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  • Notas sobre um editorial infame da Folha

    Notas sobre um editorial infame da Folha

    No dia 21 de agosto, a Folha de S. Paulo publicou um editorial intitulado “Jair Rousseff”. Confesso que poucas vezes vi um texto ser ruim de tantas maneiras diferentes. Como nem todos os graves problemas que traz estão na superfície, é importar ler com uma lupa para aclarar o tamanho da infâmia que tiveram coragem de publicar. Muitas críticas foram feitas, é verdade, mas há tantas coisas a criticar que parece necessário reforçar esse coro.

    Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes[1]

                    Infelizmente, o texto não é assinado. É prática corrente no jornalismo brasileiro deixar textos sem assinatura. Essa escolha me parece prudente quando a reportagem aborda um tema sensível e potencialmente capaz de colocar a vida do profissional em risco, sobretudo nesse momento em que o governo federal está envolvido até o pescoço com milícias. Não é o caso desse editorial. A opção pela apocrifia é típica desse tipo de narrativa jornalística que ignora, dentre outras coisas, que a Constituição de 1988 assegura a liberdade de expressão sem endossar o anonimato.

    O problema maior é que editoriais não costumam ser assinados porque pretendem ser textos coletivos. A Folha de S. Paulo, por exemplo, define seus editoriais como “o que a folha pensa”, o que compromete seriamente a noção de pluralidade de opiniões e a própria heterogeneidade dos profissionais que trabalham na redação, como se todos pensassem da mesma forma ou fossem reféns de uma forma específica de pensar que os submete por força da hierarquia empresarial. Em outras palavras, são textos que presumem pertencer a todos sem se ligar especificamente a ninguém. Disso surge outro problema: o autor fica escudado, protegido, livre para escrever toda sorte de asneiras sem ser pessoalmente responsabilizado. É uma questão urgente, mas não especificamente ligada à Folha, e julgo que os profissionais de jornalismo deveriam sentir desconforto diante disso e sugerir mudanças no formato.

                    A proposta do editorial é comparar as políticas econômicas de Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro. É importante dizer que todo gesto comparativo é precedido de uma escolha. Como toda comparação pressupõe cotejar semelhanças e diferenças, o autor precisa decidir qual aspecto irá explorar. Nesse caso, optou-se por sustentar que tanto Bolsonaro como Dilma Rousseff elevaram os gastos públicos para pavimentar o caminho para a reeleição. A crítica é direcionada aos programas de assistência social. Ainda que não explicite quais são, o autor que se esconde provavelmente considerou o Bolsa Família, no caso de Dilma, e o auxílio emergencial, no caso de Bolsonaro. Infelizmente, como a comparação é desonesta, o editorial não explica que no caso da presidenta, era uma política de governo; no caso de Bolsonaro, uma imposição do Congresso Nacional contra a qual lutou ferozmente e que dela se apropriou somente após a derrota que sofreu no Parlamento.

    De todo modo, em ambos os casos, esses programas seriam problemáticos porque elevariam o déficit nas contas públicas. Ignora-se a enorme dívida interna jamais auditada que consome mais da metade de nossa arrecadação. Ignora-se os abonos e as isenções fiscais dadas aos empresários. Ignora-se os privilégios da elite do funcionalismo público. Enfim, ignora-se todo gasto corrente que não tem a ver com os pobres.

                    A tática do autor desconhecido não é nova: faz-se de conta que a austeridade fiscal é a única medida aceitável de gestão dos gastos públicos, coisa que nem o mais ortodoxo economista formado em Chicago seria capaz de afirmar com o mínimo de honestidade intelectual. Aliás, o ministro Paulo Guedes decerto concordaria com esse receituário, mas ele não é citado no texto. Trata-se de outra prática corrente na mídia hegemônica: quando as medidas econômicas afagam os interesses dos rentistas e empresários, Paulo Guedes é alçado à condição de ídolo; quando não, fazem de conta que a decisão é exclusiva de Bolsonaro. É compreensível, já que o autor parece servir aos propósitos do mesmo grupelho de milionários para quem o ministro da Economia trabalha como um cão fiel e submisso. Outra grosseria cometida pelo autor é traçar esse comparativo ignorando as qualidades e características dos programas de assistência social em seu contexto histórico e ideológico. Dá-se a tendência de alimentar o anti-petismo comparando-o, apenas do ponto de vista retórico, ao bolsonarismo doentio ao qual o próprio PT se opõe.

