e ministras que votaram contra o habeas corpus para Lula.

    Escolhemos o método da greve de fome porque ele é um protesto silencioso não ofensivo, mas apelativo. Avaliamos que qualquer outro instrumento de pressão que costumamos adotar para o Executivo ou o Legislativo poderia se voltar contra nós. Além disso, vínhamos avaliando, desde março, que os métodos tradicionalmente eficazes quando o Judiciário não está cooptado por uma ideologia política não estavam mais fazendo efeito.

    A gota d’água foi o que ocorreu no dia 8 de julho, que ainda entrará para a história como o maior escândalo do judiciário brasileiro. Uma decisão de um desembargador de plantão, que poderia ser questionada ou mesmo revertida, foi desrespeitada. Houve quebra de hierarquia, juiz em férias entrando no processo e demandando o que não tinha autoridade para demandar, e outros desembargadores entrando em ação para desautorizar o desembargador plantonista que tinha poder efetivo naquele momento.

    Isso tudo ocorreu com o silêncio totalmente cúmplice do Supremo Tribunal Federal, indicando o sequestro da nossa mais alta Corte pelo golpe de Estado que está em curso no país. Nós não sabíamos qual seria a reação deles. A nossa greve de fome foi sempre um andar no fio da navalha.

    As togas se tornaram o motor dos golpes contra o povo e contra a democracia.

    “Se o Judiciário se desmoralizar totalmente, só restará ao povo retomar o poder originário”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

    Sul21: Como foi a reação dos ministros e ministras do Supremo diante da greve de fome?

    Frei Sérgio Görgen: Quem quebrou o gelo e temos um reconhecimento muito grande disso foi o ministro Lewandowsky. Ele foi o primeiro a nos receber logo nos primeiros dias da greve. Saiu da sessão que estava em andamento e nos recebeu dentro do salão nobre do STF. Escutou o que dissemos com muita atenção. Na sua resposta, foi extremamente formal, o que normalmente é o padrão da casa. Mas nos disse uma frase que até hoje considero meio enigmática: “vocês tenham um pouco de paciência porque a Justiça triunfará”.

    Depois, eu fui o único dos grevistas aceitos na reunião dos movimentos sociais com a doutora Cármen Lúcia, na presidência do STF. Além dos movimentos sociais, participaram dessa reunião representantes da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, artistas e o Nobel da Paz, Adolfo Peres Esquivel. Esquivel deu uma aula sobre como democracias estão sendo desmontadas no mundo e como as togas se tornaram o motor dos golpes contra o povo e contra a democracia. Ele citou o caso de vários países do mundo em que isso está acontecendo, incluindo aí o Brasil.

    Neste dia também, o que me impressionou muito foi a fala do Osmar Prado, artista consagrado nacionalmente. Ele perguntou para a ministra Cármen Lúcia, de maneira muito intensa e vibrante, utilizando todos os seus dons artísticos: quantos cadáveres ainda serão necessários para que vocês acordem? Já mataram Marisa Letícia, o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, a vereadora Marielle Franco…Quantas mortes serão necessárias ainda? Precisará um cadáver aqui na frente do STF também para que vocês acordem?

    Sul21: Qual foi a reação dela diante dessa pergunta?

    Frei Sérgio Görgen: Ficou muito tensa. Não sabia bem como reagir. Depois foi a minha vez de falar. Confesso que estava muito fragilizado emocionalmente naquele dia, que era o décimo quarto da greve de fome. Eu comecei pedindo que ela me desculpasse se eu usasse alguma palavra que não fazia parte do jargão daquela casa.

    Comecei dizendo para ela que, na nossa opinião, o artigo 3o. da Constituição, em seus quatro itens, que estabelece os deveres básicos do Estado brasileiro – salvaguardar a democracia, a soberania, erradicar a pobreza, combater todas as formas de discriminação e reduzir as desigualdades sociais -, estava sendo rasgado. Ela conhece bem esse artigo. Citou ele de cor.

    Rasgar a presunção de inocência é apenas uma conseqüência de rasgar o pilar central que estrutura a Constituição, a democracia e o Estado brasileiro.

    O que estamos vendo na rua, disse ainda para ela, é a fome voltando, o desemprego desgraçando milhões de vidas, epidemias já controladas retornando e a mortalidade infantil crescendo. Isso, pra vocês, dentro dessas paredes frias, é apenas uma estatística. Para nós, que não moramos em nenhum palácio e nem estamos protegidos por muros ao redor de casas de luxo, é uma realidade crua e dura.

