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  • Estado de exceção e direito penal do inimigo são duras realidades do Brasil

    Estado de exceção e direito penal do inimigo são duras realidades do Brasil

    Por Antonio Carlos Carvalho

    (Texto publicado originalmente pela Fundação Perseu Abramo neste link)

    Vivemos dias sombrios. Estado de exceção e direito penal do inimigo são duras realidades do Brasil. Se essa realidade nunca abandonou as periferias desse país, é verdade que agora ela se escancara aos olhos de quem quiser ver.

    A operação de um sistema jurídico que não garante defesa, que julga antes de conhecer as provas e que prende para obter detrações é sacramentada pelo constante apoio da campanha dos meios de comunicação, que, semana após semana, anunciam as balas de prata que acabarão com um mal comum único fabricado para distrair as desigualdades do Brasil.

    Essa poderia ser a descrição de outros períodos da nossa história. Ditaduras precisam existir no coração das pessoas. Carregar pra si o ódio, a raiva e a necessidade de perseguir um inimigo une pessoas, mobiliza emoções e cria um amálgama social destruidor.

    Esse foi o cerne das manifestações verde-amarelas e do golpe parlamentar viabilizado pelas forças da mídia brasileira, que se uniram à perseguição penal violenta da Operação Lava Jato. O inimigo comum estava declarado por essas forças: o PT é o fundador da corrupção e gerador da crise brasileiras, e precisa ser desligado do poder, extinto e combatido.

    Definidas a exceção e o inimigo, haveria ambiente para o estabelecimento de uma nova ordem política e econômica para o Brasil. Não contaram com um elemento: o povo. O povo é a regra, e não a exceção numa nação. E não existe liderança política da história desse país que conheça mais essa regra do que Lula. Ele já foi tratado como inimigo pelo Delegado Fleury, por Roberto Marinho, pelos Civita, pelos Mesquita, pelos Frias, pelos generais da ditadura, pelos proprietários das empresas metalúrgicas, pela aristocracia brasileira. Todos a bem de um ideal nacional. Sérgio Moro é o nome da vez.

    E querem que ele seja. Basta ver as capas das revistas Veja e Istoé desse final de semana. Lula virou inimigo nacional por ter um acervo presidencial, por frequentar Atibaia e por ter pensado em frequentar o Guarujá. E Moro, o combatente número um desse inimigo. Como as cascas de cebola de Hannah Arendt, o juiz de primeira instância do Paraná ocupa um papel na exceção que foi criada: o de tentar fazer valer alguma regra que não existe.

    Mas essa é mais uma travessia, para o povo brasileiro e para Lula. E, como diz Guimarães Rosa, citado no início do texto, é ali que está o real, a realidade, o fato. E a humanidade, os sentimentos, a felicidade, a democracia e a justiça social só podem aparecer nos fatos. Como nos natais que o presidente passou com catadores e catadoras, como na entrega da transposição do Rio São Francisco ao povo do Nordeste, no pau de arara que o trouxe para São Paulo, nas greves, nas ruas, nas duas vezes em que foi eleito para a presidência. E por isso ele é o inimigo. Travessia. Lula sempre teve a viola pra cantar.

     

     

  • A prisão de Eduardo Guimarães

    A prisão de Eduardo Guimarães

    O estado de exceção brasileiro, a desaplicação da lei e o mau uso da obra de Giorgio Agamben: aberta a temporada de caça ao voto,  ao corpo e à palavra.

    A obra de Giorgio Agamben tem sido maltratada, escorraçada e convertida em seu contrário na boca e na pena de membros do judiciário e operadores do direito no Brasil interessados em proteger, bajular e colocar a operação lava-jato acima da lei. Essas pessoas utilizam-se do termo estado de exceção, atribuindo-o a Giorgio Agamben, como dispositivo privilegiado-e desejável-, para agir à margem da lei, indicando que diante da excepcionalidade da situação (exceção) medidas excepcionais-isto é, não previstas e muitas vezes contrárias ao Estado democrático de direito-devem ser tomadas sem que aqueles que a utilizam discricionariamente sejam passíveis de punição, regulação ou a perda imediata de suas prerrogativas institucionais e abdiquem de suas togas e fardas.

