Jornalistas Livres

Tag: Frei Gilvander Moreira

  • A fogueira do Grande Inquisidor

    A fogueira do Grande Inquisidor

    Ao escrever O Grande Inquisidor, um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance “Os Irmãos Karamazov”, Fiódor Dostoiévski, em 1879, parece que estava revelando a Inquisição em pleno vapor no Brasil, em 2020, sob o arbítrio de muitos Grandes Inquisidores, disfarçados.

    Por Gilvander Moreira[1]


    Lobos em pele de ovelhas, com sede de sangue, continuam atiçando a fogueira da fome, na qual o estômago de mais de 10 milhões de irmãs e irmãos nossos ronca e faz o corpo tremer como se estivesse sendo eletrocutado por fios elétricos de tortura. Mães e avós muitas vezes têm que reprimir as lágrimas para não chorar na presença de filhos/as e netos/as implorando por um pedaço de pão. Centenas de agrotóxicos, que não são defensivos agrícolas, mas produtos tóxicos, injetam arma química no prato do povo brasileiro que, ao comer, está contraindo câncer, obedecendo cegamente os ditames de um mercado idolatrado. Agronegociantes com exagero de agrotóxico mandam para a fogueira do câncer mais de 700 mil pessoas por ano. Por ano, mais de 250 mil pessoas estão sendo mortas na fogueira da inquisição do câncer, epidemia causada principalmente pelo exagero de agrotóxicos e produtos enlatados. “Leite na caixinha é veneno puro”, me disse um trabalhador que trabalhou 18 anos em um laticínio de uma transnacional. Além disso, o agronegócio e seus executivos como Grandes Inquisidores seguem desertificando os territórios e empurrando os camponeses para as periferias das grandes cidades e jogando-os no meio de uma guerra civil não declarada. Agronegócio, um Grande Inquisidor, exterminador do futuro da humanidade.

    O Grande Inquisidor, em outras vestes e em faces metamorfoseadas no Brasil, também está instalado nas grandes mineradoras que como dragão do Apocalipse, de forma cruel e bárbara, seguem planejando e cometendo crimes/tragédias com requintes de crueldade, arrasando territórios, apunhalando as montanhas, exterminando as fontes de água e sacrificando rios e povos. Só em Minas Gerais, com mais de 300 anos de superexploração minerária, as empresas de mineração controlando o Estado deixaram um rastro de milhares de mortos, soterrados vivos ou morrendo um pouco a cada dia de silicose, depressão ou outras várias doenças contraídas em trabalhos extenuantes. Não podemos esquecer que dia 25 de janeiro de 2019, às 12h28, a mineradora Vale, assassina contumaz e reincidente, “sepultou vivos 272 filhas e filhos nossos”, clamam os parentes que sobrevivem vertendo lágrimas. Foi um crime/tragédia da mineradora Vale em conluio com o Estado, em Brumadinho, MG. Esse crime continua e cresce todos os dias. “Todo dia é dia 25” se tornou lema dos milhares de vítimas do Grande Inquisidor também instalado nos grandes projetos de mineração que tritura a mãe terra, superexplora a dignidade da pessoa humana e apunhala mortalmente a dignidade de todos os seres vivos.

    A Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, da CPT, desde 1997, demonstra que mais de 30 mil trabalhadores continuam anualmente submetidos à situação análoga à de escravidão. O pelourinho, o chicote e o tronco continuam violentando a dignidade humana em monoculturas da cana, do eucalipto, do café, de grandes projetos de mineração, na construção civil, na produção de roupas e calçados, em telemarketing etc.

    Por integrar uma das dez Comissões do CNDH[1] sei que são ameaçados de morte no nosso país milhares de militantes que lutam por justiça social e direitos humanos fundamentais. Perseguir, ameaçar e tentar tirar a paz e o sono de quem luta por justiça social são tarefas macabras cumpridas por jagunços, milícias armadas com a cumplicidade de um Estado que aplica o direito penal máximo para os empobrecidos e o direito civil/empresarial benevolente para as grandes empresas. Desde 1985, a CPT publica anualmente um grande livro intitulado Conflitos no Campo Brasil, que demonstra que nos últimos 46 anos, mais de 3.000 lideranças camponesas foram assassinadas pelo Grande Inquisidor latifúndio-latifundiário-agronegócio de várias formas: por degola, enforcamento, metralhados, fuzilados, em emboscadas, pelas costas, da garupa de um motoqueiro cúmplice etc. E, pior, há impunidade em demasia para os jagunços e principalmente para os mandantes. E há punição em demasia para os pobres, negros e juventude de periferia.

    Precisamos recordar uma característica fundamental dos Evangelhos da Bíblia, principalmente dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas): na primeira parte dos evangelhos sinóticos – 1ª fase da missão de Jesus Cristo -, a característica básica é a SOLIDARIEDADE, com ternura, compaixão e misericórdia. Entretanto, no meio da missão acontece uma “crise galilaica”: Jesus faz análise de conjuntura e descobre que está sendo ingênuo, pois mesmo fazendo os milagres no varejo, via processo de solidariedade, está aumentando o número de famintos, de paralisados, de cegados, de excluídos. Jesus percebe que precisa dar uma guinada no rumo da missão e passar a denunciar os podres poderes da religião, da política e da economia e quem reproduz estes poderes. Por isso, na segunda parte dos evangelhos sinóticos – 2ª fase da missão pública de Jesus -, a característica básica passa a ser LUTA POR JUSTIÇA. Jesus Cristo foi condenado à morte não apenas porque era solidário, mas principalmente porque lutou por justiça e, por isso, incomodou os podres poderes da religião, da política e da economia.

    A lógica de democracia formal e representativa é outro Grande Inquisidor do povo ao vender a ideia mentirosa de que basta votar em eleições com regras que beneficiam “os de cima” para se chegar à democracia real, econômica e social. Cruel ilusão, pois entra eleição e sai eleição e o tal de fulano ainda é pior …

    O sistema capitalista, máquina de moer vidas, é O Grande Inquisidor Mor, pois sequestra a terra no campo e na cidade em propriedade privada capitalista como base para promover o capital superexplorando a dignidade da pessoa humana, da classe trabalhadora e da classe camponesa. A manutenção da latifundiarização no campo brasileiro e da especulação imobiliária nas cidades são bases materiais objetivas – Um Grande Inquisidor Mor – que reproduz a inquisição, a repressão, a violência e o enforcamento do povo cotidianamente, de muitas formas.

    Na sociedade capitalista O Grande Inquisidor inquire, tortura, faz guerra e mata em nome de Deus. Eis um exemplo: um cozinheiro dos freis carmelitas, em Houston, descendente de latino-americanos, foi soldado dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Em julho de 1997, todo piedoso, com camiseta de Nossa Senhora de Guadalupe e escapulário no pescoço, toda vez que me via, pedia para eu o abençoar. Devoto piedoso, um dia me disse: “Na Guerra do Vietnã, eu era soldado paraquedista. A gente pulava do avião e já caía no meio de uma comunidade e eu, com a metralhadora na mão disparava à vontade. Só eu matei mais de 500 vietnamitas”. Quando o cozinheiro piedoso me disse isso, estarrecido, eu perguntei a ele: “Você não se arrepende de ter matado tanta gente?” Ele, altaneiro, me disse: “De jeito nenhum. Estávamos lá no Vietnã em nome de Deus, éramos os defensores de Deus. Guerreávamos contra os comunistas ateus e filhos do demônio.” O cozinheiro piedoso meteu a mão no bolso e me mostrou uma nota de dólar onde estava a inscrição “we trust in God” (Nós acreditamos em Deus). E acrescentou: “Se não fôssemos nós lá na guerra contra os vietnamitas, o demônio teria tomado conta do mundo, pois para eles “a religião é ópio do povo.” Naquele momento, percebi que os capitalistas se dizem pessoas religiosas, mas na prática são grandes inquisidores cotidianamente, abstratamente dizem que acreditam em Deus, na prática são idólatras, pois matam irmãos como Caim.

    Entretanto, a história demonstra que o Grande Inquisidor não tem a última palavra. Os Grandes Inquisidores são jogados na lata de lixo da história e quem faz e entra para a história são os torturados e matados pelo Grande Inquisidor. Nessa linha, o germe da revolução que superará o capitalismo, essa máquina feroz de moer vidas, está inoculado em Assentamentos para milhares de famílias acampadas na luta pela reforma agrária, está nas Comunidades Indígenas, Quilombolas e muitos outros Povos Tradicionais que enfrentam O Grande Inquisidor cotidianamente. Só em Belo Horizonte, nos últimos 13 anos, 30 mil famílias se libertaram da cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de favor construindo 30 mil casas em 119 ocupações, enfrentando o Tribunal, jagunços, tropa de choque, resistindo a despejos e construindo “debaixo pra cima e de dentro pra fora” uma cidade que caiba todas e todos. Assim como Jesus ressuscitou ao terceiro dia, todos/as que são submetidos a processos inquisitoriais também ressurgem, combatendo o bom combate e construindo esperança e lutas inspiradoras pelo bem comum. Sigamos na luta como discípulos/as de todos/as que foram vítimas do Grande Inquisidor, seja no poder religioso, político ou econômico

    22/10/2020

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

    [2] Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

    Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Francisco de Assis nos inspira e nos interpela – Por frei Gilvander – 20/10/2020

    2 – Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação. 16/10/2020

    3 – Dimensão social do Evangelho de Jesus e o lugar social do CEBI: LUTA POR JUSTIÇA. Por Frei Gilvander

    4 – Grande Live em defesa do Rio São Francisco: contra barragem de Formoso e usina nuclear – 05/10/2020

    5 – Contra todas as cercas: Homenagem a Pedro Casaldáliga. Por CPT, MST, MAM, CIMI, MAB etc. – 08/9/2020

    6 – Lagoa da Prata/MG: Águas secadas, monocultura e agrotóxicos/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/3a parte/9/18

    7 – Não jogue agrotóxicos na terra/agricultura familiar/agroindústria. Assentamento Padre Jésus. Vídeo 6

    8 – O que as mineradoras estão causando em Minas Gerais? Por Frei Gilvander, em Live, da ADUENF – 23/7/20


  • DEUTERONÔMIO: “Constituição de 1988” para o povo?

    DEUTERONÔMIO: “Constituição de 1988” para o povo?

    No Brasil, a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 pode ser vista como uma espécie de Livro do Deuteronômio na vida do povo brasileiro. Após muita luta social, resgatando a memória das lutas de resistência popular, o povo organizado, na luta, conquistou a inserção de vários princípios e regras na Carta Magna para garantir respeito à dignidade de todas as pessoas, tais como: ‘função social da propriedade’, ‘desapropriação de latifúndios que não cumprem sua função social’; forte ênfase nos direitos sociais, entre os quais estão: ‘o direito à educação, à saúde, à terra, à moradia, ao meio ambiente saudável e equilibrado’; princípios libertadores, ou seja: ‘respeito à dignidade da pessoa humana’, ‘direitos humanos’, ‘liberdade de expressão’, ‘espírito republicano’, ‘direito de manifestação’, ‘liberdade religiosa’; prescrição para se demarcar as terras dos Povos e Comunidades Tradicionais, tais como: ‘indígenas,’ ‘quilombolas’ etc.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Tudo isso está assegurado na Constituição Federal, mas a classe dominante, cotidianamente, mais do que impedir a efetivação desses direitos sociais, os destroem. A história demonstra que só com luta social permanente se conquistam direitos e se impedem retrocessos de direitos conquistados com suor e sangue pela classe trabalhadora. Se o povo se acomoda, vai sendo violentado aos poucos, até ser sacrificado.

    O livro do Deuteronômio contém narrativas de um povo comprometido pela ALIANÇA (BeRiT, em hebraico,) com Yahweh, Deus solidário e libertador, que “libertou do Egito o povo escravizado”. O fio condutor do Deuteronômio é um povo que busca, eticamente, colocar em prática o projeto de Aliança firmado entre eles, POVO escravizado por mais de 500 anos sob o imperialismo dos faraós no Egito, e o Deus YAHWEH, acima de tudo, libertador. Para isso, marcham no deserto por cerca de “40 anos”, a fim de conquistar uma “terra onde corre leite e mel” (Dt 26,9), e, no final, ao sopé do Monte Sinai, celebram a projetada Aliança.

    Por isso, o livro de Deuteronômio rechaça, com veemência, as práticas que se ancoram em imagens distorcidas de Deus: idolatria. Os redatores e as redatoras do livro de Deuteronômio são tão radicais contra a idolatria e percebem tão bem que os falsos profetas e os falsos pastores são propagandistas da idolatria, que alertam: “Não dê ouvidos a profeta que apresenta sinal ou prodígio. Mesmo que apresente prova, não dê ouvidos!” (Dt 13,2-4). Mais! Falso profeta não pode ser respeitado e nem tolerado: “O falso profeta deverá ser morto.” (Dt 13,6). É claro que não podemos entender esse versículo como uma autorização para pena de morte para os falsos profetas e falsos pastores, mas como um alerta para os estragos humanos e sociais que os mesmos causam no tecido social. O correto e ético é ‘puxar o tapete’ que sustenta esses falsos profetas e pastores, retirando deles todas as armas de morte que usam, com sutilezas, para enganar o povo, ao invés de cuidar desse povo injustiçado.

    O texto de Dt 15,12-18, que apresenta um ensino sobre a libertação dos escravos hebreus, retoma e desenvolve a lei que está em Ex 21,2-6; fazendo isso, porém, em linguagem que liberta e evangeliza, e não em linguagem legislativa.

    Quando um de seus irmãos, hebreu ou hebreia, for vendido a você como escravo, ele servirá a você durante seis anos. No sétimo ano, você o deixará ir, em liberdade. Contudo, quando você deixar que ele vá em liberdade, não o despeça de mãos vazias: carregue os ombros dele com o produto do rebanho de você, da sua colheita e de cereais e de uva. Dê-lhe de acordo com a bênção que Javé seu Deus tiver concedido a você. Lembre-se que você foi escravo no Egito, e que Javé, seu Deus, resgatou você” (Dt 15,12-15).

    O texto evoca um contexto do povo da Bíblia sobrevivendo em tempos de escravidão, sob relações sociais escravocratas, nas quais quem detinha poder econômico e político comprava pessoas como se fossem mercadoria e as escravizava. Vários povos dos tempos bíblicos foram escravizados durante uns 500 anos pelo imperialismo dos faraós no Egito, mas se libertaram por volta de 1200 antes da Era Comum. Após alguns séculos, foram escravizados novamente pelo Império Assírio, depois pelo Império Babilônico e, posteriormente, pelo Império Persa, Grego, Romano e, na sucessão da história, pelos impérios: português, espanhol, inglês, estadunidense, império das transnacionais etc., como assistimos hoje.

    Pela narrativa de Dt 15,12-15, os escravos são reconhecidos pelo autor de Deuteronômio como ‘irmãos’ e, surpreendentemente, inclui a perspectiva de gênero (‘hebreu’ ou ‘hebreia’). É inspirador ver no Deuteronômio o reconhecimento da igualdade de dignidade entre homem e mulher. Mesmo que o contexto seja de escravidão, o texto ensina que a escravidão não será “ad aeternum”: será apenas por ‘seis anos’. Ninguém nasce destinado a sobreviver, pela vida inteira, como escravo. Nascemos para a liberdade, mas não para uma liberdade abstrata. Liberdade, sim, mas com condições materiais objetivas capaz de efetivá-la.     

    A orientação para descansar no 7º ano, Ano Sabático, é oriunda da mística segundo a qual o Deus criador, após criar todas as criaturas nas ondas da evolução, descansou no 7º dia. Por isso, intui-se que Deus quer que descansemos no 7º dia. Daí decorre a orientação para deixar a mãe terra descansar no 7º ano, em uma perspectiva de agricultura ecológica. E após 49 anos (7 anos x 7 anos), no Ano do Jubileu, deve se fazer uma reorganização geral da sociedade: as terras compradas ou invadidas deverão ser devolvidas aos seus ancestrais, todas as dívidas devem ser perdoadas, as pessoas escravizadas devem ser libertadas e a sociedade deve ser revolucionada, para que todos e todas tenham condições materiais e objetivas de ‘ter vida e liberdade em abundância’.

    Cultivando essa mística, o livro de Deuteronômio alerta: “Não escravize ninguém para além de seis anos” (Dt 15,12a.18). “Liberte quem você escravizou, no sétimo ano.” (Dt 15,12b.18). Isso é anunciado de forma enfática, pois se diz em Dt 15,12 e se repete em Dt 15,18 na conclusão da unidade textual. No entanto, muito eloquente é o fato de que o livro de Deuteronômio não prescreve apenas libertação formal, que concede liberdade abstrata, mas que muitas vezes, até aumenta as amarras escravizadoras, como aconteceu no Brasil. Em 1850, 38 anos antes da Abolição formal da escravidão de milhões de negros escravizados, escravizou-se a terra, com a Lei 601, Lei de Terras, ao legislar, afirmando que a única possibilidade de acesso à terra seria por meio de compra. Criou-se, assim, o cativeiro da terra antes de acabar com o cativeiro dos negros escravizados. Procedendo assim, juridicamente se pavimentou a estrada para se criar outro tipo de escravidão sob a égide de liberdade abstrata e formal.

    Com a abolição formal da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888, os negros escravizados saíram de mãos vazias, sem jamais ter condições de ter acesso à terra, pois não tinham dinheiro para comprar nem mesmo um sítio. Consequentemente, de escravizados juridicamente se tornaram sem-terra, iniciando o que muitos chamam de escravidão moderna ou contemporânea, na prática, em muitos casos, até mais cruel. Como? Nos moldes de intensificação do trabalho por metas de produção, ganho por produção, trabalho intermitente, terceirizado, uberizado ou… sabe-se lá o que mais…

    Portanto, relacionando o Livro do Deuteronômio com a Constituição de 1988, reconhecemos a caminhada e a luta do povo como um constante êxodo, em busca de libertação, guiado por um Deus que, sendo Pai-Mãe, atrai, educa, é Deus-Amor, Deus-Libertador!

    Belo Horizonte, MG, 8/9/2020

     Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander – 15/01/2020

    2 – Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral – 18/6/2020

    3 – Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia – CEBI/MG – Parte I

    4 – Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa – Parte II

    5 – Livro do Deuteronômio – chaves de leitura – Mês da Bíblia de 2020 – por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

    5 – Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 – 02/2/2020

    6 – Livro do Deuteronômio – Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues – Entrevista completa

    7 – Live – CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020

    8 – Live – Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

  • Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: locomotiva da profecia

    Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: locomotiva da profecia

    Partindo de Belo Horizonte, MG, dia 27 de setembro de 2015, após 27 horas seguidas de viagem de avião, ônibus e automóvel, cheguei a Santa Terezinha, umas das cidadezinhas da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Por lá, durante cinco dias vi e ouvi muita coisa que merece ser partilhada em nome da responsabilidade que temos de honrar o imenso legado espiritual, ético, profético e revolucionário que Dom Pedro Casaldáliga nos deixou. Vi com os meus olhos, com a minha cabeça e com o meu coração.

    Por frei Gilvander Moreira[1]

    Eu já tinha ouvido dizer que a região de São Félix é conhecida como sertão. Vi que é um sertão diferente do mineiro e do nordestino e esta foi uma oportunidade de relembrar que não há sertão, mas sertões e que “os sertanejos são homens fortes”, conforme reconheceu Euclides da Cunha no livro “Os Sertões”.

    O estado do Mato Grosso era mato grosso, mas não é mais, porque “está sendo fritado em pouca gordura”: o estado mato-grossense está sendo despelado, desmatado impiedosamente. Lá, toda a cobertura vegetal que havia sobre a terra, cobrindo-a como a pele, está sendo arrancada com desmatamentos para dar lugar à pecuária e depois para as monoculturas da soja e do milho. O agronegócio vai sendo imposto e com ele resta um rastro de devastação. Nas estradas de chão batido, muitas carretas transitam levando commodities (grãos para exportação e para acumular capital) produzidas em solo que vai se tornando cada vez mais pobre. Nas veredas e no cerrado, ainda existem, é possível ver a presença de muitas árvores de caju, pequi e buriti. “Onde a gente vê reserva florestal é terra indígena. O que não é terra indígena já foi tudo derrubado e transformado em pastagens e depois em lavoura de monocultura. Não sei para que índio precisa de tanta terra,” comentava uma gaúcha no ônibus da empresa Xavante, empresa com nome indígena, mas de propriedade de brancos enriquecidos.

    Meu sangue ferveu de ira ao ouvir um trabalhador negro, no pequeníssimo aeroporto da pequena cidade de Confresa, dizer: “Porcaria de índio.” Ouvi falar que muitos fazendeiros dizem: “Índio bom é índio morto” e que um grande político – coronel moderno – foi aplaudido em praça pública ao dizer: “Índio não precisa de terra, pois não trabalha”. Os mesmos que apunhalam os povos indígenas, a começar pela linguagem preconceituosa, grilando suas terras, são os mesmos que já gritaram muitas vezes: “Fora, dom Pedro Casaldáliga!” “Fora, Prelazia de São Félix!” Um fazendeiro perguntou a um padre recém-chegado para ser missionário na Prelazia: “O senhor é contra ou a favor do progresso?” E ameaçou: “Se for um dos nossos, será bem-vindo! Se não …!”

    Meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das Irmãzinhas de Jesus e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Vi um grande grupo de indígenas delimitando seu território reconquistado, fazendo cerca na divisa com um megalatifúndio. À beira de uma estrada federal ainda sem asfalto e toda esburacada, vi ruínas de um lugarejo que a Força Nacional e o Exército puderam, durante o governo de Dilma Rousseff, devolver o território aos povos indígenas. “Vieram e disseram para as famílias que quem aceitasse sair espontaneamente das terras indígenas ganharia um lote de terra em outra localidade próxima, mas quem não saísse seria expulso após seis meses. Assim aconteceu,” me informou um agente de pastoral.