                    Aliás, sobre esse ponto, convém uma nota interessante. O texto afirma que a manutenção do teto de gastos é necessária para não colocar em risco “a estabilidade econômica, duramente conquistada pela sociedade brasileira nas últimas décadas”. Ora, não é possível falar em estabilidade econômica antes do governo Fernando Henrique Cardoso. Confesso que teria enormes críticas a essa noção de “estabilidade econômica”, mas é importante lembrar que Fernando Henrique governou por apenas oito anos, o que é pouquíssimo para sintetizar “as últimas décadas”. Parte substancial dessa estabilidade foi garantida pelos governos petistas, que asseguraram criação de empregos, quitaram as dívidas com o FMI e Banco Mundial, garantiram reservas bilionárias, dentre outras coisas. A contradição é óbvia: Dilma está sendo criticada pelo desrespeito à estabilidade econômica que sua própria gestão trabalhou para manter. Para escudar-se da contradição, dizem ser uma “conquista da sociedade brasileira”, apelando para a generalização. Mas já sabemos qual é o problema que gera essa desconfiança: despesas ligadas às camadas mais empobrecidas. Se há dúvidas a esse respeito, o último parágrafo é esclarecedor.

                    Aliás, esse último parágrafo do texto deveria constar doravante como exemplo de vileza em todo bom manual de jornalismo. Segundo o autor, o desrespeito ao teto de gastos prejudicaria “como de hábito, os pobres e miseráveis, que por inconveniência política constituem também a parcela mais decisiva do eleitorado”. Se o sentido não ficou claro, vale recorrer à paráfrase: afirma-se, com todas as letras, que seria conveniente que os pobres não votassem. Infelizmente, também nessa afirmação asquerosa não há novidade, já que traduz com enorme poder de síntese a concepção preconceituosa e aristocrática que as elites atrasadas desse país cultivam. É como se os pobres, que votam com o estômago, precisassem ser tutelados pelos ricos que, esses sim, votam com base na razão e isolam qualquer interesse pessoal de suas decisões políticas. Eles perderam tudo, inclusive o pudor de revelar publicamente seu lado mais vil e bestial.

                    Por fim, o título. Parece óbvio que uma comparação que tenta construir um elo sem lastro com a realidade precisa de enormes reforços retóricos. Exatamente por isso apelaram para esse título, cuja infâmia só é percebida quando se recorda as diferenças colossais que separam a ex-presidenta do atual presidente. Ora, o nome próprio é nosso principal símbolo de subjetividade. Diante da pergunta “Quem você é?”, a tendência é responder com o próprio nome. O nome funciona como profunda marca identitária, como a palavra-síntese que nos faz singulares e permite sinalizar quem somos. Quando o autor desconhecido lança “Jair Rousseff” como título, produz um efeito de sentido que cria um sujeito fictício que encarnaria as personalidades tanto de Dilma como Bolsonaro. Em outras palavras, converte a crítica política em ataque pessoal, avançando diante da mais visceral intimidade. Cumpre recordar que Bolsonaro, no plenário da Câmara dos Deputados, dedicou seu voto de impeachment à memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, milico torturador caracterizado pelo então deputado como “o terror de Dilma Rousseff”. É ao nome desse sujeito, que elogia torturadores e defende ditaduras, que o autor apensou o sobrenome de Dilma, que arriscou sua juventude para combatê-los.

