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    Podcast poético traz diálogo entre condenados e os que condenam

    Série “Fórum de Investigações Poéticas” é resultado de vivência artística dentro de uma instituição do judiciário. Projeto traduz os meandros do sistema em arte e informação acessível a todos

    Artistas chegam numa repartição pública brasileira para vivenciar, por um ano e meio, o cotidiano da instituição. É uma residência artística, mas nos meandros das estruturas dos governos. O desafio é compreender as dinâmicas das instituições de poder e, com os agentes do Estado, usar as ferramentas da arte e da comunicação para mostrar a importância das pessoas que trabalham ali e facilitar o diálogo dos órgãos com a sociedade. A ideia, inovadora por si só, vai ainda mais além nos dois primeiros episódios do podcast “Fórum de Investigações Poéticas”, que se propôs a compreender o sistema judiciário brasileiro, e terá um total de quatro programas mensais até o fim deste ano.

    “Ao entrar no mais refratário e inacessível dos poderes, o Judiciário, profissionais da música, poesia, artes visuais, design, jornalismo e até grafic motion encontraram uma brecha e uma necessidade: a interlocução”, explica o artista plástico residente Daniel Lima, diretor da produtora e editora Invisíveis Produções. Após três meses de visitas ao Fórum Brás das Varas Especiais da Infância e da Juventude, em São Paulo, ele e sua equipe -formada pelo jornalista livre, designer e fotógrafo Fernando Sato, a produtora Lais Ribeiro e o pesquisador Felipe Teixeira- perceberam, de cara, a necessidade de colocar no papel a prática e os conceitos dos processos jurídicos do local. Antes da série de podcasts, nasceu, assim, um diagrama com a cartografia daquele espaço e suas estruturas.

    O cartaz da cartografia (abaixo), que pode ser baixado neste link em alta resolução, traz desde a importância da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente até o que significam termos típicos daqueles corredores como “oitiva informal”, “representação pelo Ministério Público” e “relatório de diagnóstico polidimensional”. Também esclarece os diferentes papéis dos profissionais do Direito que atuam nas instâncias jurídicas.

    “Como a gente se sente quando entra numa delegacia? Num fórum? São ambientes áridos, desprendidos de uma relação social e humana”, pontua o jornalista Sato, da residência artística. “Quem está do seu lado e quem não está? Informação é a primeira defesa. A cartografia, o podcast, são formas de tentar empatar o jogo. Começar com o 0x0 e, a partir disso, entendermos se a justiça é cega mesmo. E pra quem.”

    Fórum de Investigações Poéticas – Fórum de Investigações Poéticas (750×421)

    “Nos deparamos com a perversidade de um mecanismo desde sempre criado para perpetuar privilégios e ser incompreensível para a maioria. É muito comum encontrar mães sem saber porque não foram ouvidas em determinado momento no Fórum ou porque o filho não pode se manifestar naquele dia diante do juiz. Existe todo um procedimento feito para excluir”, diz Daniel, que também é mestre em Psicologia e doutorando em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo.

    “Além dos familiares e responsáveis pelos jovens infratores, era preciso também criar algo que esclarecesse os trâmites e conceitos até para os próprios funcionários do Fórum que, mesmo lá dentro, não compreendiam muitas situações.”

    A Cartografia foi criada coletivamente pelo grupo de trabalho com artistas e agentes públicos. O informativo contemplou dúvidas de mães, condenados e traz ponderações de ativistas: ‘é um sistema feito para ser incompreensível para a maioria’ – Crédito: Fórum de Investigações Poéticas

    O informativo contou com uma equipe de aprendizado colaborativo com agentes do judiciário, além entrevistas com desembargadores e juízes. “A cartografia traz ainda ponderações fundamentais feitas por especialistas que propõem novas condutas à justiça penal e alternativas ao modelo vigente, de prisão até para crimes não violentos, que até hoje não deu certo”, pontua o diretor.

    Podcast ampliou o debate

    Mas, então, veio a pandemia da Covid-19… Entrevistas e encontros presenciais no Fórum ficam impossíveis. Daniel partiu para os podcasts. “Foi positivo pois pudemos ouvir muitos especialistas e trazer uma visão transversal do tema da justiça, passando pela educação, saúde mental, lazer e cultura. Não há como fazer reinserção social sem discutir o sistema de acesso aos direitos com um todo”. Com a abordagem ampliada, o diretor trouxe para as entrevistas trilhas sonoras originais criadas a partir dos depoimentos.