    Bebem numa conhecida citação de Eros Grau que não expõe o pensamento de Agamben em sua complexidade. O texto de Heloisa Marcon em 06/01/2017, publicado nos Psicanalistas pela Democracia já alertava sobre isso. Vejamos a citação tão propalada de Eros Grau:

    A ‘exceção’ é o caso que não cabe no âmbito da ‘normalidade’ abrangida pela norma geral. A norma geral deixaria de ser geral se a contemplasse. Da ‘exceção’ não se encontra alusão no discurso da ordem jurídica vigente. Define-se como tal justamente por não ter sido descrita nos textos escritos que compõem essa ordem. É como se nesses textos de direito positivo não existissem palavras que tornassem viável sua descrição. Por isso dizemos que a ‘exceção’ está no direito, ainda que não se encontre nos textos normativos do direito positivo. Diante de situações como tais o juiz aplica a norma à exceção ‘desaplicando-a’, isto é, retirando-a da ‘exceção [Agamben 2002:25]. A ‘exceção’ é o fato que, em virtude de sua anormalidade, resulta não incidido por determinada norma. Norma que, em situação normal, o alcançaria. (GRAU, E. R. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6ª ed. refundida do Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 124-25).

    Trata-se de uma prerrogativa dada ao direito de se valer da exceção de modo, no fundo, discricionário. Quem definirá a excepcionalidade que convoca dispositivos e práticas de excepcionalidade?

    Nada mais esdrúxulo do que deixar subentendida tal interpretação

    que simplesmente repete a posição sobre a qual incide a crítica Agambeniana.

    Agamben está construindo uma crítica à esses pressupostos e não naturalizando-os.

    Para quem leu, ainda que modestamente, a parte da obra de Agamben que trata diretamente do estado de exceção e de suas condições de gênese, constata que o que o autor italiano sugere é justamente o contrário.

    Citar Agamben para amparar argumentativamente ações e sentenças discricionárias evidencia, portanto, não apenas desprezo pelo pensamento e desconhecimento das posições do autor, mas desrespeito à tudo aquilo que se faz com trabalho e dedicação.

    Desprezam a obra de importantes autores do pensamento contemporâneo assim como desprezam conquistas históricas da nação e do povo brasileiro. Se utilizam do combate à corrupção para adquirir superpoderes para sequestrar o voto livre, a palavra livre, a liberdade de ir e vir.

    Vejamos  o que diz Agamben:

    “Embora o estado de exceção tenha sido originalmente concebido enquanto medida provisória, destinada a lidar com um perigo imediato no sentido de restaurar uma situação normal, as razões de segurança são hoje a tecnologia permanente de governo.” ((https://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben)

    Trata-se de um alerta e não da naturalização da exceção, como querem alguns.

    Ao se utilizar da exceção como dispositivo da lei, acima, abaixo ou à margem da lei, o soberano retira do direito a possibilidade de promover e assegurar a democracia e, se a democracia for calçada nessa possibilidade iminente e discricionária de aplicação e/ou suspensão da lei, ou nos termos de Agamben, pela desaplicação da lei por obra de outra lei que se aplicaria sobre ela e acima dela, então estaríamos no território das tiranias e o direito seria não apenas para promover e proteger as democracias, mas seria, por definição, contra a democracia, compreendida como exercício da política e formação do corpo político.

    Como refletiu Hannah Arendt, autora que Agamben leu e com a qual dialoga,  o terreno sombrio do UM contra todos, que caracteriza os totalitarismos e as ditaduras, é deflagrado quando se percebe a iminência do todos contra UM, ou seja a possibilidade da perda de legitimidade daqueles que procuram se manter no poder artificialmente, ou seja, utilizando-se dos dispositivos de violência ao seu alcance.

    Entra em cena a violência,

    para manter no comando governantes sem legitimidade,

    carentes de argumento e vazios de poder.

