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Tag: Fabrício Queiroz

  • O primeiro efeito colateral da coronaVac

    O primeiro efeito colateral da coronaVac

    O dia 18 de junho de 2020, quando Fabrício Queiroz foi preso, deu início a novo momento na história do governo de Jair Bolsonaro. Queiroz é fio solto no esqueminha de corrupção de baixo clero que enriqueceu o clã Bolsonaro durante mais de 20 anos. É bomba relógio tiquetaqueando no colo do presidente da República.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Acuado, Bolsonaro mudou o comportamento.

    Até então, agia como jogador agressivo disposto sempre a dobrar a aposta. Ameaçava a nação dia sim e outro também com golpe de Estado. Depois da prisão de Queiroz, foi amansando. Aproximou-se do “centrão”, tentando construir base parlamentar capaz de lhe garantir alguma governabilidade. Deixou-se flagrar em fotos de congraçamento com Dias Tofolli, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, sinalizando o interesse em se reconciliar com os outros poderes da República.

    Ventilou-se a possibilidade de que Bolsonaro estava devidamente controlado pelas instituições, que havia sido domado pelo sistema. Em 14 de outubro, a “Revista Veja” publicou editorial com fotografia montada onde o presidente aparece construindo pontes, alegoria daquilo que seria a “drástica mudança de comportamento”. O periódico vaticinou: “O risco de uma ruptura institucional foi superado”.

    A confirmação dessa mudança no comportamento do presidente, aparentemente, veio com a tão esperada indicação do nome para preencher a vaga no STF deixada pela aposentadoria de Celso de Mello. Contrariando sua promessa de que chamaria alguém “terrivelmente evangélico”, Bolsonaro indicou, em 5 de outubro, o desembargador piauiense Kássio Nunes, com histórico garantista.

    Bolsonaro é bruto, homem precariamente letrado, sem verniz intelectual algum, com vocabulário pobre, mas está longe de ser burro.

    É impossível passar tantos anos no Congresso Nacional sem aprender algo sobre política. O presidente sabe muito bem que, em futuro próximo, um garantista no STF pode ser bastante útil. É que depois de passar a faixa presidencial ao seu sucessor, em algum momento, Bolsonaro responderá por seus crimes, sentará no banco dos réus.

    O STF é corte de apelação, é a última corte de apelação do sistema de justiça brasileiro.

    A base orgânica do bolsonarismo protestou, chiou. Alguns chegaram a chamar o presidente de traidor. Bolsonaristas choraram nas redes sociais como maridos mansos traídos.

    Bolsonarismo sem Bolsonaro. Bolsonaro sem Bolsonarismo. Até poucos dias atrás, o cenário era esse, era exatamente esse.

    “Bolsonarismo sem Bolsonaro. Bolsonaro sem Bolsonarismo”. Esse seria, inclusive, o titulo da coluna que eu escreveria nesta semana. A coluna caducou sem sequer ter nascido.

    É que nas crises, o tempo passa rápido, muito rápido.

    Em 21 de outubro, ficou claro que a moderação não significava vitória derradeira das instituições, mas, sim, recuo estratégico feito em momento de fragilidade política e insegurança jurídica.

    Bolsonaro não está domado. Talvez não será domado nem depois de morto.

    O presidente surpreendeu o país desautorizando o ministro da Saúde, que na véspera havia assinado acordo se comprometendo a adquirir 46 milhões de doses da CoronaVac, vacina desenvolvida pela pareceria firmada entre o governo de São Paulo, por meio do instituto Butantan, e a empresa chinesa Sinovac Biotech.

    Ao que tudo indica, a CoronoVac é a mais auspiciosa entre as vacinas contra covid-19 atualmente em fase de teste clínico.

    Havia possibilidade de se apropriar da paternidade da vacina, frustrando a tentativa de João Dória em colher dividendos eleitorais. No acordo assinado pelo ministro, a CoronaVac não era chamada de “vacina chinesa”, tampouco de “vacina do Dória”, ou mesmo de “vacina paulista”. Era “vacina do Brasil”.

    Talvez essa tenha sido mesmo a intenção original, pois é difícil imaginar que o ministro da Saúde assinaria acordo de tamanha importância sem que o presidente conhecesse o conteúdo da minuta.