                    Como o roteiro do ano de 2020 parece estar sendo escrito por alguém com enorme sadismo criativo, apenas dois dias após a publicação desse editorial infame, Bolsonaro abandonou o ostracismo das polêmicas para fazer mais um ataque à imprensa livre. Após ser perguntado por um jornalista sobre os depósitos que o criminoso Fabrício Queiroz fez na conta da primeira-dama, respondeu: “Minha vontade é encher sua boca de porrada, tá?”. Curiosamente, quando a militância petista criticava a mesma imprensa, Dilma respondia que preferia o barulho da democracia ao silêncio da ditadura. Gostaria de conhecer a opinião do autor sobre isso, mas infelizmente não tenho como procurá-lo. No entanto, se ele quiser, pode me responder livremente, pois esse texto aqui não foi redigido por um covarde que precisa do anonimato para se esconder dos próprios posicionamentos. 


    [1] Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: asmoraes@gmail.com.

  • Há um curto-circuito no coração do golpe

    Há um curto-circuito no coração do golpe

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*

    Acho que poucos de nós duvidam que a palavra “corrupção” é o termo chave da crise brasileira contemporânea. Uma crise que começou em junho de 2013, mas que deita suas raízes mais profundas lá em 2005, na ocasião do que já na época ficou conhecido como o “julgamento do mensalão”.

    Aqui neste ensaio, quero mostrar como essa palavrinha mágica pode ser entendida de várias maneiras e como a história da crise brasileira contemporânea pode ser contada a partir do privilégio de um desses sentidos: o sentido “liberal”, segundo o qual a “corrupção” está diretamente vinculada ao Estado, a tudo que é público. É como se o Estado fosse naturalmente corrupto e corruptor e o combate à corrupção passasse, necessariamente, pelo combate ao Estado, pelo desmonte do Estado.

    O privilégio dessa leitura liberal do fenômeno da corrupção diz muito sobre a crise, especialmente sobre os seus movimentos mais recentes. De uns dias pra cá, os veículos mais poderosos da imprensa hegemônica brasileira (Folha de São Paulo, o departamento de jornalismo da Rede Globo, Estadão) vêm abrindo fogo contra os privilégios dos juízes, que já são conhecidos por todos nós há muito tempo. Por que somente agora a imprensa hegemônica denuncia os privilégios nababescos dos juízes brasileiros? Penso que estamos entrando num novo momento da cronologia da crise, em que a aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até então sólida como pedra, começa a fazer água. Também aqui a leitura liberal do conceito “corrupção” tem uma importante função política a cumprir.

    Bom, pra começar a conversa é importante esclarecer melhor o que estou querendo dizer quando afirmo que o conceito “corrupção” é polissêmico, que possui vários sentidos. Pra isso, cito, bem rápido, alguns autores que ao longo da história da cultura política ocidental usaram a palavra “corrupção”, fazendo-o de diferentes formas.

    Para Aristóteles, que que no IV século antes de Cristo escreveu o tratado da “Política”, a “corrupção” era o efeito natural do tempo sobre os organismos políticos. Maquiavel, escrevendo no século XVI da era cristã, seguiu a trilha aberta por Aristóteles e definiu a “corrupção” como a perda da capacidade da República em institucionalizar os conflitos travados entre seus cidadãos. Chamo de “republicana” essa forma de tratar a corrupção.

    Karl Marx, escrevendo no século XIX, enfrentou o tema da corrupção em um livro pouco conhecido, cujo título é “A luta de classes na França entre 1848 e 1850”. Basicamente, Marx argumenta que falar em “corrupção política” no sistema capitalista é uma redundância, pois o próprio capitalismo já é corrupto, na medida em que se fundamenta na exploração de uma classe pela outra. Essa é a definição marxista.

    Nenhuma dessas formas de pensar associou a “corrupção” ao roubo do dinheiro público. Vamos encontrar essa associação sendo feita de forma mais clara nos textos que Friedrick Hayek escreveu ao longo do século XX. Preocupado em discutir o tema da “ética na política”, Hayek definiu a corrupção como a apropriação para fins particulares dos recursos públicos. Como o objeto da corrupção seria o dinheiro público, a definição proposta por Hayek sugere que o terreno da “coisa pública”, do “Estado”, é solo fértil para a corrupção. Podemos chamar essa definição de “liberal”.

    Bom, o conceito “corrupção” tem, pelo menos, três significados distintos: o republicano, o marxista e o liberal. Nem carece de gastar muito papel e tinta pra mostrar que na crise brasileira contemporânea um desses significados foi privilegiado: o liberal. Ao menos na minha avaliação, isso não aconteceu à toa, sendo um projeto planejado deliberadamente por segmentos poderosíssimos das elites brasileiras para realizar um antigo sonho, para viabilizar um projeto que vem sendo frustrado desde a década de 1940.

    Que projeto é esse? Que sonho é esse que animou durante esse tempo todo o sono da direita brasileira, mas que jamais foi plenamente realizado?

    Pra responder, apresento uma breve síntese da história contemporânea do Brasil. Síntese histórica é igual prudência e canja de galinha: é sempre bem-vinda. O conhecimento histórico é útil à vida.

    Trata-se do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, projeto que começou a ser defendido no final dos anos 1940 pela UDN, partido político que na época foi o portador da narrativa da redemocratização que marcou a transição da Ditadura do Estado Novo para a ordem democrática que se consolidaria em 1945. Não era, ainda, o “Estado Mínimo” neoliberal, mas sim um projeto desenvolvimentista internacionalista que priorizava o mercado e o capital, considerando o Estado um obstáculo para a prosperidade nacional.

    Esse projeto desenvolvimentista jamais foi aprovado nas urnas, o que explica em parte o transformismo golpista da UDN. Em algum momento da década de 1950, a UDN cansou de brincar de eleição e passou a recorrer ao expediente golpista. Já que o povo não colaborava, a UDN resolveu caminhar sem o povo mesmo. A aproximação com os militares foi uma consequência quase natural.

    A aliança entre a UDN e os militares viabilizou o golpe civil-militar de 1964. Mas como os militares não são seres acéfalos, não serviram como simples instrumento para a realização do projeto udenista. Acabou mesmo que a UDN deu com os burros n’água, pois os milicos sentaram na cadeira do poder e ali ficaram por mais de 20 anos, perseguindo até mesmo os aliados de véspera, como o líder udenista Carlos Lacerda.

    E o pior para o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” vou contar agora: os militares não efetivaram o projeto udenista, pelo contrário, já que em vários aspectos os governos militares podem ser definidos como estatais-desenvolvimentistas. Isso não significa um elogio aos militares, bem longe disso, pois a ditadura foi fundada em um golpe que destituiu um governo democraticamente eleito. Diante desse vício de origem, nenhum ato da ditadura militar pode ser considerado legítimo.

    Enfim, não foi com a UDN e não foi com os militares que o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” se tornou realidade.

    O projeto voltou com força no final dos anos 1980 e pautou as eleições presidenciais de 1989. Sob a batuta do “Consenso de Washington”, um jovem político alagoano, bonitinho mas ordinário, prometeu “caçar os marajás”. Ou em outras palavras, combater a “corrupção”. Adivinhem como? Enxugando o Estado.

    Sabemos bem o que aconteceu com esse jovem e charmoso político alagoano. Collor também não conseguiu realizar o velho sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”.

    Com um discurso de propaganda em muitos aspectos parecidos com o de Collor, só que acrescido da narrativa da “estabilidade econômica resultante do plano real”, Fernando Henrique Cardoso se submeteu às urnas em 1994. E venceu. Havia chegado a vez do príncipe da sociologia uspiana tentar realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, dessa vez com a legitimidade de uma vitória eleitoral.

    O sucesso foi relativo. Sem dúvidas, FHC avançou mais que seus antecessores, mas no final dos seus oito anos de governo ficou a sensação de que foi pouco, de que dava pra entregar mais. O neoliberalismo é um lobo faminto.

