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  • Lula deu um nó nas forças do golpe neoliberal

    Lula deu um nó nas forças do golpe neoliberal

    Artigo de Rodrigo Perez  Oliveira, professor de Teoria da História na UFBA, com foto de Francisco Proner

    Que Lula há muito tempo deixou de ser homem e se tornou uma instituição é consenso à direita e à esquerda. O que está em jogo, em disputa, é o significado da instituição, o que ela representa.

    Lula é o maior corrupto da história do Brasil ou a principal liderança popular que esse país já teve?

    A disputa está ai. No atual estado da situação não sobrou muito espaço para meio termo. Ou é uma coisa ou é a outra. Cada um que escolha seu lado.

    Na condição de instituição, todo gesto de Lula tem dimensão simbólica, é lido e interpretado por todos, por detratores e admiradores. Lula pega o microfone e o país paralisa em frente à TV. Os admiradores choram. Os jornalistas a serviço da mídia hegemônica silenciam. Ninguém fica indiferente a uma instituição desse tamanho.

    Lula sabe perfeitamente que está sendo observado, conhece muito bem o tamanho que tem e explora com extrema habilidade sua capacidade de fabricar símbolos.

    Aqui neste ensaio, trato de uma parte muito pequena da biografia de Lula, mas que talvez seja, na perspectiva simbólica, a mais importante. Talvez seja até mais importante que os oito anos de seu governo.

    Falo das 34 horas em que Lula esteve no sindicato dos metalúrgicos, sob os olhares do mundo, construindo a narrativa de seu próprio martírio.

    Não falo em “resistência”, pois desde a condenação no Tribunal da Quarta Região, em 24 de janeiro, que o destino de Lula já estava selado. Os advogados cumpriram sua função, recorrendo a todos as instâncias e tentando um habeas corpus, mas todos já sabiam que Lula seria preso.

    Por isso, seria ingênuo dizer que o que aconteceu em São Bernardo do Campo foi um ato de resistência. Lula é um político experiente demais para resistir em causa perdida.

    Alguns companheiros e companheiras, no auge da emoção, tentaram usar a força. Lula fugiu da custódia dos trabalhadores e se entregou à Polícia Federal, pois sabe que contra o braço armado do Estado ninguém pode. Lula sabe que aqueles que ali estavam eram trabalhadores e trabalhadoras, pais e mães de família. Não eram soldados. Não eram guerrilheiros. A resistência não era possível.

    Lula sabe que seria impossível sustentar aquela mobilização durante muito tempo e por isso não resistiu. Mas daí a se entregar resignado como boi manso para o abate a distância é grande, muito grande.

    Penso mesmo que Lula fez mais que resistir, já que a resistência seria quixotesca, irresponsável. Lula pautou a própria prisão, saiu da posição de simples condenado pela Justiça para se tornar o dono da narrativa. Lula foi sujeito do próprio encarceramento, deu um nó nas forças do golpe neoliberal.

    Muitos achavam que Lula deveria ter fugido para uma embaixada amiga e de lá partido para o exílio no exterior. Confesso que também pensei assim. Mas Lula é muito mais inteligente que todos nós juntos.

    Lula sabe que já viveu muito, sabe que não lhe sobra muito tempo de vida. O que resta agora é a consolidação da biografia, o retorno às origens, seu renascimento como ícone da esquerda brasileira, imagem que ficou um tanto maculada pelos oito anos em que governou o Brasil.

    É que no capitalismo não existem governos de esquerda. Governo de esquerda só com revolução e Lula nunca foi revolucionário, nunca prometeu uma revolução.

    Todo governo legitimado pelas instituições burguesas será sempre burguês. No máximo, no melhor dos cenários, será um governo de centro sensível às demandas populares. O lulismo foi exatamente isso: uma prática de governo de centro sensível às necessidades dos mais pobres. O lulismo transformou o Brasil pra melhor, com todos os seus limites, com todas as suas contradições.

    Mas para encerrar a vida em grande estilo carece de algo mais. Era necessária a canonização política. E só a esquerda canoniza líderes políticos. A direita é dura, cinza, sem poesia.

