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  • MÔNICA FRANCISCO: Ainda há tempo para a unidade do campo progressista

    MÔNICA FRANCISCO: Ainda há tempo para a unidade do campo progressista

    O povo brasileiro está diante de ameaças que se impõem à nação de modo estarrecedor e avassalador. Num processo de corrosão que se alastra rapidamente vemos a destruição da nossa economia; o total descaso no trato com a pandemia do Coronavírus, que agrava o quadro econômico geral; e o risco de solapamento da frágil democracia brasileira, por um governo com claras pretensões autoritárias.
    Deste modo, as forças democráticas, populares e progressistas precisam urgentemente recolocar na pauta do debate brasileiro a opção que temos postergado há décadas: ou assumimos, como forças políticas e em íntima articulação com o povo, um projeto popular, democrático e soberano de Brasil, ou seremos arremessados na mais absoluta barbárie.
    Bolsonaro, assim como parte dos setores militares que com ele ascenderam ao poder, são herdeiros diretos da linha dura da ditadura, que nunca pretendeu qualquer tipo de abertura, mesmo a limitada que tivemos. Essas forças neofascistas fomentam o caos, pois esperam criar as condições para desestabilizar política e economicamente a nação, pavimentando o caminho para uma saída autoritária.
    Os governos Temer e Bolsonaro, em menos de quatro anos e meio, adotaram duras medidas de austeridade, retiraram direitos históricos da classe trabalhadora, desaceleraram nosso crescimento econômico e contribuíram para aumentar a desigualdade social, a pobreza extrema e, na convergência de todos esses processos, recolocaram o país no curso do mapa da fome.
    Mais do que nunca, é preciso derrotar este projeto autoritário com projeto popular, amplo – com todos os movimentos sociais, organizações de mulheres e das favelas – e construído por muitas mãos. Esse projeto passa pela universalização da saúde, da educação, da moradia, seguridade social pública e financiada pelos que podem mais e pela efetivação de um gigantesco número de direitos reconhecidos na tão maltratada Carta Constitucional de 1988 – que nunca esteve sob tão virulento ataque quanto nos últimos 18 meses. Essas alterações não se farão sem grande mobilização popular.
    Os interesses da grande maioria trabalhadora da nação, sempre afastados da agenda política do país por aqueles que transitam pelos corredores palacianos, precisam protagonizar esse processo. E para isso, fomentar espaços de organização popular, de combate ao racismo estrutural e institucional, bem como a participação e controle social do Estado e das políticas públicas é fundamental.
    Encarar a necessidade de uma profunda reforma do Poder Judiciário, da radical democratização dos meios de comunicação e da total reestruturação do sistema político, é pré-condição para derrotar as elites brasileiras e abrir caminho para que o povo volte a enxergar na política – e não em messias e mitos os salvadores da pátria – a ferramenta do bem comum.
    Não faremos nada disso sem construirmos unidade, a despeito de nossa diversidade enquanto organizações políticas e movimentos sociais, sem retomarmos o debate estratégico sobre a transformação profunda que o Brasil precisa.
    *****
    Mônica Francisco é deputada estadual pelo PSOL Rio de Janeiro. Preside a Comissão do Trabalho na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e a vice-presidência da Comissão de Combate às Discriminações. Ela é ex-assessora de Marielle Franco e cria da favela do Borel. 
  • Unidade democrática: somos 70% e os desafios da esquerda

    Unidade democrática: somos 70% e os desafios da esquerda

    ARTIGO
    Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ. E é 70%
    Trata-se de um excelente desafio para as esquerdas repensarem seus desafios, no interior de um modelo democrático representativo que, como princípio, não atende inteiramente às suas aspirações. Trata-se também de pensar o potencial desestabilizador das esquerdas em relação ao governo Bolsonaro, em meio a uma crise democrática anterior à pandemia de Covid-19, mas acentuada nela. Afinal, quais as condições da esquerda avançar em suas agendas, neste ambiente político? Como a esquerda se insere neste “somos” do #Somos70%?
    Bolsonaro e a brecha antidemocrática
    É necessária e tardia a formação dessa frente. Bolsonaro é a presença do passado ditatorial em nosso ambiente democrático, personificando a contradição de origem do sistema político inaugurado em 1988. O liberal Ulysses Guimarães no discurso de promulgação da Constituição exaltou o fim da Ditadura, dizendo: “Temos ódio e nojo à Ditadura”, “Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”.
    Tal contundência não foi acompanhada por uma justiça de transição capaz de rever o pacto de anistia proposto em 79, julgando crimes e violações cometidas por agentes do Estado na Ditadura. Nesta brecha, Bolsonaro atuou intensamente. Como deputado, usava o espaço parlamentar para atacar a própria democracia. Comemorava, ano a ano, os aniversários do golpe de 1964. Bradava pela violência de Estado, do passado e do presente, como se esta já não fosse suficiente. Rechaçava o espaço da pluralidade democrática, do convívio com a diferença, dos princípios mais básicos de funcionamento da democracia moderna. Exemplo máximo, neste sentido, são seus ataques ao conceito de direito humano, um conceito de matriz liberal, fundado nos valores iluministas e da Revolução Francesa, renovado mais recentemente no pós-segunda Guerra Mundial, em contraponto ao nazi-fascismo. Bolsonaro formou uma identidade política contrária a todos esses valores em sua atuação parlamentar, crescente na crise representativa iniciada em 2013, se apresentando como voz e ameaça concreta a todos os espectros políticos existentes no interior do jogo democrático, de esquerda e de direita.
    O movimento #Somos70% expressa a necessidade, tardia e urgente, de demarcar a diferença fundamental entre fascismo e democracia. O primeiro fundado na cultura do ódio, na violência de Estado em favor de um projeto único de sociedade, exaltação de uma política de morte, anulação das diferenças políticas, considerando o adversário como inimigo que não deve ser vencido, mas exterminado. A democracia se ampara em valores opostos a estes, tais como: a prerrogativa essencial do direito humano enquanto forma de preservação da vida, diferença política entendida como valor, convívio necessário com a pluralidade de projetos políticos, tendo em vista a inescapável condição de que o adversário continua no jogo mesmo que tenha sido derrotado.
    Vejam que, enquanto princípio, se tomarmos como referência o contexto pós-guerra, a democracia não é nem de esquerda nem de direita. Como nos lembra o cientista político Luis Felipe Miguel, este contexto pós-guerra tornou a democracia objeto de disputas entre direita e esquerda. A direita, ancorada no lucro e na propriedade privada enquanto valores essenciais geradores de diferenças sociais, em função da capacidade individual dos sujeitos em alcançarem lugares diferentes de acordo com as suas capacidades. A esquerda prioriza o princípio da “igualdade social” fundado na possibilidade de equivalência (ou melhor distribuição) entre produção e distribuição da riqueza, fundamentais para a coletividade e, em consequência, para os indivíduos.
    A Constituição de 1988 combina/ concilia, de maneira moderada, estes dois princípios: propriedade privada geradora de lucro como cláusula pétrea, geradora das diferenças sociais; direitos sociais universais, como saúde e educação, enquanto serviços essenciais comuns a todos. Um e outro, acomodados a um sistema político democrático, sustentado no equilíbrio entre os poderes republicanos, autonomia dos estados da federação, pluripartidarismo, eleições regulares, liberdade de expressão, dentre outros.
    Situação limite para a direita
    O caso brasileiro atual acompanha um fenômeno bem peculiar: mesmo eleito por um sistema democrático – ainda que em crise, tendo em vista o golpe de 2016 e impedimento da eleição de Lula em 2018 –, Bolsonaro é um presidente antidemocrático que radicaliza uma agenda econômica de direita. No primeiro ano de governo, o pragmatismo econômico pôs a direita democrática ao lado do governo Bolsonaro na aprovação da Reforma da Previdência. Mesmo assim, Bolsonaro já revelava grandes dificuldades de governar nas regras deste jogo, sobretudo em impor sua agenda própria, de unificação moral em torno do tripé “Família patriarcal, Bala (nos pretos) e Bíblia”. Exemplar, neste sentido, foi a derrota que conheceu na aprovação parlamentar de sua política de morte, por meio do armamento do “cidadão (branco) de bem” e do “excludente de ilicitude”, sinal verde para policiais matarem em serviço.
    A derrota do Programa Escola Sem Partido, no âmbito do STF, é outro exemplo. Tal incapacidade de governar nos termos do jogo democrático se acentuou em 2020, sobretudo em meio a pandemia da Covid-19. Não bastasse não seguir as recomendações sanitárias da OMS, ele entrou em rota de colisão com o parlamento, governadores, STF, grande imprensa, todos eles associados ao arco mais ampliado da direita (não fascista). Formou-se, assim, nesta situação limite, o ambiente para que a direita (não fascista) identificasse em Bolsonaro um inimigo da democracia.
    Desafios para a esquerda
    O primeiro desafio da esquerda, portanto, é reconhecer que as regras do jogo democrático-representativo, ancoradas na Carta de 1988, não foram criadas inteiramente para a satisfação de suas aspirações. A atuação da esquerda no interior deste jogo é sempre limitada. Os governos petistas parecem ter reconhecido essas limitações, produzindo transformações sociais, à esquerda, negociando e pondo em prática, como nenhum outro, as regras do arranjo institucional de 1988. O segundo desafio é reconhecer seu lugar no jogo político atual, suas condições de avançar mais, ou avançar menos em suas agendas.
    A ala parlamentar da oposição à esquerda tem sido notável, em sua missão essencial: reduzir danos. Tornar “menos pior” para o povo a experiência política do governo Bolsonaro. E não é de hoje, em meio à Covid, que este trabalho vem sendo realizado. A Reforma Previdenciária foi “menos pior” para o trabalhador e não se tornou um grande sistema de capitalização, em função desta atuação parlamentar. A retirada do excludente de ilicitude no pacote penal aprovado no Congresso é outro exemplo. A aprovação do auxílio emergencial no contexto Covid – velho desejo de renda básica do então senador petista Eduardo Suplicy – é outro exemplo. É importante reconhecer e narrar estas vitórias, nas ruas e nas redes, mas é também importante reconhecer que elas não são suficientes para reduzir a pobreza e a desigualdade social, escopo fundamental da atuação da esquerda. Há de se reconhecer que o trabalho é árduo, pois o Parlamento eleito era majoritariamente bolsonarista ou direitista, uma base que Bolsonaro conseguiu destruir em menos de dois anos de mandato.
    O que encontramos de mais fértil no campo na esquerda em termos transformação propriamente dita está fora da dinâmica institucional. Está, por exemplo, na atuação dos movimentos negro e feminista, em sua capacidade de avançar na compreensão estrutural do racismo e do machismo, nos cruzamentos diretos com o funcionamento do capitalismo historicamente praticado aqui. Nestas lutas, antirracista e antimachista, a esquerda tem encontrado capacidade de expansão, acumulando forças que lhes permitem tornarem estas agendas inegociáveis. Justamente por atacarem dimensões historicamente estruturais, seus passos são lentos, mas incisivos e duradouros.
    Cabe à esquerda, portanto, a despeito do esforço parlamentar e do avanço nas pautas de gênero e raça, considerar uma verdade inconveniente: nenhuma das maiores crises políticas de Bolsonaro foi gerada pelo campo da esquerda. Ela não conseguiu produzir nenhum grau de desestabilização institucional a este governo. A crise com o PSL, que rachou a base parlamentar, a crise ambiental, a crise com Mandetta, a crise com Moro, a crise com o STF, a crise com os governadores, em suma, a “usina de crises” deste governo, nos termos de Rodrigo Maia, não teve qualquer protagonismo da esquerda. Foi a própria pulsão destrutiva do bolsonarismo, antidemocrática por excelência, que gerou todas essas dissidências.
    O terceiro desafio, provavelmente o principal, talvez seja construir uma unidade, uma coalizão democrática. Junto, sim, com a direita não fascista. O que une um e outro é a reação, urgente, à pulsão destrutiva para a democracia que o governo Bolsonaro representa. Isto significa assumir, no agora, a tarefa de admitir o esquecimento como condição fecunda, para não ver a presença inadmissível de um fascista na presidência. Tal unidade não implica em dissipação das diferenças: elas devem permanecer, pois são a própria condição de existência democrática. Nas eleições, essas diferenças voltam a aparecer, dando ao povo o direito de escolha. O #Somos70% se baseia nas últimas pesquisas de opinião que indicam que os bolsonaristas são hoje, no máximo, 30%. Talvez o maior desafio deste movimento seja convencer o povo, sobretudo àqueles que votaram em Bolsonaro por ele representar uma alternativa de mudança, de que não existe alternativa fora da democracia. De que a democracia ainda é único regime político capaz de garantir melhores condições de vida, material e subjetiva, para a sua existência. E nisto a esquerda tem uma contribuição decisiva.
  • Rudá Ricci: Uma reunião em meio ao caos

    Rudá Ricci: Uma reunião em meio ao caos

    Por: Rudá Ricci

    Vamos decompor o cenário.
    Trata-se de uma reunião ministerial de um governo frágil, sem rigor, sem rumo, absolutamente ideologizado, num momento em que começava a perder musculatura, em meio à maior tempestade perfeita deste século. O que se poderia esperar? Racionalidade? Bons modos? Alguma sacada inteligente?

    O vídeo revela o que já se sabe deste desgoverno: falas muito abaixo da mediocridade que, como sabemos, significa ser mediano ou estar na média do pensamento mundano.

    Acuados, os discursos do chefe e seus chefiados são uma espécie de enredo do Monty Python sem qualquer humor. Nonsense com projeção de um mundo paralelo em que tentam demonstrar alguma força que, dado o teor da fala e as ênfases exageradas da forma, revelam mais que a canela. O que se poderia esperar? É gente frágil, marginal em suas áreas de atuação. Quem é Paulo Guedes no mundo da economia? Damares no mundo dos direitos sociais e até no mundo religioso? Quem é Bolsonaro no mundo militar ou no mundo político? Todos se forjaram nas margens do mundo real.

    Bolsonaro não desejava que este vídeo de filme B viesse à público. Vai saber o que o levou a temer. Afinal, o que aconteceu naquela reunião não foge das escatologias de Araújos, Guedes, Weintraubs e Bolsonaros. O fato é que ele perdeu mais esta queda de braço. Talvez, num relance de vergonha, os atores mambembes decidiram aceitar o truco. Alguns apostaram ainda mais no nonsense e na absoluta falta de respeito à investidura de seu cargo. Jogaram como jogadores de porrinha realizado no bar copo sujo da esquina. Suados, camisas abertas até o peito, uma leve baba no canto da boca, decidiram fazer mais uma bravata. Afinal, de bravata em bravata, não se chega a lugar algum e, assim, se anda em círculos eternamente até que a Divina Providência dê um basta.

    Já o exército de robôs decidiu fazer alguma coisa que prestasse politicamente. Já escrevi muitas vezes que na política contemporânea, a versão vale mais que o fato. A reunião-circo não renderá nota de rodapé nos livros de história.

    Mas, pensou alguém que se acha sagaz: “e se disseminarmos que o vídeo reelegerá Bolsonaro?”. Essa indagação não faria sentido em nenhum lugar normal. Mas, o Brasil, há tempos, deixou de ser normal. A deputada mais-ou-menos, já espinafrada pelo ex-ministro, decide postar no Twitter um agradecimento à Moro pela divulgação do vídeo. Interessante que o chefe mor não queria a divulgação. Mas, quando se trata de versão, isso não interessa. Um ou outro do grupo fanático que representa um traço em termos de total da população brasileira, foi na onda.

    Então, adivinhem quem cai nesta armadilha de gente que faz aquele tipo de reunião? Parte da militância de esquerda. Como patinhos amarelinhos que Gugu e FIESP tanto criam e cultuam, esta parcela da esquerda tupiniquim – que um dia foi intelectualizada – cai rolando na sala e tenta dar saltinho para ficar em pé logo em seguida. Já tinha caído na tal brincadeira infantil de Bolsonaro com a tal Tubaína (que, cá entre nós, acho uma delícia). Tentaram cavar alguma mensagem cifrada para… para… para o que, mesmo? Para se revelarem sem nenhum dom para o jogo político. No passado, se dizia que gafe política desta natureza era “passar recibo”, ou seja, dar um valor ao adversário que ele não merecia.

    Acredito que este infantilismo tem relação com a lógica da esquerda “parlamentarizada”, aquela que fala grosso e age com medo. Até entendo que tem sentido dar volume para o adversário para não ficar tão feio a derrota de 2018. Afinal, o que vão dizer para os netinhos? “Perdemos para um desqualificado que comandava uma reunião ministerial como se estivesse no Country Club num domingo modorrento depois de tomar um engradado de cerveja?”.

    O ideal teria sido a esquerda deixar esta briga entre STF e o fantástico estrategista Jair.

    Mas, vejamos em perspectiva para avaliar a importância deste vídeo.

    Acabamos de ultrapassar 21 mil mortes pela Covid-19. Estamos com 12,5 milhões de desempregados. Queda de renda em 80% das famílias que residem em favelas. Queda de arrecadação entre 25% e 30% até aqui. Queda do PIB. 75% das indústrias do setor automobilístico paradas ou semiparalisadas.

    Esta é a foto do momento. Qual o filme? O filme que entrará em cartaz em novembro ou dezembro tem como personagens queda de 7% do PIB e 20 milhões de desempregados. Mais de 90 mil mortos por Covid19.
    Então, pensemos um pouco.
    Alguns psicólogos sugerem que quando estamos em meio à uma situação muito desagradável, para podermos medir de fato o tamanho deste problema, basta projetarmos alguns anos à frente. Se o problema reaparecer é porque é realmente grave. Caso contrário, é passageiro.

    Pensemos no final deste ano. Esta reunião-circo terá qual importância em meio à catástrofe econômica, social e sanitária? O morador de rua, o trabalhador autônomo, o morador de favela, o microempresário, o vendedor ambulante, estarão preocupados com a reunião-circo ou com a sua falência, a fome, a destruição de seus sonhos e expectativas, a degradação social batendo à porta de sua família?

    A reunião-circo está no mesmo patamar que a postagem do vídeo do Golden Shower no carnaval passado. Uma vergonha. Há, com efeito, elementos que podem gerar a prisão e cassação do cargo de vários presentes naquele teatro de bolso. Mas, é nisso que temos que insistir? Nessa pauta?
    Não. Temos muita coisa mais importante para fazer. Temos que reconstruir este país. Dar um mínimo de segurança para os mais vulneráveis.

    Temos que mostrar porque a extrema-direita sempre se apresenta como um rato que ruge. E como é a esquerda que sempre salva o mundo. Afinal, a extrema-direita não sabe nem organizar uma reunião ministerial que tenha começo, meio e fim, que tenha algum respeito e seriedade. Então, como alguém em sã consciência pode imaginar que sabem governar a 8ª economia mundial construída com seriedade e suor de mais de 200 milhões de habitantes?

  • Oposição de esquerda joga parada guerra de informação e disputa pelo domínio da comunicação

    Oposição de esquerda joga parada guerra de informação e disputa pelo domínio da comunicação

    Por Yuri Silva*

    As ‘fake news’, elemento definidor das eleições presidenciais de 2018, exploradas principalmente pelo então candidato Jair Bolsonaro (à época no PSL) e pelos seus asseclas, continuam sendo parte marcante do dia-a-dia da sociedade brasileira, quase dois anos depois do resultado eleitoral.

    Desta vez, as crises política, sanitária e social, provocadas pela pandemia do Coronavírus e pela gestão pública controversa sobre o assunto, são os temas prioritários dos conteúdos que circulam nas redes sociais digitais.

    Numa intensa disputa de narrativas envolvendo questões como a eficácia da utilização (ou não) da Hidroxicloroquina, a demissão sequencial de ministros da Saúde, a crise envolvendo a demissão do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, as formas de tratamento contra o COVID-19 e até mesmo a necessidade do isolamento social, bolsonaristas novamente aparecem em vantagem no placar dos debates contra as forças de oposição, aqui incluídas muito mais as forças de esquerda (desintegradas e vacilantes nesse quesito) e muito menos os setores da direita e da ultradireita que mostram-se anti-Bolsonaro.

    Defendendo a abertura dos comércios e serviços não-essenciais e fúteis como se essenciais fossem, o uso de remédios sem comprovação científica e absurdos outros semelhantes no campo das pautas ideológicas, informações compartilhadas pelas milícias digitais relacionadas a Bolsonaro — e comandadas no topo da cadeia pelo filho do presidente Carlos Bolsonaro, vereador e chefe do Gabinete de Ódio — têm surtido efeito práticos que, ainda que se queira, não podem ser negados.

    O nível de isolamento social no país tem sido reduzido dia após dia, conforme dados oficiais; as mortes devido à contaminação pelo vírus também têm chegado a patamares cada vez maiores; e o número de casos cresce vertiginosamente, aproximando o Brasil do posto de epicentro da doença.

    São esses apenas alguns dos claros elementos que apontam o triunfo das ‘fake news’ – nome estrangeiro utilizado nos últimos tempos para denominar as mentiras propagadas por grupos neofascistas que ganharam espaço (aparentemente permanente) na disputa sociopolítica e ideológica nacional.

    Enquanto isso, na era da pós-verdade, as “bolhas” da esquerda seguem transmitindo e alimentando outro sentimento sobre o placar desse jogo, completamente ilusório. Fechados em nossas redes repletas de posicionamentos próximos, iludimo-nos sobre quem está em vantagem. Divulgamos memes de humor contra o presidente e sua trupe da ópera-bufa do Palácio do Planalto; compartilhamos artigos bem escritos e que parecem pensados para serem consumidos (e elogiados) por outros intelectuais, pseudo-intelectuais, militantes e mais gente já convertida às nossas teses; arrotamos argumentos com linguagem pouco acessível, com citações acadêmicas, sociológicas ou filosóficas; e nos regojizamos com leituras que têm a função exclusiva de reafirmar aquilo no que já cremos.

    Na prática, contudo, pouco refletimos sobre como atingir de fato a massa da população, que ainda segue correndo riscos sanitários, por dureza financeira ou por ter sido alcançada e convencida pelas mentiras propagandeadas pelo outro lado. Pouco ou nada nos movemos para alcançar a “ralé brasileira” que continua nas filas da Caixa Econômica Federal em situação de exposição, sub-humanidade ou subcidadania e, ainda assim, acredita piamente que está sendo beneficiada por causa do esforço do Governo Federal dirigido pelo ser ignóbil eleito nas últimas idas às urnas. Nada ou pouco fazemos para dialogar e mudar o pensamento daqueles que seguem acreditando na necessidade de realizar-se o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) mesmo em condições de desigualdade do tamanho de um abismo, ou para trazer para o nosso lado aqueles que defendem a volta ao trabalho por medo dos crescentes desemprego e desalento que afligem o Brasil há pelo menos quatro anos.

    Fato é que produzimos conteúdo para nós mesmos e somos tímidos “café-com-leite”, como dizíamos na infância, na batalha da comunicação. Evitamos engrossar a audiência dos canais da grande imprensa, pois discordamos da linha editorial destes, mas sequer somos capazes, enquanto partidos políticos e movimentos sociais, de construir alternativas de massa pra substitui-los.

    Jogamos para a pequena audiência que consideramos, nas nossas cabeças preconceituosas, qualificada. E é nesse ponto que somos derrotados pelas ‘fakes news’, pela pós-verdade, pelas mentiras ou seja lá o nome que queiram adotar para esse fenômeno. Pois elas são feitas para a massa e consumidas por ela, pelo povão que tem pouco hábito de leitura e aprendeu a se comunicar prioritariamente pelo zap (e não por textões, como esse que você lê, publicados em GGN’s, Brasil247’s e outras plataformas afins).

    Ao aderir a essa prática, dando volume a ela por meio de seus grupos de WhatsApp que funcionam como pirâmides de transmissão de inverdades, o bolsonarismo coloca em prática, mas de forma muito mais eficaz (embora criminosa) o que sempre desejamos fazer na esquerda: desintermediar a informação, a comunicação, o poder de pautar a sociedade.

