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  • A difícil escolha entre cozinhar ou tomar banho

    A difícil escolha entre cozinhar ou tomar banho

    O Brasil concentra 53% da água doce da América do Sul e 12% do mundo. Esse recurso, essencial para a vida humana e cada dia mais cobiçado pelas grandes potências, corre sérios riscos de ser privatizado em nosso país. Depois que o Congresso Nacional aprovou e Bolsonaro sancionou, com vetos, há pouco mais de dois meses, o Novo Marco Legal do Saneamento (PL 4.162/2019), o governo federal tem feito gestões para que os governos estaduais apressem esse processo.

    Ana Luisa Naghettini, estudante de Matemática Computacional na UFMG e militante independente em defesa do meio ambiente, e Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

    Um forte lobby na mídia também está em ação. O objetivo, na linha da privatização imediata proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é que os governos estaduais vendam, rápido e a qualquer preço, as suas empresas. O objetivo é convencer a população de que a privatização das companhias de água e saneamento é “o único caminho para o Brasil enfrentar o grave déficit no setor”. Para tanto, dados alarmantes são apresentados quase diariamente: “48% da população brasileira não tem coleta de esgoto”; “o país convive com 3.257 lixões a céu aberto”; “é necessário investir R$ 753 bilhões até 2033 para enfrentar esses problemas”.
    Antes mesmo de a nova legislação ser aprovada, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), já dava um largo passo nesse sentido, com a Copasa, a estatal mineira de águas e saneamento, informando aos seus acionistas e ao mercado que iria contratar serviços para começar o processo de desestatização.

    A situação se torna mais grave ainda quando se sabe que, caso o Congresso Nacional não derrube os 11 vetos de Bolsonaro a esta legislação, as empresas estatais, responsáveis por 70% desse serviço, não poderão mais assinar contrato com os municípios, sendo obrigadas a se submeterem às licitações, sob a ótica do mercado. Além disso, a obrigação de realizar licitações e as metas de desempenho para contratos tenderão a prejudicar as empresas públicas locais, piorando a qualidade dos serviços prestados.

    Os vetos eram para ter entrado em pauta no Congresso em setembro, com muitos governadores e prefeitos trabalhando pela derrubada deles. Até agora não foram apreciados e não falta quem aposte que, por conta das eleições municipais, dificilmente isso acontecerá em 2020. O que complicará ainda mais a situação das empresas de saneamento, a começar pela Copasa.

    Risco

    Num momento em que o governo Bolsonaro é mundialmente criticado pelo desmonte das políticas ambientais e pela negligência no combate aos incêndios na Amazônia e no Pantanal, além do negacionismo em relação ao vírus do covid-19, não só a nova legislação sobre saneamento virou lei, como o risco agora é que essas empresas sejam privatizadas sem que as pessoas se deem conta da gravidade do que está em jogo.
    Uma das principais causas da rápida proliferação do covid-19 no Brasil (o país ostenta o triste recorde de terceiro no mundo em mortes) reside exatamente na falta de acesso de expressivos contingentes da população à água tratada e ao saneamento.
    Some-se a isso que estudo do Observatório Fluminense Covid-19 (formado por sete instituições de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro, entre elas a UFRJ e a UFF) aponta que a própria estabilização do vírus na América Latina deve se dar em patamares elevados e permanecer atuando na região por mais dois anos.

    Ao defender a privatização imediata de suas empresas de saneamento, o Brasil coloca-se na contramão do que acontece no mundo. Segundo estudo do Instituto Transnacional da Holanda (TNI), entre 2000 e 2017, cerca de 1700 municípios de 58 países, entre eles Berlim (Alemanha), Paris (França) e Budapeste (Hungria) reestatizaram seus serviços. Só na França, 106 cidades fizeram isso. Fora do continente europeu, Buenos Aires (Argentina) e La Paz (Bolívia) são alguns dos casos sul-americanos que reestatizaram serviços públicos básicos, entre eles o de fornecimento de água e ampliação de redes de esgoto.

    Lucro

    As principais razões para as reestatizações foram a colocação do lucro acima dos interesses das comunidades, o não cumprimento dos contratos, das metas de investimentos – principalmente nas áreas periféricas e mais carentes -, e os aumentos abusivos de tarifas.
    O governo Bolsonaro e a mídia corporativa brasileira que o apoia ignoram esse tipo de alerta e destacam apenas que “a livre concorrência no setor permitirá mais investimentos – são esperados R$ 600 bilhões, grande parte internacionais, até 2033” – e que “a universalização dos serviços de saneamento ocorrerá em 30 anos”. Acena-se com promessas, para quebrar resistências e ganhar a opinião pública.

    Não foi por falta de recursos, como alega o governo Bolsonaro, que se optou pela privatização. Um total de R$ 1,2 trilhão acaba de ser repassado para os bancos privados a título de auxiliá-los durante a pandemia. Um terço desse valor por ano seria mais do que suficiente para resolver o problema do saneamento no Brasil.
    Nada foi dito sobre a nova legislação possibilitar que os pobres fiquem cada vez mais distantes do acesso à água tratada e ao saneamento e que o alegado prazo próximo a vencer, para o fim dos lixões, foi prorrogado. Não foi dito, igualmente, que as empresas multinacionais dispõem agora de uma chance de ouro para controlar também as cobiçadas águas brasileiras.

    Esse, aliás, parece ser o ponto essencial, porém obscuro nessa legislação.

    A nova lei trata da questão do saneamento, mas empresas de saneamento são também as que fornecem água. Assim, a privatização das primeiras traria, como consequência, também a privatização das águas, cujo fornecimento ficaria a cargo de quem visa apenas o lucro.

    Dos atuais 5.571 municípios brasileiros, no máximo 500 têm condições de atrair investimentos no setor. Sem dúvida haverá disputa pela privatização de empresas estatais em grandes metrópoles como Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Curitiba e Brasília.

    Mas quais empresas se interessarão por fornecer serviços em municípios pobres do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, no sertão nordestino ou no interior da Amazônia? Esses, certamente, serão abandonados à própria sorte, pois o chamado “investimento cruzado”, que determina que o lucro obtido pelas empresas estatais nas áreas mais ricas seja aplicado nas regiões pobres e carentes, não existirá mais.

