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  • Dois anos do assassinato de Marielle: a quem serve o feminicídio negro no Brasil?

    Dois anos do assassinato de Marielle: a quem serve o feminicídio negro no Brasil?

    Por Tamires Gomes Sampaio, especial para os Jornalistas Livres 

    O Dia Internacional da Mulher (#8M) foi marcado pela luta em defesa da vida das mulheres que são vítimas de violências diárias, sociais e estruturais. Milhares ocuparam as ruas de São Paulo em defesa de uma democracia feminista e antirracista, e por justiça para Marielle, Claudias e Dandaras.

    Justiça para mulheres negras, que são vítimas também do genocídio da população negra, por meio da política de morte promovida pelo Estado brasileiro, que executa uma política de segurança baseada na manutenção da ordem e prevenção de riscos. Essa ação protege uma parcela em enquanto incentiva a criminalização e o extermínio de outra. Marielle, brutalmente assassinada pela milícia do Rio de Janeiro; Claudia, arrastada no asfalto por uma viatura e assassinada no Rio de Janeiro; Dandara, mulher trans negra, espancada e assassinada em Fortaleza. As três são símbolos de resistência, são representações das estatísticas que aumentaram nos últimos anos.

    Segundo os dados do Ministério da Saúde, divulgados pelo Atlas da Violência de 2019, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 2017.[1] É uma média de treze homicídios por dia, sendo que 66% das vítimas são negras, mortas por arma de fogo e, em grande parte dos casos, vítimas de violência doméstica.

    Observando esses dados, é possível constatar que a cada três horas uma mulher negra é assassinada no Brasil.

    As mulheres negras, que recebem menos da metade do salário dos homens brancos[2], além de serem maioria nos empregos informais, são também 65% das vitimas de violência obstétrica[3]. São também quatro vezes mais vitimas de morte materna do que as mulheres não negras.[4] Além disso, são maioria nos presídios femininos (62%)[5], chegando a 97% da população carcerária feminina no estado do Acre.

    Marielle Franco e sua família. Foto: Arquivo pessoal da irmã, Anielle Franco

    Em 14 de março de 2020, dois anos após a execução brutal de Marielle Franco, ainda não foi respondida a pergunta: Quem mandou matar Marielle?

    As investigações apontam para uma relação com a família que hoje ocupa o Palácio do Planalto. Mesma família que homenageia torturadores, milicianos e que exalta a política de morte contra a população pobre, negra, periférica e contra as mulheres e as LGBTs.

    Marielle Franco se tornou um símbolo de luta e resistência contra o genocídio da população negra. Também por isso, é importante que a gente questione não apenas sobre os mandantes de seu assassinato, mas também sobre quem se beneficia dessa política de morte, exclusão social e encarceramento a qual todas as mulheres negras brasileiras estão submetidas.

    Neste mês internacional de luta das mulheres, é necessário que seja compreendida a importância de construir políticas antirracistas no combate à violência contra as mulheres. Nosso feminismo tem raça, classe social e está nas periferias de nosso país.

    Para combater essa política de morte, precisamos que exista uma transformação da estrutura social brasileira. Desta forma, é essencial que exista um fomento à participação de mulheres negras na política, para a formulação e a execução de politicas públicas de redução da desigualdade e da violência, pois, como já dito pela filósofa e ativista Angela Davis: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras”.

    Tamires Gomes Sampaio é advogada, mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e militante da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN). Foi a primeira presidente negra do Diretório Acadêmico do Mackenzie. 

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    Twitter: @soutamires_sp

    Fontes:

    [1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-06/ipea-homicidios-de-mulheres-cresceram-acima-da-media-nacional

    [2] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/12/politica/1573581512_623918.html

    [3] https://www.ufrgs.br/humanista/2019/11/19/machismo-mata-e-mulheres-negras-sao-as-que-mais-morrem/

    [4] https://www.geledes.org.br/saude-e-mulher-negra-quando-cor-da-pele-determina-o-atendimento/

    [5] https://carceraria.org.br/mulher-encarcerada/brasil-e-o-4o-pais-que-mais-prende-mulheres-62-delas-sao-negras

     

  • Ativista ambiental executada é homenageada em conferência do PCdoB mineiro

    Ativista ambiental executada é homenageada em conferência do PCdoB mineiro

    No sábado, 23, o Partido Comunista do Brasil de Minas Gerais (PCdoB-MG) homenageou Rosane Santiago Silveira, ativista torturada e executada no dia 28 de janeiro, na cidade de Nova Viçosa (BA). A solenidade ocorreu durante conferência extraordinária do partido, no plenário da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Os comunistas reuniram-se para discutir a incorporação do Partido Pátria Livre (PPL) ao PCdoB.

    Comunistas entregam flores aos filhos de Rô Conceição. Da esquerda para a direita: Jô Moraes, ex-deputada federal; Lyra Santiago, filha; Késsia Teixeira, presidenta da União da Juventude Socialista de BH; Thales Santiago, filho; Tuian Santiago, filho; Pedro Camargo, Secretário de Formação do PCdoB de Ouro Preto. Foto: Luana Ramalho

    Rô Conceição, como era carinhosamente conhecida, é natural do Espírito Santo, mas passou a maior parte da vida em Belo Horizonte (MG). Vivia em Nova Viçosa há 18 anos, onde era membro suplente do Conselho da Reserva Extrativista (RESEX) de Cassurubá, e lutava contra a produção e transporte fluvial de eucalipto dentro da área de proteção, que degrada o bioma do manguezal, ameaçado de extinção.

    Em Belo Horizonte, Rosane participou ativamente do movimento por moradia estudantil da Universidade Federal de Minas Gerais, integrando a ocupação estudantil Moradia Borges da Costa. Militava em movimentos culturais, sindicais e de defesa dos direitos humanos. Foi criadora da cantina natural do Diretório Acadêmico do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, onde eram promovidos eventos artísticos, produção de alimentos conscientes e ponto de encontro de gerações de amigos e militantes.

    Tuian Santiago Cerqueira, filho de Rosane, médico, agradeceu o gesto do PCdoB e do PPL. “é um grande ato da memória de uma pessoa que dedicou a vida para a luta”, afirmou. Ele também descreveu o ativismo ambiental de Rosane na RESEX de Cassurubá: “Minha mãe, nos últimos anos, lutava pela preservação de uma reserva extrativista. Lutava contra o dito progresso do capitalismo, com plantação de monocultura de eucalipto, transporte de madeira dentro da área da reserva, dragagem dos rios, morte de fauna e da flora.” Por fim, Cerqueira reforçou a provável natureza política do crime cometido: “Todos os indícios levam a crer que a motivação foi política. A própria polícia diz que foi um ato premeditado, bárbaro e com requintes de crueldade”.

    Cerqueira revelou, ainda, parte de um diálogo de Rosane com um amigo registrada em áudio: “Eu vim pra reflorestar tudo aqui de árvore, mas não eu sozinha. Não estou aqui para impor nada. Realmente eles nunca quiseram saber de montar associação, mas vamos precisar se quisermos fazer alguma coisa. Há 22 anos tento montar a associação [de proteção da Ilha da Barra Velha] se tivesse, a Barra Velha já estaria maravilhosa. Mas graças a Deus estamos vivos e ainda podemos fazer”.

    Sob grande comoção do plenário, a homenagem prosseguiu com o depoimento de Fernando Vaz, Sociólogo, amigo e antigo companheiro de militância de Rô. “Esta conferência pauta a unidade da resistência e ao mesmo tempo este momento triste, que é mais uma demonstração de força, arbitrariedade e falta de humanidade que estamos vendo no país. Este episódio é resultado de uma postura institucional, que intensifica e legitima ações de extermínio praticadas por estas pessoas. Foi um extermínio com traços muito claros de tortura. Precisamos saber o que fazer, as pessoas estão sendo mortas”, desabafou.

    Vaz pontuou que a história de Rosane está intrinsecamente ligado à história da UFMG. Eles militaram juntos na universidade por moradia estudantil e por creche. “Ela lutava para ser mãe, para ser trabalhadora, ter dignidade com seus filhos, um relacionamento com seu marido. Coisas que só quem é mulher no nosso país entende com profundidade. Estive com Rosane no final do ano e ela tinha um sorriso no rosto que era sua marca. Nunca a vi reclamando de nada na vida, só correndo atrás de pagar suas contas e lutar pelas coisas que ela acreditava”, concluiu.

    Na sequência, foi lido um manifesto (confira a íntegra no link) em homenagem a Rosane, que foi aclamado pelos presentes. “Rosane, alguns de nós a conheceram, muitos de nós não tiveram este privilégio, mas nós TODOS não te esqueceremos JAMAIS! Rô Conceição, presente!!”, encerra o texto. Os três filhos da ativista – Lyra, Tuian e Thales Santiago – acompanharam a solenidade e receberam flores, ato que encerrou a sessão solene.

    Veja mais:
    Da Rede Brasil Atual:
    _ Ativista assassinada em Nova Viçosa tinha recebido ameaças de morte. (Entrevista com Tuian Santiago Cerqueira)
    _ Polícia Civil amplia investigação de tortura e morte de ativista ambiental

    Do Brasil de Fato:
    Investigadores do assassinato de ativista na Bahia ignoram hipótese de crime político

  • Dez anos após Manoel: há avanços das políticas de proteção a defensores de direitos humanos?

    Dez anos após Manoel: há avanços das políticas de proteção a defensores de direitos humanos?

    Manoel Mattos foi assassinado no dia 24 de janeiro de 2009 e ainda hoje, 10 anos depois, sofremos com o mesmo descaso e falta de vontade política do Estado brasileiro e dos Estados Federados em construir e efetivar uma política pública que possibilite o exercício pleno da cidadania por parte daquelas e daqueles que lutam por direitos no Brasil.

    A Justiça Global vem desde o seu início postulando e reivindicando a construção dessa política pública e, sobretudo, que para aquelas e aqueles que em virtude de sua ação política se encontra em situação de ameaça, o poder público empreenda todos os esforços necessários para assegurar o direito à vida e à integridade física sem a supressão de qualquer direito da pessoa, grupo ou organização social que defenda os direitos humanos.

    Ao longo dos anos, a reivindicação ainda permanece e, em momentos de intensa crise política, como vivemos atualmente, faz-se permanente. Os 10 anos do assassinato de Manoel Mattos e os 10 meses do assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, destacados defensores de direitos humanos, reascende o debate sobre a situação de quem defende direitos humanos no Brasil, colocando em evidência o descaso dos governos em relação ao tema e sua inteira responsabilidade em relação ao aumento da violência contra essas pessoas.

    De modo geral, as organizações da sociedade civil no Brasil têm apontado para dificuldades e desafios em relação às políticas de proteção estaduais e nacional. Recomendações concretas têm sido feitas, mas, infelizmente, tardam a ser adotadas ou mesmo são ignoradas pelo Estado brasileiro e entes federados. Uma das recomendações é a necessidade dos PPDDHs articularem órgãos públicos responsáveis pela garantia de direitos – como aqueles encarregados da demarcação de terras e dos direitos indígenas, por exemplo – e mobilizarem políticas públicas que enfrentem as questões estruturais que levam à vulnerabilidade das defensoras e defensores de direitos humanos e dos movimentos sociais. O não enfrentamento por parte do Estado brasileiro dessas problemáticas perpetua as situações de risco, de ameaça e de ataque a defensoras e defensores de direitos humanos. A não garantia do direito à terra e território e os conflitos agrários daí decorrentes é um dos principais motivos das violações.

    Um outro grave problema é a ausência de um marco legal para o programa que até hoje não foi aprovado, apesar de um Projeto de Lei nº 4575/2009 tramitar no Congresso Nacional e ter sido aprovado por quatro comissões, a sua aprovação no plenário nunca aconteceu. Desta forma o PPDDH não existe formal e legalmente como uma política de estado, sustentando-se apenas pelo decreto presidencial nº 6.044, de 12 de fevereiro de 2007, e, mais recentemente, pelo Decreto nº 8724, de 27 de abril de 2016. Esse decreto de 2016 exclui a sociedade civil da coordenação geral e da gestão do programa, acabando assim, com a participação social que foi sempre um dos pilares dessa política pública.

    Hoje só estão em funcionamento 4 programas nos estados (CE, MA, PE e MG) além da equipe técnica federal que tem a missão de atender todos os outros estados que não tem programas estaduais. Segundo dados da própria coordenação nacional do PPDDH hoje são atendidas 665 pessoas no programa, entre casos incluídos, em análise e em triagem.

    O PPDDH para além dos problemas legais e administrativos, também enfrentam problemas metodológicos na implementação da política, podemos citar: a) o PPDDH segue apenas inserindo indivíduos, esquecendo-se que, de acordo com seu próprio conceito, de que defensoras e defensores de direitos humanos são grupos, movimentos, organizações da sociedade civil. Quando uma liderança está ameaçada por um conflito de terra ou território, toda a comunidade também está; b) Ausência de procedimentos claros e padronizados que avaliem os riscos que as/os DDHs estão enfrentando para que possa acelerar o processo de entrada das/dos DDHs no programa; c) A capacitação da equipe técnica e aperfeiçoamento das estratégias do PPDDH; d) A falta de estratégias de proteção voltadas para grupos específicos, no sentido de levar em conta suas peculiaridades. Não existem medidas voltadas para mulheres, público LGBTT, quilombolas ou indígenas, por exemplo. Assim, há muito a avançar numa perspectiva coletivizada da proteção. Assim, há muito a avançar numa perspectiva coletivizada da proteção. De maneira geral, as medidas adotadas priorizam ações individuais, o que em alguns casos além de não ser suficiente – pois se trata de comunidades ou grupos inteiros ameaçados – também negligencia um olhar politizado para os contextos locais. Neste sentido, é fundamental também que haja um tratamento específico para as mulheres defensoras de direitos humanos, bem como que haja uma extensão da proteção às mulheres que são familiares da liderança ameaçada. Quando se trata de mulheres defensoras de direitos humanos é importante considerar que, muitas vezes, o assassino e ameaçador pode estar dentro de casa. Quando as defensoras se colocam no cenário político, é muito comum que haja o aumento da violência que elas sofrem dentro do próprio ambiente doméstico. Além disso, em se tratando de uma sociedade patriarcal, as defensoras de direitos humanos, em regra, sofrem duplas violências: do ameaçador e da sociedade, quando por exemplo, são julgadas por não estarem cuidando de suas filhas e filhos da forma como a sociedade espera. Esse tipo de violência tem efeitos e impactos diretos no psicológico das defensoras, o que muitas vezes as prejudica em sua luta. Essas especificidades também precisam ser consideradas pelos PPDDHs.

    Todas essas dificuldades são agravadas quando tratamos do baixo orçamento que a política de proteção a defensoras e defensores dispõe por parte do Governo Federal que é o principal financiador das políticas nos estados. Mesmo o governo brasileiro tendo, no ano de 2018, aumentado significativamente o orçamento do programa, sendo o maior orçamento desde a sua criação, alcançando quase 12 milhões de reais, não vimos um aumento significativo dos programas sendo executados em novos estados. Segundo o MDH a intenção com essa ampliação de recursos era abrir programas nos estados do Rio de Janeiro, Espirito Santo, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Bahia, mas ainda não vimos resultado concreto dessa suposta ampliação.

    O cenário pode se agravar no atual governo devido aos posicionamentos públicos do presidente e seus ministros contra as pautas de direitos humanos. Existe um temor da sociedade civil que toda a política de proteção construída a duras penas nos últimos anos seja atacada e sofra descontinuidades. As organizações da sociedade civil seguirão mobilizadas para que não soframos ataques e retrocessos nas políticas de direitos humanos no nosso país.

    Por: Justiça Global

  • Manoel Mattos: o primeiro caso de federalização do país

    Manoel Mattos: o primeiro caso de federalização do país

    O assassinato do advogado e vereador Manoel Mattos, em 24 de Janeiro de 2009, tornou-se um caso emblemático não apenas pela brutal execução de um defensor de direitos humanos. Este foi o primeiro caso de federalização admitido pela Justiça Brasileira desde a criação do instituto, pela Emenda Constitucional 45/2004, conhecida como reforma do Judiciário. A “federalização”, no jargão técnico, é chamada de Instituto de Deslocamento de Competência (IDC), e permite que o Procurador-Geral da República requeira o deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal em casos de grave violação aos direitos humanos. Cabe ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidir pela procedência do IDC, levando o caso a tramitar perante a Justiça Federal. A decisão pela federalização do caso do assassinato de Manoel Mattos ocorreu em 27 de outubro de 2010, e transitou em julgado em dezembro daquele ano, quase dois anos após o assassinato de Manoel Mattos.