    O que seria isso? Explico: desintermediar a informação trata-se do ato ou da capacidade de comunicar-se, produzir conteúdo, sem que este conteúdo/informação precise de órgãos tradicionais de imprensa/comunicação para que seja chancelado ou tidos como verdade. Inverte-se, aqui, a lógica tradicional pela qual tal fato só é verdade se há um veículo ou um profissional de comunicação por trás daquela informação. O bolsonarismo fez isso com brilhantismo: o zap é o canal de transmissão de comunicação e conteúdo e ele mesmo, por si só, dá teor de verdade ao que é compartilhado, sem necessidade de quasiquer chancelas.

    É verdade que até tentamos (acredito que de forma mais tímida e pela metade) colocar em prática um processo semelhante de desintermediação (que mais era uma tentativa de mudança dos intermediadores da comunicação). Criamos e “vitaminamos” veículos progressistas que até hoje produzem qualificados materiais jornalísticos e opinativos para a reflexão sobre política, economia e também sobre comunicação e a necessidade de democratizá-la. Mas, repito, falamos quase sempre para nós mesmos, fincados em certa arrogância e em “intelectualismos” embranquecidos, eurocêntricos e pequeno-burgueses.

    Veículos de informação negros e periféricos, a exemplo deste Mídia 4P (mais jovem) e de outros (mais antigos), também tentaram esse caminho, mas igualmente pela metade e esbarrando nas bolhas constituídas involuntariamente e dentro da qual ecoam seus escritos e registros audiovisuais — que reafirmo serem de qualidade, mas que, não digo isso com prazer, atingem apenas os cerca de 35% que já compõem nosso campo ideológico.

    Por mais incrível que possa parecer, são justamente os veículos de mídia considerados tradicionais e ideologicamente alinhados ao neoliberalismo e à direita tradicional brasileira que, neste contexto de crise sanitária e sociopolítica, conseguem melhor combater as ‘fake news presidenciais’ e colocar-se como alternativa na batalha da informação. Movidos obviamente pelo poder econômico, pelo alcance de massa e pelo prestígio que já detêm e pelo desejo de encrustar no poder uma alternativa “civilizada” de direita, derrubando assim Jair Bolsonaro do Planalto, grupos empresariais como Rede Globo, Folha de S. Paulo e outros tratam de “re-intermediar” a comunicação.

    Ou seja, em meio à enxurrada de mentiras, brigam pela retomada de parte do poder que possuíam e que perderam ao longo da última década: o poder de dizer o que é verdade e o que é mentira. Combatem o discurso anti-ciência, desmentindo o presidente, seus filhos e seus aliados constantemente; constroem plataformas de checagem de informações junto a parceiros do jornalismo nacional e internacional; e, ainda que vivam dificuldades financeiras antes mesmo da COVID-19, conseguem avançar na disputa de ideias na sociedade.

    Em resumo, aqueles que sempre falsearam as informações ao bem querer dos seus interesses agora emergem como opositores da mentira. Contradições?! Temos.

    Redes sociais como Instagram e Twitter, que ostentam milhões de usuários e até então foram tubos de transmissão de informações falsas sem mover-se do lugar, também seguem a mesma estrategia dos meios tradicionais: apostam em ser novos intermediadores da informação ao passarem a dizer, por meio de novas tecnologias recém-lançadas, se um conteúdo publicado pelos usuários é mentira ou verdade.

    Não fica atrás o WhatsApp, canal principal das ‘fake news’, que, embora tenha fechado os olhos para as disseminações de inverdades que influenciaram em eleições presidenciais nos Estados Unidos e no Brasil, agora limitam envio de mensagens em massa para combater essa prática.

    Essa trata-se de uma guerra muito maior e mais importante para a disputa política e ideológica do que parece. É a guerra para definir quem deterá o poder da comunicação, no mundo, quando esse “caos da desinformação” passar ou mesmo que ele siga como parte constituinte dos processos sociais. Nós da esquerda, até agora, continuamos perdendo esse jogo. E parece, para mim, que usamos a estratégia de jogar parados.


    *Yuri Silva é jornalista formado pela UNIJORGE, especialista em mídias sociais digitais, consultor de comunicação e política, editor-chefe do portal Mídia 4P eassessor de comunicação. Já atuou como repórter freelancer de veículos como o jornal O Estado de São Paulo (Estadão), The Intercept Brasil e Revista Piauí. É ex-repórter do jornal A TARDE e ex-correspondente do Estadão na Bahia. Também é ativista antirracista, ocupando as funções de coordenador nacional do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e de conselheiro de Direitos Humanos do Estado da Bahia.