    O golpe neoliberal conseguiu reconciliar Lula com as esquerdas, o que há poucos anos parecia algo impossível de acontecer.

    É que pra ser canonizado pelas esquerdas nada melhor que ser perseguido pelo Poder Judiciário, habitat histórico das elites da terra. Basta lançar no Google os sobrenomes da maioria dos nossos juízes, procuradores e desembargadores e veremos os berços de jacarandá que embalaram os primeiros sonhos dos nossos magistrados.

    É claro que Lula não planejou a perseguição. É óbvio que ele não queria ser perseguido. Se pudesse escolher, estaria tendo um final de vida mais tranquilo, talvez afastado da política doméstica e atuando nas Nações Unidas. Mas já que a vida deu o limão, por que não espremer, misturar com açúcar, cachaça, mexer bem e mandar pra dentro?

    Lula fez exatamente isso: uma caipirinha com os limões azedos que seus adversários togados lhe deram.

    Primeiro, ele fez questão de esgotar todos os mecanismos legais. A sentença de Moro, os votos dos desembargadores, os votos dos ministros da Suprema Corte não são palavras ao vento. São “peças”, para falar em bom juridiquês, que ficarão arquivadas e disponíveis para a consulta, para análise.

    Imaginem só, leitor e leitora, os historiadores que no futuro, afastados da histeria e das disputas que hoje turvam nossos sentidos, examinarão a sentença de Sérgio Moro, verão que o juiz não foi capaz de determinar em quais “atos de ofício” Lula teria beneficiado a OAS para fazer por merecer o tal Triplex do Guarujá.

    É como se Moro estivesse falando: “Não sei como fez, mas que fez, ah, fez”.

    E o voto dos desembargadores do TRF-4, atravessados de juízos de valor, quase sem relar no mérito da sentença?

    E o voto de Rosa Weber? Por Deus, o que foi aquele voto de Rosa Weber?

    Sei que estou votando errado, mas vou continuar votando errado só porque a maioria votou errado. Uma maioria que só vai votar porque eu vou votar errado também.”

    Lula, ao se negar a fugir, obrigou cada um desses togados a deixar impressos na história os rastros da própria infâmia.

    Uma vez decretada a prisão, o que fez Lula?

    Deu um tiro no peito? Se entregou em São Paulo? Foi pra Curitiba? Fugiu?

    Não!

    Lula se aquartelou no sindicado mais simbólico da redemocratização brasileira, o sindicado que representa as expectativas que nos anos 1980 apontavam para um Brasil mais justo, mais solidário.

    No apogeu da crise que significa o colapso do regime político fundado na redemocratização, Lula decidiu encenar o seu martírio onde tudo começou.

    Naquele que talvez seja o último grande ato de sua vida pública, Lula voltou às origens.

    Protegido pela massa de trabalhadores, Lula não cumpriu o cronograma estipulado por Sérgio Moro. Cercado por uma multidão, o Presidente operário transformou o sindicato dos metalúrgicos numa embaixada trabalhista.

    A Polícia Federal, o braço armado do governo golpista, disse que não usaria a força. A Polícia Federal sabia que o povo resistiria, que sem negociação não tiraria Lula do sindicado sem deixar uma trilha de sangue.

    Lula negociou e, nos limites dados por sua posição de condenado pela Justiça, venceu e humilhou as instituições ocupadas pelo golpe neoliberal.

    Lula não estava foragido. O mundo inteiro sabia onde ele estava e mesmo assim o Estado brasileiro não foi capaz de prendê-lo no prazo determinado pela Justiça golpista. Durante um pouco mais de 30 horas, Lula foi um exilado dentro do Brasil, como se São Bernardo do Campo fosse um República independente, a “República Popular dos Trabalhadores”.

    Lula fez de uma missa em homenagem a Dona Marisa Letícia um ato político e aqui temos mais um lance simbólico do Presidente operário: restabeleceu as pontes entre a esquerda brasileira e a Igreja Católica, aliança que tão importante nos anos 1970, quando sob as bênçãos da Teologia da Libertação foi fundado o Partido dos Trabalhadores.

    No palanque, junto com o padre, estavam Lula e as futuras lideranças da esquerda brasileira. Lula dividiu seu espólio em vida, tomou pra si esse ato mórbido ao abençoar Boulos, Manuela e Fernando Haddad.

    Lula unificou em vida a esquerda brasileira. Não só unificou, mas pautou, apresentou o programa, cantou o caminho das pedras.

    Lula deixou claro que o povo mais pobre precisa comer melhor, precisa consumir, viajar de avião, estudar na universidade. Lula, o operário que durante a vida inteira foi humilhado por não ter diploma de ensino superior, foi o professor de milhões de brasileiros que sonham com um país melhor.

    É como se Lula estivesse dizendo: “Num país como o Brasil, a obrigação mais urgente da esquerda é transformar o Estado burguês em agente provedor de direitos sociais”.

    Lula discursou durante uma hora em rede nacional, se defendeu das acusações. Não foi uma defesa para a Justiça, mas sim para o tribunal moral da nação. Não foi um discurso para o presente. Foi um discurso para a história.

    Não, meus amigos, acuado pelas forças do atraso, Lula não deu um tiro no próprio peito.

    Lula mandou trazer cerveja e carne e fez um churrasco com seus companheiros e companheiras. Foi carregado pelos seus iguais, foi tocado, beijado. Saliva, suor, pele.

    Lula não deu um tiro no próprio peito.

    Getúlio é gigante, sem dúvida, mas também era herdeiro das oligarquias. Lula é o único trabalhador que, vindo da base da sociedade, conseguiu governar e transformar o Brasil. Lula já é maior que Getúlio.

    Diferente de Getúlio, Lula entrou pra história sem precisar sair da vida.

  • Lula fala ao povo: quando o discurso funda a História

    Lula fala ao povo: quando o discurso funda a História

    Por Rosane Borges***, especial para os Jornalistas Livres

     

    Dos discursos e seus ecos

    Seja pela vocação que têm para suscitar outros/novos modos de existência, seja por instituírem novas configurações da política, seja por inventarem novas bússolas para a travessia de nossas vidas, alguns discursos se consagraram na História como prenúncio ou advento de um “novo tempo, apesar dos perigos”.

    Num amplo arco, recordemos, entre tantas, algumas falas de repercussão sísmica, como o audacioso discurso “E eu não sou uma mulher”?, da estadunidense Sojourner Truth, ex-escravizada que demoliu a Women’s Rights Convention, em Ohio. Na ocasião, 1851, Truth questionou porque as mulheres brancas eram privilegiadas e as mulheres negras vistas como inferiores, intelectual e fisicamente, úteis somente para o trabalho braçal.

    Menção obrigatória deve ser feita também ao discurso de posse de Nelson Mandela (“Nosso maior medo não é sermos inadequados. Nosso maior medo é que nós somos poderosos além do que podemos imaginar. É nossa luz, não nossa escuridão, que mais incomoda…”). No mesmo diapasão, está o discurso memorável de Martin Luther King (“Eu tenho um sonho”).

    O celebrado “Saio da vida para entrar na História”, redigido na última linha da carta-testamento de Getúlio Varga endereçada ao povo brasileiro, é outro fragmento discursivo com desdobramentos importantes, especialmente para o próprio presidente, que escreveu o documento horas antes de se matar, em 24 de agosto de 1954.

    Com a missiva, Getúlio refunda a História, opera um movimento no sentido anti-horário em sua biografia, tonifica a memória sobre ele, convertendo significantes negativos em signos que favoreceram a reprojeção da imagem, então ameaçada, de estadista.

    Na atmosfera do golpe, compõe a galeria de exemplos a defesa da presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016, no Senado Federal. Embora Dilma não tenha proferido necessariamente um discurso, mas elaborado argumentos e contra-argumentos para sua defesa, pode-se destacar da sabatina a sua coragem em cair de pé, num jogo que já estava jogado. A presidenta não foi convencer as “Suas Excelências” de que era inocente, mas dizer a eles e ao povo brasileiro que tinha dignidade para olhar frontalmente em quem não tinha estatura, nem elementos, para efetuar sua condenação. Com a defesa, Dilma preparou uma memória futura para uma história que se encerraria de maneira infausta para ela.

     

    “A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês”

     

    Eis que em mais uma volta do parafuso do golpe de 2016, Moro decreta, em velocidade inédita, a prisão do presidente Lula logo depois de o recurso do habeas corpus ter sido negado pelo STF, na última quinta-feira, 5.

    Reafirmando que é dono do seu destino, Lula definiu, com altivez e serenidade, o momento de sua apresentação, deixando frustrada a turma de Curitiba, a mídia hegemônica (a Globo teve que engolir a única possibilidade de transmitir os acontecimentos pelas imagens da TVT) e os paulistanos agressores de panelas, no crepúsculo desta sexta-feira, 6. Em suma, colocou todos eles no bolso. Coisa de gênio!

    Mas o ponto alto da mobilização no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, que recebeu um mar de gente nestes dois dias (foi tudo muito lindo, há que se dizer), foi o discurso antológico de Lula, que pode ser comparado a um rio com múltiplos afluentes, por ser indutor de esperanças várias. Lula provocou estímulos inabarcavelmente amplos. De sua fala surgiram vários rebentos de maternidade/paternidade coletiva: assim como Luther King ele também sonhou (e realizou), falou do que assusta os inimigos, como mencionou Mandela, e não se curvou na derradeira hora, seguindo a atitude exemplar de Dilma Rousseff.

    O pronunciamento de Lula guarda semelhanças com a carta-testamento de Getúlio. Ambos nos ensinaram, a partir de ângulos diferentes, que é o discurso que funda a História e não o contrário. Tema espinhoso que habita os arredores da filosofia da linguagem, das teorias do discurso e da enunciação, o par discurso X história é próprio da luta política. Manejá-lo bem, é saber estabelecer parâmetros precedentes para o que se diz e, pela fala, restaurar a história e o movimento do mundo.

    A psicanálise nos ensinou que a realidade é o discurso, que o seu habitat natural é a linguagem. Mas os discursos e, portanto, as realidades que fundam e definem, não são quaisquer coisas: são articulações (relações) determinadas, estruturam o mundo histórico-social e são por ele estruturadas. Além disso, são passíveis de transformações e têm funções.

    Pode-se insistir, com razão, que ao contrário de Getúlio Vargas, Lula não opera um movimento anti-horário para dignificar o seu passado. Não. Ele não precisa disso. O seu pronunciamento exerce uma função indispensável num presente que prepara dias cada vez mais difíceis para todos nós: ele possibilita que voltemos a sonhar com um futuro em que prosperidade, justiça e igualdade sejam cimentos para a edificação de um outro país.

    Num mundo e num país poliperspectivamente partido, quando Moro anuncia que “já era” para Lula, eis que ele inverte, com o pronunciamento, os elementos dessa equação e anuncia que na verdade tudo só está começando. “A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês.”

    Vindo de onde veio, é um homem forte, audacioso que, na condição de prisioneiro político, coloca o judiciário brasileiro no subsolo da História, ao passo que o pé direito de sua edificação política ficou mais alto (mas as mãos que a construíram seguiram certamente à esquerda). Lula mitou again!

     

    veia neste link a transcrição, na íntegra, do discurso de Lula

    #LulaLivre

     

    ***Rosane Borges, 42 anos, é jornalista, professora universitária e autora de diversos livros, entre eles “Esboços de um tempo presente” (2016), “Mídia e racismo” (2012) e “Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004).

  • O lulismo e a candidatura Boulos

    O lulismo e a candidatura Boulos

    Ensaio de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Pinguim

    Já há algum tempo a crônica política anda bem animada nesse nosso simpático país tropical. Em ano de eleição, a animação vai ficando ainda maior, principalmente a essa altura do calendário eleitoral, quando as negociações pela formação das chapas ficam mais intensas.

    Neste ensaio, quero tomar a polêmica indicação de Guilherme Boulos como pré-candidato à Presidência da República pelo Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL, para examinar aquele que se tornou o mais valioso capital político da história do Brasil: o lulismo.

    Este texto, portanto, não é sobre o PSOL, partido político de reduzida importância no cenário nacional. Também aqui o PSOL é coadjuvante, é pretexto para uma reflexão sobre o lulismo. É isto: o que o leitor e leitora têm sob os olhos é um texto sobre o lulismo.

    Uma boa forma de começar é pelo começo, dizendo algumas palavras sobre as origens do lulismo.

    Já é bem conhecida pelos estudiosos da política brasileira contemporânea a hipótese desenvolvida por André Singer, importante cientista político. Para Singer, o lulismo nasceu em 2006, no segundo turno das eleições presidenciais, quando o presidente Lula enfrentou o tucano Geraldo Alckmin.

    Ali, naquele momento, ainda segundo Singer, aconteceu, pela primeira vez na Nova República, uma clara divisão de classe no mapa eleitoral: os mais pobres votaram em Lula. Teria surgido, assim, o lulismo como fenômeno político independente do PT e diretamente identificado com a liderança carismática de Lula.

    Quero discordar ligeiramente da interpretação de André Singer. Digo “discordar ligeiramente” porque a discordância é pontual e não substancial. Acho mesmo que Singer está certo quando identifica a existência do lulismo e o conceitua como um fenômeno político independente do PT e marcado pela liderança carismática de Lula. Porém, acho que Singer erra na cronologia e peca em não perceber o lugar do lulismo na história das ideologias políticas brasileiras.

    O lulismo, na minha interpretação, é mais que um fenômeno político independente do PT e marcado pela liderança carismática de Lula. O lulismo é a atualização do trabalhismo inventado por Getúlio Vargas e alimentado por João Goulart e Leonel Brizola.

    O lulismo não é exatamente uma novidade, pois suas premissas já estavam dadas no imaginário político brasileiro desde o final dos anos 1930. Por isso, acredito que o berço do lulismo não está nas eleições presidenciais de 2006, como afirma André Singer. O berço do lulismo está nas eleições presidenciais de 1998, quando após anos de tensão e conflito PT e PDT, Lula e Brizola, sentaram à mesa e lançaram uma chapa única. Foi nesse momento que Lula começou a entender que Brizola estava certo desde o início.

    O lulismo, então, é o encontro de Lula, a principal liderança popular que já tivemos, com o trabalhismo, o mais importante projeto de modernização e desenvolvimento independentes que já existiu no Brasil. É por causa dessa combinação que o lulismo se tornou o mais valioso capital político da história do Brasil. É esse capital político que o PSOL quer, simplesmente, jogar fora. Mas por quê? Respondo no finalzinho do texto.

    Resumindo meu argumento:

    O lulismo significa a maturidade política de Lula, que finalmente aderiu ao trabalhismo, ideologia que negou desde o final dos anos 1970. Pois sim, meus amigos, pode parecer estranho falar isso agora, mas o jovem Lula e o primeiro PT não queriam o trabalhismo, não reivindicavam a herança de Getúlio. Chamavam Getúlio de “populista”, “autoritário”, “ditador”. Foi por conta dessa rejeição ao trabalhismo que Lula e Brizola, o PT e o PDT, brigaram durante quase 20 anos.

    Mas qual era a diferença entre o primeiro petismo liderado pelo jovem Lula e o trabalhismo representado pelo velho Leonel?

    Fora as disputas por posições de poder características do mundo da política, a diferença é, sobretudo, conceitual. A diferença, que não é pequena, está no papel atribuído ao Estado.

    Para o trabalhismo, o Estado é o grande fomentador da modernização e do desenvolvimento nacional, funcionando como uma espécie de tutor da sociedade civil. Para o primeiro petismo, a sociedade civil deveria ser ela mesma a potência da modernização e do desenvolvimento. Com essas ideias, o primeiro petismo estava mais próximo do primeiro tucanismo, do PSDB, do que do trabalhismo. Parece loucura, né? Mas não é.