    Passei ao lado da Fazenda Rio Preto com uma grande fachada e segurança privada na entrada. “Essa fazenda tem 100 mil hectares. O dono cria 200 mil bois aí”, me informaram. Ao lado dessa fazenda está o território do povo indígena Xavante, com 160 mil hectares para 1400 indígenas. A Força Nacional e o Exército estiveram na área em 2012 para desentrusar fazendeiros que grilavam terras indígenas e derrubaram muitas casas de “brancos” que foram construídas na área indígena. Muitas pessoas dizem que os indígenas têm muita terra, mas não acham que 100 mil hectares para um só “branco” seja injustiça agrária e social.

    O agronegócio avança como um tsunami, mas deixa atrás de si um rastro de destruição: áreas devastadas, nascentes exterminadas, terra, ar e águas envenenadas pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e trabalhadores submetidos a situações análogas à de escravidão, isso para citar apenas alguns dos prejuízos causados pelo agronegócio. Foi na Prelazia de São Félix que iniciou a Campanha Permanente contra o Trabalho Escravo, uma das atividades da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizados nas lavouras vai parar nos cursos d’água. Morre muito peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.” A UTI mais próxima está em Cuiabá, MT, ou em Goiânia, GO, distante de 1000 a 1500 Km. Para se tentar salvar alguém em situação grave só por meio de taxi aéreo, que custa cerca de 15 mil reais.

    Acima das coisas que vi com meus olhos, minha cabeça e meu coração, vi a eloquência do testemunho espiritual profético de dom Pedro Casaldáliga, que segue irradiando espiritualidade profética, agora partilhando vida em plenitude, após os últimos anos em que esteve sentado em uma cadeira, ou deitado em uma cama, na companhia do mal de Parkinson???, de três bons samaritanos – padres agostinianos – e de três anjos/as que o acompanhavam diariamente. Vi a paixão, a simplicidade, a humildade e a profecia presente em toda a equipe de agentes de pastoral da Prelazia de São Félix: leigos/as, freiras, freis, padres e o bispo dom Adriano Ciocca, todos/as missionários/as, de mãos dadas tocando em frente o legado espiritual e profético da Prelazia e abraçando os novos/velhos e grandes desafios da hora presente.  Obrigado a todos/as que me acolheram na fraternidade e por tudo o que me ensinaram em poucos dias de intensa convivência em retiro na Casa de Pastoral de Santa Terezinha, às margens do rio Araguaia, onde tive a oportunidade de tomar um banho e contemplar o irmão boto e toda a sacralidade do ambiente. Não foi por acaso que “Trovas ao Cristo Libertador”, escrito por dom Pedro Casaldáliga (e musicado por Cirineu Kuhn), tornou-se o hino da Prelazia São Félix do Araguaia: naquele lugar sagrado, da fé no Deus da vida, da espiritualidade libertadora, da luta e da esperança ativa germina, brota e floresce ressurreição!

    “Trovas ao Cristo Libertador”
    Dom Pedro Casaldáliga

    Olhar ressuscitado, todo o teu Corpo
    acompanhando a marcha lenta do povo.

    Todo Tu debruçado, como um caminho,
    traçando em tua Carne nosso destino.
    No azul do Araguaia os roxos medos,
    no sol de tua glória nossos direitos.
    Sangue vivo no verde das índias matas,
    faixas gritando viva a Esperança!

    Procissão de oprimidos, rezando lutas,
    e Tu, Círio de Páscoa, flor de aleluias.
    Páscoa nossa imolado, em Ti enxertamos,
    como Tu perseguidos, por Ti triunfamos.
    Libertador vencido, vencendo tudo,
    companheiro dos pobres, donos do mundo.

    Guerrilheiro do Reino, maior guerrilha,
    Tua cruz empunhamos em prol da vida.
    Nossos mortos retornam, com nossos passos,
    em teu Corpo vivente ressuscitados.
    Em Ti, cabeça nossa, Libertador,
    libertos, libertando, erguemo-nos.

     ———————–

    Sigamos de cabeça erguida, firmes na luta! Viva a Esperança![2]

    25/8/2020.

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Poema “Trovas ao Cristo Libertador“, Dom Pedro Casaldáliga, hino da Prelazia de São Félix do Araguaia.

    http://gilvander.org.br/site/poema-trovas-ao-cristo-libertador-de-dom-pedro-casaldaliga-musicado-por-cirineu-kuhn-hino-da-prelazia-sao-felix-do-araguaia/

    2 – PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA – Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga – 08/8/2020

    3 – Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga: místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020

    4 – “Dom Pedro Casaldáliga vive para sempre em nós” (Padre Júlio Lancellotti) – Pai Nosso dos Mártires.

    5 – Dom Pedro Casaldáliga, o Profeta que viveu e lutou entre nós, faz sua Páscoa definitiva – 08/8/2020

    6 – Missão de Dom Pedro Casaldáliga em Documentário da Verbo Filmes – 2011: Espiritualidade libertadora


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; natural de Rio Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra), do CEBI/MG (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), do SAB (Serviço de Animação Bíblica) e de Movimentos Sociais de luta por terra e moradia; e-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br  – www.twitter.com/gilvanderluis  – Facebook: Gilvander Moreira

    [2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

    Na foto de cima, Dom Adriano Ciocca e Dom Pedro Casaldáliga

  • Dom Pedro Casaldáliga e o Quilombo Campo Grande do MST em Minas

    Dom Pedro Casaldáliga e o Quilombo Campo Grande do MST em Minas

    Diante de Dom Pedro Casaldáliga, precisamos “tirar as sandálias”, pois estamos diante de alguém sagrado, místico no verdadeiro sentido, porque se tornou profeta, bom pastor, além de poeta. Marcou-me muito as 12 vezes que tive a alegria e a responsabilidade de estar com “o bispo vermelho”.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Conheci Dom Pedro Casaldáliga em 1985, enquanto ele dava uma palestra no Studium Teológico, em Curitiba, PR. Fiquei impressionado com aquele homem franzino, mas que com língua afiada, dedo em riste, olhar vibrante, utopia da terra sem males no coração, profetizava dizendo: “Se eu tiver que escolher entre o amor e a justiça, ficarei com a luta pela justiça, pois em uma sociedade estruturalmente injusta não basta amar no sentido de solidariedade”.

    Marcou-me muito a segunda vez que estive com Dom Pedro Casaldáliga, no Memorial da América Latina, em São Paulo, SP. Dom Pedro, com amor infinito por todos os povos latino-americanos, bradava: “Temos que construir a Pátria Mãe, a América AfroLatÍndia, pois nossa América não é apenas latina, é principalmente indígena e afrodescendente. Somos povos irmãos. Não podemos ficar olhando para Europa e Estados Unidos e de costas para os povos da Pátria Grande, nossa América AfroLatÍndia. Somos povos irmãos, porque fomos vítimas de genocídio indígena e de escravização pelos opressores europeus. Que maravilha o esplendor cultural existente na nossa Pátria Grande e Mãe.”

    Em 1992, Dom Pedro, de surpresa, chegou a São Paulo, na celebração dos 60 anos de Frei Carlos Mesters. Chegou carregando um grande pote e, retirando de dentro do pote uma Bíblia da edição Pastoral, dizia: “Frei Carlos Mesters é presença do Deus da vida no nosso meio que retira do baú, do pote, coisas velhas que são coisas da vida e da caminhada. Carlos Mesters democratiza o acesso aos textos bíblicos ao nos ensinar a fazer leitura bíblica de forma comunitária, ecumênica, transformadora e militante. Quem não leu ainda deve ler todos os livrinhos do frei Carlos Mesters. Seus textos, frei Carlos, nos ajudam na caminhada de enfrentamento ao latifúndio, na Opção pelos Pobres, na luta pela terra e pelos direitos dos povos indígenas.”