    Houve pressão dos EUA?

    O Brasil, um dos países mais afetados pela pandemia em todo mundo, sendo imunizado pela vacina desenvolvida na China seria, sem dúvida alguma, dura derrota diplomática para os EUA.

    Por enquanto não dá para saber.

    Fato mesmo é que Bolsonaro recuou no recuo e se reconectou ao bolsonarismo. Ocupou as redes sociais para jogar suspeição sobre a comunidade científica e sobre a imprensa, agindo como o crítico anti-sistêmico que denuncia conspirações globalistas.

    Esse é o Bolsonaro bolsonarista em sua manifestação mais genuína!

    A crítica anti-sistêmica, a desconfiança, o ceticismo em relação às principais instituições nascidas na modernidade (imprensa de massa, universidade, comunidade científica e organismos internacionais como ONU e OMS) são matéria-prima do bolsonarismo, bebidas diretamente nos textos que Olavo de Carvalho vem escrevendo desde a década de 1990.

    Se a segurança e a eficiência da CoronaVac forem confirmadas pela Anvisa, a Justiça obrigará o governo federal a oferecer as doses no sistema nacional de imunização. Duvido que o presidente fará grandes esforços para impedir isso. Repito: ele não é burro.

    Ficará berrando no twitter, tumultuando o processo, agitando sua malta de lunáticos, destilando ceticismos e desconfianças, performando o crítico, dizendo-se defensor da liberdade contra a tirania dos governadores de Estado.

    Liberdade x tirania. Bolsonaro, a seu modo, encena a narrativa política que funda a civilização ocidental.

    Seja como for, a imunização nacional contra a covid-19 já está comprometida.

    Vacinação é, antes de tudo, um acordo coletivo baseado na confiança. Bolsonaro enlameou o acordo. Essa é sua vocação: jogar lama nos acordos estabelecidos.

    Não há acordo possível com Bolsonaro. Tolos são os que ainda tentam.

    Bolsonaro jamais será um presidente de direita normal, como outros tantos que já existiram na história da democracia liberal, disposto a governar por dentro das instituições.

    Fato mesmo é que a CoronaVac, vacina, que ainda nem existe, já apresentou seu primeiro efeito colateral: reaproximou Bolsonaro e bolsonarismo.

  • Notas sobre um editorial infame da Folha

    Notas sobre um editorial infame da Folha

    No dia 21 de agosto, a Folha de S. Paulo publicou um editorial intitulado “Jair Rousseff”. Confesso que poucas vezes vi um texto ser ruim de tantas maneiras diferentes. Como nem todos os graves problemas que traz estão na superfície, é importar ler com uma lupa para aclarar o tamanho da infâmia que tiveram coragem de publicar. Muitas críticas foram feitas, é verdade, mas há tantas coisas a criticar que parece necessário reforçar esse coro.

    Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes[1]

                    Infelizmente, o texto não é assinado. É prática corrente no jornalismo brasileiro deixar textos sem assinatura. Essa escolha me parece prudente quando a reportagem aborda um tema sensível e potencialmente capaz de colocar a vida do profissional em risco, sobretudo nesse momento em que o governo federal está envolvido até o pescoço com milícias. Não é o caso desse editorial. A opção pela apocrifia é típica desse tipo de narrativa jornalística que ignora, dentre outras coisas, que a Constituição de 1988 assegura a liberdade de expressão sem endossar o anonimato.

    O problema maior é que editoriais não costumam ser assinados porque pretendem ser textos coletivos. A Folha de S. Paulo, por exemplo, define seus editoriais como “o que a folha pensa”, o que compromete seriamente a noção de pluralidade de opiniões e a própria heterogeneidade dos profissionais que trabalham na redação, como se todos pensassem da mesma forma ou fossem reféns de uma forma específica de pensar que os submete por força da hierarquia empresarial. Em outras palavras, são textos que presumem pertencer a todos sem se ligar especificamente a ninguém. Disso surge outro problema: o autor fica escudado, protegido, livre para escrever toda sorte de asneiras sem ser pessoalmente responsabilizado. É uma questão urgente, mas não especificamente ligada à Folha, e julgo que os profissionais de jornalismo deveriam sentir desconforto diante disso e sugerir mudanças no formato.

                    A proposta do editorial é comparar as políticas econômicas de Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro. É importante dizer que todo gesto comparativo é precedido de uma escolha. Como toda comparação pressupõe cotejar semelhanças e diferenças, o autor precisa decidir qual aspecto irá explorar. Nesse caso, optou-se por sustentar que tanto Bolsonaro como Dilma Rousseff elevaram os gastos públicos para pavimentar o caminho para a reeleição. A crítica é direcionada aos programas de assistência social. Ainda que não explicite quais são, o autor que se esconde provavelmente considerou o Bolsa Família, no caso de Dilma, e o auxílio emergencial, no caso de Bolsonaro. Infelizmente, como a comparação é desonesta, o editorial não explica que no caso da presidenta, era uma política de governo; no caso de Bolsonaro, uma imposição do Congresso Nacional contra a qual lutou ferozmente e que dela se apropriou somente após a derrota que sofreu no Parlamento.

    De todo modo, em ambos os casos, esses programas seriam problemáticos porque elevariam o déficit nas contas públicas. Ignora-se a enorme dívida interna jamais auditada que consome mais da metade de nossa arrecadação. Ignora-se os abonos e as isenções fiscais dadas aos empresários. Ignora-se os privilégios da elite do funcionalismo público. Enfim, ignora-se todo gasto corrente que não tem a ver com os pobres.

                    A tática do autor desconhecido não é nova: faz-se de conta que a austeridade fiscal é a única medida aceitável de gestão dos gastos públicos, coisa que nem o mais ortodoxo economista formado em Chicago seria capaz de afirmar com o mínimo de honestidade intelectual. Aliás, o ministro Paulo Guedes decerto concordaria com esse receituário, mas ele não é citado no texto. Trata-se de outra prática corrente na mídia hegemônica: quando as medidas econômicas afagam os interesses dos rentistas e empresários, Paulo Guedes é alçado à condição de ídolo; quando não, fazem de conta que a decisão é exclusiva de Bolsonaro. É compreensível, já que o autor parece servir aos propósitos do mesmo grupelho de milionários para quem o ministro da Economia trabalha como um cão fiel e submisso. Outra grosseria cometida pelo autor é traçar esse comparativo ignorando as qualidades e características dos programas de assistência social em seu contexto histórico e ideológico. Dá-se a tendência de alimentar o anti-petismo comparando-o, apenas do ponto de vista retórico, ao bolsonarismo doentio ao qual o próprio PT se opõe.

                    Aliás, sobre esse ponto, convém uma nota interessante. O texto afirma que a manutenção do teto de gastos é necessária para não colocar em risco “a estabilidade econômica, duramente conquistada pela sociedade brasileira nas últimas décadas”. Ora, não é possível falar em estabilidade econômica antes do governo Fernando Henrique Cardoso. Confesso que teria enormes críticas a essa noção de “estabilidade econômica”, mas é importante lembrar que Fernando Henrique governou por apenas oito anos, o que é pouquíssimo para sintetizar “as últimas décadas”. Parte substancial dessa estabilidade foi garantida pelos governos petistas, que asseguraram criação de empregos, quitaram as dívidas com o FMI e Banco Mundial, garantiram reservas bilionárias, dentre outras coisas. A contradição é óbvia: Dilma está sendo criticada pelo desrespeito à estabilidade econômica que sua própria gestão trabalhou para manter. Para escudar-se da contradição, dizem ser uma “conquista da sociedade brasileira”, apelando para a generalização. Mas já sabemos qual é o problema que gera essa desconfiança: despesas ligadas às camadas mais empobrecidas. Se há dúvidas a esse respeito, o último parágrafo é esclarecedor.

                    Aliás, esse último parágrafo do texto deveria constar doravante como exemplo de vileza em todo bom manual de jornalismo. Segundo o autor, o desrespeito ao teto de gastos prejudicaria “como de hábito, os pobres e miseráveis, que por inconveniência política constituem também a parcela mais decisiva do eleitorado”. Se o sentido não ficou claro, vale recorrer à paráfrase: afirma-se, com todas as letras, que seria conveniente que os pobres não votassem. Infelizmente, também nessa afirmação asquerosa não há novidade, já que traduz com enorme poder de síntese a concepção preconceituosa e aristocrática que as elites atrasadas desse país cultivam. É como se os pobres, que votam com o estômago, precisassem ser tutelados pelos ricos que, esses sim, votam com base na razão e isolam qualquer interesse pessoal de suas decisões políticas. Eles perderam tudo, inclusive o pudor de revelar publicamente seu lado mais vil e bestial.

                    Por fim, o título. Parece óbvio que uma comparação que tenta construir um elo sem lastro com a realidade precisa de enormes reforços retóricos. Exatamente por isso apelaram para esse título, cuja infâmia só é percebida quando se recorda as diferenças colossais que separam a ex-presidenta do atual presidente. Ora, o nome próprio é nosso principal símbolo de subjetividade. Diante da pergunta “Quem você é?”, a tendência é responder com o próprio nome. O nome funciona como profunda marca identitária, como a palavra-síntese que nos faz singulares e permite sinalizar quem somos. Quando o autor desconhecido lança “Jair Rousseff” como título, produz um efeito de sentido que cria um sujeito fictício que encarnaria as personalidades tanto de Dilma como Bolsonaro. Em outras palavras, converte a crítica política em ataque pessoal, avançando diante da mais visceral intimidade. Cumpre recordar que Bolsonaro, no plenário da Câmara dos Deputados, dedicou seu voto de impeachment à memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, milico torturador caracterizado pelo então deputado como “o terror de Dilma Rousseff”. É ao nome desse sujeito, que elogia torturadores e defende ditaduras, que o autor apensou o sobrenome de Dilma, que arriscou sua juventude para combatê-los.

                    Como o roteiro do ano de 2020 parece estar sendo escrito por alguém com enorme sadismo criativo, apenas dois dias após a publicação desse editorial infame, Bolsonaro abandonou o ostracismo das polêmicas para fazer mais um ataque à imprensa livre. Após ser perguntado por um jornalista sobre os depósitos que o criminoso Fabrício Queiroz fez na conta da primeira-dama, respondeu: “Minha vontade é encher sua boca de porrada, tá?”. Curiosamente, quando a militância petista criticava a mesma imprensa, Dilma respondia que preferia o barulho da democracia ao silêncio da ditadura. Gostaria de conhecer a opinião do autor sobre isso, mas infelizmente não tenho como procurá-lo. No entanto, se ele quiser, pode me responder livremente, pois esse texto aqui não foi redigido por um covarde que precisa do anonimato para se esconder dos próprios posicionamentos. 


    [1] Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: asmoraes@gmail.com.

  • LULIZAÇÃO DE BOLSONARO?

    LULIZAÇÃO DE BOLSONARO?

    A comparação entre Lula e Bolsonaro não é nenhuma novidade no debate político nacional. É que Lula e Bolsonaro são as mais carismáticas lideranças políticas da história recente brasileira. Nos últimos 20 anos, somente Lula e Bolsonaro tiveram um “ismo” pra chamar de seu.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Lula e Bolsonaro são muito diferentes.

    Lula nunca atentou contra as instituições da República. Lula foi condenado pela justiça em processo flagrantemente manipulado. Ficou preso mais de ano. Viu a família ser devassada. Mesmo assim, em nenhum momento, jogou sua militância contra o Poder Judiciário. Lula se submeteu a todos os ritos do direito penal, mesmo sabendo que estava sendo injustiçado.

    Já Bolsonaro, até bem pouco tempo atrás, dia sim e dia também vinha a público ameaçar a nação com golpe de Estado, atiçando sua malta raivosa contra nossa democracia.

    Lula só ganhou seu ismo depois de governar e conseguir construir aquilo que de mais próximo chegamos de um Estado de Bem Estar Social. Bolsonaro virou mito antes de subir a rampa do Planalto, alimentado tão somente pelo ódio coletivo à política institucional e pelos preconceitos que fazem do brasileiro médio um dos piores tipos sociais do mundo.

    Entre Lula e Bolsonaro, a comparação, se possível, se dá muito mais pelas diferenças do que pelas semelhanças.

    Mas de uns dias pra cá, parece que o próprio Bolsonaro vem se inspirando em Lula. Talvez ainda seja cedo para dizer que se trata de tendência, mas a novidade na crônica política é a aparente lulização de Bolsonaro.

    Junho de 2005, Roberto Jefferson (ó ele aí, minha gente!) denuncia o mensalão, esquema de compra de apoio parlamentar no varejo, que estaria sendo organizado a partir do gabinete do presidente da República. O governo quase acabou ali. Perdeu José Dirceu, cotado na época para ser o sucessor de Lula.

    Para sobreviver, Lula precisou se aproximar do PMDB, entregar três ou quatro ministérios gordos, de porteira fechada. Pouca gente lembra que a tão mal falada aliança entre o PT e o PMDB não foi projeto original. O PMDB disputou as eleições de 2002 com candidatura própria. A aliança foi produto das circunstâncias. Questão de sobrevivência mesmo.

    A esquerda raiz, mais ideológica, nem precisou da crise do mensalão e da aliança com o PMDB pra pular fora. Bastou a real politik, a realidade de ser governo, para os “companheiros” se desencantarem. Nasceu assim o PSOL, em junho de 2004.

    Poucas coisas são mais melancólicas, e caricatas, do que o militante de esquerda desencantado.

    Lula, sabido que só ele, fez dos limões uma limonada. Furou a bolha, ampliou sua base de apoio social. Depois do mensalão, Lula se tornou, de fato, líder popular. Catapultado pelo Bolsa Família e pela política de valorização do salário mínimo, Lula, finalmente, conquistou o subproletariado, que historicamente rejeitava o PT.

    Lula passaria a ser odiado pela esquerda ideológica e amado pelo povo. Foi bom negócio. A esquerda entende pouco de povo.

    Talvez esteja acontecendo algo semelhante com Bolsonaro neste exato momento. Por um capricho do destino, 15 anos depois, também em mês de junho, Bolsonaro viu a porca torcer o rabo. A prisão de Fabrício Queirós foi para Bolsonaro o que o mensalão foi para Lula. A diferença é que o mensalão era esquema de governabilidade, enquanto Queiros é o fio solto de esqueminhas de corrupção de baixo clero que enriqueceram o clã Bolsonaro.

    A solução encontrada por Bolsonaro está sendo semelhante à de Lula. Não duvido que Bolsonaro, que de burro tem nada não, esteja deliberadamente se inspirando em Lula.

    Aproximou-se do Centrão, se afastou dos aliados mais ideológicos e está investindo em políticas redistributivas, descobrindo como é gostoso, e importante, ser amado pelo povão. Depois das caneladas iniciais, o auxílio emergencial é um sucesso. Povão tá feliz da vida. A economia varejista nas regiões periféricas nunca viu tanto dinheiro circulando. Uma festa. Não consigo deixar de ficar um pouquinho feliz com isso.

    Meio que obrigado pela pandemia, contra a vontade, Bolsonaro está colocando os pobres no orçamento.

    Bolsonaro está tentando furar a bolha. A classe média bolsonarista raiz começa a fazer movimentos de desembarque.

    À direita e à esquerda, as bolhas são mimadas, agressivas quando contrariadas. Costumam investir todas as suas energias na destruição dos “traidores”.

    Com Lula, já sabemos o que aconteceu: terminou dois mandatos com alto índice de aprovação popular e ainda elegeu a sucessora.

    Bolsonaro conseguirá fazer o mesmo? Será capaz de se tornar presidente, deixando de se comportar como agitador fascista? Deixará de lado os devaneios revolucionários para se tornar um conservador no sentido estrito do termo?

    Para isso, terá que romper com o bolsonarismo, o que envolve abandonar Paulo Guedes, o mais bolsonarista dos ministros da esplanada. O bolsonarismo é organicamente neoliberal. Sua utopia é a sociedade pré-moderna, clânica, onde a casa é grande e o Estado é mínimo. A casa é grande exatamente porque o Estado é mínimo. E vice-versa.

    O neoliberalismo radical de Gudes só sobrevive no bolsonarismo.

    Tá aí a escolha que Bolsonaro terá que fazer. Pra sobreviver, precisará abandonar o bolsonarismo e ser um tantinho lulista, fazendo a tal comparação ter algum sentido.

    Se tomar o lugar de Lula como encarnação do Estado provedor de direitos sociais, Bolsonaro deixará de ser apenas o representante do ódio, do caos, para se tonar líder popular.

    Bolsonaro é carismático, comunica bem com o povão. Conseguindo se reinventar, fica imbatível. Insistindo no radicalismo ideológico, não termina o mandato.

    Enquanto isso, a esquerda, assistindo da arquibancada o jogo ser jogado, se vê diante de um dilema existencial: torcer para que Bolsonaro continue sendo o agitador fascista, o que na prática significa torcer contra a própria democracia e contra o bem-estar da população mais pobre. Ou torcer para que Bolsonaro se acomode às instituições da República e, finalmente, trabalhe para o bem do povo, o que significaria ostracismo político que duraria pelo menos uma década.

    A ver se Bolsonaro luliza de fato, acontecendo, nos sobrará pelo menos o triunfo estético. Lula é muito mais bonito que Bolsonaro. Quem guenta com aquelas covinhas que se formam nas bochechas quando o rosto todo sorrir?

  • O BAIXO CLERO NO PODER

    O BAIXO CLERO NO PODER

     

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

     

    Dezoito de junho de 2020, o dia em que Fabrício Queiroz, o personagem mais folclórico da crônica política brasileira contemporânea, foi preso, alimentando toda a sorte de memes e piadinhas. O brasileiro tem capacidade única de gracejar no caos. Deve ser uma qualidade.

    Queiroz é personagem social típico do Rio de Janeiro. Se Moacyr Luz estava certo quando disse que o Rio de Janeiro é a cara do Brasil, o retrato 3 X 4 que sintetiza o corpo nacional, poderíamos dizer que Queiroz é também um tipo ideal brasileiro que, diferente do weberiano, existe em carne e osso.

    Quem foi criado no subúrbio carioca, na Baixada Fluminense ou ali por São Gonçalo e Niterói, já conheceu pelo menos um Queiroz na vida. PM corrupto, violento, envolvido com milícias. Mas também carismático, com aparência de ser gente boa. Bom de churrasco, corrente de São Jorge no pescoço, safo na resenha futebolística, com ginga pra sacolejar bonitinho ao som de uma boa roda de samba. Sorriso largo. É perfeitamente possível simpatizar com Queiroz.

    Bandido de baixo clero, rouba no esqueminha, no rolo, no varejo. O Brasil, hoje, é governado por uma quadrilha de bandidos de baixo clero. Bolsonaro sempre foi corrupto, mas como era ladrão miúdo, passou batido pelo tribunal moral lava-jatista que pauta a política brasileira desde 2014. Bolsonaro roubava na rachadinha, superfaturando nota do posto de gasolina. Qual delegado da PF, qual procurador do MP tem interesse em investigar ladrão de galinha? Não dá capa de jornal, não dá mídia.

    Foi justamente essa mediocridade que permitiu a Bolsonaro performar o honesto no processo de radicalização da crise democrática. Até hoje, há quem considere os crimes da família Bolsonaro como sendo de menor potencial ofensivo. O brasileiro médio, cidadão de bem, não tolera o crime de colarinho branco, mas lida bem com o esqueminha, com o rolo. Uma questão de identidade mesmo. Bolsonaro e Queiroz representam muito bem o brasileiro médio.

    Queiroz ficou um ano encarcerado em Atibaia, norte de São Paulo. Não estava escondido não. Estava preso mesmo, sob controle. Era isso ou a vala. Mandar Queiroz para o plano espiritual não seria tão fácil. O cara era muito conhecido, não podia amanhecer morto assim, sem mais nem menos. Para dar fim em Queiroz teria que dar fim também na esposa e nas filhas. Operação complexa. Não excluo também o fato de os Bolsonaro gostarem mesmo de Queiroz, de existir vínculo afetivo sincero entre eles. Os brutos também amam.

    Queiroz foi preso numa casa onde tinha um quadro velho do AI-5 e um bonequinho de Tony Montana, personagem vivido por Al Pacino em filme de máfia. O covil de Queiroz renderia um ensaio de interpretação do Brasil.

    Quem delatou Queiroz foi a filha do Olavo de Carvalho!!!! A filha do guru do bolsonarismo, rompida com o pai, delatou Queiroz. Que roteirista é esse?

    Queiroz foi encontrado na casa de Frederick Waseff, advogado da família Bolsonaro. Na década de 1990, Wassef era membro de seita satanista, chegou a ser acusado de ter matado criança num ritual macabro em Guaratuba, no Paraná. O cara é advogado da família do presidente da República!! Desse aí não tem como gostar não. Não deve ter sido fácil para o Queiroz conviver um ano com esse sujeito barra pesada.

    A prisão de Queiroz sugere o enfraquecimento político do presidente Jair Bolsonaro. Já há mais de um ano que o esquema das rachadinhas coordenado por Queiroz no gabinete de Flávio Bolsonaro é de conhecimento público. Durante esse tempo todo, a Justiça fez vista grossa, deixando o caso Queiroz em banho maria. Agora, exatamente quando as instituições da República dobram a aposta no confronto ao governo, Queiroz foi preso.

    Queiroz, seus filhos, sua esposa, os ex-funcionários de Flávio Bolsonaro nos tempos da ALERJ. Essas pontas não ficarão juntas por muito tempo. Em breve, alguém dará com a língua nos dentes. Flavio não é exceção, não é a ovelha negra da família. Flávio não inventou o esquema. Aprendeu com o pai. As investigações chegarão no gabinete do próprio Jair Bolsonaro. É tão óbvio quanto a existência do sol.

    Os generais palacianos sabem perfeitamente disso. Diferente do que vinha acontecendo já há algum tempo, eles não saíram em defesa do presidente Bolsonaro. Simplesmente silenciaram, num gesto que sugere constrangimento e inclinação ao desembarque. Ao ingressar no governo de Bolsonaro, as Forças Armadas se envolveram na pior encrenca de sua história. Sairão sujas dessa aventura, contaminadas pela corrupção rasteira do baixo clero bolsonarista, com mais de 200 mil mortos da covi1-19 nas costas. O Exército brasileiro é responsável direto pelo Ministério da Saúde. Em algum momento, essas pessoas serão responsabilizadas, moral e penalmente. Para a reputação dos militares, Bolsonaro será mais danoso do que foi a ditadura.

    A ditadura deixou algum legado de desenvolvimento e infraestrutura. Bolsonaro só deixará cinzas, corpos e escândalos de corrupção.

    O caso Queiroz praticamente sepulta a possibilidade de um autogolpe apoiado pelas Forças Armadas. É difícil imaginar que um número grande de oficiais da ativa apoiariam um golpe sem projeto, sem nenhum fundamento ideológico. Seria um golpe tão somente pretoriano com o único objetivo de salvar os parentes e amigos de Bolsonaro das garras da justiça.

    Por outro lado, é prudente não dar Inês como morta antes da hora. O golpe militar clássico apoiado pelas Forças Armadas não é a única carta que Bolsonaro tem na manga. Há também o projeto do golpe miliciano sustentado pelas PMs estaduais. Esse projeto está em curso. Enquanto escrevo este texto, enquanto o leitor me lê, há gente nos batalhões das PMs tentando doutrinar a tropa.

    A PM fluminense já é bolsonarista. São Paulo começa a perder o controle sobre a sua corporação. É difícil saber como está a situação nos outros estados. Fato é que a Presidência da República, hoje, é o único trunfo de Bolsonaro, é questão de sobrevivência. O tom ameno dos últimos dias não é uma trégua, tampouco intensão sincera de reconciliação com os outros poderes. É estratégia para ganhar tempo visando a mobilização e a formação ideológica das PMs estaduais.

    Assim que as condições políticas ficarem plenamente satisfatórias, as instituições da República precisam agir, de forma rápida e eficiente. O caso Queiroz tem potencial para ser a bala de prata já tantas vezes anunciada. Carece de saber usar.

    Seria irônico se Bolsonaro caísse por causa de Queiroz, bandido de baixo clero. Seria coerente também. São feitos do mesmo barro.