    Eu mesmo não moro em uma paróquia de centro de cidade, mas sim em uma casa dentro de um assentamento. Para nós, essa realidade significa pessoas concretas que batem à nossa porta. Eu disse para ela que a coisa que fiz com mais dor na minha vida foi enterrar crianças que morreram de fome. Fiz isso muitas vezes em minha vida, em paróquias onde atuei e havia muita pobreza, como, por exemplo, em Tiradentes, no interior do interior de Três Passos.

    Contei que estávamos há dez anos em um conjunto de assentamentos em Hulha Negra, com cerca de duas mil famílias, sem que tivéssemos enterrado nenhuma criança que morreu de fome. Não quero voltar a enterrar criança, repeti e desabei chorando.

    “Ela não cumpriu a palavra. Lá na minha terra a gente chama quem faz isso de tratante”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

    Após me recuperar, coloquei a minha mão no braço dela e disse: doutora, tudo isso está acontecendo com a conivência de vocês. Vocês estão sendo coniventes com essa desgraça, não estão tomando as providências que cabem a vocês. Na sala onde estávamos, eu via o Congresso Nacional à esquerda e o Palácio do Planalto bem na minha frente. E eu estava dentro do outro poder, o Judiciário. Apontei para os prédios lá fora e disse que aqueles poderes estavam em frangalhos e não significavam mais nada para o povo. Seria uma desgraça para o país se vocês também se tornassem um poder desmoralizado, justamente o poder responsável por ser o guardião da Constituição. Estamos muito perto de chegar a isso. Vocês ainda podem evitar a desmoralização. Se isso não acontecer só restará ao povo retomar o poder originário.

    Eu disse para ela ainda que o Lula não é um mito para nós, mas sim é a esperança do povo encarcerada em Curitiba. Doutora, falei, ninguém precisa ser especialista em Direito para ver o que está acontecendo. Aquele apartamento pelo qual Lula foi condenado é um apartamento de terceira categoria. Por que ele iria se corromper por um apartamentinho daqueles. Além disso, sabemos que ninguém pode ser condenado por um ato de ofício indeterminado. Nós também sabemos como é a velocidade da Justiça brasileira, que é a velocidade de uma tartaruga manca. No caso do Lula, tem uma velocidade de avião a jato para conseguir condená-lo antes da eleição. Todo mundo está enxergando isso. Não é preciso ser nenhum especialista em Direito. E citei ainda o escândalo do que aconteceu no dia 8 de julho. Vocês devem ao Brasil colocar o Direito e a Justiça no seu devido lugar, acrescentei.

    O Esquivel me interrompeu, dizendo que gostaria que ela nos recebesse, ao que ela respondeu prontamente: recebo sim, ou aqui ou onde eles estão, se não puderem vir aqui por estarem muito fragilizados. Ela não cumpriu a palavra. Lá na minha terra a gente chama quem faz isso de tratante. Quem trata e não cumpre é tratante ou sem palavra.

    O Barroso não nos recebeu. Foi o tratamento mais formal e desrespeitoso que tivemos.
    A reação dela foi bem formal. Ouviu, disse que estava impressionada com os relatos, que iria levá-los em consideração, que iria ler o dossiê entregue pela Carol Proner. Depois não aconteceu nada. O jogo de pressões do outro lado também deve ter sido violentíssimo. Não dá pra confiar neste tipo de gente. Com todos os demais com quem tivemos contato, a reação foi semelhante. Eu disse a Rosa Weber que li a declaração de voto dela no habeas corpus do presidente Lula e achei incoerente. Tudo o que dizemos na rua, repetimos lá para eles e elas. Não tergiversamos. O Barroso não nos recebeu. Foi o tratamento mais formal e desrespeitoso que tivemos. Quem nos recebeu, de pé no balcão, foi a chefe de gabinete dele. Mas pelo menos alguém do gabinete dele nos recebeu. O Fachin, por exemplo, se negou a nos receber. Foram falas tranqüilas e serenas, mas sempre muito duras, confrontando eles com a realidade do país que deixaram que se criasse.

    Sul21: Que conclusões foi possível tirar a partir dessas conversas?

    Frei Sérgio Görgen: Minha conclusão mais dura é que, ou aquele Supremo é uma máquina de moer gente, ou aquelas paredes frias gelam o sangue dos que vão pra lá e matam a pulsação cardíaca deles. Viram mortos-vivos lá dentro, perdem a sensibilidade humana, o respeito por aquilo que eles assumem que é preservar a Constituição. Outra possibilidade é que eles são vítimas do moralismo que incentivaram e agora são reféns em função de deslizes morais que possam ter cometido e que são desconhecidos do grande público. Fala-se nos corredores da existência de dossiês nas redações de alguns jornais e TVs.