    Tanto o PT como o PSDB se transformaram ao longo dos anos 1990 e em pouca coisa lembram os partidos políticos que nos anos da redemocratização representavam as expectativas do campo político progressista. Mas isso é conversa pra outro texto.

    Retomando o fio…. O primeiro petismo, comandando pelo jovem Lula, sonhava com uma sociedade civil ativa, se organizando a partir das bases sociais e sendo capaz de pautar o Estado, de coordenar a ação do Estado. Já Brizola olhava com ceticismo para o sonho petista, como quem diz “essas crianças ainda não entenderam nada”.

    O primeiro PT, na voz de seus principais intelectuais (Marilena Chauí e Paul Singer, por exemplo), dizia que Brizola era um “caudilho personalista”, “filhote de ditador”. Brizola reagia, dizendo que o PT era a “UDN de macacão”. Talvez seja possível atualizar o gracejo de Leonel e dizer que hoje, o PSOL, que ao negar o lulismo nega também o trabalhismo, é a UDN de brinco e camisa florida.

    Piada boa é aquela que não perdemos. Enfim…

    O tempo passou e Lula perdeu eleições. Perdeu para dois Fernandos: o Collor e o Cardoso. O povão não votava em Lula e o PT era o partido que embalava os sonhos dos estudantes universitários e da classe média progressista. Em 1989, o povão preferiu Collor e em 1994 preferiu FHC.

    Mas como pode?

    É que aquele Lula era outro, era o jovem Lula.

    O jovem Lula era visto pelo povão como o operário agitador, analfabeto, cachaceiro, grevista. Lula era visto como símbolo da instabilidade.

    Definitivamente, o povão não gostava do jovem Lula. O povão gosta é do Lula maduro, conciliador, que escreve cartas pra acalmar as pessoas. É tolo quem acha que a famosa “Carta aos Brasileiros” de 2002 foi endereçada apenas ao mercado. Foi endereçada ao povão também. Tal como o mercado, o povão também quer estabilidade.

    Às duras penas, na experiência da derrota e da rejeição, Lula cresceu, amadureceu e entendeu o Brasil. Lula entendeu que o Brasil ainda era (e ainda é) uma nação de modernização incompleta, um país com mais de 5.500 municípios, com uma parte considerável de sua população morrendo de fome e sede. O Brasil é um país que ainda não conseguiu universalizar o acesso ao ensino médio.

    Num país assim, as pessoas mais pobres querem sobreviver, querem viver dignamente. E pra isso, o Estado é fundamental. Num país como o Brasil, o Estado é, antes de tudo, agente civilizatório e nenhum projeto político desenvolveu melhor o potencial civilizatório do Estado brasileiro que o trabalhismo.

    Num estudo sobre a reação da população do Rio de Janeiro à morte de Getúlio Vargas (em agosto de 1954), Jorge Ferreira, historiador e professor da Universidade Federal Fluminense, mostra que as pessoas identificavam o Presidente morto com uma vida melhor e mais digna. Não se trata de fanatismo, ou de populismo, tampouco de manipulação. É cálculo político.

    A população mais pobre sentiu, no dia a dia, que com o “Doutor Getúlio” no Catete a vida era melhor, que o prato estava mais cheio. A vida não melhora com a ação voluntariosa das elites, pois nossas elites, na feliz formulação de Jessé de Souza, são atrasadas, arcaicas. Tampouco a vida vai melhorar a partir de uma ação organizada pela massa de pessoas famintas e subnutridas. Essas pessoas morrem pouco a pouco, vendem no almoço pra comprar na janta.

    A vida melhora quando uma liderança progressista consegue ocupar um pedaço do Estado. Essa é a revolução à brasileira.

    Foi isso que o trabalhismo fez. Foi isso que o lulismo fez.