    Um único pedido de federalização havia sido apresentado anteriormente. Trata-se do caso do assassinato da missionária e defensora de direitos humanos Dorothy Stang, assassinada em fevereiro de 2005 no Pará. Este IDC foi negado pelo STJ em junho do mesmo ano, e o caso tramitou perante a justiça paraense.

    A importância do caso de Manoel Mattos para a defesa dos direitos humanos no Brasil é lembrada, nesta entrevista, pelo advogado Eduardo Fernandes, professor da Universidade Federal da Paraíba, que atuou como um dos assistentes de acusação pela Dignitatis.

    Justiça Global: Como foi o início da sua relação com Manoel Mattos? Você o acompanhou na sequência de ameaças que passou a receber por sua atuação como defensor de direitos humanos?

    Eduardo Fernandes: Eu era assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra no início dos anos 2000, trabalhava na Paraíba com questões fundiárias e sabia que existia uma discussão muito grande sobre a atuação de grupos de extermínio na divisa do Estado da Paraíba com Pernambuco. Havia, naquela época, uma CPI da violência no campo na Paraíba, e também uma CPI do Tráfico de Armas e Drogas em Pernambuco. Eu conheci Manoel Mattos quando passei a trabalhar na Justiça Global. Foi por meio do então deputado estadual Luiz Couto, que iniciava uma CPI aqui na Paraíba para complementar a de Pernambuco. Meu trabalho pela Justiça Global era apurar as ameaças contra defensores de direitos humanos que atuavam na divisa – sobretudo contra a Dra. Rosemery, que era Promotora de Justiça, e contra o vereador Manoel Mattos. Essa foi a nossa primeira aproximação. Eu fiz uma entrevista com ele em conjunto com outros pesquisadores da Justiça Global. Fizemos um apanhado de todos os depoimentos e da documentação que ele e a Dra. Rosemery tinham e encaminhamos naquela mesma semana, em 2002, um pedido de medida cautelar à OEA. Em 15 dias, foram concedidas medidas protetivas para ele, para a Dra. Rosemery e para o Lula, que era um ex-membro de um grupo de extermínio. O próprio Lula foi vítima de queima de arquivo anos mais tarde.

    JG: As ameaças contra Manoel começaram no início dos anos 2000? Foram coincidentes com o início do mandato de vereador da cidade de Itambé, em 2001?

    EF: Foi praticamente isso. Ele já tinha uma atuação junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itambé e também junto ao diretório regional do PT, então ele tinha uma vida política muito ativa que começou a incomodar bastante alguns setores da região. Principalmente por sua atuação junto a trabalhadores rurais – algumas ações de indenização contra as usinas da região paravam no meio do caminho por desistência dos trabalhadores, motivada pelo medo, por ameaças e até mesmo por assassinatos. Então mesmo antes do mandato parlamentar, já havia uma atuação e já havia uma pressão, embora não houvesse algo tão explícito. Tinha uma pressão por ele estar mexendo em uma estrutura arcaica, e ele começou a mapear isso. Em paralelo, a Dra. Rosemery, que era promotora na região, também começava verificar uma tendência, uma continuidade de circunstâncias de assassinatos que ficavam sem explicação. E ainda tinha um agravante, porque muitos desses crimes ocorreram exatamente na divisa entre Paraíba e Pernambuco, então as etapas de execução do crime acabavam divididas entre dois estados. O crime envolve a investigação em dois estados, então é uma situação burocrática muitas vezes indefinida. Até para cumprir as diligências você precisa de autorização do outro estado, e isso vira um facilitador para esses crimes. O corpo poderia, por exemplo, ser desovado em outro estado, então todo procedimento policial era feito de um lado, se fosse ao contrário, da mesma forma. Isso fazia com que a relação ali na divisa se tornasse problemática, até porque na Paraíba, para você ficar um pouco estarrecida, o primeiro concurso para polícia civil só foi em 2002. Então eram cargos de indicação, eram nomeações, o governador do estado escolha um primo, um parente, algum amigo do prefeito, sargento, então a situação era muito complexa lá porque as relações pessoais interferiam no estado da investigação.

    JG: Após o relato de todo esse conjunto de ameaças à OEA e a concessão de medidas cautelares, Manoel e os outros beneficiários contaram com proteção efetiva?

    EF: Em um primeiro momento foi complexo porque se tratava de um governo de transição no ano de 2002 – saía o presidente Fernando Henrique e assumia o presidente Lula, então teve uma situação de vácuo mesmo de decisão. No outro ano, começou o comprimento das medidas e ela durou de uma forma ou de outra. No caso da Dra. Rosemery, ela contou com proteção da polícia militar, já no caso de Manoel ele não queria proteção da Polícia Militar, mas sim da Polícia Federal, aí demorou mais para ser consolidado. Ele contou com proteção, nós renovamos as medidas a cada dois anos, mas depois a proteção foi retirada. Nesse momento, havia as primeiras discussões sobre o desenvolvimento do Programa de Proteção a Defensores Direitos Humanos, e a concepção do programa é que o defensor de direitos humanos não deve ser retirado do local a não ser em caso de emergência. Ele exercia um mandato parlamentar e não poderia ser abarcado por uma concepção de proteção a testemunhas, que ocorre no Provita, um programa que já estava consolidado. O Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos engatinhava naquele momento. E a polícia colocava dificuldade de fazer esse acompanhamento dele e de outras pessoas, de outros defensores, que faziam atuações em áreas periféricas. A proteção acabava comprometida porque o programa ou quem executava o programa não conseguia entender qual era a atuação de um vereador que se compromete com a proteção de direitos humanos. A ideia não é ficar preso dentro de casa, né? Foi nesse momento que Manoel também decidiu colaborar com CPI nacional que investigava a questão dos grupos de extermínio no nordeste. Aí a coisa ficou realmente bem mais tensa.

    JG: No momento em que ele foi assassinado ele estava na Paraíba. Ele contava com proteção policial nessa ocasião?

    EF: Não, ele já estava há cinco ou seis meses sem proteção.

    JG: E como foi o processo na justiça estadual e a posterior decisão de federalização, ou de deslocamento de competência para a justiça federal?

    EF: Logo quando houve execução, no dia 24 de janeiro de 2009, a gente ficou bastante atordoado. No primeiro momento entramos em contato com pessoal da Justiça Global para pensar como acompanhar investigação. Quando ocorre um crime dessa natureza, você já não tem mais nenhuma confiança na investigação que é feita naquele momento, porque foi a polícia da Paraíba que primeiro chegou lá, então a gente achava que poderia haver algum tipo de manipulação do local do crime. Então resolvemos oficiar de pronto o Ministério da Justiça para que a investigação fosse conduzida pela Polícia Federal, em especial por se tratar de um crime ocorrido na divisa entre dois estados, o que não foi acatado no primeiro momento. Nós acionamos diretamente a Procuradoria Geral da República e 20 dias depois iniciamos esse processo de federalização, pegando como exemplo o caso da Dorothy Stang que tinha sido negado pelo STJ em 2005. Então precisava ser feito um enfrentamento, por acharmos que poderia haver entraves não apenas no que se refere à Justiça estadual, mas especificamente no procedimento investigativo adotado pelo estado da Paraíba. Teve repercussão internacional e os próprios poderes da Paraíba e de Pernambuco entenderam que era melhor não estarem envolvidos nesse caso. O problema é que demorou quase dois anos para sair a federalização, e o processo judicial continuou correndo. Diversos procedimentos ocorreram enquanto o caso ainda não tinha sido federalizado, a parte inicial da investigação, os interrogatórios, tudo foi feito na Justiça Estadual da Paraíba. Quando houve a federalização, todo o processo foi para a Justiça Federal do estado da Paraíba, e o julgamento começou no estado da Paraíba.

    A gente acredita que poderia ter sido melhor, porque as investigações poderiam ter sido aprofundadas na esfera Federal, mas boa parte do que foi aproveitado pela denúncia do Ministério Público Federal foi eu que tinha sido produzido nesses anos pelo estado da Paraíba. Nós, pela Justiça Global, pela Dignitatis, entramos como assistentes de acusação, e desta forma a gente fica restritos, do ponto de vista legal, ao que o Ministério Público conduz. Ele é o titular da ação, nós como assistentes não poderíamos ir além do que foi apresentado na denúncia. As nossas solicitações foram apensadas à denúncia. Isso fez com que o caso viesse, em um primeiro momento, a ser julgado na Paraíba. Utilizou-se, por exemplo, a lista dos jurados da Justiça da Paraíba. Mas para nós isso impunha limitações – se o caso foi federalizado, então todo o procedimento deveria ter sido federalizado, não poderia pegar emprestado o que viria da justiça estadual. Se você tirou o caso da ordem estadual e levou para federal, e usou as mesmas coisas que o estado estava usando, qual é a diferença, afinal? Então solicitamos que o júri fosse retirado do estado da Paraíba e fosse para o estado de Pernambuco.

    Todo esse procedimento foi muito duro de ser feito, porque como disse todos os procedimentos que deram base à denúncia foram feitos pela polícia da Paraíba, depois ratificados pelo Ministério Público do estado da Paraíba, e depois pelo Ministério Público Federal da Paraíba. Mas, mesmo com todas as limitações que ocorreram,

    estávamos diante de um caso emblemático, e a possibilidade de ter conseguido a federalização era algo muito importante no cenário nacional. Nós colocamos muita energia nesse julgamento com o trabalho de assistência da Justiça Global, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, tivermos a participação de muitos Procuradores Federais, como a Deborah Duprat.

    JG: E como você avalia o resultado deste julgamento e do processo de deslocamento de competência?

    EF: Eu acho que, do ponto de vista do que tinha, da investigação que foi feita ela, o julgamento atingiu o objetivo, que era que o caso não ficasse como mais um caso impune. Foi um passo importante na busca de resolutividade em um caso de grave violação de direitos humanos. Ao mesmo tempo, a gente sabe que poderia ter ido além, porque existe uma rede de financiadores desses casos aqui na Paraíba. Havia indícios de que poderia ter o envolvimento de outras pessoas, e isso ficou em aberto, o que deixa um pouco frustrado a essência do mecanismo de federalização. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que abriu uma oportunidade para que outros casos fossem levados à Procuradoria Geral da República e ao STJ depois, porque se tornou um caso de referência para a aplicação do instituto de deslocamento de competência.

    Então tem dois aspectos que eu gostaria de salientar. Foi muito importante nós termos conseguido garantir que o júri ocorresse e condenasse pessoas que estavam envolvidas com este crime, e criar o primeiro precedente de federalização desde que o instituto foi previsto, em 2004. Por outro lado, fica essa sombra sobre o que poderia ter ido além. Uma delas é: onde essas pessoas estão dentro do sistema carcerário? Nós pedimos que os executores fossem enviados para presídios federais, mas eles não foram.

    As instâncias estaduais, por vezes, apresentam sérios entraves para que esses casos sejam levados adiante. É o que se vê, hoje, com o caso da Marielle, por exemplo. Você dialoga às vezes com pessoas que estão possivelmente envolvidas no crime. Então a federalização serve para lidar com essa questão, quando se tem a percepção de que as autoridades locais, por mais que não estejam totalmente envolvidas, abarcam setores, abarcam estruturas com envolvimento direto que podem atrapalhar a investigação. Isso também influi na segurança e na proteção daqueles que atuam no caso, tanto advogados assistentes, assessores de Organizações Não Governamentais… No caso de Manoel, nós tivermos a sede da nossa ONG invadida, tivermos apartamentos invadidos, então lidar com essas circunstâncias do ponto de vista local é muito complicado. Você está dialogando com quem potencialmente cometeu o delito.

    *Eduardo Fernandes foi advogado assistente do caso de Manoel Mattos. É professor na Universidade Federal da Paraíba.

  • Justiça Global: Manoel Mattos por sua própria voz

    Justiça Global: Manoel Mattos por sua própria voz

    Manoel Mattos tinha uma longa trajetória em defesa dos direitos humanos, marcada sobretudo por um corajoso enfrentamento contra os grupos de extermínio que atuavam na fronteira entre Pernambuco e Paraíba. No depoimento a seguir, relatado no dia 28 de outubro de 2003 perante a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre os grupos de extermínio no Nordeste, Manoel conta um pouco de sua trajetória, dos arranjos políticos dos grupos e oligarquias locais, e das ameaças que sofria.

    Minha área é o Direito. Sou advogado, militava na área sindical, trabalhista e de assessoramento jurídico de várias entidades sindicais do Estado de Pernambuco, e comecei a fazer um trabalho na minha cidade natal, Itambé, no sentido de investigação e fiscalização da administração pública local, onde vivia uma oligarquia de mais de 25 anos. Então, no mês de outubro de 2000, fui eleito o Vereador mais votado da história da minha cidade, com cerca de 10% dos votos válidos. E várias pessoas começaram a me procurar, várias pessoas começaram a buscar em mim um instrumento para que a gente pudesse auxiliá-los na questão dessa matança, do chamado mata-mata, da ação de falsos justiceiros.

    A partir desse momento, eu comecei a procurar me inteirar mais, até porque várias pessoas começaram a morrer em escala, em série. Toda semana morriam 3, 4 pessoas. Toda semana. E aquilo foi me chamando a atenção. No Nordeste, a feira tem um simbolismo muito grande às segundas-feiras. Na segunda-feira, quando eu estava no meio da praça principal da cidade, conversando com taxistas e com outras pessoas que lá trafegavam, sempre ouvia a notícia: “Olha, na relação de quem vai morrer, vai morrer fulano, sicrano e beltrano”. E comecei a observar que aqueles que apareciam na segunda-feira como possíveis mortos realmente, no final da semana, eram executados. E isso me causou uma indignação muito grande. Eu tinha sido advogado de um trabalhador rural, que era homossexual, numa ação trabalhista. Quando me causou espanto que ele foi eliminado também por esse grupo de extermínio na cidade de Itambé, quando começaram a eliminar não apenas menores, delinqüentes, pequenos assaltantes, cheira colas, mas também começaram um trabalho de eliminação de homossexuais. Realmente ficamos bastante estarrecidos com esse fato.

    Diziam: “Olha, morreu Xuxa, que era esse trabalhador, morreu Sandra do Maracatu e você está na lista”. Então, várias pessoas começaram a se mudar, a sair de Itambé e fugir, para o Rio, para São Paulo. Quando sabiam que o nome estava na lista, desapareciam. Alguns desses, por exemplo, quando compraram a passagem de ônibus lá em Itambé, quando foram em casa preparar as malas para poder viajar no outro dia, nesse interstício, foram eliminados. Então, era uma situação grave.

    Aí eu queria fazer um esclarecimento e fazer um registro. Olhem, Srs. Deputados, eu tenho sofrido muito por conta dessa minha luta desde o ano 2000. Numa cidade de 34 mil habitantes, enfrentar velhas oligarquias, enfrentar adversários poderosos na região, inclusive, alguns com mandatos eletivo, e, mais ainda, você enfrentar o poder do Estado, o poder transversal, como dizia bem Humberto [da Silva Garça, promotor de Justiça do Estado de Pernambuco], poder podre, esse tecido podre do Estado que muitas vezes começa a deixar farsas e montando peças criminais para fazer com que você, vítima e denunciante, passe a ser criminoso.

    Mas gostaria de dizer que esses grupos de extermínio não têm grande repercussão, e esse momento, essa sala vazia mostra isso. E falo com muita tranqüilidade, porque sou Parlamentar, sofro dos mesmos problemas que esta CPI sofre, porque, no uso, no meu trabalho como Presidente da Câmara atualmente, apresentei um projeto de resolução criando a Comissão de Direitos Humanos lá na Câmara Municipal. Consegui convencer os Vereadores a aprovar, mas não consigo fazer com que ela realmente ganhe vida útil à sociedade, pela falta de interesse de alguns colegas Parlamentares. Então, eu sei que o que está acontecendo aqui não ganha grande repercussão por uma simples razão: porque quem está morrendo são pobres; porque quem está morrendo são pessoas pretas, porque quem está morrendo são vítimas dessa sociedade excludente que essa elite forjou no nosso País.