  • Estúpido homem branco

    Estúpido homem branco

    Por: Roberto Ponciano*

     

     

    Wilhelm Reich é, sem sombra de dúvida, um dos comunistas mais malditos na história. Com sua teoria do orgasmo, conseguiu ser odiado pelos nazistas, pela sociedade de psicanálise, pelo Partido Comunista Alemão e pelo Comintern, e quando se julgava tranquilo, já no período final da vida, cantou loas à “democracia estadunidense”, com certeza seu maior engano, e foi preso e assassinado com algum tipo de veneno numa injeção. Ele pintou com maestria o nazismo, a “praga psíquica” que assolava a Alemanha, em seu livro ‘Psicologia de massas do fascismo’, e mostrava que o nazismo não era um fenômeno puramente econômico, mas tinha suas raízes na miséria moral, no recalque, na violência, no ressentimento. O nazista é, por definição, o homem ressentido.

    O homem branco estúpido, com seu terror homossexual (medo psiquiátrico das próprias pulsões sexuais), seu ressentimento pela própria estupidez e deslocamento na sociedade, seu naufrágio num mundo de empregos precários, em que ele cada vez e menos faz parte de uma classe média brasileira que nunca foi uma classe média clássica, e cada vez e mais faz parte de um lumpesinato de serviços precários; mas que quer salvar-se desta deriva ao criar uma imagem narcisista no espelho de ser o descendente do colonizador branco.

    Estes milhões de lumpesinato pobre ou remediado, sem nenhuma perspectiva de futuro e nenhum projeto ideológico social, esta massa difusa e caótica, foi o público que o nazismo bolsonarista achou para crescer como cogumelo na chuva.

    Junta-se a isto igrejas da terceira onda neopentecostal, da teologia da prosperidade, que cada vez são menos igrejas e cada vez mais são partidos políticos ultrafascistas (de submissão das mulheres, homofóbicos, de pregação do medo ao comunismo imaginário). Estas entidades se organizam como verdadeiras células, bairro a bairro, rua a rua, e o que elas menos fazem é pregar a transcendência. Além da magia simpática mais primitiva, prometendo curas impossíveis, através de indulgências, o que elas fazem é criar uma ideologia na qual Deus é Mamon, é o capital, e numa estranha jogada de consórcio de Deus, onde pessoas compram a ajuda divina visando a ter sucesso pessoal e financeiro.

    Esta mistura bizarra é o combustível e o exército que anima o bolsonarismo, o nazismo brasileiro. E não nos iludamos, vai sobreviver a Bolsonaro. E vai sobreviver por um fato. Eles são ideológicos. O fascismo saiu do armário e assumiu todas as suas posições: a misoginia (pregada inclusive por “mulheres antifeministas” – o que corrobora o fato que além de Marx é necessário ler Freud e Reich para entender o nazismo), a homofobia, o ódio à esquerda, a mitologia louca de um nacionalismo sem projeto, que não vai além de vestir verde e amarelo e clamar contra o comunismo, ao mesmo tempo que se entrega todo patrimônio nacional. O fantasma do comunista andante imaginário os anima e os une, da mesma forma que na Alemanha Hitler criou o mito do comunismo andante.

    Por sua vez a esquerda não tem combatido o nazismo por três razões:

    Não nomeia o bolsonarismo como nazismo ou fascismo e é tímida em combater, por exemplo, pastores que transformam suas igrejas em partidos fascistas, porque, como esquerda eleitoral e com projeto alicerçado sempre no coeficiente eleitoral, tem medo de “magoar” eleitores que seguem pastores de política assumidamente fascistas, como Malafaia e Feliciano;

    De outro lado, como uma esquerda com um projeto puramente eleitoral, a resposta à radicalização da direita é tentar disputar votos sem “se mostrar ideológica”, mesmo frente a setores da direita cada vez mais radicalizados e definidos, porque organizados ideologicamente. Portanto, a esquerda não trava combate ideológico com estes setores;

    Como o projeto passou a ser puramente eleitoral, as máquinas partidárias da esquerda não se organizam mais territorialmente e não formam militantes. Pelo contrário, formam e conformam máquinas eleitorais que são preparadas para disputar eleições de 2 em 2 anos.

    Assim, a direita fica cada vez mais ideológica e organizada enquanto a esquerda brasileira é cada vez mais pulverizada, “horizontal”, desorganizada e doente do chamado cretinismo parlamentar. Vive quase que inteiramente para eleição, sendo sua base no movimento social apenas uma base de apoio para os movimentos eleitorais. Isso explica a falta de reação ao golpe contra Dilma e as dificuldades para organizar grandes ações de rua contra Temer e agora contra Bolsonaro.

    É óbvio que este artigo não tem como objetivo dizer que não devemos dar importância às eleições, não é um artigo de um esquerdista lunático que vive repetindo nas redes sociais “vamos para as ruas”, mas faz algumas constatações óbvias:

    A. A direita nazifascista organizou-se e veio para ficar. É ideológica, ainda que sua ideologia seja caótica e confusa, mas suas máquinas de fake news e suas organizações financiadas por empresários (Mises, MBL, etc), tem formado militantes orgânicos que retroalimentam suas fileiras, fora as organizações paramilitares milicianas ligadas ao bolsonarismo e as células de algumas igrejas que hoje são organizações políticas fascistas.