    Jereissati e sua Coca-Cola

    Não há também justificativa social para a pressa com a qual essa nova legislação foi aprovada. O relator da matéria, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), rejeitou todas as emendas de mérito propostas para que o texto não voltasse à Câmara dos Deputados para uma nova apreciação. A oposição propôs que a matéria fosse debatida após o fim da pandemia. Deveria ter sido o caminho natural, diante de uma medida de tamanha
    importância, mas foi derrotada.
    De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Sinis) de 2018, mais de 83% da população brasileira tem acesso a serviços de abastecimento de água e 53,2% usam serviços de esgotamento sanitário. O marco legal anterior, estabelecido por lei de 2007, definia diversos princípios fundamentais como universalidade, integralidade, controle social e utilização de tecnologias apropriadas.
    Também estabelecia funções de gestão para os serviços públicos, como planejamento municipal, estadual e nacional e a regulação, que devem ser usados como normas e padrões. Uma das mudanças mais significativas introduzida pelo novo Marco foi a retirada da autonomia dos estados e municípios do processo de contratação das empresas que distribuirão água para as populações e cuidarão dos resíduos sólidos.
    Em síntese, o que foi aprovado é um enorme retrocesso sob a ótica dos interesses da maioria da população. Razão pela qual a aprovação desse novo marco legal provocou reação imediata apenas nas redes sociais, pois a mídia corporativa o apoia e o endossa, bem como a toda a agenda ultraliberal de Paulo Guedes.

    “Sobreviverá quem puder pagar”, escreveu a destacada jornalista Hildegard Angel, ao frisar que “a água de nossas nascentes, fontes, rios, lagoas não pode ter dono. Querem engarrafar a água (…) colocar uma etiqueta e botar preço”.

    Já o deputado e ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias (PT-MG), preferiu lembrar que “a privatização das águas foi votada no dia em que morreram mais de 1100 brasileiros”, acrescentando que é “assustador observar esse tipo de prioridade, que é do grande capital e do mercado, não dos brasileiros”.

    Mais contundente, a presidente da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp, a companhia estatal de águas e saneamento do Estado de São Paulo, socióloga Francisca Adalgisa, garantiu que “é bala na cabeça da população mais pobre”, pois se essas empresas não forem privatizadas, também não receberão mais recursos do governo para os investimentos de que necessitam.
    Nada disso parece ter sensibilizado uma população anestesiada em meio a várias pandemias simultâneas. E o lobby pela privatização cresce e aposta na vitória de candidatos “sensíveis” ao mercado nas eleições desse ano nas principais capitais para facilitar as vendas.

    Ribs


    Atualmente no Brasil os serviços de água e esgoto são prestados, em sua grande maioria, por empresas estatais, não sendo vedada a possibilidade de associações entre entes estatais e o setor privado, através das chamadas parcerias público-privadas (PPPs). Nesse sentido, a Sabesp, a empresa de saneamento de São Paulo, é um mau exemplo, que a mídia corporativa brasileira esconde. Mesmo pública, a empresa tem 50% de seu capital privado. Os acionistas dão as cartas e deixam milhões de pessoas sem coleta e tratamento de esgoto na maior cidade do Brasil e da América Latina.

    Outro mau exemplo do que faz o setor privado nessa área é Manaus. Com 20 anos de gestão privada, a capital amazonense tem apenas 12,5% de cobertura de esgoto, dos quais só 30% são tratados. Mais de 600 mil pessoas – um terço do total da população -, continuam sem acesso à água potável. Não por acaso Manaus liderou a primeira onda de mortes por coronavírus no país e o risco de um retorno do vírus, mais forte ainda, na cidade é real.
    Por isso, o economista Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), consultor de agências da ONU e autor de mais de 40 livros sobre desenvolvimento econômico e social, propõe que diante do Covid-19 e da situação caótica da economia brasileira sob a gestão Bolsonaro é fundamental o resgate do papel do Estado, a adoção da renda básica generalizada, o reforço da saúde pública e o financiamento local, com a transferência, de maneira organizada, de
    recursos a cada município. “É no nível local que se sabe qual bairro é mais ameaçado, onde falta água ou saneamento, quais famílias estão mais fragilizadas”, afirma.
    O que Dowbor defende é o oposto do que define a nova legislação. Na mesma linha, o economista francês Thomas Piketty, autor de “Capital e Ideologia”, seu mais recente trabalho lançado no país, diz que as elites brasileiras cometem um erro ao perpetuar o abismo social, comprometendo o futuro da nação.
    Diferentemente do que pensa Piketty, as elites brasileiras sabem o que querem. Em 2009, no XXIII Fórum da Liberdade, promovido pelo Instituto Millenium, um think tank brasileiro ultraliberal, o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, figura reverenciada pela mídia nacional, proclamava: “jamais os direitos humanos irão suplantar o direito à propriedade”.

    Nos oito anos em que governou o Brasil (1995-2003) isso foi verdade. Seu governo privatizou mais de 100 empresas, entre elas a mineradora Vale do Rio Doce, rebatizada como Vale S.A. O argumento era o de sempre: “ineficiência” e falta de recursos para investir no setor.

    Doze anos depois, a Vale foi responsável pelos dois maiores crimes humanos e ambientais da história brasileira: o rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, ambas em Minas Gerais, com a morte de duas centenas e meia de pessoas e a destruição da bacia do rio Doce, um dos maiores da região Sudeste. As famílias dos mortos, desaparecidos e dos atingidos pela lama e água contaminada ainda lutam para receber indenizações. Enquanto isso, as ações da vale seguem nas alturas.
    Foi também no governo de Fernando Henrique Cardoso que o Brasil passou a ter agências reguladoras para fiscalizar a atuação das empresas recém-privatizadas. O resultado é que essas agências, Anatel, na área da telefonia, Anac, na aviação civil, e Aneel, nas águas e energia, rapidamente foram colonizadas pelo capital privado, por aqueles a quem deveria fiscalizar. E acabam não fiscalizando nada. Resultado: serviços de péssima qualidade, tarifas caras e cidadãos transformados em meros consumidores. E os serviços, antes um direito social, viraram atividade econômica regulada pelo mercado, possibilitando basicamente acúmulo do capital privado.

    Durante a realização do 8º Fórum Mundial da Água, em 2018 em Brasília, empresas como a gigante nacional de refrigerantes e cervejas Ambev, e as multinacionais Nestlé e Coca-Cola participaram do evento como financiadoras, mas também fizeram várias sugestões. Coincidentemente, essas sugestões, pelas mãos do senador Tasso Jereissati, foram transformadas em projeto de lei e agora integram o novo Marco do Saneamento. Para quem não sabe, Jereissati é acionista da Coca-Cola Brasil e um dos maiores interessados em entregar à iniciativa privada os bens comuns nacionais.
    Duramente criticadas pelos brasileiros em suas redes sociais, essas empresas apressaram-se em dizer que não têm nada a ver com a privatização de águas no país. A Coca-Cola Brasil divulgou um longo texto em que considera “boato” qualquer relação com o novo Marco Legal do Saneamento Básico. Já a Nestlé, há anos, vem desmentindo, também por redes sociais, que tenha interesse em privatizar o aquífero Guarani, uma reserva de 1,2 milhões de quilômetros quadrados, compartilhada por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

    Esse assunto, claro, nunca é tratado nas TVs ou emissoras de rádio.