    Só para os senhores terem idéia, entre julho e agosto [de 2003], em 15 dias, do final de julho para início de agosto, morreram 2 PMs e 11 pessoas foram executadas. E o Secretário vai à televisão dizer que não há grupos de extermínio, que o povo pernambucano está tendo uma sensação de segurança pública, quando é de forma falaciosa. E mais do que isso: quando nós sabemos que há subnotificação; quando nós sabemos que determinados homicídios, determinados delitos, não são computados pela Secretaria de Defesa Social; quando nós sabemos e tivemos a confirmação da voz de um dos agentes públicos de segurança pública, quando diz que não eram feitos determinados exames, determinados meios de prova. Como o Ministério Público vai poder entrar com uma ação penal, levar ao Tribunal de Júri, e como o Estado vai punir, se você não tem nenhuma prova?

    O Governo do Estado de Pernambuco, a que eu estou me referindo — mas isso é em diversos Estados —, não tem no IML, não tem prova do exame tanatoscópico, não tem o exame de balística, não tem nada. Para vocês terem uma idéia, eu trouxe para aqui projéteis, 2 projéteis. É muito engraçado como é que um Vereador consegue tantas provas, colecionar tantos documentos, e a polícia não consegue? O Governo não tem interesse em fazer. Consegui 2 projéteis de um jovem, que, em 99, em Pedras de Fogo, sofreu uma tentativa de homicídio, perdendo um rim, tendo o estômago perfurado e perdendo uma perna, perdendo o movimento de uma perna, paralisando o movimento de uma perna. Isso em outubro de 1999. Não foi feito exame de balística, não foi feito nada. Ele, quando ia à delegacia, deparava com o algoz dele; para formalizar a queixa, o algoz dele estava lá ao lado delegado.

    Quer dizer, por outro lado, a ação do grupo de extermínio é também uma forma de acumulação, uma forma de enriquecimento. Os comerciantes, grandes latifundiários, usineiros da região utilizam também essa mão-de-obra barata, desempregada, juvenil, adolescente; primeiro porque é barata, segundo porque são pobres, terceiro porque sabem da impunidade e a utilizam para fazer não só a questão da execução sumária, mas da limpeza da cidade, como dizem, “das almas sebosas”, mas também para fazerem outras transações: seguranças privadas, segurança de carro roubado, de roubo de carga e outras coisas. E precisa, portanto, de apuração do Estado. Ficou claro para mim durante esses anos que é patente o apodrecimento do aparelho policial. Mas é verdade que há vários homens e várias mulheres de bem, trabalhadores, cumpridores de suas tarefas constitucionais e que merecem todo o nosso louvor e toda a nossa admiração pelo trabalho que fazem, mesmo sendo perseguidos pela alta cúpula da polícia.

    Fico estarrecido de chegar à conclusão de que há omissão do Estado. E lá no caso de Pernambuco há terceirização do monopólio da violência. O Estado realmente está terceirizando o monopólio da violência, quando nós observamos a quantidade de grupos de extermínio que estão acontecendo. Se o senhor pegar um distrito de Paudalho, Guadalajara, se pegar em Cavaleiro e Jaboatão, se pagar em Rio Doce, Maranguape, entre Olinda e Paulista, os senhores vão ver em plena atividade vários grupos de extermínio em Pernambuco, com a participação de policiais militares e civis, quando não é participação ativa, mas é de omissão, porque não apuram, porque não têm interesse, porque sabem que estão fazendo um trabalho que era para ser feito por eles. Mais do que isso: essa forma de gerenciar a segurança pública no nosso Estado tem levado realmente ao incremento de mortes, de homicídios.

    A lentidão das autoridades em tomar providências é que tem provocado mais mortes. E, de certa forma, acabando com o trabalho que foi já realizado anteriormente, surgindo novos grupos, novos pistoleiros, porque é um mercado farto, de mão-de-obra barata. Desemprego entre 18 a 25 anos em Itambé, para o senhor ter uma idéia, Itambé hoje é 23ª cidade mais pobre de Pernambuco e está entre as 600 mais pobres do Brasil, mas não tem políticas públicas de inclusão social, de saneamento, de habitação popular, de educação, de geração de renda, de emprego e renda, o que vai fazendo esse caldeirão aumentar cada dia a violência desses setores relacionados a execuções sumárias.

    Tenho sido vítima de uma ação orquestrada no sentido de desqualificar o meu trabalho feito durante esses 2 anos. Quer dizer, tenho passado por esses transtornos todos, afora as ameaças, afora tudo isso, o desrespeito, afora a desqualificação e a indignação. É uma situação realmente dramática que eu tenho vivido. Há semanas, recentemente, saiu uma matéria com vários políticos de Pernambuco que estão ameaçados, inclusive alguns Vereadores. Nessa matéria, o próprio Secretário de Defesa Social de Pernambuco diz: “Não é função do Estado proteger esses agentes. Esses agentes públicos devem procurar empresas de segurança particular para protegê-los”. Ora, uma autoridade de Segurança Pública está incentivando a privatização do monopólio da violência, da segurança pública. É uma coisa absurda, absurda.

    Então fica ainda mais frágil a situação pessoal da nossa família. Tenho 3 filhos. Uma filha mora em Recife, não tem proteção. Outra filha mora comigo e estuda em João Pessoa, porque Itambé está mais perto, mesmo sendo Pernambuco, mais perto de João Pessoa do que da Capital pernambucana. Então ela sai de 5 e meia da manhã para estudar no Colégio em João Pessoa, sem proteção, sem nada, uma criança de 8 anos. Quer dizer, eu vivo num inferno, em prisão domiciliar. A minha casa, a casa em que eu resido, com arame farpado, cheia de cadeado. Passa uma moto com maior violência, com maior barulho, eu me acordo assustado. As pessoas no bar, nas conversas — é uma cidade de 34 mil habitantes, todo mundo me conhece, sou filho natural de lá —, as pessoas dizem abertamente que mais cedo ou mais tarde vão me matar, como dizem em relação ao Padre Luiz Couto.