    Poder para Hannah Arendt só se sustenta sob a legitimidade, sem ela não há poder, mas força bruta utilizada arbitrariamente pelos que são incapazes de representar a maioria dos cidadãos, mas insistem em fazê-lo auto inseminados por suas própria fantasias de poder e mando.

    A lei que se exerce como força, vontade pessoal, máquina de guerra

    transforma-se em instrumento de tiranias e ditaduras.

    Destrói o direito em sua tarefa de promover a justiça

    e tumultua as formas e forças que querem e precisam dialogar.

    Operadores do direito, quando fazem do direito um instrumento exclusivo e de uso pessoal, se utilizam da lei como pistoleiros com uma arma na mão e devem, urgentemente, renunciar a ela antes que o pior aconteça. Podemos todos imaginar o que pode fazer alguém com uma arma na mão diante de um conflito iminente ou diante daqueles que se lhe opõe.

    Agamben observa:

    “O que acontece hoje é, no entanto, outra coisa. Não foi declarado qualquer estado de emergência formal e, contudo, vagas noções não jurídicas – razões securitárias – são evocadas para instaurar um constante estado de emergência arrepiante e ficcional, sem que qualquer ameaça seja identificável. Um exemplo dessas noções não jurídicas que são utilizadas enquanto fatores instigadores de emergência é o conceito de crise.” (https://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben)

    Entram em cena as situações excepcionais, as convicções, o direito auto concedido de se posicionar acima da lei e não ser alcançado por ela.

    Desde esse ponto estratégico a caça a palavra está deflagrada no país. Quem se opõe, diverge, se insubmete deve ser caçado, preso, coagido.  O juiz Sergio Moro resolveu atacar com as armas de que dispõe e, com o dedo no gatilho das armas da PF, ameaça, constrange, humilha e coage um blogueiro e sua família. Ações assim pouco a pouco colocam a democracia brasileira a pique nas barbas do conselho nacional de justiça e do supremo tribunal federal.

    Por um lado estarrecedor, por outro, normal, corriqueiro, natural na situação brasileira. Ao descumprir a lei comandando operações coercitivas cujo amparo legal équestionável, o juiz põe o país todo de sobreaviso e cria um ambiente alarmante de ameaça e lassidão jurídica que hoje preocupa todo e qualquer cidadão brasileiro.

    Todos, sem exceção, podem ser vítimas de ações policiais na calada da noite a mando de um juiz que, por ventura, decida descumprir a lei em função dos seus anseios ou por mera vingança pessoal.

    Todos podem ser arrancados a tapa de suas casas na frente de suas famíliaspor policiais-como acontece corriqueiramente nas periferias das cidades brasileiras- a mando de um operador do direito que decidiu, desse modo, “fazer cumprir a lei” amparando-se na suposta excepcionalidade da situação, ou ainda por mera convicção.

    Mas quem define o que é excepcional e o que não é?

    Querem impor o medo e, lamentavelmente, estão se utilizando de seu poder jurídico para fazê-lo. Com isso o sistema jurídico e seus operadores se desmoralizam dentro e fora do país. Imaginam que tais violências passarão desapercebidas ou que a ladainha daviolência a bem das investigações será engolida.

    Ao contrário, tudo o que se tem conseguido é minar a pouca confiança que havia nas instituições jurídicas do país e desmoralizar os sérios e competentes operadores do direito no Brasil.

    No Brasil a lei esta se tornando uma brincadeira de mau gosto que incute instabilidade, desprezo e descrédito aos cidadãos ante  àqueles que hoje tem a prerrogativa de aplicá-la. A fenda entre direito e justiça se esgarça de um modo poucas vezes testemunhado no país desde o fim da ditadura civil-militar.

    Delito de opinião é algo que já devia ter ficado para trás,

    mas se estão tão preocupados com um blogueiro

    que emite suas opiniões e circula informações

    omitidas pela grande mídia isso significa, certamente,

    que a oposição está no caminho certo.

    • Texto publicado também em Psicanalistas pela Democracia (psicanalisedemocracia.com.br).