    Inesquecível também o protagonismo de Dom Pedro Casaldáliga no 10º Intereclesial das CEBs, em Ilhéus, na Bahia, em julho de 2000. Irradiando espiritualidade, ecumênica e macroecumênica, Dom Pedro bradava profeticamente: “Nosso sonho, nossa utopia, é a terra sem males. Esse é o sonho de Deus, pois a terra é de Deus, pertence a Deus. Malditas todas as cercas …”

    Em 2015, a convite do bispo Dom Adriano Ciocca, tive a alegria de passar uma semana na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, assessorando um retiro da equipe de pastoral da prelazia, equipe composta por Dom Adriano, padres, freis, freiras e leigos/as da caminhada. Vi que a Prelazia de São Félix, sob a guia de Dom Pedro Casaldáliga, se tornou uma das locomotivas da profecia na Igreja dos Pobres não apenas no Brasil, mas na América AfroLatÍndia e em muitas regiões do mundo. Na Prelazia de São Félix, meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das irmãzinhas de Jesus, e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Foi na Prelazia de São Félix que iniciou a Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, uma das atividades da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizados nas lavouras vai para os cursos d’água. Morre muito peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.”

    Em Ribeirão Cascalheira, na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, visitei o Santuário dos Mártires da Caminhada. Emocionante caminhar onde o padre João Bosco Burnier, missionário jesuíta, foi martirizado de 11 para 12 de outubro de 1976. Ouvi que Dom Pedro Casaldáliga, ameaçado de morte na Prelazia, e o padre João Bosco Burnier, após celebrarem com o povo os festejos de N. Sra. Aparecida, incomodados pelos gritos de duas mulheres presas – Margarida e Santana – foram interceder por elas na delegacia-cadeia de Ribeirão Cascalheira. As mulheres estavam “impotentes e sob torturas: um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, sob as unhas; essa repressão desumana”, relata dom Pedro no livrinho “Martírio do Padre João Bosco Penido Burnier”, da Ed. Loyola.

    Aos 92 anos, com 52 anos sendo missionário profeta no Brasil, Dom Pedro Casaldáliga fez sua páscoa no dia 8 de agosto de 2020 e agora vive em plenitude e em nós na luta sempre, pela construção do reino de Deus a partir do aqui e do agora. Na Missa das Exéquias, celebrada em São Félix do Araguaia, no dia 12 de agosto, Dom Adriano Ciocca, atual bispo de São Felix do Araguaia, afirmou que “o sonho de Deus foi o sonho de Pedro também, o sonho do Reino”, porque “ele queria justiça, queria fartura, queria alegria, vida plena para todas e para todos.” E continuou Dom Adriano: “Ele sonhou, e sonhou com os pés no chão, porque não ficou só no sonho, mas ele procurou viver e lutar para que este sonho se realizasse.” E Dom Adriano lembrou a opção radical de Dom Pedro Casaldáliga pelo seguimento a Jesus de Nazaré, colocando-se ao lado dos oprimidos, injustiçados, marginalizados: “´Se fez peão com os peões, se fez índio com os índios, se fez solidário com quem Deus se solidarizou, os abandonados, os excluídos, os escravos.”

    O corpo de Dom Pedro Casaldáliga descansa no cemitério dos Carajás, onde eram sepultados os sem nome. Seu corpo lá está, debaixo da cruz, entre um peão e de uma mulher prostituída. Com os pobres, os preferidos de Deus, na beira do rio Araguaia, com paz inquieta, foi plantado o corpo de Pedro, semente de vida nova, de ressurreição! Que tenhamos a graça, a coragem e a sabedoria para honrarmos o imenso legado espiritual e profético que Dom Pedro nos deixou.

    Dom Pedro Casaldáliga, com paz inquieta, esteve vivo misticamente com todas as pessoas do Quilombo Campo Grande, do MST, no sul de Minas Gerais, e com todos/as que se somaram na resistência durante três dias e três noites. Certamente, Dom Pedro, com ira santa e profética, assina embaixo da denúncia que se segue, abaixo.

    Aconteceu uma tremenda injustiça, barbárie no Estado de MG dias 12, 13 e 14 de agosto de 2020. No Quilombo Campo Grande, do MST, em Campo do Meio, no sul de MG, há 22 anos, 453 famílias Sem Terra vivem dignamente dando função social para mega-latifúndio das terras da ex-Usina Ariadnópolis, de 4.900 hectares, que estava totalmente abandonado e ocioso, após a Usina falir deixando mais de 400 milhões de reais de dívida trabalhista.

    Quilombo bombardeado

    Enquanto o irmão sol voltava a brilhar dia 12 de agosto de 2020, vimos na cidade de Campo do Meio um cortejo de morte com dezenas e dezenas de viaturas, ambulâncias, caminhões do Corpo de Bombeiro, um aparato de guerra, a PM de MG, a mando do governador Romeu Zema (do Novo), com decisão liminar de reintegração de posse do TJMG, com mais de 200 policiais de vários batalhões, com caveirões, cachorros, helicóptero e pesado arsenal de armas, com tropa de choque, fazer despejo de várias famílias no Quilombo Campo Grande, do MST. Os Sem Terra do MST, com a militância de uma vasta rede de apoio, resistiram três dias e três noites, de 12 a 14/8/2020. Policiais atearam fogo em várias partes do Quilombo e no final bombardearam o Quilombo com chuva de bombas de gás lacrimogêneo, com voos rasantes do helicóptero da PM, com policiais apontando metralhadoras para o povo que resistia bravamente. Asfixiando os Sem Terra com gás lacrimogêneo e terror, a PM expulsou crianças e professoras e destruiu a Escola Popular Eduardo Galeano, destruiu setes casas e não ofereceu alternativa digna de moradia previamente.

    Uma das primeiras barreiras de resistência que a tropa de choque encontrou foi um grupo de crianças Sem Terrinha, do MST, que, de cabeça erguida e muita coragem, segurando cartazes, bloqueavam a estrada por onde a tropa de choque deveria passar para fazer o infame despejo. Uma das cenas mais emocionantes e eloquentes: crianças Sem Terrinha, na luta, resistindo à investida de um imenso aparato bélico. Diziam: “Não derrubem nossa escola!” “Não derrubem nossas casas!”

    Em meio à pandemia, esse despejo é genocida. A Liminar de reintegração de posse cumprida com repressão e violência policial é injusta, inconstitucional, cruel e uma ação genocida do Governador Romeu Zema. A decisão do TJMG, que expediu a liminar de reintegração e se negou a cassá-la, mesmo diante de “mil” argumentos da Defensoria Pública, do Ministério Público e de Advogados Populares, é inconstitucional, porque viola e pisoteia no principal princípio e básico da Constituição de 1988: RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Além do terror espalhado, da Escola Popular Eduardo Galeano, de várias casas, sonhos e direitos destruídos, quantas pessoas terão contraído ou disseminado o coronavírus durante os três dias de megaoperação de despejo durante a pandemia, violando todas as regras sanitárias recomendadas pela OMS e por médicos infectologistas?