    E a gente fica num lugar desses. Quando vou comprar pão, me deparo com um pistoleiro na minha frente, integrante de grupo de extermínio que não tem, por mais que os fatos mostrem, não tem procedimento, não tem nada apurado em relação àquela pessoa, porque as pessoas se omitem de fazer o seu mister. A gente vai comprar um pão na esquina, se encontra com um pistoleiro na esquina, armado. As pessoas andam armadas acintosamente, com pistola 380, mostrando no bolso da calça jeans, e não é feito nada, não é apreendida a arma, não é feito nada.

    Que Estado é esse?

    Por: Justiça Global

  • Inédito: Marielle Franco deixou um recado sobre o PME do Rio

    Nesta terça-feira (27), acontece a votação do Plano Municipal de Educação, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O plano estabelecerá as diretrizes da educação e suas prioridades no Rio nos próximos 10 anos.

    O discurso de Marielle já estava sendo feito antes de ser assassinada e a equipe do mandato Marielle Franco disponibilizou o texto. O companheiro Tarcísio Motta irá lê-lo no Plenário, durante a votação.

    No Brasil inteiro, a educação vem sofrendo um boicote por uma ideologia da intolerância e do desrespeito, principalmente em relação à igualdade de gênero. Não está sendo diferente aqui no Rio. Estão tentando retirar a palavra “gênero” do Plano para que não haja o debate nas escolas sobre igualdade entre homens e mulheres, meninas e meninos.

    Confira o discurso que Marielle iria fazer. Compartilhe o post para que a sua voz não seja silenciada!

    Boa tarde à todas e todos,

    O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo.

    Os números são assustadores: em 2016, foi registrada uma violência contra mulher a cada 5 horas no Estado do Rio de Janeiro.

    Mas também sabemos que estes números são apenas de parte das mulheres que conseguiram, de algum modo, buscar auxílio e denunciar.

    E eu pergunto à vocês: seguiremos nos recusando a falar sobre igualdade de gênero? Até quando?

    O debate sobre a nossa igualdade é urgente no mundo, no Brasil e no município do Rio de Janeiro!

    Enfrentar este debate é nos comprometermos com a democracia e com nosso avanço civilizatório.

    Falar de igualdade entre mulheres e homens, meninas e meninos, é falar pela vida daquelas que não puderam ainda se defender da violência. E são muito mais das 50.377 registradas em 2016, aqui, no Rio.

    Diferente do que se fala ou, infelizmente, do que se acostuma ver em Casas Legislativas, como esta, não somos a minoria. Somos a maior parte da população, ainda que sejamos pouco representadas na política.

    Ainda que ganhemos salários menores, que estejamos em cargos mais baixos, que passemos por jornadas triplas, que sejamos subjulgadas pelas nossas roupas, violentadas sexualmente, fisicamente e psicologicamente, mortas diariamente pelos nossos companheiros, nós não vamos nos calar: as nossas vidas importam!

    No Brasil, segundo o IPEA (2016). As mulheres negras brasileiras ainda não conseguiram alcançar nem 40% do rendimento total recebido por homens brancos. E somos nós, mulheres negras, que mais sofremos violências diariamente.

    Só quem acha que isso é normal é quem não sofreu no corpo o machismo e o racismo estrutural. Quem acha que isso não merece ser debatido na nossa educação é porque se benefecia das desigualdades.

    Por isso, quero deixar registrado que essa Casa, ao retirar os termos “gênero”, “sexualidade” e “geração”, fortalece a continuidade de desigualdades e violências dos mais diversos tipos.

    Hoje falamos do principal plano para desenvolvimento social do nosso município: o Plano Municipal de Educação. Este plano merece que tenhamos compromisso e responsabilidade.

    O termo “gênero” começou a ser utilizado como categoria de análise a partir de 1970 com o objetivo de dar visibilidade às desigualdades entre homens e mulheres. Logo, tanto na origem da sua criação, quanto no uso corrente em debates sobre a superação das desigualdades, falar de “gênero” tem como finalidade promover a devida atenção e crítica das discriminações sofridas pelas mulheres, e tentar achar meios para que todas e todos possamos juntos enfrentar este cenário.

    Desde quando falar sobre uma opressão, que gera tantas mortes, é falar sobre alguma doutrinação?

    Se dizem tanto a favor da vida, então deveriam ser a favor da igualdade de gênero. E só se promove igualdade através de uma educação consciente e do debate com nossas crianças, para que se tornem adultos melhores.

    Por isso, como parlamentares responsáveis pelas cidadãs e cidadãos dessa cidade, devemos defender o debate na educação!

    Se é da escola que nasce o espaço público que queremos, é indispensável que se fale de igualdade de gênero sim! Que se fale de sexualidade, de respeito, de laicidade, de racismo, de LGBTfobia, de machismo. Pois falar sobre estes temas é se comprometer com a vida, em suas múltiplas manifestações. É se comprometer com o combate à violência e a desigualdade!

    É mais do que urgente que esta casa não se cale sobre as vidas que são interrompidas dia-a-dia neste Município.

    Falar de igualdade de gênero é defender a vida!”

    Marielle vive!