    O então presidente da República, Michel Temer, que chegou ao poder depois do golpe, travestido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff em 2016, também negou que houvesse qualquer entendimento nesse sentido. Mas não deixa de ser coincidência que tenha sido em seu governo que o primeiro projeto de lei alterando a legislação de 2007 sobre saneamento fosse enviado ao Congresso.
    Igualmente não deixa de ser coincidência que esse novo marco tenha sido aprovado a toque de caixa pelo governo Bolsonaro, em plena pandemia, quando a população brasileira está assustada com o número crescente de mortos e sem condições de protestar nas ruas e praças públicas, como sempre fez.
    Pelo visto, o governo Bolsonaro está seguindo à risca a proposta de seu mundialmente criticado ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para quem a pandemia deveria ser aproveitada “para passar a boiada”.
    As medidas impopulares não só estão sendo aprovadas, como se preparam para sair do papel sem que a maioria das pessoas se dê conta disso. Quando perceberem, poderão já estar pagando muito mais caro pela água que utilizam. Ou, pior ainda: tendo que escolher entre cozinhar e tomar banho.

    Charge de Bacellar


  • Bolsonaro em pele de cordeiro. Quem acredita nisso, acredita em tudo

    Bolsonaro em pele de cordeiro. Quem acredita nisso, acredita em tudo

    Por Ricardo Melo*

    A mídia golpista festeja. FHC pede tolerância diante do capitão. Fernando Haddad e Guilherme Boulos aceitam o papel de vallets numa live pela “democracia”. Tudo isso porque Jair Bolsonaro baixou o tom ao sentir a água subindo acima do pescoço. Como se o problema do militar expulso do Exército fossem seus rompantes verbais.

    Nada disso. Bolsonaro virou refém de seus crimes e de sua famiglia. A prisão de Fabricio Queiroz desferiu um golpe quase mortal nos planos do mito. Queiroz sabe de tudo e um pouco mais. Se abrir a boca, Bolsonaro “já era” de direito, como já é de fato.

    À beira do precipício, Bolsonaro distribui afagos ao Judiciário e ao Legislativo. São tão sinceros quanto a negativa de assumir os croquis mostrando seus planos de explodir quartéis e uma adutora no Rio de Janeiro. Sua preocupação maior é barrar as investigações e o julgamento dele e sua famiglia no roubo de dinheiro público. Flavio Bolsonaro é um criminoso exposto à luz do sol. Basta examinar seus recursos quanto ao inquérito das rachadinhas. Seus advogados nunca discutem o mérito; apenas filigranas judiciais.

    Para isso contam com a complacência pérfida da “Justiça”. O desembargador carioca que decidiu o voto a favor da postergação do inquérito das rachadinhas é velho amigo da nova advogada do filho que é igual ao pai. No Superior Tribunal de Justiça, o presidente em exercício está acostumado a “matar no peito” as denúncias contra o presidente genocida. 85% de suas decisões têm sido favoráveis ao clã de milicianos.

    A operação em curso, porém, envolve mais coisa. Depois de fulminar a aposentadoria e os direitos trabalhistas, na surdina das “sessões virtuais”, o Senado há pouco aprovou a proposta de privatizar a água. Pra variar, o bolsoguedismo está pouco se lixando para os interesses do povo, desde que encha os bolsos do capital financeiro. Tentou passar a boiada da previdência privada. Não conseguiu (ainda). Mas água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

    Furou. Em poucas palavras: se o monstrengo for sancionado, só terá direito a água e saneamento quem puder satisfazer a ganância dos tubarões. Como sempre, o bolsoguedismo vai na contramão do que ocorre no mundo civilizado. É o que nos informa o noticiário. “Nos últimos 15 anos, houve pelo menos 180 casos de reestatizações em 35 países, como Alemanha, Argentina, Hungria, Bolívia, Moçambique e França. Em contraposição, neste mesmo período, muitos poucos casos de privatizações de água ocorreram. Este fenômeno de reestatizações vem se mostrando como uma tendência mundial. O número de reestatizações nas cidades duplicou nos últimos cinco anos, o que demonstra a aceleração desta tendência.”

    A essa altura, nem precisa se estender sobre o MEC. A cada dia, o terceiro ministro nomeado é pilhado em mentiras. O militar da reserva ( mais um) dizia que fez doutorado. Foi desmentido na lata pelo reitor da universidade argentina onde se gabava de ter conquistado o diploma. Sua tese de mestrado também subiu ao telhado pela denúncia de plágio escancarado. Pior: foi sob sua gestão no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) que aconteceu uma licitação de R$ 3 bilhões (já cancelada) para comprar computadores para as escolas públicas. Em algumas delas, por exemplo, cada aluno receberia cerca de…100 computadores por cabeça.

    O novo ministro correu para editar o currículo. Emenda pior que o soneto. No currículo lattes, agora admite nas entrelinhas que não tem o diploma de doutor. Mas não fala nada sobre o fato de que foi reprovado em três bancas diferentes. Tampouco explica como um não-doutor pode ser pós-doutorado numa universidade alemã. Sobre a licitação bilionária, tudo é silêncio. Abafa o caso.

    Não, não há saída enquanto Bolsonaro e sua gangue de milicianos permanecerem no poder. O Brasil continuará contabilizando milhares de mortos a cada dia, desempregados sem proteção e gente vivendo do nada e ainda menos. Só FHC mesmo para dizer que é preciso tolerar o militar genocida por mais dois anos.

    A pandemia limita a resposta do povo. Entre se aglomerar em manifestações e resguardar a vida, a maioria defende seu direito de viver. Mais do que justo. Mas a hora de ajustar as contas está cada vez mais perto. Com ou sem pandemia.

     

    *Ricardo Melo, jornalista, foi editor-executivo do Diário de S. Paulo, chefe de redação do Jornal da Tarde (quando ganhou o Prêmio Esso de criação gráfica) e editor da revista Brasil Investe do jornal Valor Econômico, além de repórter especial da Revista Exame e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Na televisão, trabalhou como chefe de redação do SBT e como diretor-executivo do Jornal da Band (Rede Bandeirantes) e editor-chefe do Jornal da Globo (Rede Globo). Presidiu a EBC por indicação da presidenta Dilma Rousseff.

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  • Até quando o voto será um ato de vingança?

    Até quando o voto será um ato de vingança?

    ARTIGO

    RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Hoje, quando ouvimos falar em “democracia”, naturalmente pensamos em eleitores indo periodicamente às urnas para escolher seus representantes. Nem sempre foi assim, pois ao longo da história da humanidade, a palavra “democracia” já foi utilizada para definir as mais diversas experiências políticas.

    A democracia direta ateniense, onde os cidadãos (homens, maiores de idade e não estrangeiros), iam à praça pública participar diretamente do governo da cidade. As repúblicas socialistas que no século XX prometeram realizar a utopia na terra. As organizações políticas dos povos originários que, segundo os pesquisadores de coloniais e pós-coloniais, também podem ser consideradas exemplos de “democracia”.

    A nossa experiência democrática moderna nasceu no século XVIII, nos EUA e na Europa, tendo se tornado hegemônica apenas no final do século XX, com o fim da Guerra Fria. A partir de então, uma questão fundamental se coloca para todos aqueles que se dedicam a discutir política na lógica das democracias liberais burguesas:

    O que faz com que as pessoas saiam de suas casas, se coloquem diante de uma urna e votem nesse candidato e não naquele?

    É claro que não há uma resposta única. Depende do lugar, das circunstâncias. Tomando apenas o histórico das eleições presidenciais brasileiras desde a década de 1990, podemos dizer que, entre nós, o eleitor médio quase sempre votou em quem entendia ser mais capaz de atender às suas necessidades materiais mais imediatas. Quase sempre. Em 2018, algo mudou, o que diz muito sobre a gravidade do colapso que hoje desestabiliza a democracia brasileira.

    Peço licença ao leitor e à leitora para uma breve digressão na forma de memória pessoal.

    Minha primeira memória política data de algum momento de 1994. Eu contava oito anos e pela primeira vez ouvia falar em “eleição”. Lembro como se fosse hoje meu avô, homem simples, trabalhador manual, dizendo que ia votar no Fernando Henrique porque “agora dá pra encher o carrinho no supermercado”.

    Menino curioso que era, fui ver quem era o tal Fernando Henrique e achei que o cabra tinha mesmo cara de presidente. Eu também queria votar no Fernando Henrique.

    A escolha eleitoral do meu avô fazia todo sentido.

    Fernando Henrique Cardoso era diretamente vinculado ao plano real, que para o povão significava o controle da inflação. Poucas coisas são mais cruéis com as famílias pobres do que a inflação. A classe média consegue se virar, cancela a pizza no shopping no final de semana, muda a marca do sabão em pó. Num cenário de hiperinflação, os pobres assalariados passam fome em algum momento do mês.

    Era óbvio que meu avô ia votar no Fernando Henrique, até porque o outro cara era um barbudão meio maltrapilho, grevista. Pobre não gosta de político maltrapilho, não gosta de greve. Quem gosta é intelectual de classe média.

    Acabou que Fernando Henrique venceu de lavada, no primeiro turno. Em 1998 foi a mesma coisa, a mesma racionalidade. Aqui, lembro melhor. Lá em casa, todo mundo votou no príncipe uspiano. O carrinho do supermercado ainda estava cheio.

    Em 2002, a coisa mudou, em todos os sentidos.

    O outro cara já não era maltrapilho, a barba estava aparadinha. Escreveu uma carta prometendo honrar os compromissos e não fazer loucuras. O povão gostou. Tolo é quem acha que apenas o mercado gosta de estabilidade. Além disso, o carrinho do supermercado já não estava mais cheio.

    Lá em casa, todo mundo foi de Lula. Lembro da minha gente assistindo o último debate com o Serra, na Globo. O dois numa arena tipo anfiteatro, superprodução. Não lembro se foi minha mãe, minha vó, ou uma tia qualquer que disse “Vocês viram como Lula tá bonito?”.

    Finalmente, Lula estava pronto. E cá entre nós, mais bonito também. Ô homem alinhado pra vestir um terno com elegância.

    2006, 2010. O povão estava feliz. Todo mundo com televisão nova pra assistir a novela e o futebol. Geladeira pra beber água gelada. Construindo uns puxadinhos nas casas pra dar quarto pra filha caçula, que já tava virando mocinha e precisava de privacidade. Penteadeira rosa pra enfeitar. Só acha que consumo é algo de menor importância quem pôde consumir desde o berço. Não existe cidadania sem ampliação do consumo.

    Até aqui a materialidade era o fundamento da racionalidade eleitoral. O povão escolhia aquele que fosse capaz de fazer a vida ser um tantinho menos sofrida.

    Tudo mudou em 2018, ainda que os sinais já se fizessem sentir desde 2014, passando pelas eleições municipais de 2016. Em 2014, Marina Silva, sem tempo de TV e sem estrutura partidária, teve mais de 20 milhões votos, antecipando de alguma maneira aquilo que aconteceria, em maior grau, com Bolsonaro quatro anos mais tarde. Em 2016, o PT amargou grandes derrotas, perdendo 60% das prefituras que governava até então.

    Outra energia política circulava pela sociedade brasileira.

    Desde 2013 que ia se acumulando uma potência de ódio contra todo o sistema político. Soma-se o fato de que o carrinho do supermercado não estava cheio, de que aqueles que sentiram o gostinho do consumo não estavam mais consumindo. Pior do que não consumir é parar de consumir.

    O povão, especialmente a baixa classe média do sul/sudeste, que pelo tamanho é decisiva em qualquer eleição presidencial, foi às urnas em 2018 babando de ódio, querendo vingança.

    Por isso, votaram em um candidato relativamente desconhecido e que já prometia um chicago boy como o comandante da economia. Por isso, o eleitor médio ignorou Paulo Guedes e votou contra seus próprios interesses materiais.

    Guedes representa o que há de pior no capitalismo. É o capitalismo parasitário, que não produz, que não gera emprego, que não administra birosca de esquina.

    Infelizmente, nada indica que esse clima de ódio tenha arrefecido. Parte considerável da população continua querendo vingança e enxerga em Bolsonaro a figura do anjo vingador.

    Sozinho com a urna, quando ninguém está vendo, o eleitor médio se vinga daqueles que acredita serem os culpados pela corrupção generalizada, pela agressão aos valores que considera serem sagrados, pela frustração de seus desejos.

    Basta saber até quando as pessoas estarão dispostas a sacrificar seus interesses materiais em nome de um desejo de vingança.

     

     

  • A MAIORIA PODE ERRAR?

    A MAIORIA PODE ERRAR?

     

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com charge de Berzé 

     

     

    Contrariando as previsões dos especialistas, Jair Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos válidos, uma votação bem expressiva. O bolsonarismo, definitivamente, é um movimento de massas. Está presente em tudo quanto é lugar, em todos os segmentos da sociedade. A popularidade do presidente eleito é altíssima.

    Eu, que não votei em Bolsonaro, que tenho verdadeiro horror à sua figura pública, pergunto a mim mesmo e pergunto a você, leitor e leitora: será possível que tanta gente assim esteja errada? A maioria pode errar?

    É essa a discussão que proponho neste ensaio.

    Pra começar, argumento que a maioria pode, sim, errar, e isso acontece com alguma frequência. Por isso, a cultura política ocidental inventou arranjos institucionais para proteger a sociedade dos erros da maioria. Está errado quem acha que a democracia é a simples imposição da vontade da maioria. A democracia é bem mais que isso, seu funcionamento é bem mais complexo.

    Quando o que está em discussão é a vontade das massas, costumamos tomar dois caminhos opostos: ou fetichizamos ou desqualificamos a opinião da maioria.

    As duas soluções são fáceis e equivocadas. Na primeira, o erro está em acreditar que a verdade é uma simples questão de soma matemática. Se 1 + 1 + 1 + 1….. dizem que o mundo é de determinada maneira, é porque deve ser mesmo. A segunda é alimentada por uma perspectiva prepotente e elitista que desvaloriza a opinião da maioria pelo simples fato de ser maioria.

    Penso que o caminho correto a tomar é aquele que encara com muita naturalidade o fato de que as massas podem, simplesmente, errar na avaliação da realidade, assim como podem acertar também. A história contemporânea do Brasil nos apresenta alguns exemplos.

     

    1) As vitórias de Fernando Henrique Cardoso em 1994 e 1998.

    A massa que elegeu e reelegeu Fernando Henrique Cardoso sabia o que estava fazendo. Na época, eu ainda não tinha maioridade eleitoral. Se tivesse, certamente teria votado em Lula. Mas não posso negar que as pessoas sabiam o que estavam fazendo. Fernando Henrique Cardoso representava o controle da inflação, que é uma das políticas sociais mais importantes na proteção das famílias mais pobres.

    A inflação é particularmente cruel com as famílias mais pobres. A classe média ainda tem onde cortar em sua cesta de consumo, consegue se adaptar. Muda a marca do sabão em pó, cancela o almoço no restaurante aos domingos. A família pobre, que já vive no limite do consumo básico, é destruída pela inflação.

    Lembro do meu avô, homem muito humilde, indo votar todo animado em Fernando Henrique Cardoso. O velho dizia: “Agora, com cem reais, a gente consegue encher o carrinho o mês inteiro”.

    Fernando Henrique Cardoso foi eleito e reeleito por essa racionalidade popular. Não seria o meu candidato, mas não dá pra dizer que o povão estava errado.

     

    2) A reeleição de Lula em 2006 e a eleição de Dilma em 2010.

    É uma obviedade que não foram os governos dirigidos pelo Partidos dos Trabalhadores que inventaram as políticas públicas de amparo à pobreza. Se engatarmos uma marcha-ré na linha do tempo, passaremos pelos governos de Fernando Henrique Cardoso, pelos governos dos militares (especialmente pelo de Geisel), pelos direitos trabalhistas criados por João Goulart e Getúlio Vargas e chegaremos sabe Deus onde.

    Porém, sem dúvida, os governos do PT levaram essas políticas sociais a níveis de alcance e eficiência até então inéditos na história do Brasil.

    Como nunca antes no nosso país, a pobreza extrema foi combatida. O miserável foi transformado em pobre. O impacto na vida das pessoas foi enorme. Como mostra o pioneiro estudo de André Singer sobre as eleições de 2006, as pessoas perceberam isso e manifestaram eleitoralmente essa percepção.

    O Partido dos Trabalhadores, que até esse momento tinha enorme dificuldade em furar a bolha da classe média progressista e dos movimentos sociais organizados, se tornou o preferido da grande massa de brasileiros e brasileiras mais pobres.

    Há pouco, conversando com uma senhora muito humilde, em um bar aqui de Salvador, ouvi algo muito ilustrativo: “O Fernando Henrique dava um pozinho pra misturar na comida das crianças. Lula deu o Bolsa Família pra gente comprar um gás, um desodorante”.

    A maioria reelegeu Lula em 2006 e elegeu Dilma em 2010 movida por um diagnóstico correto da realidade. Não foi apenas o desejo da mudança, o mesmo que elegeu Lula em 2002. Nem o medo do retrocesso, que reelegeu Dilma em 2014.

    Em 2006 e em 2010, a maioria acertou na avaliação, partindo de uma experiência real de distribuição de renda e de melhoria na qualidade de vida. Temos aqui racionalidade política, cálculo eleitoral.

     

    3) A vitória de Jair Bolsonaro em 2018.

    A disputa eleitoral de 2018 foi atravessada pelos temas da corrupção e da violência urbana. Tudo mais ficou em segundo plano. Esses dois assuntos têm especial poder de afetar os sentidos das pessoas.

    A criatura liga a TV às 20 horas, depois de um dia inteiro de trabalho repetitivo e estafante, e é bombardeada por denúncias de corrupção em série. Pouco importa se os devidos processos legais confirmaram ou não as tais denúncias. Foi pra TV, no horário nobre. É o que basta para aumentar a sensação de corrupção.

    Naquele papo no portão, a pessoa fica sabendo que o filho da vizinha foi assaltado, logo depois dela mesma ter sido assaltada. Na TV, Datena espetaculariza cada evento de violência. Pouco importam as estatísticas. A sensação de insegurança já está plantada.

    Jair Bolsonaro foi capaz de se alimentar desse duplo sentimento para se apresentar como o candidato da mudança, como um antissistema. Grande parte de sua vitória se explica pelo sucesso em construir essa narrativa. Não foi apenas isso, é claro. Mas foi isso também.

    Mas esperem aí: Bolsonaro é deputado há 28 anos. Foram sete mandatos. Deputado federal pelo Rio de Janeiro, Bolsonaro nunca fez nada pela segurança pública do Estado conhecido com o mais violento do Brasil. Até 2016, Bolsonaro era filiado ao PP, o campeão da corrupção.

    Diante de uma realidade tão gritante, como ele conseguiu convencer 55% do eleitorado de que era um outsider capaz de “mudar tudo isso aí”?

    Está aqui o erro da maioria. Um gravíssimo erro de avaliação. Diferente dos casos anteriores dos quais falei há pouco, nas eleições desse ano a maioria, simplesmente, avaliou errado, errou e errou muito.

    O que levou a maioria ao erro?

    Uma campanha poderosíssima de destruição da imagem do petismo, a única força política capaz de fazer frente ao bolsonarismo; o impedimento de Lula; a indústria de fake news pelo WhatsApp… sem dúvida todos são aspectos importantes, mas que devem ser lidos com cuidado, para não corrermos o risco de endossar a velha tese da “manipulação da massa”.

    O povão não é gado. O povão erra o caminho, toma a trilha do abate, mas faz porque quer. As pessoas olham para a realidade e agem, conduzidas por uma lógica própria. O eleitor médio brasileiro viu, erradamente, Bolsonaro como um outsider porque quis ver, porque se sentiu afetado pela imagem de Bolsonaro, se identificou com ele.

    O tiozão tomando café da manhã numa mesa toda bagunçada, olhando para a tela do celular por cima dos óculos pendurados na ponta do nariz. Vocabulário estreito. Soluções fáceis para os problemas mais complexos. Falta de pudor em verbalizar uma agenda comportamental de controle dos corpos de mulheres e gays. A empatia levou ao erro.

    A maioria não foi manipulada. A maioria, simplesmente, errou.

    E agora? Temos um governo não empossado e que em menos de um mês depois de eleito já foi capaz de provocar dois incidentes internacionais, comprometendo diretamente o fluxo de exportação de proteína animal para os países árabes e os serviços de saúde que Cuba exportava para nós.

    Como proteger a sociedade de um gravíssimo erro cometido pela maioria?

    Novamente, as instituições da República, que desde o início da crise estão falhando, serão testadas.

    Não interessa se o governo eleito pela maioria quer flexibilizar o porte de armas de fogo. Os estudiosos da segurança pública dizem que essa não é a solução. Cabe ao Ministério Público contrariar a vontade da maioria.

    Se a maioria quer a criminalização das mulheres que interrompem gravidez, é função do STF contraditar e garantir o direito individual ao controle feminino do processo reprodutivo. Não importa se a medida é impopular. Nem sempre a opinião pública está correta.

    Não se trata de autoritarismo, ou de falta de respeito à democracia. A democracia não é a simples tradução da vontade da maioria. A democracia é o império do bem comum. Nem sempre a maioria sabe o que é o bem comum. A função da minoria ilustrada, nesses momentos, é evitar a destruição total, salvando a sociedade dela mesma.

    É função da democracia proteger as minorias da tirania da maioria.

    Resta saber se as instituições que até aqui faltaram com a República serão capazes dessa intervenção messiânica. Tomara que sim. Temo que não.

     

  • O lugar de Temer na história do Brasil

    O lugar de Temer na história do Brasil

     

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Michel Temer está se despedindo do Palácio do Jaburu. Pois sim, apesar do grande esforço para ser presidente, mesmo sem voto, Temer não quis morar no Palácio do Planalto. Ficou com medo dos fantasmas, dizem as boas línguas. Deve ser um lugar com energia carregada mesmo.

    Resta saber qual será o destino de Temer: a cadeia ou algum cargo no governo de Jair Bolsonaro. Só o tempo dirá. O que dá pra fazer agora é tentar entender os impactos do governo de Michel Temer na sociedade brasileira.

    Qual é o lugar de Michel Temer na história do Brasil?

    Foram apenas dois anos e meio de governo. Mas como a cronologia não é ciência exata, nesses dois anos e meio cabem 70 anos de história, da longa história de um projeto desenvolvimentista por muito tempo fracassado e que, finalmente, se sagrou vitorioso. Temer foi o arquiteto dessa vitória.

    Mas que projeto desenvolvimentista é esse?

    Vamos lá, à velha e boa síntese histórica, que sempre ajuda a orientar as ideias.

    O “Brasil Moderno” nasceu na década de 1930, quando uma revolução administrativa foi realizada no período que aprendemos a chamar de “Era Vargas”. Essa revolução transformou o Estado, o poder público, no agente idealizador e organizador do desenvolvimento nacional. Isso não quer dizer que em períodos anteriores não existiram experiências de centralização política e administrativa. O Estado brasileiro não nasceu em 1930, é claro. O protagonismo do governo central já tinha se manifestado antes, mas nada comparado ao que começou a acontecer depois da chegada do grupo político chefiado por Getúlio Vargas ao poder.

    Onde tem governo existe oposição. Sempre foi assim. No mesmo tempo em que o projeto getulista ganhava contornos mais nítidos, surgiu outro projeto de desenvolvimento, um projeto rival.

    Esse outro projeto, representado por um partido político chamado UDN, propunha que o desenvolvimento do Brasil deveria ser organizado e estimulado pelo mercado nacional e internacional, pela iniciativa privada. Na época, esse projeto ficou conhecido como “entreguista”. Pra usar uma linguagem mais sóbria, vou chamá-lo aqui de “privatista”.

    Importante mesmo é saber que desde então a história brasileira é movida pelo conflito entre esses dois projetos de desenvolvimento. De um lado, o desenvolvimento tutelado pelo Estado. Do outro lado, o desenvolvimento impulsionado pelas forças mercado.

    A UDN, liderada por um sujeito chamado Carlos Lacerda, fez o que podia (e o que não podia) pra derrotar o projeto estatista, hegemônico na década de 1950.

    A UDN Tentou inviabilizar o segundo governo de Getúlio, que começo em 1951 e terminou de forma trágica em 1954.

    A UDN tentou impedir a posse de Juscelino Kubitschek, tentou governar junto com Jânio Quadros.

    A UDN ajudou a tocar fogo no país durante o governo de João Goulart e acabou se associando aos militares, com a expectativa de chegar ao poder através de um golpe de Estado.

    A UDN deu com os burros n’água. Os militares assumiram em 1964 e Carlos Lacerda saiu corrido do Brasil. Foi mordido pela cobra que ajudou a alimentar.

    No geral, a agenda de desenvolvimento efetivada pela ditadura militar esteve mais perto do projeto estatista do que do projeto privatista. Os anos passaram e as coisas mudaram. No final da década de 1980, os defensores do mercado encontraram um novo amor: Fernando Collor de Melo.

    Collor falava em diminuir o Estado, em atacar os privilégios do funcionalismo público, em combater a corrupção. Era o caçador dos marajás. Por trás do discurso, estava o velho projeto de entregar o desenvolvimento nacional ao controle das forças do mercado. Não deu certo. Ainda não foi dessa vez.

    Fernando Henrique Cardoso subiu a rampa em 1995, levando junto o projeto privatista. Agora vai? Será que foi?

    Foi até foi, mas foi bem mais ou menos.

    A coisa andou, o projeto privatista conseguiu algumas vitórias, entre elas a aprovação da Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, no finalzinho da era FHC. A LRF trouxe uma novidade: agora, o Estado não teria mais poderes plenos para investir, para estimular o desenvolvimento nacional. O investimento ficaria limitado ao “equilíbrio das contas públicas”. Foi uma vitória do projeto privatista, sem dúvida. Mas foi pouco. A LRF e meia dúzia de privatizações. Os tucanos não entregaram tudo que prometeram.

    Fernando Henrique Cardoso prometeu acabar com a Era Vargas e refundar o Estado brasileiro. Não conseguiu. Tentou, mas não conseguiu.

    Chega 2003 e é a vez de Lula subir a rampa.

    Apesar de ter mantido parte da cultura administrativa formulada por FHC, os governos do PT brecaram o projeto privatista. O Estado voltou a ser o tutor do desenvolvimento nacional. Isso é especialmente verdadeiro para os governos de Dilma Rousseff, muito menos tolerantes com as ambições do mercado que os governos de Lula. Dilma é herdeira direta do projeto desenvolvimentista getulista, que chegou a ela através do filtro do brizolismo. Dilma jogou duro, talvez até demais.

    Dilma levou à ideia de que cabe ao Estado conduzir o progresso da nação ao limite do exagero, segundo alguns.

    Não à toa, o golpe parlamentar de 2016 se travestiu de impeachment usando exatamente a Lei da Responsabilidade Fiscal. Aconteceram ali dois golpes: o golpe óbvio se deu pelo afastamento da presidenta eleita sem comprovação de crime de responsabilidade. O golpe simbólico se manifestou no pretexto, que foi um ataque ao projeto estatista. É como se as forças do mercado, avalistas do golpe estivessem dizendo: o Estado não pode mais tutelar a economia. Se o ciclo é de crise, o Estado deve obedecer a tendência do mercado.

    O golpe parlamentar de 2016 criminalizou o movimento anticíclico do Estado brasileiro. Essa foi uma vitória do projeto privatista. Não parou por aí.

    Michel Temer conseguiu fazer em dois anos e meio o que os militares não fizeram (ou não quiseram fazer) em 21 anos, o que FHC não conseguiu fazer em oito anos.

    Michel Temer refundou o Estado moderno brasileiro. Temer, o refundador!

    Somente um governo não eleito e comandado por um político extremamente habilidoso e experiente poderia chegar tão longe, conseguiria fazer tanto e em tão pouco tempo. Isso não é um elogio, que fique claro.

    A PEC 55 (a PEC dos Gastos ou a PEC do Fim do Mundo) é o símbolo dessa refundação.

    Temer terminou o que FHC começou. A PEC 55 é a complementação da Lei da Responsabilidade Fiscal. Agora, o Estado está subordinado ao mercado por 20 anos. Não é mais o interesse público que condiciona o investimento do Estado, mas, sim, os limites dados pelo crescimento do mercado. O projeto privatista, finalmente, venceu.

    Mas ainda existia o risco das eleições de 2018. Ah, as eleições. O projeto privatista é escaldado com esse papo de eleição. Sempre perdeu muito mais do que ganhou. Historicamente, as urnas rejeitaram o projeto privatista.

    O projeto privatista deu um jeito para contornar o problema, um jeito engenhoso, habilidoso. Nem precisou recorrer à baioneta e à farda verde oliva. A formalidade democrática foi mantida, a formalidade.

    Primeiro, o candidato favorito, o principal antagonista do projeto privatista, foi impedido de concorrer. A expectativa era o retorno dos tucanos. Não foi possível. Sobrou Bolsonaro. O projeto privatista topou o risco.

    Depois, a discussão moral foi trazida para o centro do debate eleitoral. Corrupção pra cá, kit gay pra lá, mamadeira erótica acolá. Não houve confronto entre projetos. O segundo turno passou sem que sequer um debate acontecesse. Nenhum debate!

    A língua de Paulo Guedes coçou. Ele começou a falar. Foi silenciado. Bolsonaro foi eleito sem dizer como pretende governar o Brasil. Qualquer um minimamente atento sabe como Bolsonaro pretende governar o Brasil.

    Bolsonaro pretende seguir a trilha aberta por Temer.

    Temer é o refundador do Estado brasileiro. É este o lugar que ele ocupa na história do Brasil. Bolsonaro é figura secundária e tem a única função de manter o que foi feito, de evitar retrocessos. Pra isso, o PT precisa ser destruído. Lula deve morrer preso, mudo e longe de qualquer palanque.

    Bolsonaro vai se contentar com esse lugar secundário? Vai aceitar ser um mero coadjuvante? Ou ele vai se deixar levar pela histeria ideológica e moralista, tentando imprimir sua marca pessoal nessa “nova era”? Será Bolsonaro um presente de grego para o projeto privatista, como foram Jânio Quadros e Collor?

    A ver o que acontece. Só dá pra escrever história se for do passado.

     

  • Um canalha à porta do Planalto

    Um canalha à porta do Planalto

    por Francisco Assis

     

    “… chegou ao limite de obrigar crianças a presenciarem

    o dilacerante espetáculo do espancamento dos respectivos progenitores.”

    1. Carlos Alberto Brilhante Ustra foi um dos maiores, senão mesmo o maior torcionário [torturador], no tempo da ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Em 2008 foi o primeiro oficial condenado por sequestro e tortura. Comprovadamente, maltratou física e psicologicamente centenas de pessoas e chegou ao limite de obrigar crianças a presenciarem o dilacerante espetáculo do espancamento dos respectivos progenitores. Nunca reconheceu os seus crimes nem manifestou o mais leve arrependimento pelos seus atos desumanos. Era um canalha. Morreu em 2015, em Brasília, na cama de um hospital.

    Foi precisamente este torcionário miserável que o então deputado federal Jair Bolsonaro homenageou no momento em que votou a favor do impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Nessa ocasião, Bolsonaro pronunciou uma declaração que o define integralmente: dedicou o seu voto à “memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. É impossível imaginar, naquele contexto, uma afirmação mais vil, um comportamento mais indigno, uma atitude mais asquerosa. Bolsonaro revelou-se ali o que ele verdadeiramente é: um canalha em estado puro.

    “Quem elogia o torturador de uma jovem mulher absolutamente indefesa

    atribui-se a si próprio um estatuto praticamente sub-humano.”

    O que é um canalha em estado puro? É alguém que contraria qualquer tipo de critério moral e se coloca num plano comportamental pré ou anticivilizacional. Quem elogia o torturador de uma jovem mulher absolutamente indefesa atribui-se a si próprio um estatuto praticamente sub-humano. Bolsonaro é dessa estirpe, desse rol de gente que leva à interrogação sobre o que subsiste de humano no homem que literalmente se desumaniza. Theodore Adorno levou essa questão até ao limite do pensável, quando formulou a sua célebre afirmação: “escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque se tornou impossível escrever poemas”. E, contudo, a poesia sobreviveu. O Homem resiste ao que de desumanizador ele inscreve na história. Isso não é razão para renunciar à denúncia da barbárie.

    “Jair Bolsonaro é um dos rostos perfeitos dessa barbárie em versão atual.”

    A barbárie tem muitos rostos: é estúpida, boçal, intolerante, sectária, fanática, simplista, racista, xenófoba, homofóbica, sexista, classista, irremediavelmente preconceituosa, inevitavelmente primária. Jair Bolsonaro é um dos rostos perfeitos dessa barbárie em versão atual. Tudo nele aponta para a pequenez: é um ser intelectualmente medíocre, eticamente execrável, politicamente vulgar. Nele observa-se uma prodigiosa ausência de qualquer tipo de grandeza e uma assustadora presença de tudo quanto invalida um cidadão para o desempenho da mais humilde função pública. Por isso mesmo ele é extraordinariamente perigoso: é a expressão quase exemplar do homem sem qualidades subitamente erigido a um papel de liderança.

    “Bolsonaro é pouco mais do que um analfabeto ideológico

    com todos os perigos que isso mesmo encerra”

    Bolsonaro não é Hitler, não é Mussolini, não é sequer Franco. Em bom rigor, se quisermos ater-nos a um debate intelectual de natureza escolástica, ele não é bem a representação do fascismo. Há nele, contudo, na dimensão medíocre que a sua pobre personalidade proporciona, tudo aquilo de que a tradição fascista historicamente se alimentou. O anti-iluminismo, a exaltação sumária da unicidade nacional, a apologia da violência, o culto irracional do chefe. Bolsonaro é pouco mais do que um analfabeto ideológico com todos os perigos que isso mesmo encerra. Ele e a sua prole de jovens tontos significam hoje o maior perigo com que se depara o mundo ocidental.

    “… nem Lula, nem Dilma Rousseff alguma vez puseram em causa

    o Estado de Direito brasileiro.”

    2. Alguns analistas políticos, uns por ignorância, outros por má-fé, tentam convencer-nos que os brasileiros terão de escolher nas eleições presidenciais entre a cólera e a peste. Isso não corresponde minimamente à verdade. Equiparar Haddad a Bolsonaro constitui um ato moral e politicamente inqualificável. Quem o faz torna-se cúmplice de Bolsonaro, da sua vertigem proto-fascista, da sua propensão para o culto da violência. É por isso que não pode haver hesitações neste momento da história do Brasil e, de uma certa maneira, da própria história da Humanidade. Haddad é um intelectual sofisticado, um democrata respeitador dos princípios fundamentais das sociedades abertas e pluralistas, um homem de reconhecida integridade cívica e moral.

    O PT cometeu erros nos anos em que governou o Brasil? Cometeu decerto, como todos os demais partidos que desempenharam funções governativas durante muito tempo em qualquer parte do mundo. Há, porém, uma coisa que é preciso afirmar enfaticamente nesta hora especialmente dramática: nem Lula, nem Dilma Rousseff alguma vez puseram em causa o Estado de Direito brasileiro.

    Ambos pugnaram por um Brasil mais justo e contribuíram fortemente para o alargamento das condições de afirmação da liberdade individual de milhões de brasileiros a quem o destino aparentava não conceder outra vida que não fosse a miséria, o sofrimento e absoluta exclusão social. Fizeram-no sempre no respeito pelas regras da democracia liberal, enfrentando a hostilidade de uma comunicação social globalmente desfavorável e os ferozes ataques dos grandes oligopólios econômicos.

    Muitas vezes é difícil percebermos o que isso significa a partir de uma perspectiva europeia. Mas quem viajou dezenas de vezes para a América Latina, como eu fiz nos últimos anos, sabe bem o que isso traduz naquele sacrificado continente. Ali, ser pobre corresponde a ser muito mais pobre do que no nosso velho continente europeu; ali, ser mulher, ser homossexual, ser indígena, ser desempregado, ser mãe solteira, comporta uma carga sem correspondência com o que se passa no mundo que nós próprios habitamos.

    “Sejamos claros, no Brasil, hoje, a opção é evidente:

    Haddad significa a civilização, Bolsonaro representa a barbárie.”

    Uma vitória de Bolsonaro significaria um retrocesso civilizacional para o Brasil e para o mundo. Não estamos, por isso, a falar de um confronto político e ideológico normal. Estamos perante um verdadeiro confronto entre a civilização, por mais tênue que esta seja, e a barbárie. Haddad é hoje mais do que Haddad, é mais do que o PT, é mesmo mais do que o Brasil. Haddad é o símbolo da luta da razão crítica contra o obscurantismo, da liberdade face ao despotismo, da aspiração igualitária diante do culto das hierarquias de base biológica ou social. É por isso que este combate nos interpela a todos. Estamos perante um momento de divisão clara entre o que no Homem há de apelo à razão, ao culto da liberdade, ao sentido da fraternidade, e o que no mesmo Homem há de impulso básico para o autoritarismo, a servidão e a anulação da inteligência crítica. Há horas na história em que tudo se reconduz a uma dicotomia simples que é ela própria o oposto de uma redução ao simplismo. Sejamos claros, no Brasil, hoje, a opção é evidente: Haddad significa a civilização, Bolsonaro representa a barbárie.

    “Fernando Henrique Cardoso tem a obrigação moral de apoiar Haddad.”

    3. Fernando Henrique Cardoso tem a absoluta obrigação de se pronunciar num momento decisivo da vida do seu país. Este é o momento em que verdadeiramente se ajuizará do seu papel histórico. Até aqui prevaleceu a figura do intelectual brilhante, do ministro das finanças eficaz, do Presidente da República naturalmente polêmico, mas reconhecidamente superior. O seu passado responsabiliza-o especialmente nas presentes circunstâncias históricas. Fernando Henrique Cardoso tem a obrigação moral de apoiar Haddad. Se o não fizer apoucar-se-á perante os seus contemporâneos e sobretudo diante dos futuros historiadores do Brasil.

     

    • Francisco Assis é eurodeputado pelo PS português. Esse artigo foi originalmente publicado em: https://www.publico.pt/2018/10/11/mundo/opiniao/um-canalha-a-porta-do-planalto-1847097