    A Ocupação do mega-latifúndio das terras da ex-usina Ariadnópolis, em Campo do Meio, aconteceu em 1998, 22 anos atrás, como fruto do combate ao trabalho escravo no sul de MG e como fruto dos mártires de Eldorado dos Carajás. Todos os presidentes do Brasil, de 1998 até hoje, poderiam e deveriam ter desapropriado o latifúndio que estava abandonado sem cumprir a função social, mas nenhum presidente nos últimos 22 anos assentou as 450 famílias Sem Terra do MST que já sofreram seis cruéis despejos, mas não arredam o pé da terra. “Essa terra é nossa”, bradam heroicamente os Sem Terra do MST.

    O Poder Judiciário também, em 22 anos, se julgasse conforme os princípios da Constituição do respeito à dignidade humana, função social da propriedade e direito à terra poderia e deveria ter decidido, justamente, a favor dos Sem Terra do Quilombo Campo Grande, mas até hoje tem decidido para beneficiar empresários especuladores. Indignados com mais essa imensa sexta-feira da paixão promovida pelo Estado em MG, reafirmamos que não há despejo apropriado e nem oportuno. Todo despejo é maldito, cruel, desumano, execrável e desintegrador de sonhos e de direitos. Mas a história demonstra que a força mística e espiritual dos injustiçados é invencível. O mais profundo da história é construído pelos/as injustiçados/as.

    Os opressores e os violentos, mandantes e executores, serão jogados na lata de lixo da história. Vivem e viverão sempre em nós na luta por tudo o que é JUSTO e BEM COMUM: as profetizas e os profetas, Jesus Cristo, Che Guevara, Rosa Luxemburgo, Chico Mendes, Padre Ezequiel Ramin, Padre Josimo, os fiscais massacrados em Unaí, Irmã Dorothy, Margarida Alves, os Sem-Terra assassinados, Dandara, Zumbi, Antônio Conselheiro, Dom Pedro Casaldáliga … Enfim, uma multidão de mártires que nos impulsionam na luta obstinada pela construção de uma terra sem males.

    Exigimos que o Governador de MG, Romeu Zema, e/ou o presidente do TJMG, desembargador Gilson Gomes Lemes, suspendam esse despejo absurdo em tempo de pandemia e proíbam outros despejos durante a pandemia. Despejar não é atividade essencial. Exigimos Despejo Zero! E exigimos com urgência a DESAPROPRIAÇÃO DEFINITIVA do latifúndio das terras da ex-Usina Ariadnópolis. O MST iniciou o despejo do Zema.

    Pedimos em nome de Deus, das crianças e por respeito à dignidade da pessoa humana: Parem todos despejos no Brasil para salvar vidas!

    18/8/2020.

     Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Exigimos “Despejo Zero” para salvar vidas – Por frei Gilvander – 1ª Parte – 17/8/2020

    2 – “A luta não vai parar!” MST e Quilombo Campo Grande, em MG: Despejo é crime; na pandemia, genocídio

    3 – Lições da luta/resistência no Quilombo Campo Grande, do MST, sul de MG, após despejo genocida/cruel

    4 – Cenário de guerra no Quilombo Campo Grande, do MST, Campo do Meio/MG: Gov. Zema, TJMG, PM/MG/14/8/20

    5 – PM de MG bombardeando o Quilombo Campo Grande, do MST, em campo do Meio, MG: barbárie – 14/8/2020

    6 – Quilombo Campo Grande, do MST, resiste há 48 horas ao despejo, em Campo do Meio/MG. Caveirão na área

    7 – PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA – Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga – 08/8/2020

    8 – Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga: místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

  • 152 bispos profetas encaram o desgoverno federal

    152 bispos profetas encaram o desgoverno federal

    Em postura corajosa e profética, 152 bispos da Igreja Católica assinaram Carta ao Povo de Deus, divulgada dia 26/7/2020 na Coluna de Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo, se posicionando contra os desmandos do atual desgoverno federal chefiado por Jair Bolsonaro. Outros 150 bispos poderão assinar esta Carta em breve, pois mais de 70% dos bispos e dos padres não apoiam o atual presidente que comanda política autoritária, criminosa, genocida e ecocida.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Na Carta, os 152 bispos dizem em alto e bom tom: “Nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença. […] Temos clareza de que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência.”

    Os bispos alertam que o Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história com “a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.” “Não cabe omissão, inércia e nem conivência diante dos desmandos do Governo Federal”, pontuam os bispos.  Todos devem “combater as mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro e a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra.” Os 152 bispos denunciam também “a liberação do uso de agrotóxicos antes proibidos e o afrouxamento do controle de desmatamentos.” “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós”” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/6/2020).”

    Com a ira santa de Jesus Cristo diante dos vendilhões do templo, lugar sagrado, os 152 bispos denunciam: “Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). […] As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo.”

    Profetizam os bispos: “É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população”. Como bons pastores que não apenas cuidam das ovelhas feridas, mas enfrentam os lobos vorazes, os 152 bispos denunciam: “O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.”

    De forma lapidar e com precisão cirúrgica, os 152 bispos põem o dedo nos desmandos do desgoverno federal: “O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.”

    A idolatria do mercado é denunciada com veemência também pelos 152 bispos: “No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.”

    Com veemência profética, continuam os 152 bispos: “Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que sobrevive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. […] O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais” (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).

    Os 152 bispos interpelam nossa consciência: “Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?” Cientes que mudança emancipadora só vem de baixo para cima, a partir dos explorados, os 152 conclamam a todas as pessoas de boa vontade: “Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz”” (Romanos 13,12).

    Esta Carta ao Povo de Deus é tão contundente e profética como os Documentos divulgados por bispos da Igreja Católica nos anos de chumbo da ditadura militar-civil-empresarial iniciada em 31 de março de 1964. Dia 6 de maio de 1973 – ano do milagre econômico -, 18 bispos e superiores religiosos do regional Nordeste II da CNBB lançaram o documento Eu ouvi os clamores do meu povo, que denunciava as práticas assistencialistas da Igreja, pois eram mancomunadas com os dominadores (Eu ouvi os clamores, 1973, p. 10).  Nesse Documento, os bispos do Nordeste analisavam e propunham revisão de postura. Diziam os bispos do Nordeste: “A Igreja tem feito o jogo dos opressores, tem favorecido aos poderosos do dinheiro e da política contra o bem comum. […] À luz, portanto, de nossa Fé e com a consciência da injustiça que caracteriza as estruturas econômica e social de nosso país, entregamo-nos a uma profunda revisão de nossa atitude de amor pelos oprimidos, cuja pobreza é a outra face da riqueza de seus opressores” (Eu ouvi os clamores, 1973, p. 27).

    Seis bispos do Centro-Oeste, da parte mais violentada da Amazônia, também lançaram no mesmo dia, 6 de maio de 1973, o documento Marginalização de um povo – grito das Igrejas, onde se afirmava: “Precisamos apoiar a organização de todos os trabalhadores. Sem isto, eles não se libertarão nunca” (Marginalização de um povo, 1973, p. 42).  Os bispos denunciavam a exploração a que era submetido o povo trabalhador nas contradições do capitalismo: “[…] é um povo que luta e labuta, diário, num trabalho que, se não tira da pobreza os que trabalham, serve para enricar mais ainda os que já são ricos. […] O latifúndio está crescendo, fica mais poderoso. E tem apoio das autoridades. […] O sistema capitalista é a fonte de todos os males que assolam a vida do povo” (Marginalização de um povo, 1973, p. 9 e 14). E, mesmo confundindo dinheiro com capital, os bispos do Centro-Oeste compreendiam as contradições do capital e anunciavam uma utopia: “Queremos um mundo onde os frutos do trabalho sejam de todos. Queremos um mundo em que se trabalhe não para enriquecer, mas para que todos tenham o necessário para viver: comida, zelo com saúde, casa, estudos, roupa, calçados, água e luz. Queremos um mundo em que o dinheiro esteja a serviço dos homens e não os homens a serviço do dinheiro” (Marginalização de um povo, 1973, p. 43).

    Os bispos e missionários da causa indígena lançaram também em 25 de dezembro de 1973 a declaração Y-juca-pirama – o índio: aquele que deve morrer, que era “documento de urgência”. Nesse se repudiava ‘civilizar’ os indígenas e defendia o reconhecimento das culturas indígenas. Nesse sentido afirmavam: “O objetivo do nosso trabalho não será ‘civilizar’ os índios. […] Urgente necessidade de reconhecer e publicar certos valores que são mais humanos, e assim, mais evangélicos do que os nossos ‘civilizados’ e constituem uma verdadeira contestação à nossa sociedade” (Y-Juca-Pirama, 1973, p. 21).

    Esses documentos assinados por vários bispos deixavam patente a necessidade de uma mudança radical na atuação pastoral da Igreja. No livro O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta, José de Souza Martins aponta a revolução que esses Documentos de vários bispos provocavam: “Esses documentos anunciavam uma verdadeira revolução no trabalho pastoral, e constatavam que, de fato, o capitalismo subdesenvolvido e tributário não levaria à emancipação dos pobres. Ao contrário, o desenvolvimento econômico, que o Estado e o capital levavam adiante, no País, semeava fome, violência, destruição e morte” (MARTINS, 1999, p. 137).

    A Igreja muda para contribuir com o processo de emancipação humana da classe trabalhadora e do campesinato ao abraçar a opção pelos pobres, que “é uma opção preferencial pela des-ordem que desata, desordenando, os vínculos de coerção e esmagamento que tornam a sociedade mais rica e a humanidade mais pobre. E ao desatar, liberta” (MARTINS, 1989, p. 57).  Deus levanta os líderes da Igreja para denunciar o mal e anunciar que seu povo e toda a criação devem ser tratados com respeito e justiça, e conclamar a ações libertadoras, transformadoras .  “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Miquéias 6,8). Com o monge Marcelo Barros saudamos “a volta da profecia na voz dos cuidadores do povo de Deus” e esperamos que estas denúncias claras contra o desgoverno federal que nos assola possam continuar por posicionamento claro destes bispos sobre os setores da nossa própria Igreja que apoiam esta iniquidade ou simplesmente ao se omitirem nesta hora a legitimam. Quem tiver ouvidos, ouça o que os 152 bispos dizem e enxergue o caminho que apontam.

    Referências.

    MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1999.

    MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.

    Documento de Bispos e Superiores Religiosos do Nordeste – Eu Ouvi os Clamores do Meu Povo. Salvador, Editora Beneditina, 1973; Marginalização de um Povo – o Grito das Igrejas, Goiânia, 1973; Y-Juca-Pirama – o Índio Aquele que Deve morrer (Documento de urgência de Bispos e Missionários), s.e., s.l., 1973.

    28/7/2020.

    Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – 3ª Live do Movimento Inter-Religioso do Vale do Aço, MG: Fora, Bolsonaro? – Debate Inter-Religioso.

    2 – Live – Fora Bolsonaro e o (des)governo federal? – Debate interreligioso

    3 – Live CRISTÃOS TAMBÉM GRITAM: “FORA BOLSONARO”!!! – Frei Gilvander Moreira, Pastor Daniel Elias (Frente de Evangélicos/PT), Renata Miranda (Frente de Evangélicos/MG), Sara Suzan (PJ) e Paulo Amaral.

    4 – Padre Nelito Dornelas: Debate Inter-Religioso “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?”- 26/7/2020

    5 – Dom Vicente Ferreira na Live “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?” – Debate Inter-Religioso, dia 12/7/2020.

    6 – Irmã Claudicéa Ribeiro na Live “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?” – Debate Inter-Religioso – 12/7/2020.

    7 – Padre Ronan: “Fora, Bolsonaro e esse governo de morte!” Eloquência e Profetismo – 12/7/2020

    https://www.youtube.com/watch?v=3DEzWkp_7f4

    8 – A voz profética de dom Mauro Morelli: Por que “Fora, Bolsonaro”? – 12/7/2020

    9 – Padre Edson, de Artur Nogueira/SP reafirma denúncias das opressões causadas por Bolsonaro. 05/7/2020

    10 – Frei Gilvander e Dom Mauro Morelli na Live “Fora, Bolsonaro e o (des)governo federal?” – Parte I

    11 – Frei Gilvander na Live Cristãos também gritam “FORA BOLSONARO e todo desgoverno federal!”- 28/6/2020

    12 – Padre José Ailton: Faz carreata contra Quarentena quem não se preocupa com a vida dos trabalhadores


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

  • Luta pela terra é também espiritual e profética

    Luta pela terra é também espiritual e profética

    ARTIGO

    Gilvander Moreira1

    Assim como há ciências, há também teologias que sistematizam a luta pelo bem comum a partir de uma fé emancipatória – fé no Deus da vida e no Evangelho de Jesus Cristo. Na realidade conflituosa e contraditória da sociedade capitalista em que vivemos, marcada por uma das maiores concentrações fundiárias do mundo e por um povo religioso, torna-se necessário analisar a luta pela terra também sob o ponto de vista da teologia bíblica. Em inúmeras passagens bíblicas, as profetisas e os profetas bradam, em nome do Deus da vida: “Queremos a justiça e o direito”! Isso não se mendiga, conquista-se na luta coletiva e organizada.

    Há na Bíblia muitos textos de denúncia da grilagem de terras como, por exemplo: “Não removerás os marcos de teu próximo do lugar em que os puseram teus pais para delimitar a herança familiar, no país que o Senhor teu Deus te dará em posse” (Deuteronômio 19,14); “Maldito aquele que remover os marcos da herança do seu próximo” (Deuteronômio 27,17); “Os maus removem os marcos dos terrenos” (Jó 24,2). Na Bíblia a terra aparece como sendo herança de Deus, algo que deve passar de pai para filha/filho, não pode ser vendida, pois não é mercadoria.

    Para os povos indígenas “a terra é sagrada, nela se baseia a organização tribal. Entre os tapirapé, os mortos são enterrados dentro das casas em que viveram e onde continuam vivendo os seus parentes” (MARTINS, 1983, p. 117). No livro Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político, José de Souza Martins recorda: “A um tapirapé a ideia de sepultar o morto fora da casa em que viveu causa o mesmo terror que causaria a nós a ideia de enterrar os nossos mortos dentro de casa. Seria sinal de abandono do morto por seus parentes, motivo para que viesse assombrá-los. Por isso, a troca ou venda da terra não faria nenhum sentido para um tapirapé, porque significaria, entre outras coisas, o abandono de seus parentes mortos e a quebra dos eixos de sustentação da sua sociedade” (MARTINS, 1983, p. 118).

    Na luta pela terra estão envolvidas não apenas questões políticas e econômicas, mas também questões religiosas. Exemplo disso foi que o Estado, por meio da Polícia Militar, assassinou o monge José Maria em 22 de outubro de 1912. Após sua morte, a guerra do Contestado cresceu muito e se alongou até 1916.

    As mulheres parteiras do Egito – a Bíblia registra os nomes de duas: Séfora e Fuá (Êxodo 1,8-22) -, diante de uma “medida provisória” de um faraó (semelhante a um Decreto-Lei) que mandava matar no momento do nascimento as crianças do sexo masculino, organizaram-se e fizeram greve e desobediência civil, política e religiosa. “Não vamos respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à dignidade da pessoa humana e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão”, devem ter dito em seus corações as Mulheres do ‘sistema de saúde’ sob o imperialismo egípcio. Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou numeroso e muito poderoso” (Êxodo 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade.

    Em meados do século IX antes da era cristã, época do profeta Elias, intransigente defensor dos camponeses, a monarquia reinante na Palestina estava reforçando a latifundiarização do país. As pequenas propriedades estavam sendo expropriadas pelos grandes proprietários, entre os quais os detentores do poder político monárquico. Nesse contexto, a Bíblia narra um episódio exemplar. O rei Acab e sua esposa Jezabel cometeram crime de usurpação investindo para açambarcar a pequena propriedade de um posseiro chamado Nabot, nome que significa, em hebraico, aquele que (se) doa. Nabot rejeitou trair os valores dos camponeses da época: “Javé me livre de ceder-te a herança dos meus pais!” (I Reis 21,3).

    O rei Acab se irritou com a resistência de Nabot. Jezabel, rainha adepta do ídolo Baal – deus da chuva e da fertilidade -, manipulou a religião e a justiça para roubar a terra do posseiro. Caluniou, criminalizou e demonizou Nabot que, com o beneplácito do sistema judiciário da época, foi condenado à pena de morte por apedrejamento. Porém, como a expropriação dos camponeses e o sangue dos mártires suscitam a atuação veemente de profetas, ao ouvir que o rei Acab estava invadindo a pequena gleba do posseiro Nabot, após tê-lo matado, apareceu o profeta Elias e, em alto e bom som, profetizou: “Você matou, e ainda por cima está roubando? Por isso, assim diz Javé (Deus solidário e libertador): No mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabot, lamberão também o seu. Farei cair sobre você a desgraça” (I Reis 21,19.21).

    O profeta Elias foi veemente na condenação da ação do chefe da monarquia (I Reis 21,17-26). A compreensão da terra como pertencente a Deus permeia e perpassa toda a Bíblia. Por exemplo, no livro de Levítico se afirma: “Assim disse Javé, o Deus da Vida: A terra não será vendida, pois que a terra me pertence” (Levítico 25,23).

    O profeta Miqueias nasceu no interior de Judá, sul da Palestina, e atuou entre os anos 725 e 696 antes da era cristã. Miqueias foi provavelmente um camponês empobrecido, marginalizado e vítima de processo de expropriação pela falta de apoio à agricultura camponesa. Miqueias denunciou a cobiça e as injustiças sociais que os dirigentes políticos e religiosos estavam cometendo sobre o campesinato da época. Ele condena a riqueza como fruto da exploração.

    Profeta dos sem terra, Miqueias defendeu a partilha e a socialização da terra. Vindo do campo, ao chegar à capital Jerusalém, ele se defronta com os enriquecidos – políticos profissionais, especuladores e religiosos funcionários do sagrado -, denuncia a exploração e a expropriação dos camponeses do sul da Palestina. Miqueias, de forma intrépida e contundente, profetiza: “Ai daqueles que, deitados em seus leitos de marfim, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos, e os roubam. Tomam as casas do povo, oprimem o homem, sua família e sua comunidade; roubam a herança deles, a perspectiva de futuro” (Miqueias 2,1-2).

    Para Miqueias, ‘a herança deles’ é a terra, que é roubada. Com o dedo em riste, o profeta acusa os exploradores: “São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o manto, vocês exigem a veste” (Miqueias 2,8). “Vocês expulsam da felicidade de seus lares as mulheres do meu povo” (Miqueias, 2,9a). “Vocês tiram dos filhos a liberdade que eu lhes tinha dado para sempre” (Miqueias 2,9b). Ele ameaça e condena Israel (o reino do norte da Palestina) e seus chefes exploradores como “aqueles que comeram a carne do povo, arrancaram-lhe a pele…” (Miqueias 3,1-3) e aponta como culpados os militares, os falsos profetas, os chefes, os comandantes, os juízes, os sacerdotes; enfim, a classe dominante da época. Denuncia ainda o profeta Miqueias: “Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou: agora é a ruína deles” (Miqueias 7,3-4).

    Apesar da opressão e das injustiças contra os camponeses, o profeta Miqueias (e/ou suas/seus discípulas/discípulos), não perde a esperança e anuncia também a utopia que está sendo produzida nas entranhas da luta coletiva pelo bem comum: “Em um campo em ruínas, na Samaria, uma plantação de vinhas – lavouras – será feita.” (Miqueias 1,6). “De suas espadas vão fazer enxadas, e de suas lanças farão foices” (Miqueias, 4,3).2 Como herdeiro da fina flor libertária da caminhada dos povos da Bíblia, passando pela sabedoria do povo – “Os pobres possuirão a terra” (Salmo 37,11) -, Jesus Cristo ecoa no discurso da montanha a utopia da terra partilhada e socializada com quem precisa: “Felizes os humildes, porque herdarão a terra” (Mateus 5,4). Portanto, a luta pela terra não é apenas uma questão política, mas também uma questão de fé, espiritual e profética. Feliz quem dela participa3.

    Referências

    MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

    MOREIRA, Gilvander Luís. Profeta Miqueias, um camponês que clama por Justiça (Mq 1-3). p. 37-42. In: AMARAL DA COSTA, Julieta (Org.). Em tempos difíceis, o profeta Miqueias aponta saídas: uma leitura do livro de Miqueias feita pelo CEBI-MG. São Leopoldo/RS: CEBI, 2016.

    07/7/2020.

    Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Acampamento Dênis Gonçalves, do MST, em Goianá, MG – luta pela terra. Frei Gilvander – 26/8/2010.

    https://www.youtube.com/watch?v=vKJpT-dC5fo

    2 – Acampamento Eloy Ferreira, do MST, Engenheiro Navarro/MG: luta pela terra. Frei Gilvander. 02/9/2010

    https://www.youtube.com/watch?v=YeuMetz-Sqk

    3 – MST na luta pela terra no sul de MG – Grito dos Excluídos – Frei Gilvander/luta por direitos/07/9/10

    https://www.youtube.com/watch?v=cT553hUQaeU

    4 – Palavra Ética: Luta pela terra e por moradia em Pirapora e em Santa Luzia, MG. E Leonardo Boff.

    https://www.youtube.com/watch?v=8xIZIw_-m3I

    5 – 160 famílias na luta pela terra em Pirapora, MG, há 20 anos. Despejar é injusto/violência. 17/2/2020

    https://www.youtube.com/watch?v=PkrCA8VV48Q

    6 – CEBs na luta pela terra com o MTC em Córrego Danta, MG: Fé e luta por direitos. Vídeo 3 – 16/8/2019

    https://www.youtube.com/watch?v=p2agyVkQq9U

    1  Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

    2 Cf. também MOREIRA, Gilvander Luís. Profeta Miqueias, um camponês que clama por Justiça (Mq 1-3). p. 37-42. In: AMARAL DA COSTA, Julieta (Org.). Em tempos difíceis, o profeta Miqueias aponta saídas: uma leitura do livro de Miqueias feita pelo CEBI-MG. São Leopoldo/RS: CEBI, 2016.

    3 Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.