    O resultado é surpreendente. “É uma investigação poética, criada para sensibilizar os ouvintes pela arte. Mostramos esse assunto árido com afeto, no sentido de afetar o intelocutor no corpo, na alma, na micropolítica do dia-a-dia e na subjetividade de qualquer pessoa.” De fato, não é um podcast sobre justiça apenas para especialistas. E isso é intencional. “Nossa justiça, tão injusta, remanescente do escravismo, fincada no punitivismo, tem que passar por uma transformação cultural”, acredita o diretor, que gosta de chamar o resultado do posdcast de “ópera jornalística”.

    Os áudios contam com poesias, tambores, músicas próprias e mixagem cuidadosa que é, em si, um personagem das narrativas. Cada episódio também traz um teaser em vídeo como um convite para ouvir o podcast. Assista o primeiro:

    “A gente não superou o regime escravocrata”

    Lançado em agosto, o programa de estreia trata da incoerência entre os 30 anos da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, que transformou o jovem em sujeito de direitos com uma série de proteções e garantias, mas não mudou as estruturas dos estabelecimentos de internação degradantes e violentos para infratores. Para discutir o tema, foram convidados o juiz Jayme Garcia, o secretário de Justiça do Estado de São Paulo e Presidente da Fundação Casa, Paulo Dimas, e a mãe de dois jovens que estiveram nos corredores das varas de infância, Miriam Duarte, fundadora da Amparar (Associação de familiares e amigos de presos/as), que luta pelos direitos dos assistidos.

    O link para o Spotify: https://open.spotify.com/episode/24qSb33g9FaU4AUU6M7eXG

    Se preferir, ouça o podcast no YouTube clicando aqui.

    Jayme Garcia, juiz entrevistado e que recebeu o grupo de artistas no Fórum do Brás, passou pelo sistema penal como juiz de execução e hoje atua na vara da infância e juventude. No podcast, ele critica a contaminação do Direito criminal no sistema voltado para jovens, que tem como finalidade principal o processo socioeducativo.

    “O índice dos jovens internados é muito alto, o último levantamento apontou 23 mil”, relata o juiz. “Faço minha própria estatística: 93% dos jovens que passam pela na minha vara são pretos ou pardos. Mais de 60% dos internados são pretos ou pardos. Costumo dizer o seguinte: o sistema socioeducativo e o sistema prisional são a face mais visível da latente escravidão que existe ainda no Brasil. A gente não passou né? A gente não superou o regime escravocrata.”

    “Eles têm tudo aquilo o que não têm fora”

    O podcast segue com intervenções de poesia, música e o diálogo em que o presidente da Fundação Casa, Paulo Dimas explica que “a internação acaba sendo um espaço importante para jovens que não tem nenhum convívio familiar, não tem nenhuma proteção social”. Eles, segundo Dimas, dentro do espaço socioeducativo, crescem… “Por que ali tem tudo aquilo que eles não têm fora. Tem atendimento médico, quatro refeições por dia, oportunidade de prática esportiva, escola.” Só mesmo ouvindo para compreender. A trilha sonora da sequência é fundamental.

    Vale ouvir, por fim, o relato de Miriam, moradora do Jardim Planalto na zona Leste, uma vítima do sistema socioeducativo estatal. Mãe de três que filhos passaram pela antiga Febem (Fundação Bem Estar do Menor, que foi substituída pela Fundação Casa), conta que dois deles foram assassinados ainda na adolescência. “Tenho que lutar para me manter viva e respirar.” O relato traz em detalhes o que jamais deveria ser feito com crianças e famílias vulneráveis. Só ouvindo mesmo.

    O rapper Dexter e Preta Ferreira explicam o que viveram

    O segundo episódio do podcast Fórum de Investigações Poéticas, recém publicado, explica as três engrenagens da Justiça Criminal: Segurança Pública (atuação das polícias), Justiça Criminal (fórum, julgamento, acesso aos mecanismos de defesa) e Execução Penal (presídios e encarceramento em massa).