    Como no Brasil jamais existiu um Robespierre, como ninguém jamais cortou a cabeça das oligarquias da terra, o campo político progressista é sempre mais fraco, já que os filhotes das oligarquias ainda estão aí, ocupando quase todas as posições de poder da República. Por isso, carece de fazer alianças. Getúlio e Jango se aliaram com a burguesia nacional e com frações das oligarquias. Foram golpeados, mortos. Lula fez algo parecido e também está sendo golpeado.

    Mas golpe não significa uma completa marcha ré no processo histórico, ainda que sempre promova retrocessos. Mesmo com golpes e mortes, a vida da população mais pobre melhorou depois de Jango e Getúlio. Ainda que com toda a perseguição, a vida da população mais pobre melhorou depois de Lula.

    Por mais que os golpistas tentem, eles não conseguem passar uma borracha na história. Alguma coisa sempre fica, algo sempre sobrevive.

    O que estou querendo dizer é que em 1998, Lula entendeu que não adiantava esperar a “auto-organização da sociedade civil” e o “despertar de uma consciência política” em pessoas que estavam lá no sertaozão do Brasil, bebendo água contaminada e comendo lagarto. Era necessário ocupar um pedaço do Estado, custasse o que custasse.

    É certo que Lula e Brizola perderam as eleições e FHC foi eleito no primeiro turno, justamente porque encarnava o sucesso do plano real e a imagem da estabilidade econômica e do controle da inflação. Mas mesmo com a derrota, a aproximação entre Lula e Brizola, depois de tanta tensão, de tantos conflitos, apontava para algo novo na política brasileira. Ou melhor, para algo nem tão novo assim: era o início do lulismo, era a atualização do trabalhismo, era o “transformismo petista”.

    “Transformismo petista” é um termo que costuma ser utilizado de forma pejorativa, quase como sinônimo de traição. Discordo completamente, pois entendo o “transformismo petista” como o amadurecimento político de Lula, que se tornou o tipo de liderança que o Brasil precisa. Pode não ser a liderança dos sonhos da esquerda brasileira, mas é exatamente a liderança que o Brasil precisa.

    E a população mais pobre entendeu isso perfeitamente. Mesmo com quase quatro anos de intenso bombardeio midiático, Lula sobreviveu e partiria para a corrida presidencial com 35% dos votos. É muita coisa. Muita coisa mesmo.

    Lula sobreviveu porque tal como o “Dr Getúlio” personificou aquilo que é mais sagrado para os brasileiros e brasileiras mais pobres: a ideia da “vidinha digna”, sem grandes sustos, sem devaneios revolucionários. Apenas uma vidinha digna.

    Lula já está monumentalizado, para o desespero de seus detratores de esquerda e de direita. Ninguém mais no Brasil fará política no campo progressista sem reivindicar o legado do lulismo. O lulismo, tal como o trabalhismo, é insuperável. Qualquer avanço será feito a partir do lulismo, jamais contra o lulismo.

    Se é assim, por que o PSOL rejeita tanto o lulismo? Por que a simples a manifestação de Lula em apoio à candidatura de Boulos abriu uma crise interna sem precedentes na história do partido carioca?

    Nunca devemos subestimar a capacidade das lideranças do PSOL em serem incompetentes na interpretação da realidade. Mas não acho que a resposta esteja na incompetência, não dessa vez.

    O problema está na força de uma candidatura de Boulos apoiada por Lula. Boulos talvez seja a liderança brasileira que melhor fez trabalho de base nos últimos 20 anos. E Lula é o Lula. Sem dúvida, seria uma candidatura forte, muito forte.

    Com essa candidatura, pela primeira vez o PSOL seria competitivo numa eleição e correria risco de vencer. E se vencesse não teria mais jeito, não daria pra fugir: o PSOL seria obrigado a governar. E governar um país como o Brasil é difícil demais. É mais fácil ser pedra que vidraça.

    Referências:
    – FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
    – SINGER, André. Raízes sociais e ideológicas do lulopetismo. Novos Estudos: Novembro de 2009, n° 85
    – SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.