    “É uma família de elite anti-povo. É preciso enfrentar essa casta”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

    Outra conclusão é que, além de uma reforma política geral, precisamos fazer uma reforma muito profunda no Judiciário brasileiro. Se tivéssemos escolha dos ministros do Supremo pelo voto e um mandato fixo de, digamos, dez anos, quantos destes que estão lá retornariam ao cargo pelo voto. Eu acho que nenhum. Se é para errar, é melhor que erre o povo ao invés dessa forma de escolha. É preciso acabar com o caráter vitalício desses mandatos. Não é possível manter esse modelo onde as indicações se dão dentro da corporação, onde parentes indicam parentes e assim por diante. O que não queríamos no Império se preservou no Judiciário. Um dos motivos que nos levou a criar a República hoje se preserva no Judiciário. Temos um grupo de famílias que se reproduzem lá dentro. Um exemplo disso é o desembargador Thompson Flores, presidente do TRF4. Temos aí uma relação de pai para filho que vem desde o golpe de 1964 e vai mais para trás ainda. O bisavô de Thompson Flores chefiou as últimas expedições para destruir Canudos. É uma família de elite anti-povo. É preciso enfrentar essa casta.

    Sul21: Como foi o convívio entre vocês que participaram desses 26 dias de greve de fome?

    Frei Sérgio Görgen: A convivência entre nós foi muito fraterna. Nos juntamos por um conjunto de coincidências. Eu conhecia pessoalmente três integrantes do grupo que participou da greve. Os outros três eu conheci lá, mas houve uma química muito boa no grupo e não houve nenhum momento de tensão entre nós. Houve situações de divergência política quanto a alguns encaminhamentos, mas isso é normal. Os movimentos sociais têm métodos para resolver as divergências e não houve nenhum tipo de problema. Os últimos dias foram um pouco tensos. Estou com um problema no pé agora porque somatizei no lado mais fraco do meu organismo. Começamos a sofrer muita pressão externa de companheiros e familiares pedindo que parássemos a greve, que não queriam que morrêssemos, que precisavam de nós vivos.

    Sul21: Isso a partir de que dia, aproximadamente?

    Frei Sérgio Görgen: A partir do vigésimo dia. Os últimos seis dias foram muito tensos. Nós sabíamos que ainda havia algumas tarefas a cumprir com a greve de fome. Foi muito difícil. Nas outras greves havia uma certa blindagem disso. Nesta, como todo mundo tem acesso às redes sociais, era impossível evitar que as pessoas enviassem mensagens pelo whatsapp chorando.

    Sul21: Chegou a receber mensagens desse tipo?

    Frei Sérgio Görgen: Eu não. Eu administro essas coisas e já tinha a experiência de outras quatro greves de fome. Tenho um acordo com a minha família. A minha mãe já não é mais viva. Não sei como ela reagiria se estivesse viva. Já ia estar com oitenta e poucos anos. Nas outras, ela sempre reagiu bem. Fiz um acordo com meus irmãos e com meus sobrinhos e ficou tudo certo. A equipe que nos apoiou era muito boa. Tivemos uma equipe excelente de psicólogos lá de Brasília que apoiou as famílias. A equipe de cuidadores também era muito boa. E havia o grupo dos médicos que participaram desse trabalho, três deles de forma muito intensa, o Ronald, o Otávio e a Maria da Paz. O Frei Zanatta nos apoiou também. Além da água e soro, tínhamos um chazinho que nos ajudou. Mas ingerimos só esses líquidos nestes 26 dias.

    Alguns de nós estávamos no limite, não no limite físico, mas sim no emocional.

    Sul21: Como foi a decisão de encerrar a greve? Partiu de vocês?

    Frei Sérgio Görgen: A decisão partiu dos movimentos, que avaliaram que a greve já tinha cumprido seu papel e o que se podia esperar dela tinha sido alcançado: sensibilizar a população, confrontar o Judiciário e demonstrar que ele é o responsável principal pelo que esta acontecendo no país e pela continuidade do golpe. Não se alcançaria muito mais com mais alguns dias de sacrifício. Alguns de nós estávamos no limite, não no limite físico, mas sim no emocional. Pelo limite físico, talvez pudéssemos prosseguir mais algum tempo. O emocional é o fator preponderante neste tipo de protesto. O físico da gente vai se readaptando, principalmente se você toma regularmente o soro hidratante.