    Para entender o mecanismo, foram convidados o rapper Dexter e a cantora e atriz Preta Ferreira, ambos foram encarcerados e questionam o sistema criminal. Também foram ouvidas as advogadas Marina Dias e Tamires Sampaio.

    Laís Ribeiro, a produtora do projeto, resume bem a proposta que perpassa todos os episódios: “buscamos maneiras, pela arte, de articular ações com o próprio setor público crítico e democratizar informações super complexas também de maneira crítica”. Ela entende que o sistema penitenciário não é um dos piores do mundo por incompetência, “a segurança pública não é violenta com certos grupos sociais por acaso, o judiciário não é uma máquina de moer vidas e sonhos porque passamos por uma crise Estatal”. Pelo contrário. “Tudo está conforme o planejado e muitíssimo bem engrenado. Precisamos, enquanto sociedade, encontrar as brechas para agir.”

    Veja, abaixo, o teaser do programa. Aqui, link para ouvir o podcast na íntegra pelo YouTube. E pelo Spotify, aqui. Não perca os próximos episódios. É transformador.

    PARA SABER MAIS:
    Site do Fórum de Investigações Poética por Daniel Lima

    Reportagem originalmente publicada no blog MULHERIAS

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    GOG, o poeta: “Se tivesse teste psicotécnico, Bolsonaro não seria presidente!”

    Os repórteres Katia Passos e Fernando Sato, dos Jornalistas Livres conversaram com o poeta GOG, Genival Oliveira Gonçalves, no último dia 5, sobre sua carreira, que completa trinta anos em 2020, política, RAP e seu novo lançamento. O artista nascido em Sobradinho, no Distrito Federal, é conhecido como poeta do RAP Nacional e tem um grande histórico de contribuição para a construção do estilo no país, tendo sido o primeiro a abrir o próprio selo.

    Ao relembrar os trinta anos de carreira, GOG destacou o papel político de suas canções ao abordar o racismo e os partidos de esquerda:

    “Nossa carência política é de lideranças. Cadê as pessoas, a sororidade? Você não percebe isso nem na esquerda nem na direita. Quem está fazendo, quem está nas quebradas, hoje é o movimento social, é o MST que está produzindo.”

    GOG também não poupou de suas críticas o governo Bolsonaro:

    “Se tivesse teste psicotécnico, o Bolsonaro não seria presidente. Qualquer gestor público tem que passar por provas de inteligência emocional.”

    O poeta ressaltou que o presidente perdeu a oportunidade de unir o país neste momento. Para ele a crise política dos partidos esquerda pode ser resolvida quando ela se voltar para si mesma, esquecer o Bolsonaro e voltar e para as base.

    GOG destacou a importância das mídias independentes e como essa contra-narrativa dialoga  com o próprio RAP, como forma de comunicação crítica de de produção de narrativas marginalizadas. Ao longo da entrevista, o rapper cantou alguns de seus sucessos, como ‘Assassinos Sociais’ e ‘Brasil com P’. GOG respondeu diversas perguntas dos internautas ao longo da entrevista, além das perguntas dos repórteres.  

    Ao falar de RAP, o poeta mencionou as importância das rappers, e o papel feminino na cena:

    “É muita gente, a começar pela Ellen Oléria. Eu gosto muito tanto da música quanto da postura da Preta Rara. Ela me traz uma cena que passa pela transversalidade da música e da mulher negra mais empoderada”.

    Para ele, o RAP é anti-sistêmico por natureza, por emocionar ao falar das realidades em que é feito. Sobre seu novo trabalho, o 12º disco, com sete faixas, terá participação de Renan Inquérito e Fábio Brazza. O foco é ancestralidade e nesse ponto contará com a participação, também, de Milton Barbosa do MNU (Movimento Negro Unificado).

    Sobre o COVID-19, GOG lembrou:

    “Nessa pandemia do coronavírus, tem que ter atitude. Mas qual o papel do governo e porque o estado mínimo não serve? O Estado tinha que estar preparado para receber, também, o que é emergência e o que não foi esperado”.

    GOG insistiu sobre a importância de permanecer em casa, mesmo entendendo a preocupação de quem tem que sair para trabalhar: “Sem saúde você não traz o alimento”.

    Veja a entrevista: