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  • A PEDAGOGIA DO MEDO: escola militarizada no DF

    A PEDAGOGIA DO MEDO: escola militarizada no DF

     Por Dioclécio Luz

    Na primeira semana de agosto de 2019, duas escolas públicas do Distrito Federal (DF), decidiram em assembleia que não queriam se converter numa escola militarizada como pretendia o governo. Irritado com a decisão da comunidade escolar – pais, alunos, professores, servidores –  o governador Ibaneis Rocha deu a entender que iria implantar as EM na marra, e pretendia começar “justamente pelas escolas que rejeitaram o modelo”, disse à imprensa.

    A reação de Ibaneis simboliza o caráter dessa pretensa escola. O que se tem aqui é o autoritarismo tornado pedagogia, é o medo feito disciplina; a educação teve fim, a democracia foi substituída pelo autoritarismo. Isto é a escola militarizada
    Hoje o DF conta com nove escolas militarizadas e um total de 12.156 alunos e alunas matriculados. Tudo começou em janeiro de 2019, quando teve início o novo governo e seis escolas públicas foram convertidas ao novo modelo. Em agosto uma nova investida do governo capturou mais três escolas. Como se percebe, essas investidas ocorrem estrategicamente no início ou fim de semestre, quando não há atividade escolar ou elas serão paralisadas.

    Eis um projeto caracterizado por mentiras. Começa com o governo tentando mascarar o projeto militarista maquiando as escolas militarizadas como “gestão compartilhada” ou “escola cívico-militar”. Depois, tenta dar uma roupagem democrática: a Secretaria de Educação e a de Segurança Pública, responsáveis pela nova “escola”, promovem “assembleias” com a comunidade que seria soberana na decisão pela mudança. Foi quando duas escolas rejeitaram o projeto e o governador irritado disse que faria a mudança de qualquer jeito. Não espanta. Pais, alunos, representantes do Sindicato dos Professores do DF (Sinpro-DF), relatam que essas “assembleias” se dão sob pressão: quem é contra é hostilizado pelos organizadores.

    A escola militarizada tem como alvo os jovens oriundos da periferia. O objetivo é controla-los. Afinal, se esses pobres decidem reivindicar seus direitos, o Estado vai ter problema em atendê-los. Portanto, na falta de um controle de natalidade mais severo para os pobres que insistem em nascer, a solução é controlar a natalidade das ideias e das reinvindicações.
    O projeto recebe o apoio do governo Bolsonaro que anunciou a expansão dessas escolas. No dia 5 de setembro deste ano ele assinou decreto com o objetivo de implantar o modelo militarizado em 216 escolas até 2023. Esse tipo de escola não fazia parte do plano de governo de Ibaneis. Mas, para agradar ao presidente, no primeiro mês de governo Ibaneis criou as escolas militarizadas do DF.


    Coisa de fascista


    A escola militarizada atua sobre os jovens da periferia para que se tornem servis e obedientes. Os militares trazem da caserna o conceito de pátria e cidadania: obediência, disciplina, submissão. Não existe rebelde numa escola assim. Não por acaso, escolas com esse formato foram implantadas pelo fascismo de Benito Mussolini, nos idos de 1922. 
    Na Alemanha, em 1933, Adolf Hitler criou a Juventude Hitlerista, responsável por mobilizar mais de 5 milhões de jovens para o seu projeto de escola cívico-militar. Como nas atuais escolas militarizadas, o ensino nas escolas nazistas valorizava o nacionalismo, a obediência e a disciplina; defende a família e as tradições.
    Adolf Hitler diante da sua criação.
    Benito Mussolini diante dos alunos
    O filósofo, ex-ministro da educação no governo Lula, e professor da USP, Renato Janine Ribeiro, em entrevista à Rádio CBN (27/02/2019) disse:
    “A escola deve incentivar o aluno a ser rebelde, a ter opinião, questionar o professor, refletir sobre a sociedade. Isso é bom para a escola e para o aluno. A escola com militares é exatamente o contrário: ela pretende educar para um tempo que não existe mais – quando o professor era autoridade inquestionável. Esse tempo se foi, não volta mais”.
    Pelo visto voltou. E não só no Distrito Federal.

    Conforme o site Uol hoje o número dessas escolas chega a 120, espalhadas por 17 estados do Brasil. A grande maioria está em Goiás, po
    r obra e graça do ex-governador Marconi Perillo. O governador estava preocupado com os “baderneiros”: professores que faziam greve e alunos que ocupavam as escolas. No dia 10 de outubro de 2018, ao prestar depoimento na PF, Perillo foi preso preventivamente na operação “Cash Delivery” da Polícia Federal, acusado de receber R$ 12 milhões em propina da construtora Norberto Odebrecht.


    Soldadinhos de chumbo


    Engana-se, porém quem acha que a escola adotada por Mussolini e Hitler fascina somente a direita. O Piauí e a Bahia, sob o comando do Partido dos Trabalhadores, embarcaram nessa também. No caso do Piauí, conforme a revista Época, o governador petista Wellington Dias chegou a defender a criação de “Pelotões mirins” e “Combatentes mirins” – jovens formados pela Secretaria de Segurança Pública nos preceitos cívico-militares, nos moldes da Juventude hitlerista.

    Soldadinhos de chumbo? Sim. A escola impõe um regimento de quartel sobre as crianças, seus “soldadinhos”. O regimento trata de disciplina, civismo (na visão militar), religião e moral. É a pedagogia do medo. Os militares criam delatores dentro da escola, os chamados “líderes de turma”, com a missão de dedurar aqueles que não se comportam como manda o regimento. Com os policiais eles fiscalizam se a farda está limpa e a camisa por dentro da calça, se não incluíram adereços proibidos, se o corte de cabelo não é o proibido, se usam batom, o que é proibido; são vetados os brincos; os jovens não podem falar na linguagem deles. Nessa pretensa escola os alunos não se cumprimentam com o tradicional “bom dia”, mas com a continência militar; na hora de conversar com a autoridade, mãos para trás. Nada de namoro, nada de beijos e abraços. Se o major-diretor promover uma homenagem a qualquer-um-poderoso é obrigação do aluno estar lá, formar fileiras, cantar o hino nacional, bater palmas para esse qualquer-um, que pode ser um pilantra ou gente de bem. Nessa falsa escola o aluno obedece e ponto final.

    O jovem de uma escola como essa não é mais dono do seu corpo. Não pode assumir a sua identidade de raça ou de gênero, não pode ter opinião – é punido quem criticar a escola e os seus comandantes. É punido quem não seguir as “tradições” ou o “comportamento adequado”. O quê por exemplo? Aquilo que dá na cabeça do comandante. O aluno pode ser punido se questionar a “aula de civismo” ou falar que houve uma ditadura nesse país.

    Aplicar a jovens e adolescentes civis um regimento destinado a militares, isto é, gente que treina para o combate, é desumano e humilhante. Ainda mais quando se sabe que esse mesmo regimento está matando os adultos, os policiais militares. Eles são as primeiras vítimas de um sistema policial repressor que não respeita a humanidade que existe em cada um, levando os policiais ao estresse, depressão e suicídio.

    O jornalista Solon Neto, do site Sputniknews (20/03/2019), relata que “hoje, no estado de São Paulo, morrem mais policiais devido a suicídio do que em confrontos nas ruas. Entre 2017 e 2018, foram 71 suicídios nas Polícias Civil e Militar paulistas, enquanto nove policiais morreram em confronto nas ruas”.

    Diz o jornal El País (03/03/2019) que em São Paulo, “entre janeiro de 2014 e junho de 2018 três PMs foram diagnosticados, por dia, com transtornos mentais. Entre janeiro e agosto de 2018, 2.500 policiais militares foram afastados por transtornos mentais, mais que o dobro dos afastados em todo o ano de 2014”.

    Os números estão dizendo que o treinamento da PM é ineficiente e está matando os policiais. É preciso uma intervenção civil sobre as forças militares.


    Bizarro


    Diz o Governo do Distrito Federal (GDF) que a escola com a PM lá dentro dá mais segurança e disciplina ao aluno. Aqui se percebe uma tentativa de burlar a lei maior. Afinal, se é função constitucional do Estado garantir a segurança de todos, por que somente dentro da escola? Porque, historicamente, o Estado garante a segurança nos bairros nobres e abandona as periferias. O Estado despreza sua obrigação constitucional.

    A escola militarizada não elimina a violência na região. Pais e mães da periferia est
    ão tão acostumados com a ausência e o desprezo do Estado, que aceitam a migalha oferecida. Fazem isso por amor aos filhos, porque sabem que a escola (não isto que a PM e o governo inventaram) é um lugar sagrado. Essa “escola” não resolve o problema da violência, mas “pelo menos”, vai permitir que os jovens estudem. Por isso aceitam as mentiras do governo.

    Aqui a mentira tem requintes de crueldade porque incide sobre o sonho de muitas famílias, a esperança de uma situação melhor para os filhos, para que eles tenham aquilo que os pais não puderam ter: educação e um futuro melhor.

    O GDF também mentiu ao dizer aos pais que essa escola é como o Colégio Militar. Não é. Os colégios militares recebem três vezes mais recursos que as escolas públicas civis. Por alguma razão especial eles têm essa regalia. Para escola pública os recursos são regrados.

    Com a escola sob o comando da PM, os jovens da periferia, serão diariamente punidos. O fato é que o antigo território sagrado da sociedade, a escola, já não é mais o espaço aonde os jovens constroem suas primeiras relações sociais sadias. A escola sumiu. Ela não cabe na academia. Não se sabe de nenhuma Faculdade de educação que defenda essa projeto.

    Oficialmente a escola militarizada é um Frankenstein. Essa criatura bizarra não existe na forma da lei. Não há nenhuma lei em vigor fazendo referência a escola militarizada. Não se fala em escola militarizada na Constituição Federal, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Orgânica do Distrito Federal.
    O Plano Distrital de Educação (PDE), Lei nº 5.499/2015, estabelece prioridades e metas para o DF e é a principal referência para a elaboração de planos plurianuais nas diferentes esferas de gestão. O PDE instituiu “21 Metas para o desenvolvimento do ensino no Distrito Federal nos próximos 10 anos e 411 estratégias para o seu cumprimento”. Em nenhuma delas é citada a escola militarizada. O Conselho tutelar tampouco foi consultado.

    Considerando a dimensão do projeto imagina-se que o GDF tenha elaborado estudo aprofundado sobre a viabilidade desse tipo de escola. Fazendo uso da lei de acesso à informação, foi solicitado esse estudo à Secretaria de Educação (SED) e à de Segurança Pública (SSP). A SSP informou que não é sua obrigação produzir documento que não tem! Já a SED, em resposta, encaminhou um texto de quatro laudas mostrando de forma simplória o óbvio: que toda escola precisa de disciplina para funcionar bem. Não era um estudo sobre a implantação de escolas militarizadas. Não existe estudo.

    O fato é que a escola militarizada é ilegal. Ela fere pelo menos 17 dispositivos legais. Fere a Constituição Brasileira (CF), a Lei de Diretrizes e Bases da educação (LDB), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei de gestão democrática do DF, entre outros.

    O regimento disciplinar avança sobre o comportamento e o corpo da pessoa, indo além do território escolar. É punido quem “desrespeitar em público as convenções sociais” ou “namorar na escola ou usando o uniforme da escola”. Aqui se afronta o Art. 5 inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”.
    O Art. 5º é cláusula pétrea da Constituição, mas é agredido assim mesmo. O texto diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Mas ao vetar os cabelos longos dos meninos, o uso de brincos e tiaras pelas meninas, o Estado, mais exatamente a Polícia Militar, está invadindo na intimidade e privacidade dos jovens.
    No mesmo Art. 5º (inciso X) se diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Será que é desumano e degradante exigir que a criança obedeça calada as ordens do sargento, faça ordem unida como se fosse um soldado, corte o cabelo como se fosse militar? Não é humilhante impedir a garota de usar brincos e manter os cabelos soltos; impedir de falar na linguagem da sua tribo?

    Também se violenta o Art. 206 da CF que trata da gestão democrática. Os dirigentes dessa escola, policiais, escolhem os professores; os alunos não opi
    nam; a comunidade escolar deve obediência aos policiais. A PM decide tudo. Não existe mais eleição para diretoria. Não existe democracia.

    A Polícia não tem competência legal (e tampouco profissional) para a função delegada pelo governo estadual ou distrital.  Ao contrário do que diz o discurso oficial, a Polícia não está na escola para garantir segurança, mas para impor uma pedagogia – ela ensina, impondo a moral dos quartéis. Trata-se de desvio de função, como define o Art. 144 da CF.
    Tudo faz crer que o projeto de escola militarizada não se sustenta do ponto de vista legal. Mas não é esta a visão do Ministério Público. Em nota oficial, datada de 13 de fevereiro de 2019, as promotoras Cátia Gisele Martins Vergara e Márcia Pereira da Rocha, da Promotoria de Justiça de Defesa da Educação (PROEDUC), do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), afirmam que a proposta atende aos requisitos legais.

    Com o aval do MP o governador Ibaneis pretende ir longe. Neste momento, em algum lugar de Brasília, uma escola deixa de ser escola para se tornar esse Frankenstein. O Sinpro-DF já se manifestou contra, mas alguns professores e diretores de escola fazem a defesa desse modelo. Alunos e alunas, os principais atingidos por este modelo, têm pouco espaço para opinar. Se antes desconhecem o objetivo dessa escola, depois que ela é implantada aprendem que não podem reclamar – o regimento pune quem critica a escola.
  • Menos Dilma, mais Sheherazade! #SQN

    Menos Dilma, mais Sheherazade! #SQN

    Rachel Sheherazade, auto-intitulada cristã, jornalista e, agora, escritora percorre o País divulgando seu primeiro livro “O Brasil tem cura”. No último sábado (5) foi a vez de Manaus receber a tarde de autógrafos promovida pela editora Mundo Cristão, que publicou a obra.

    Quarenta minutos antes da chegada da jornalista, uma fila de pessoas visivelmente ansiosas pelo momento já se formava, enquanto outros transeuntes curiosos perguntavam o que haveria ali: “Sheherazade? Não sei quem é, mas deve ser famosa pelo tanto de gente, né?!”. Com alguns minutos de atraso, Rachel entra de mãos dadas com o marido e filhos, correspondendo a imagem de defensora da moral, dos bons costumes e da família tradicional brasileira. A recepção dos fãs é entusiasmada e juntos entoam gritos que pediam “menos Dilma, mais Rachel”.

    Sheherazade virou assunto nacional quando defendeu os “justiceiros” do Rio de Janeiro, em fevereiro do ano passado. Na ocasião — que a jornalista classificou como “legítima defesa coletiva”-, um garoto negro, suspeito de roubo, foi preso num poste e agredido pelo suposto crime. Sheherazade fez comentário opinativo, após a veiculação da notícia, discursando sobre a ineficiência do Estado em proteger seus “cidadãos de bem” como justificativa para a violência como solução.

    A repercussão do comentário da âncora do telejornal SBT Brasil rendeu, em setembro do mesmo ano, uma ação civil pública contra o SBT, ajuizado pelo Ministério Público Federal em São Paulo, por danos morais coletivos e exigia uma retratação da jornalista para esclarecer ao seu público que tal postura de violência não encontra legitimidade no ordenamento jurídico e constitui atividade criminosa ainda mais grave do que os crimes de furto imputados ao adolescente agredido. O caso foi visto por muitos jornalistas como um ataque ao Código de Ética do Jornalista. Alguns chegaram a afirmar que Rachel Sheherazade não é jornalista, pois “é dever do jornalista opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, justificou Leonardo Araújo em artigo no “Observatório da Imprensa”. Ainda assim, havia na grande fila da livraria estudantes de Jornalismo que a tomam como exemplo na profissão.

    Não por acaso, entre os simpatizantes presentes na tarde de autógrafos, estavam militantes do Partido Militar Brasileiro (PMBr), como o estudante de marketing, Eduardo Pimentel, 32, que acredita que as opiniões da jornalista incomodam a muitos pelo seu teor de ‘verdade’. “Rachel é uma jornalista comprometida com a verdade, honesta e representa os brasileiros que querem um país melhor. Por isso que ela é perseguida e buscam sempre calar sua voz”, disse.

    Curioso é que a claque de Sheherazade desconhece, ignora ou distorce deliberadamente a história da presidente e do País. Entre 1967 e 1970, Dilma lutou contra a ditadura enquanto militava no setor estudantil do Comando de Libertação Nacional (Colina). Ela foi presa e torturada nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e até no Rio de Janeiro. Em 2001, prestou depoimento ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), relatando a violência que sofrera durante o governo militar: apanhou de palmatória, levou choques e socos que resultaram em problemas na sua arcada dentária, além de ter sido colocada no pau de arara, símbolo da violência praticada nas torturas. Esses eram os métodos utilizados para calar a voz naquela época.

    Entre os admiradores de Sheherazade presentes, alguns conversavam sobre a mobilização do dia 13 de dezembro e sobre de que forma Rachel poderia ajudar a “causa”. A manifestação é convocada por organizações responsáveis pelos protestos pró-impeachment, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua (VPR), e ocorre na mesma data em que foi decretado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que suspendeu garantias e direitos constitucionais e inaugurou a fase mais dolorosa da Ditadura Militar.

    A trajetória da jornalista paraibana Sheherazade é marcada por um discurso que contempla parte significativa da sociedade brasileira que está indignada com as crises econômica e política e que, por isso, rechaça o atual governo. Um dos admiradores de Sheherazade é o jardineiro Ilmar de Moraes, 25, que se considera de extrema-direita. Ilmar acredita que a jornalista é uma representante do povo brasileiro e afirma que votou no ex-presidente Lula, mas hoje está decepcionado com o Governo do PT por conta dos escândalos ao qual os integrantes do partido vem sendo associados. “Votei no Lula. Depois que eu terminei meu Ensino Médio, eu pude ter um melhor raciocínio e entendo que quanto mais pobre você é, melhor pra esquerda”, contou, a despeito das informações sobre a redução da miséria no País a partir dos programas sociais implementados na última década.

    Em setembro desse ano, a jornalista estreou como colunista do site Fato Online para escrever (e gravar em áudios) suas opiniões sobre política, semanalmente. O primeiro texto versa sobre o pacote de medidas apresentado pela presidente Dilma Rousseff para “sanar o rombo no orçamento”, já a postagem mais recente fala sobre corrupção (um resumo involuntário do conteúdo do seu livro) e sentencia que “dos males do País, é o pior”. Defensora dos “valores morais”, cita um ícone da política neoliberal: “Dama de um caráter irretocável, a conservadora inglesa Margareth Thatcher acreditava que as práticas geram os valores, os valores formam o caráter e o caráter sela o destino de uma nação”. Thatcher, conhecida como “Dama de Ferro”, recuperou a Inglaterra após a crise dos anos 70, mas suas medidas também abriram caminho para um colapso social com desemprego massivo, o aumento da desigualdade e a triplicação da pobreza infantil entre 1979 e 1995.

    Depois de tantos processos, discussões e polêmicas, é possível percebermos uma Rachel Sherazade exageradamente simpática e doce. Quando perguntada sobre uma Rachel mais descontraída, como no vídeo sobre uva passa, diz que “o jornalista deve ser sério, mas não sisudo o tempo todo”. Talvez esse seja o motivo pelo qual a maior parte do público era composta por adolescentes e jovens naquela tarde de sábado. Enquanto faziam selfies e aguardavam a “diva”, alguns confessaram: “A gente nem gosta de política”.

    A passagem de Rachel por Manaus antecede a polêmica visita do deputado Jair Bolsonaro (PP) para receber a Comenda Ordem do Mérito Legislativo do Amazonas, por indicação do vice-presidente da Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa do Amazonas (ALEAM) e membro titular da Comissão de Direitos Humanos, deputado Platiny Soares (PV). Diferente do que pensam os admiradores está o professor de geografia Marcílio Colares, 36, que vê de forma preocupante o crescimento dos fãs de Rachel Sheherazade e até de Jair Bolsonaro em todo país. Enquanto olha os títulos disponíveis na seção de história da livraria, Marcílio desabafa: “Sheherazade e Bolsonaro têm um discurso fascista, eles são os representantes da direita brasileira, difundem o discurso de ódio. Isso é uma característica do fascismo e é preocupante, porque quanto mais o fascismo cresce, menos democracia existe no país”.

    Fazendo um resumo sobre a trajetória da jornalista até o sábado em que esteve em Manaus, trazemos a fala do professor universitário David Borges, quando, em fevereiro de 2014, analisou o discurso da jornalista em defesa dos “justiceiros” cariocas: “No final das contas, quando você concorda com Rachel Sheherazade isso diz muito mais a seu respeito do que a respeito dela”.

  • Uma imagem vale mais do que mil palavras?

    Uma imagem vale mais do que mil palavras?

    Por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá do MediaQuatro especial para os Jornalistas Livres

    Praticamente nada nas sociedades humanas é “natural”. Mesmo as necessidades animais básicas como comer, beber e dormir, são feitas de maneiras culturalmente construídas e codificadas. Comer carne de vaca ou de cachorro, beber água ou refrigerante, dormir em cama ou em rede nos foi ensinado pelos que vieram antes de nós. No princípio da humanidade, a maneira mais usual de se transmitir o conhecimento (e com ele os critérios de escolha, valoração e padrões de comportamento) era a oral. Mas havia também a consolidação, perpetuação e transmissão dos conceito-chave para a convivência, e mesmo existência em sociedade, pela forma de raciocínio definida pelo filósofo tcheco Vilém Flusser como mágico-imagético-circular, porque baseada no modo como as pessoas leem as imagens, com o olhar circulando pela cena e apreendendo dela o que considera mais significativo, normalmente reforçando os conceitos que já temos arraigados dentro de nós. Por um breve período de tempo, cerca de 3.300 anos, desde a redação dos primeiros cinco livros da bíblia, a forma de raciocínio hegemônica na sociedade passou pouco a pouco a ser a tempo-histórico-linear, baseada em textos, que precisam de uma ordem linear para serem lidos, pressupondo causas e consequências em todas as relações.

    Com a invenção da fotografia, contudo, qualquer pessoa, mesmo que não saiba ler textos, pode construir mensagens imagéticas com um simples click. Este é, aliás, o slogan de lançamento da primeira câmera fotográfica da Kodak, em 1888: você aperta o botão e nós fazemos o resto. Para Flusser, esse é o início de uma nova era, chamada de pós-histórica, onde o raciocínio mágico-imagético-circular volta com força. Com o advento dos meios de comunicação em massa, as imagens, não só visuais mas compostas também por textos, sons e narrativas orais, passam a fazer a mediação entre os homens e o mundo e entre os homens e os homens. Assim, as opiniões e conceitos que temos sobre os fatos hoje são construídas principalmente pelas imagens captadas para e distribuídas pelos grandes fluxos de informação. Como a forma de pensamento tem se tornado mais e mais mágico-imagético-circular, cada vez menos as pessoas nas ruas buscam as causas do que veem nos jornais, revistas, TVs e Internet, e pouco se atentam para as consequências dessas visões de mundo. As solução para problemas complexos parecem, então, simples e mágicas. Basta matarmos todos os bandidos, por exemplo, e viveremos em paz. Como diz Flusser:

    O fascínio mágico que emana das imagens técnicas é palpável a todo instante em nosso entorno. Vivemos, cada vez mais obviamente, em função de tal magia imagética: vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos cada vez mais em função de tais imagens

    Numa sociedade altamente fundada na visibilidade como a nossa, portanto, profissionais da imagem, como fotojornalistas, têm uma responsabilidade enorme em passar para o público pontos de vista sobre a realidade objetiva que levem à reflexão sobre como resolver de fato, ou ao menos minimizar, os sérios problemas sociais que temos. Quando um fotógrafo de conflitos internacionais que recebeu a mais importante premiação de cobertura de guerra do mundo, a medalha de ouro Robert Capa, decide retratar a violência brasileira, boa parte dos colegas ficamos empolgados com a possibilidade deste que, a meu ver, é o principal problema nacional (temos mais de 50 mil assassinatos por ano no Brasil há tempos) fosse representado por imagens, textos e contextos que pudessem impactar positivamente as políticas para o setor. Afinal, a visibilidade desse trabalho seria imensa devido à reputação do fotógrafo e seu fácil acesso a todos os grandes meios de comunicação do país. Infelizmente, não foi isso que aconteceu. Bem ao contrário.

    Foto de André Liohn, sem data, local ou legenda, distribuída com o Press Release de divulgação da exposição Revogo

    A mostra Revogo, exposta no Centro Cultural da Caixa Econômica Federal de São Paulo desde o último dia 10 de outubro, traz 60 fotografias tiradas em vários lugares do Brasil em três anos de atividade do fotojornalista André Liohn depois que voltou ao país após ter sido preso na guerra civil na Síria. Nas paredes estão distribuídas imagens de “trabalhadores” do tráfico de drogas ilegais, das manifestações populares de 2013, consumo de crack (resultantes de um ensaio encomendado pela revista Veja), bailes funk, e ações da polícia. Não há separações nos temas, nem contextualização e sequer legendas individuais. Num pequeno texto separado numa parede oposta às fotos temos as informações de que o autor pretende com a exposição “revogar” preconceitos de que o Brasil vive uma “guerra velada” (para ele, a situação é de “delinquência generalizada”), que se trata de retratos de momentos de “trauma” (quando a partir daí a vida toma inevitavelmente outro rumo) e que todas as fotos têm uma única legenda: Onde? Brasil. Quando? Hoje.

    Reprodução da página de André Liohn no Facebook para divulgação da exposição Revogo. Fotos de um lado, textos de outro.

    Apesar de dizer na série de vídeos oficiais da mostra[1] que a principal foto da exposição é a que mostra uma jovem sem calça sendo apalpada por quatro homens na Noite da Devassa, um baile funk promovido por uma marca de cerveja, essa imagem vem tendo divulgação menor por causa seu conteúdo de nudez. Outras aparecem apenas em galerias virtuais dos portais de notícias sob o alerta: Atenção, as imagens a seguir são fortes. A mais comumente publicada, distribuída junto com o press-release[2] e que abre a exposição, é a que mostra um menino negro de costas atirando com uma pistola automática sobre um campo relvado que parece ser um morro carioca. Em um dos vídeos oficiais, Liohn diz que foi dele a ideia de desafiar a criança, que teria 10 anos de idade e trabalharia no tráfico de drogas, a dar alguns tiros para provar que ela sabia atirar, contrariando os demais traficantes que diziam que ela era péssima atiradora.

    Reprodução da primeira página do caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo de 5 de outubro de 2015 sobre a exposição Revogo, de André Liohn

    Na reportagem de capa do caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, com o título Notícias de uma guerra particular, Lioh afirma que “As flores, marias-sem-vergonha, ilustram como são nossas crianças: nascem do nada, mas são frágeis, morrem do nada também”[3]. Na versão digital da reportagem de Anna Virgínia Balloussier, o título muda paraVencedor da medalha Robert Capa abre mostra sobre violência no Brasil. A matéria impressa, contudo, tem mais impacto, já que tiro disparado pela criança “atinge” em cheio as letras garrafais vermelhas que dão nome ao caderno de cultura do jornal. Outras duas fotos de adolescentes traficantes, ambos negros, aparecem na mostra. Nas duas os meninos portam pistolas automáticas, mas como são fotografados de frente, suas identidades são preservadas por máscaras representando demônios ou diabos.

    A matéria segue informando que “Liohn apontou sua lente para enterros, policiais dando dura em jovens negros e uma menina alucinada com o éter da garrafa plástica”. De fato, várias das fotos da mostra apresentam policiais na ativa, e sempre de forma altiva. A imagem abaixo, por exemplo, se assemelha muito a uma das fotos premiadas do conflito na Líbia, com os soldados rebeldes subindo uma escada[4]. Todas as pessoas detidas pela polícia nas imagens, por outro lado, estão de cabeça baixa, algemadas e subjugadas, e, coincidentemente ou não, são negras, assim como todos os cadáveres, cerca de 15, retratados nas fotografias.

    Foto de André Liohn, sem data, local ou legenda, para a exposição Revogo

    Na única foto em que aparecem oficiais ajudando alguém, essa pessoa também é um policial ferido, provavelmente numa das manifestações de 2013 (como não há data ou local específico, é difícil identificar com certeza). Durante as chamadas Jornadas de Junho, de 2013, tivemos a oportunidade de encontrar André Liohn várias vezes nas ruas, trabalhando. Em 7 de setembro de 2013, por exemplo, com a forte repressão policial às manifestações levando a um grande número de feridos, fizemos a imagem (que abre essa matéria) de oficiais agredindo dois fotógrafos independentes: Rodrigo Zaim (do R.U.A. Fotocoletivo) e Paulo Ishizuka (da Mídia NINJA). Também fizemos um retrato de Liohn, que chegou junto com alguns policiais quando os paramédicos vieram atender um manifestante atropelado por uma viatura policial e ele estava fotografando a vítima.

    André Liohn fotografando um manifestante atropelado por uma viatura policial sendo atendido por paramédicos em 07/09/2013. Foto: MediaQuatro

    Seu bom relacionamento com a polícia desde essa época certamente o ajudou a fazer algumas das fotos que compõem a exposição, acompanhando de dentro o trabalho da mais violenta tropa da corporação em São Paulo: a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar — ROTA. Se o método de Liohn para fotografar a violência no Brasil é o mesmo que ele utiliza nas guerras, conforme ele próprio afirma, sua cobertura é equivalente à dos jornalistas embedded, que viajam junto com as tropas e portanto reproduzem o seu ponto de vista e não o dos civis[5].

    Quando entrevistado pelo programa Roda Viva[6], assim que recebeu em 2012 a Robert Capa Gold Medal por sua cobertura da queda do Muammar Al Gaddafi na Líbia, Liohn afirmou que nunca se interessou em estudar fotografia, mas alguns conceitos básicos são essenciais e deveriam ter sido apreendidos ainda que de forma empírica no campo. Pra começar, temos as proposições de Roland Barthes no clássico A Mensagem Fotográfica[7], publicado originariamente em 1962, onde ele define a fotografia como uma “mensagem sem código”, já que seu significados não resultam apenas dos componentes denotativos (o que realmente aparece nas imagens e tem relação direta com o referente fotográfico) mas principalmente dos elementos conotativos, que são atribuídos culturalmente para se dar significação ao que se vê e estão presentes tanto dentro da imagem em si, como nos textos que a acompanham e nos contextos em que ela é apresentada.

    o código de conotação não era verossimilmente nem “natural” nem “artificial”, mas histórico, ou, se se prefere: “cultural”; os signos aí são gestos, atitudes, expressões, cores ou efeitos, dotados de certos sentidos em virtude do uso de uma certa sociedade: a ligação entre o significante e o significado, isto é, a significação propriamente dita, permanece, senão imotivada, pelo menos inteiramente histórica. […] a significação é, em suma, o movimento dialético que resolve a contradição entre o homem cultural e o homem natural. Graças ao seu código de conotação, a leitura da fotografia é portanto sempre histórica: ela depende do “saber” do leitor, exatamente como se se tratasse de uma língua verdadeira, inteligível somente se aprendemos os seus signos.

    No caso que Barthes chama de foto-choque, ou traumáticas, como as fotografias de conflitos, mortes, incêndios, tragédias, etc, exatamente o que Liohn se propõe a fazer, a tarefa de buscar reflexão sobre as problemáticas envolvidas é ainda mais ingrata.

    o trauma é precisamente o que suspende a linguagem e bloqueia a significação. Decerto, situações normalmente traumáticas podem ser apreendidas num processo de significação fotográfica; mas é que então precisamente elas são assinaladas por um código retórico que as distancia, as sublima, as pacifica. […] a foto-choque é por estrutura insignificante: nenhum valor, nenhum saber, em último termo nenhuma categorização verbal pode ter domínio sobre o processo institucional da significação. […] Por quê? É que, sem dúvida, como toda significação bem estruturada, a conotação fotográfica é uma atividade institucional; à escala da sociedade total, sua função é integrar o homem, isto é, dar-lhe segurança

    Nesse sentido, é incompatível “dar segurança” à sociedade “revogando” os preconceitos culturalmente associados à visão repassada pela mídia hegemônica de que vivemos uma guerra. Principalmente se as imagens reproduzem, sob o mesmo ponto de vista, situações milhões de vezes representadas nos jornais, revistas e TVs, e não trazem textos que podem contextualizar as problemáticas envolvidas. Em seu ensaio de 1931, Pequena história da fotografia, o ensaísta alemão Walter Benjamin já alertava para a importância das legendas na contextualização de uma imagem, atribuindo-lhe características e significados que não estão entre os elementos denotativos da fotografia.

    Aqui deve intervir a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a literalização de todas as relações da vida e sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de parecer vaga e aproximativa. […] Já se disse que ‘o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, mas quem não sabe fotografar’. Mas um fotógrafo que não sabe ler suas imagens não é pior do que um analfabeto? Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia?”

    No final, ao invés de revogar preconceitos, a exposição de André Liohn só faz reforçá-los. A leitura mágica-imagética-circular por uma população com medo da violência urbana estampada nos jornais e gritada nos programas policiais vespertinos das fotografias de Revogo, independente do que o autor diz nas entrevistas ou escreve na parede, será majoritariamente de que o perigo para a sociedade são meninos negros “de menor” e “impunes” empunhando pistolas automáticas.

    Foto de André Liohn, sem data, local ou legenda, para a exposição Revogo

    Por consequência dessa visão simplista e dualista, a única força armada que pode nos proteger são os policiais que se arriscam diariamente nessa “guerra”. Ora, se estamos tratando de uma guerra, é inevitável que eventualmente morram inocentes. É o que os estadunidenses chamam eufemisticamente, desde a Guerra do Vietnã, quando começaram a morrer mais civis do que soldados, de “danos colaterais”. Sob a mesma lógica, o inimigo deve ser exterminado, o que condiz com pesquisas recentes que apontam metade da população brasileira apoiando a máxima “bandido bom é bandido morto”[8] e quase 90% exigindo a diminuição da maioridade penal[9]. Afinal, como afirma Vilém Flusser,

    O caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas mensagens. […] Imagens são mediações entre o homem e o mundo. […] Imagens tem o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, interpõem-se entre o mundo e o homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função das imagens. […] O caráter aparentemente não-simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que o observador as olhe como se fossem janelas, e não imagens. O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos. Quando critica as imagens técnicas (se é que as critica), não o faz enquanto imagens, mas enquanto visões do mundo. Essa atitude do observador em face das imagens técnicas caracteriza a situação atual, onde tais imagens se preparam para eliminar os textos. Algo que apresenta consequências altamente perigosas.

    Em nenhum momento as causas reais da violência brasileira cotidiana, como a imensa letalidade policial (somente nos primeiros oito meses dessa ano a polícia paulista matou, oficialmente, 571 pessoas, sem contar com as chacinas como a de agosto último quando 32 pessoas foram executadas por encapuzados[10]) foram abordadas. Como dito anteriormente, isso somente reforça a “imagem” passada pelos meios de comunicação em massa, como a Folha de S. Paulo que no dia 15 de agosto publicou um texto do editor do Caderno Cotidiano especulando sobre como a maior chacina do ano pode afetar as chances políticas do Secretário de Segurança Pública do Estado, Alexandre Moraes, disputar (ou até ganhar) a prefeitura da capital, São Paulo, para terminar com sua vaga promessa de “rapidamente dar uma resposta’ sobre a noite mais violenta de sua gestão” [11], o que não aconteceu até agora, passados mais de 70 dias. Em outro texto beirando o surreal para quem não conhece a realidade das periferias brasileiras, parentes das pessoas assassinadas afirmam não esperar por justiça e que as vítimas estariam “no lugar errado, na hora errada”[12]. Não por acaso, o texto imediatamente anterior no jornal traz a manchete “12 dos 18 mortos não tinham antecedente criminal, diz polícia”[13], trazendo implícita a concepção largamente difundida na sociedade brasileira de que seis das vítimas seriam criminosos e portanto mereciam morrer, apesar do país não possuir uma pena capital e consequentemente sua execução extrajudicial ser um crime de homicídio passível de 27 anos de cadeia.

    Talvez Liohn pudesse aprender um pouco sobre o poder que as imagens têm de influenciar na realidade com outro vencedor da medalha de ouro Robert Capa, aliás, cinco vezes ganhador: o fotojornalista James Natchwey. No autobiográfico Fotógrafo de Guerra (2001) [14], ele conta que escolheu a profissão no início dos anos 1970 exatamente por perceber que as imagens que chegavam do Vietnã mostravam uma realidade diferente daquela presente nos discursos dos dirigentes políticos e militares.

    Por que fotografar a guerra? Será possível colocar fim a uma forma de comportamento humano que existe ao longo de toda a história através da fotografia? A colocação dessa questão parece ridícula e completamente desajustada. Ainda assim é precisamente essa ideia que me motiva. Para mim, a força da fotografia reside na capacidade de evocar o sentido da humanidade. Se a guerra tenta negar a humanidade, a fotografia poderia conceber-se como o oposto da guerra. E, se for bem usada, constitui um poderoso antídoto contra a guerra. De certo modo, se um indivíduo assume o risco de colocar-se no meio de uma guerra para comunicar ao resto do mundo o que se passa, ele tenta negociar a paz. Por isso aqueles que perpetuam a guerra não gostam de ter fotógrafos por perto. No campo, aquilo que se experimenta é extremamente imediato. […]. O que se vê é uma dor sem paliativos. É injustiça e miséria. Minha ideia é que se todos pudéssemos estar lá, pelo menos uma vez, e ver com nossos próprios olhos o que o fósforo branco faz no rosto de uma criança, a dor indizível que causa o impacto de uma única bala, como um estilhaço de morteiro arranca uma perna… Se cada um pudesse ver isso por si mesmo, o medo e o pesar, uma só vez, então compreenderia que nada justifica que as coisas levem a um ponto em que isso ocorra a uma única pessoa, muito menos a milhares. Mas nem todos podem ir lá, e é por isso que os fotógrafos de guerra vão. Para agarrá-los e fazer com que parem o que estão fazendo e prestem atenção ao que está acontecendo. Para criar fotografias suficientemente poderosas para ultrapassar o efeito ilusório da mídia e que sacudam as pessoas da sua indiferença. Para protestar e, com a força desse protesto, fazer com que outros também protestem. (FOTÓGRAFO… 2001, 1:27:17min a 1:30:05 min).

    [1] Disponíveis na página de Facebook do fotógrafo emhttps://www.facebook.com/Andr%C3%A9-Liohn-459960177375173/, acesso em 23/10/2015.

    [2] Disponível emhttp://www20.caixa.gov.br/Paginas/Releases/Noticia.aspx?releID=833, acesso em 22/10/2015.

    [3] Disponível emhttp://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/10/1690182-vencedor-da-medalha-robert-capa-abre-mostra-sobre-violencia-no-brasil.shtml, acesso em 17/10/2015.

    [4] Disponível em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/wp-content/uploads/2012/09/libia7.jpeg, acesso em 23/10/2015.

    [5] Uma crítica contundente ao trabalho dos jornalistas “embutidos” ouembedded pode ser assistida no documentário A guerra que você não vê, do jornalista John Pilger. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pskjzl2czKg. Acesso em 23/10/2015.

    [6] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=SxDm-xVYk6w, acesso em 22/10/2015.

    [7] Disponível em https://veele.files.wordpress.com/2011/11/roland-barthes-a-mensagem-fotogrc3a1fica.pdf, acesso em 22/10/2015.

    [8] Disponível emhttp://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1690176-metade-do-pais-acha-que-bandido-bom-e-bandido-morto-aponta-pesquisa.shtml, acesso em 15/10/2015.

    [9] Disponível emhttp://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1616762-87-querem-reducao-da-maioridade-penal-numero-e-o-maior-ja-registrado.shtml, acesso em 15/10/2015.

    [10] Disponível em http://www.valor.com.br/politica/4233884/em-sao-paulo-policia-mata-571-pessoas-em-oito-meses, acesso em 23/10/2015.

    [11] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/229563-ataques-sao-primeiro-forte-reves-para-secretario.shtml acesso em 2 de Set de 2015.

    [12] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/229558-nao-vou-pedir-justica-afirma-mae-de-vitima.shtml acesso em 2 de Set de 2015.

    [13] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/229557-12-dos-18-mortos-nao-tinham-antecedente-criminal-diz-policia.shtml acesso em 2 de Set de 2015.

    [14] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vLBdTIPf2PEacesso em 22/10/2015.