    “A disputa agora é nas ruas”. Foto: Joana Berwanger/Sul21

     

    Sul21: Em algum momento se para de ter fome, a sensação de fome?

    Frei Sérgio Görgen: No terceiro dia a sensação de ter fome não existe mais. Você vai sentindo fraqueza, dores, a boca vai ficando pegajosa, a língua parece que fica grande, o sono diminui, você se sente mais cansado, sente tontura quando levanta. Os sentidos ficam extremamente aguçados. A gente sentia cheiro de comida que as outras pessoas não sentiam. Mas isso não dava fome. A gente só sentia o cheiro mesmo. Devia ter um restaurante ali por perto.

    Sul21: E agora, quais são os próximos passos dessa luta?

    Frei Sérgio Görgen: A disputa agora é nas ruas. Nós consideramos aquela decisão da ONU como uma grande conquista. É um constrangimento a mais para eles. Depois que encerramos a greve de fome colocaram a questão do habeas corpus em debate de novo. Eles terão que se pronunciar sobre isso mais uma vez. Talvez a maior conquista que tivemos, que não é resultado isolado da greve de fome, mas sim da sequência de lutas populares no Brasil nos últimos anos, é a militância retomar as ruas com a cabeça erguida. A greve de fome não foi um ato isolado, mas fez parte dessa sequência de muitas lutas e atividades de rua, nas estradas, assentamentos, portas de fábrica.

    O 23 de janeiro, em Porto Alegre, um dia antes do julgamento do Lula, mobilizou cerca de 100 mil pessoas e não era mais só militância. Mais recentemente, tivemos o Festival Livre Lula Livre no Rio, que reuniu outras dezenas de milhares de pessoas. A marcha a Brasília, no dia do registro da candidatura do Lula, foi outro momento desses, onde só não foi mais gente por falta de recursos. O resultado dessa sequência de lutas está aparecendo nas pesquisas, inclusive com virada no Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo. Não é só mais o Nordeste.

    Temos uma demarcação muito clara hoje no país. Ou você é de extrema-direita ou você preserva um projeto civilizatório, com uma tendência de que o centro mais lúcido acabe se posicionando mais à esquerda. Durante a greve de fome, recebemos manifestações de apoio das comunidades mais longínquas do Brasil.

    Acho que agora eles não seguram mais essa avalanche pró-Lula ou pró quem o Lula indicar. Vai ser como fogo morro acima ou chuva morro abaixo. Passamos de um ponto de inflexão. Acho, inclusive, que as pesquisas não correspondem à essa realidade, inclusive no Rio Grande do Sul. Todos os relatos que recebemos apontam para isso. Eu mesmo tive experiências bem concretas desta nova realidade. E os relatos dos militantes populares nunca são relatos eufóricos, sempre buscando ser muito realistas.

    Os movimentos sociais e populares, que sempre estiveram nas ruas lutando, foram o núcleo duro de resistência que o golpe não conseguiu destruir e de onde ressurgiu essa força que hoje está virando o jogo.

    Notas

    1 Entrevista publicada originalmente  no Sul21 em:  https://www.sul21.com.br/areazero/2018/09/frei-sergio-o-que-nao-queriamos-no-imperio-se-preservou-no-judiciario-precisamos-enfrentar-essa-casta/

    2 Essa matéria recebeu o selo 038-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Terceirização no STF

    Terceirização no STF

    por José Eymard Loguércio *

    O Supremo Tribunal Federal, no dia 30 de agosto de 2018, ao decidir pela terceirização em qualquer atividade da empresa, aderiu, com sérias consequências para o futuro, à lógica de mercado, com ruptura do pacto constitucional de prevalência dos direitos sociais sobre os econômicos.

    O STF concluiu julgamento conjunto da ADPF nº 324 e do RE nº 958.252, considerando lícita a terceirização ou qualquer outra forma de organização da produção, independentemente do objeto social das empresas envolvidas no processo de descentralização produtiva, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante. Votaram no mesmo sentido os Ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia. Divergiram os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.

    Uma vez mais, no cenário jurídico constitucional, estiveram contrapostos a “modernização” das relações trabalhistas (tida como condição sine qua non para enfrentar a crise econômica e criar empregos) e o direito fundamental de quem trabalha a ter direitos e sobreviver dignamente.
    Venceu a primeira corrente, como, aliás, tem sido a tendência desde 2014. Em inúmeras oportunidades, em nome da teoria econômica do direito e da relatividade, o Supremo Tribunal Federal desconstrói o sistema protetivo dos direitos sociais no Brasil, negando sua qualidade de direito fundamental insculpido na Constituição Cidadã de 1988, esvaziando a norma de conteúdo.

    A gravidade desta última decisão consiste no fato de que o fenômeno que se legitimou subverte por completo a lógica do sistema protetivo do trabalho e transforma uma modalidade excepcional de relação de emprego em regra. Com isso, aumenta-se a rotatividade, os acidentes de trabalho, o assédio moral e as jornadas de trabalho; reduz-se salários; debilita-se a representação sindical e, consequentemente, o poder de negociação coletiva, além de se favorecer casos de fraude e impunidade para quem descumpre as leis trabalhistas no Brasil.

    A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia é contrária à locação de trabalhadoras e trabalhadores. Afinal, trabalho não é mercadoria. E, por isso, continuará empenhada para que o sistema de fiscalização e de Justiça no País combata os casos de fraude e garanta a isonomia salarial e condições de trabalho entre os trabalhadores, independentemente de sua forma de contratação.

    • José Eymard Loguércio é associado da ABJD e advogado no processo. Artigo escrito com colaboração de Fernanda Caldas Giorgi, associada da ABJD

    Notas

    1 Publicado originalmente em http://www.abjd.org.br/2018/09/terceirizacao-no-stf.html

    2 Essa matéria recebeu o selo 037-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • O papel da Lei da Ficha Limpa

    O papel da Lei da Ficha Limpa

    por Luiz Alberto Gomes de Souza

    Uma prisão e uma inelegibilidade intoleráveis

    Acabou, nas últimas horas do dia 31 de agosto, pouco antes de começar o horário gratuito obrigatório às 7 da manhã do dia 1º de setembro, a sessão do Superior Tribunal Eleitoral, com um desfecho previsto, que negou o registro da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência do Brasil, por estar condenado em segunda instância, caindo assim na rede da Lei da Ficha Limpa.

    A novidade foi que o ministro Edson Fachin saiu da legalidade intranacional em circuito fechado e abriu uma janela global, sinalizando que havia que levar em conta a recomendação de uma Comissão de Direitos Humanos da ONU, que indicava o direito do ex-presidente de ser candidato.

    Assim este, apesar de inelegível, paralisaria a decisão que negava o registro de sua candidatura até o julgamento do último recurso da condenação ser examinada pelo Supremo Tribunal Federal. Indicou Fachin: “Em face da medida provisória obtida no Comitê dos Direitos Humanos da ONU, se impõe, em caráter provisório, reconhecer o direito [de Lula] mesmo estando preso ser candidato”.

    Barroso mostrou a relevância da decisão do Comitê da ONU

    Meu mestre G. K. Chesterton disse que uma lógica afogada nela mesma, numa esfera circular fechada e irretorquível é sinal de insanidade. Neste nosso caso, o processo reiterativo e determinista foi rompido, com a introdução de uma variável externa. Isso trouxe inquietação aos analistas globais, que repisavam palavras do ministro Barroso, tentando abafar uma lufada de vento renovadora. A posição do juiz Fachin não foi apenas um voto discordante, mas colocou uma sinalização que saía da mesmice dominante. Aliás, o fato do ministro Barroso se deter longamente na decisão do Comitê da ONU mostrou, a contrário senso, a relevância da mesma. Não tivesse importância seria afastada com um simples parágrafo.

    A impressão que fica, para um observador atento, é que a análise de todo o processo equivocadamente parte da metade do caminho sem ir à origem do mesmo. Ali pontifica a decisão em segunda instância da IV Região de Porto Alegre, que referendou a condenação de Sérgio Moro e inclusive aumentou a pena. Uma segunda instância tem por finalidade analisar a sentença da primeira instância e, só depois de ouvir cuidadosamente as partes, ditar sua sentença.

    Ora, os juízes gaúchos (uma vergonha para nós seus conterrâneos), já traziam escritos enormes catataus de lambiscada sabedoria jurídica, com conclusões pré-determinadas, sem estar atentos ao contencioso levantado pelos advogados de ambas as partes. Como a rainha de copas da Alice de Lewis Carol, primeiro declararam a sentença já escrita e depois fingiram analisar o mérito. Tudo dentro das firulas legais formais, manchadas assim de irregularidades e de preconceitos prévios. A formalidade legal tentaria ser preservada, mas não escondia uma ilegitimidade de base.

    Impossível não ver o papel de Moro como executor de um programa previamente elaborado

    Um passo atrás e temos, no início, o julgamento de Sérgio Moro. A esta altura, em sã consciência, é impossível não ver seu papel como executor fiel de um programa previamente elaborado. E aí radica o vício de outra origem ilegítima.

    Toda a argumentação do juiz de Curitiba se assenta nas obras de um triplex que nunca foi propriedade de Lula, visitado talvez ocasionalmente por Marisa Letícia e que não interessou a nenhum dos dois. Em standby ficou o caso de um pequeno sítio de Atibaia, a ser lembrado se necessário.

    Antes de mais nada, espanta a dimensão ridícula dos possíveis crimes atribuídos a um presidente da república. Compare-se essa materialidade chinfrim com o que Temer recebeu no porto de Santos, Alckmin no transporte urbano de São Paulo ou o pedido sôfrego por dinheiro de Aécio. Os três seguem impolutos e intocáveis. Mas, é claro, para os setores de uma elite preconceituosa, um operário só poderia ter crimes à altura de sua insignificância. A que outra coisa aspirariam Lula e Marisa Letícia a não ser migalhas? No caso, com o agravante do triplex estar encravado na zona nobre de Guarujá. Já essas elites têm dificuldade de conviver num mesmo condomínio de luxo, com familiares de Ronaldo Fenômeno ou de Neymar Jr. A diferença é que estes últimos têm dinheiro a rodo, que tudo compra. Lula teria apenas a ambição modesta de um morador do ABC paulista.

    O próprio Moro falará de indícios esparsos e minúsculos, para chegar a uma condenação maiúscula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Indícios não são provas. Antes, o procurador Deltan Dalagnol, com uma teatralidade ridícula, trouxera para os meios de comunicação esquemas vazios de conteúdo, que colocavam Lula no centro de uma terrível armação criminosa.

    O impeachment baseado em argumentos inconsistentes e desproporcionais

    A própria materialidade era assim rala e inconsistente. Meça-se sua dimensão real e tudo cai como um castelo de cartas em parco equilíbrio. Mas é neste terreno movediço que se assenta instável todo o processo condenatório. Há exatos dois anos, Dilma Rousseff foi afastada da presidência, vítima da vingança de um Eduardo Cunha então poderoso, hoje atrás das grades. Os argumentos eram também inconsistentes e desproporcionais para a gravidade de um impeachment, as chamadas pedaladas fiscais, atrasos no repasse da União – usadas à farta por seus antecessores -, e dois decretos de crédito suplementar, para fazer frente a gastos urgentes.

    No caso de Lula, uma vez armado e azeitado o circo jurídico, toda a discussão daí em diante passaria a ser meramente formal: Lula, condenado em segunda instância, é inelegível, pela Lei da Ficha Limpa. Do ponCNBBnto de vista processual, essa conclusão passaria a ser considerada formalmente correta. Novamente a lógica de uma argumentação encerrada nela mesma. Foi quando entrou o elemento exterior de uma resolução internacional que, pelas mãos do ministro Fachin, rompeu esse círculo fechado e mostrou a fragilidade da argumentação e a má fé do ministro Barroso.

    A Lei da Ficha Limpa

    Mas vamos nos deter no papel da Lei da Ficha Limpa. Como diretor do CERIS, fui um dos que enviou, para os 5.500 mil municípios, listas para alcançar mais de um milhão de assinaturas. O movimento levou um certo tempo mas frutificou. Carrinhos cheios de calhamaços carregados de assinaturas, entraram parlamento a dentro, numa afirmação de democracia participativa que atropelava a tranquilidade dos lentos processos da democracia representativa. Pela magnitude do caso, não podia ser ignorada e, inclusive, poderia servir como boa publicidade para mostrar parlamentares atentos à moral e ao bem comum.

    Aqui temos o caso de uma Lei virtuosa posta a serviço de processos viciosos. As leis, por melhores que sejam, não vivem no abstrato, mas podem ser utilizadas pelos mais diferentes motivos. É uma enorme ingenuidade pensar que valem por elas mesmas. Numa sociedade de classes não há real isonomia universal, mas ela está minada por conflitos sociais. Será utilizada para as mais diferentes motivações e interesses.

    Vejamos alguns exemplos. João Capiberibe perdeu seu mandato no Amapá, por presumivelmente ter dado sapatos em período eleitoral, na compra de votos. O caso do Maranhão é escandaloso. Jackson Lago foi afastado do governo do estado por possíveis favores a familiares e, incrível, a perdedora, nada menos que Roseana Sarney, foi rapidamente empossada, sem chamar a nova eleição. E agora que Flávio Dino, pelas pesquisas, poderá ganhar ali no primeiro turno, uma juíza do interior o declarou inelegível por favorecimento municipal contra um cunhado de Roseana, novamente candidata a perder eleição.

    Assim, a lei da Ficha Limpa pensada, talvez um pouco ingenuamente, como um fator automático de aprimoramento democrático, vai sendo usada e abusada para as piores finalidades.

    A ética e a moral

    Aqui quero introduzir uma distinção entre ética e moral. A ética tem a ver com grandes princípios norteadores de um processo civilizatório. Ela não é estática, mas se explicita no seio de uma consciência histórica determinada. Assim, o princípio de democracia, na sociedade escravocrata de Atenas, é diferente daquele do mundo da gentry (os proprietários do capitalismo inglês), depois da Glorious Revolution de 1688. E também daquelas sociedades com sufrágio universal, ainda que atravessadas por desigualdades estruturais.

    Carlos Nélson Coutinho falou de democracia como valor universal. Porém esse valor não é um absoluto categórico abstrato, mas se concretiza numa determinada sociedade. E a consciência histórica vai evoluindo para explicitar novos valores, nem sempre pacíficos num começo: a igualdade de gênero, os direitos da multiplicidade dos mais diversos gêneros, etc.

    Mas a moral, normas de convivência social, é ainda mais colada a uma situação concreta. Coincidem num mesmo tempo as mais diversas e inclusive contraditórias morais. Vejam a moral corrente da Arábia Saudita diante de uma moral ocidental. Os setores dominantes usam, numa sociedade determinada, sua interpretação da moral para fortalecer sua hegemonia (“direção intelectual e moral da sociedade”, na definição de Gramsci).

    A moral pode inclusive descambar num moralismo caricato próprio de alguns setores de classe média, sensíveis ontem a um chamado da então UDN (“a eterna vigilância”), do Clube da Lanterna na origem do golpe de 1964, ou de um lacerdismo raivoso. Bolsonaro, hoje, é mais ambíguo, pois seu moralismo é ofuscado por forte intolerância e preconceitos.

    A impugnação da candidatura de Lula está a serviço de interesses muito concretos

    Por que digo tudo isso? O processo de impugnação da candidatura Lula, enrolado num processo legal bem azeitado, está claramente a serviço de interesses muito concretos. Usa-se a moral da Ficha Limpa, para justificar a desqualificação de um candidato insuportável para setores do poder. Mas o que assusta a esses ainda mais, é a amplitude do apoio popular crescente. Como armar barreiras jurídicas para detê-lo?

    O arcabouço jurídico não é estático, mas sujeito a pressões do interior da sociedade ou de seu exterior, como indicou o ministro Fachin, sobre a decisão do comitê dos direitos humanos das Nações Unidas. Ou o impacto de um manifesto dos mais importantes intelectuais do mundo inteiro em favor de Lula. O apartheid foi lancetado por uma pressão interna na África do Sul, mas principalmente por um movimento internacional.

    Como uma formalidade jurídica é posta à prova

    Como uma formalidade jurídica é posta à prova pela materialidade de um grande movimento histórico? Isso aconteceu no movimento abolicionista, em que a legalidade escravocrata foi derrotada por um anseio crescente de setores urbanos da população e pelos melhores intelectuais de seu tempo, de Joaquim Nabuco a Ruy Barbosa, passando pelos poemas de Castro Alves. Um movimento semelhante está em marcha, para além das próximas eleições, com Boaventura de Sousa Santos ou Leonardo Boff e as canções de Chico Buarque.

    Hoje, uma ampla aliança de setores populares, em comum com um pensamento progressista – desde que este rompa com pequenos dogmatismos – podem levar o Brasil a uma retomada de sua construção como nação. E a uma revisão em profundidade de uma juridicidade claudicante que vai sendo, aos poucos, superada por caduca e inconsistente, diante da grande ética contemporânea e de uma legitimidade democrática cidadã.

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 036-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

     

  • Com Dodge, PGR revive os tempos de “Gaveta” da República

    Com Dodge, PGR revive os tempos de “Gaveta” da República

    Da Redação Agência PT de Notícias

     

    Desde a posse, a procuradora-geral pediu o arquivamento de mais de quarenta inquéritos, a maioria envolvendo políticos do PSDB, PMDB e da base aliada

    O PT herdou dos tucanos uma Justiça enfraquecida. Órgãos fiscalizadores sem autonomia, Polícia Federal falida e um Procurador-Geral da República que ganhou a fama de “engavetador” por barrar qualquer processo que envolvesse o governo.

    Geraldo Brindeiro foi nomeado quatro vezes por FHC, contrariando o voto dos demais procuradores. Porém, o governo Lula mudou esse sistema tucano. Quando Lula assumiu a presidência, passou a vigorar um critério muito mais democrático: a lista tríplice. Tanto ele quanto Dilma sempre nomearam o procurador mais votado dentre os próprios procuradores.

    Depois do golpe, a escolha do Procurador-Geral da República deixou de obedecer a esse critério: Michel Temer ignorou o mais votado e optou por nomear Dodge como substituta de Rodrigo Janot. Em meio ao escândalo das delações de Joesley Batista, era esperada dela uma postura mais “discreta” em relação ao governo.

    Dois meses depois da posse, Dodge pediu o arquivamento 24 inquéritos de uma só vez,

    a maioria envolvendo políticos do PSDB, PMDB e da base aliada.

    De la pra cá, mais de dez inquéritos envolvendo figurões do MDB foram arquivados ou estão parados. A Procuradoria livrou Eliseu Padilha de ser processado por crime ambiental, arquivou uma investigação contra Romero Jucá parada há mais de 10 anos e outra contra o “angorá” Moreira Franco.

    Dodge também está segurando a denúncia contra Michel Temer no caso dos portos. A pauta pareceu andar nos primeiros meses com delações e pedidos contra aliados, mas estacionou depois que a PGR pediu, em fevereiro, que a investigação fosse prorrogada por mais sessenta dias. E anda sumida do noticiário desde então.

    A balança da PGR também é mais leve com o PSDB.

    No caso mais recente, Dodge ignorou a denúncia de irregularidades na chapa coligada a Geraldo Alckmin. Essa não é a primeira vez que o tucano é tratado com “republicanismo” pela PGR. Em maio, o vice de Dodge na procuradoria pediu para que uma investigação contra Alckmin – por suspeita de caixa 2 pago pela Odebrecht – voltasse à Justiça Eleitoral, livrando-o da Lava Jato.

    A PGR também arquivou denúncia contra Aloysio Nunes e livrou José Serra duas vezes de ser investigado: por caixa dois e recebimento de propina no Rodoanel. Também evitou que Beto Richa fosse investigado pelo massacre contra os professores no Centro Cívico, em Curitiba (PR).

    O único alvejado pela PGR foi Aécio Neves,

    embora a procuradoria não tenha feito qualquer objeção à sua candidatura em MG.

    Já a candidatura de Lula, o pedido de impugnação veio em tempo recorde.

    O voluntarismo da PGR só parece funcionar mesmo com as lideranças do PT. De treze manifestações de Dodge envolvendo o partido, o arquivamento foi solicitado apenas uma única vez. Dodge já advogou a condenação de Gleisi Hoffmann (em processo no qual ela foi inocentada por unanimidade), recorreu da decisão do STF que permitiu que José Dirceu aguardasse seu julgamento em liberdade e reagiu várias vezes contra os recursos de Lula no STF e no STJ.

    O caso do habeas corpus de Lula é o que melhor ilustra esse fenômeno. Dodge pediu a aposentadoria compulsória do desembargador Rogério Favreto do TRF-4 – que concedeu a liberdade a Lula no dia 8 de julho – , mas não apontou erros na conduta de Sérgio Moro, com o qual manobrou para impedir o cumprimento da lei: em entrevista ao Estadão, o chefe da PF revelou que ela ligou pessoalmente para coagir os agentes a não libertarem Lula.

    Por conta dessa atuação parcial escrachada,

    deputados do PT avaliam pedir o impeachment da procuradora. 

    “Para além de qualquer questão processual, esse episódio é a maior prova da seletividade e parcialidade dessa senhora”, opina o deputado Wadih Damous (PT-RJ).

    Ele também chama atenção para o silêncio de Dodge sobre a determinação da ONU para que Lula tenha todos os seus direitos como candidato garantidos. Histórica defesa dos tratados internacionais, ela não fez qualquer comentário sobre o caso. “Mostra que ela põe a conveniência política acima das convicções. Valem os acordos para qualquer caso, menos para Lula”, completa.

     

     

    Notas

    1 Matéria publicada originalmente em http://www.pt.org.br/com-dodge-pgr-revive-os-tempos-de-gaveta-da-republica/

    2 Essa matéria recebeu o selo 035-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.