    Por mais que o governo de Lula tenha negociado com a agenda neoliberal, apenas com muita desonestidade intelectual seria possível dizer que o desmonte iniciado pelos tucanos foi mantido pelos governos petistas. Com a eleição de Lula, o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” sofreu um duro revés. Mas o lobo não é só faminto. É insistente e teimoso também.

    O que estou querendo dizer é: A crise brasileira contemporânea representa uma nova ofensiva desse lobo neoliberal contra o Estado brasileiro e pra isso é necessário algo a mais do que o simples argumento macroeconômico. É que esse negócio de economia, de números, não convence muito, tem pouca eficiência retórica.

    É aqui que o tratamento da “corrupção” na perspectiva liberal vai cumprir sua função discursiva, ao definir o Estado como o antro da corrupção, como o cabaré da imoralidade. A diferença é que a experiência mostrou que o marketing político não basta, que é necessário algo mais forte: a judicialização da política. Nasce assim, lá em 2005, a aliança que até a semana passada era a força política mais poderosa da República: o concubinato entre a mídia hegemônica e setores do poder judiciário.

    Quem não lembra de Joaquim Barbosa, o homem da capa preta que prometia colocar todos os políticos corruptos na cadeia?

    O tal combate à corrupção foi seletivo e serviu apenas para desestabilizar os governos petistas, que estavam fortalecendo o Estado como grande agente de regulação estratégica do desenvolvimento nacional. Lideranças petistas foram perseguidas judicialmente, como foi o caso de José Dirceu e José Genoíno, e isso sob os aplausos de uma opinião pública raivosa, com fome de vísceras.

    Pouco importava o devido processo legal, desde que os “corruptos” fossem punidos e os “corruptos”, é claro, eram as lideranças petistas. Pronto! A matriz da crise está aqui. Só que do outro lado tinha um certo Luiz Inácio, cabra esperto, inteligente, que conseguiu sobreviver à primeira ofensiva do conglomerado “judiciário/imprensa hegemônica”.

    Nos anos seguintes, com a prosperidade econômica resultante do boom das commodities, os ânimos foram pacificados. Tava entrando dinheiro no bolso de todo mundo e a opção lulista em não tensionar as contradições estruturais fez com que o lobo faminto e temporariamente saciado pudesse dormir.

    O jogo mudou a partir de 2013, em virtude da combinação da crise econômica com algumas escolhas políticas da presidenta Dilma. Pois sim, em muitos aspectos o “dilmismo” é diferente do “lulismo”. Ainda precisamos avançar na conceituação do “dilmismo”. Não é isso que faço aqui.

    O lobo acordou, mais faminto que nunca e viu naquele momento uma chance de ouro para realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”. Outra vez foi evocada a narrativa liberal do combate à corrupção. Foi assim que o governo da presidenta Dilma foi desestabilizado, foi com essa semântica que o golpe de 2016 se efetivou, novamente sob os aplausos dos “brasileiros de bem”, indignados com a corrupção.

    Mal sabiam os “brasileiros de bem” que eles estavam sendo bombardeados por uma narrativa que deu ao conceito “corrupção” um sentido específico, que de forma alguma é o único. Assim, com essa narrativa, Dilma foi derrubada e Lula condenado, em processos jurídicos profundamente politizados e questionados pela comunidade jurídica nacional e internacional.

    Acontece que a crise é um processo em movimento que ainda não acabou. Ao que parece, acabamos de entrar num outro momento da cronologia da crise: com Lula condenado e virtualmente preso, chegou a hora do lobo neoliberal devorar todo o banquete. O lobo é insaciável.

    E pra matar a fome do lobo, nada melhor do que servir, numa bandeja de prata, os privilégios do judiciário. Não é possível a realização do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” com um judiciário tão caro, cheio dos privilégios, cheio das pensões vitalícias.

    Bastaram menos de 72 horas após a condenação de Lula para aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até aqui marcada por lealdade recíproca, se dissolver. Moro, Dallagnol, Bretas, até então representados como heróis nas páginas dos principais jornais da imprensa brasileira, se tornaram aproveitadores da coisa pública, se tornaram corruptos.

    Justo agora, os privilégios tão conhecidos por todos nós começaram a incomodar a imprensa hegemônica. De forma alguma, quero defender os juízes, mas precisamos entender que os ataques midiáticos ao judiciário fazem parte do mesmo projeto neoliberal que desestabilizou o reformismo petista. O lobo é faminto, teimoso e criativo. Tomara que as esquerdas brasileiras não se deixem seduzir pelo uivo do lobo, travestido de canto de sereia. Tem sereia não, meus amigos. É lobo mesmo, com os dentes enormes, mais perigoso que aquele jantou a chapeuzinho vermelho. Ou almoçou? Não sei.

    Escrever no olho do furacão é sempre um desafio e aquele que se arrisca acaba botando a língua na guilhotina. Não tem jeito. Por isso, arrisco a integridade da minha língua dizendo que temos um elemento novo na cronologia da crise brasileira.

    As duas forças que juntas foram as responsáveis pela aplicação do golpe têm projetos distintos e até mesmo rivais para o futuro da nação: de um lado, o judiciário querendo uma República dos bacharéis, onde os magistrados serão os guardiões da moral pública, com a devida recompensa, sob a forma de privilégios que não estão disponíveis a nenhum outro setor do funcionalismo público. Do outro lado, a imprensa hegemônica, que representando os interesses do neoliberalismo vê na atual conjuntura de crise a chance para tornar realidade, de uma vez por todas, o antigo sonho do “Estado Mínimo” brasileiro.

    Há um curto-circuito no coração do golpe! Em tempos tão difíceis, com tantas notícias ruins, talvez exista aqui algo a se comemorar.

    (*) Com ilustração de Cau Gomez

     

  • Pasadena vazou outra vez

    Pasadena vazou outra vez

    Com base em informações ainda não tornadas públicas pelo, Tribunal de Contas da União, a Folha de São Paulo divulgou hoje, 29/08, que auditores do tribunal teriam isentado o Conselho de Administração da Petrobras de ter cometido qualquer “ato de gestão irregular” no episódio da compra da refinaria de Pasadena.

    O relatório técnico, no entanto, ainda não é público. Somente está disponível para os ministros que, na sessão Ordinária de Plenário de amanhã (30/08, às 14:30hs), apreciarão a matéria. O ministro relator, Vital do Rêgo, assim como os ministros participantes da sessão, pode acompanhar ou divergir do relatório técnico.

    Refinaria de Mentiras

    Ao pesquisar sobre os termos “Pasadena” e Dilma”, no próprio site da Folha, encontramos 605 resultados em 2014. Desnecessário dizer que a maioria das matérias levantavam suspeitas de corrupção na compra da refinaria. Os editoriais do jornal, nesse período, tiveram títulos como: “Refinaria de mentiras” e “Sombras na Petrobras”.

    A Petrobras de Dilma

    A colunista da Folha, Eliane Cantanhêde, na matéria “A Petrobras de Dilma”, repetia a falsa comparação de que “A Petrobras simplesmente pagou US$ 360 milhões por 50% dessa refinaria, que fora comprada um ano antes por US$ 42,5 milhões.” (FSP 20/03/2014) Eliane Cantanhêde é ex-Folha. Hoje, empresta ela seu talento para contar “histórias” à Globonews.

    A refinaria sem refinamento de Dilma

    Vinícius Torres Freire, também colunista do jornal, no artigo “A refinaria sem refinamento de Dilma” fazia coro: “Dilma presidia o conselho de administração da Petrobras em fevereiro de 2006, quando ela e outros autorizaram a empresa a comprar refinaria nos EUA (US$ 360 milhões por 50% de um negócio que um ano antes saíra por US$ 42,5 milhões)”. (FSP, 21/03/2014)

    O verdadeiro mensalão

    Barbara Gancia, com o título “O verdadeiro Mensalão”, escreveu: “Não é de hoje que a tal compra da refinaria de Pasadena surge na boca de empresários como sendo emblemática dos desmandos do PT. Ela é o verdadeiro mensalão. Ali é que eles veem a amostra de desmontagem de quadros técnicos e cargos de carreira para o aparelhamento de que tanto falam. Estão ali as grandes somas, sem aliados para repartir. Um contrato fajuto, um ativo multiplicado 100 vezes… E tudo isso tendo à disposição o maior financiador do país e uma das maiores empresas do mundo, que tinha recém descoberto a maior bacia de petróleo… Faz-me rir, mensalão, troco de pinga!”(FSP 21/03/2014)

    Procurador diz que prejuízo da Petrobras nos EUA ‘não foi só um mau negócio’

    Matéria de Dimmi Amora trazia o procurador do Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União), Marinus Marsico. “Não foi só um mau negócio, o que pode acontecer em qualquer empresa. Era algo completamente evitável e por isso pedimos que se apure as responsabilidades de quem fez esse negócio e que eles sejam condenados por gestão temerária, sejam multados e tenham que devolver os recursos desperdiçados”, disse o procurador. (“Procurador diz que prejuízo da Petrobras nos EUA ‘não foi só um mau negócio’”, FSP 27/02/2013)

    A correção de Cerqueira Leite

    O físico e membro do Conselho Editorial do jornal, Rogério Cezar Cerqueira Leite, jogou uma agulha no palheiro de notícias incorretas: “Após quase um mês de confusões, a presidente da Petrobras, Graça Foster, explica que o valor pago pela Astra foi de US$ 248 milhões, que somados a investimentos alcançariam US$ 390 milhões.” (FSP 29/04) Em outras palavras, na ponta do valor pago pela Petrobras, as afirmações de Cantanhêde e Torres Freire estavam erradas em mais de US$ 100 milhões. A Petrobras não pagou os US$ 360 milhões que os colunistas afirmaram. Eles também estavam errados nos valores pagos e investidos pela Astra na refinaria.

    A correção de Gabrielli

    José Sérgio Gabrielli de Azevedo, ex-presidente da Petrobras, em matéria na Folha, “Pasadena: mitos e verdades”, corrigiu o valor que a Astra pagou pela refinaria: “Vamos aos mitos: o primeiro refere-se ao fato de que o antigo proprietário de Pasadena, o grupo Astra, pagou US$ 42,5 milhões pela refinaria e depois revendeu à Petrobras por US$ 1,25 bilhão.”

    Prossegue Gabrielli: “A verdade é que a Astra desembolsou US$ 360 milhões antes de revender por US$ 554 milhões, sendo US$ 259 milhões pagos pela Petrobras em 2006, como afirmou a presidente da empresa, Graça Foster, e US$ 295 milhões posteriormente à disputa judicial, já em junho de 2012, mas considerando as condições de mercado de 2006. O crescimento da demanda de derivados nos EUA, sobretudo de 2004 a 2007, levou a um aumento progressivo no preço das refinarias, contudo, o valor de Pasadena foi inferior à média das transações em 2006.” (FSP 20/04/2014)

    Quem perde com informações falsas?

    Cantanhêde e Torres Freire, e toda imprensa, levaram as pessoas a crer que a corrupção era evidente na compra da refinaria de Pasadena. As correções nos valores pouco efeito tiveram no ano eleitoral de 2014. Mesmo assim Dilma ganhou. Mas o país…

    Por fim

    Depois de ampla exploração política, será que o caso da refinari de Pasadena terminará amanhã? Ou um pedido de vista buscará continuar o sangramento de Dilma e do PT? Como a Folha de São Paulo noticiará? Fará 605 matérias se corrigindo, se o caso terminar sem acusação de “ato de gestão irregular”? E o que farão Veja, Globo, Istoé, Estado, etc.?