    B. A resposta da esquerda foi fazer “autocrítica” eleitoral e das alianças. Mas não basta para enfrentar esta onda. É necessário repensarmos a organização territorial e a formação de militância, inclusive de vanguarda política, com formação política pesada financiada pelos partidos, assim como a profissionalização da nossa rede da web (que está na pré-história da web), com pesado investimento nestas duas vertentes, para podermos voltar a disputar corações e mentes, de igual para igual com a direita.

    A precarização do trabalho cria um exército de lumpesinato desesperado facilmente capturável pelo discurso atávico e de medo do Bolsonaro, ou de salvação mágica de igrejas que hoje são suas aliadas. E nós não estamos oferecendo nenhuma alternativa a isto. Ou voltamos a fazer a disputa ideológica cotidiana, rua a rua, bairro a bairro, ou não construiremos jamais os sujeitos coletivos capazes de derrotar o nazismo, a hegemonia da direita (fascista ou não) e nos dar a possibilidade de conseguir uma hegemonia junto ao povo para voltar ao poder.

     

    *Roberto Ponciano é professor, filósofo, escritor e comunista.

  • A esquerda precisa de um outsider?

    A esquerda precisa de um outsider?

     

    ARTIGO

    RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    O ano político de 2019 acabou sob os impactos da pesquisa Datafolha divulgada em meados de dezembro. Os números foram um verdadeiro banho de água fria naqueles que esperavam que as caneladas institucionais e a crise econômica enfraqueceriam o governo junto à opinião pública.

    Muito pelo contrário: Bolsonaro consolidou sua base de apoio incondicional, que está em algo próximo a 30%, contando ainda com a confiança de mais da metade da população.

    Hoje, Bolsonaro é mais carismático e popular que Lula, especialmente junto a uma baixa classe média do sudeste/sul do país cuja densidade demográfica é decisiva numa eleição.

    A libertação de Lula ainda não surtiu o efeito desestabilizador que muitos esperavam, e torciam.

    E não, não vou brigar com os números, pois isso significaria negar a realidade. A situação é a pior possível depois das eleições de 2018: 12 milhões de desempregados, 38,6 milhões de brasileiros trabalhando na informalidade, sem nenhuma seguridade social. Letalidade policial atingindo números assustadoramente inéditos. O quilo da carne de segunda na casa dos 30 reais. O litro da gasolina perto dos 5 reais.

    Ainda assim, Bolsonaro conta com o apoio de uma parcela considerável da sociedade civil. Precisou muito menos para que as ruas se levantassem contra Dilma entre 2013 e 2016. E nem adianta botar a culpa na imprensa, pois a mídia hegemônica, tal como fez com Dilma, também bombardeia Bolsonaro diariamente.

    Por que isso acontece?

    Uma primeira hipótese diz respeito ao tempo de governo. Bolsonaro acaba de terminar o primeiro ano de mandato. Isso, somado à narrativa que diz que o PT destruiu o Brasil, pode explicar a paciência da opinião pública com o presidente. Mas o que a pesquisa mostra é algo mais do que apenas boa vontade e paciência. É adesão e confiança.

    Acredito que a explicação seja outra.

    Bolsonaro encarnou uma certa narrativa de interpretação do Brasil que tem vida longa no imaginário nacional e foi turbinada pelas manifestações populares que aprendemos a chamar de “jornadas de junho de 2013”. Segundo essa narrativa, a política institucional é naturalmente corrupta e corruptora.

    O político profissional, eleito pelo voto popular, é potencialmente corrupto. A corrupção seria o câncer nacional, a mazela responsável por todos os nossos problemas.

    “Não gostamos de políticos. Gostamos de Ramones”, disse em tom lacrador uma das líderes do movimento social que em 2013 puxou as jornadas.

    Quando o mundo parecia desabar, Jair Bolsonaro, com algum senso de oportunidade, encenou o “diferente de tudo que está aí”, o que não deixa de ser verdade em alguma medida. Durante quase 30 anos, Bolsonaro foi o diferentão no Congresso Nacional.

    Como Bolsonaro sempre foi um outsider da IV República, deputado de baixo clero, com pouca projeção, seu nome passou batido pelo tsunami moralizador deflagrado em 2013. É que Bolsonaro era tão irrelevante, tão desprestigiado entre seus pares, que sequer conseguiu se envolver em grandes esquemas de corrupção. Teve que se contentar com as rachadinhas. Corrupção rasteira, vulgar, daquele tipo que nenhum delegado, procurador ou juiz quer investigar e combater. Não dá mídia, não dá Ibope.

    Em síntese: em meio ao apocalipse, Bolsonaro se transformou na aposta no novo, na esperança, em potência indutora de utopias. Pesquisas de opinião mostram que a população brasileira até se incomoda com o jeitão meio aloprado do presidente, mas está disposta a esperar, como se fosse o preço a ser pago por um futuro melhor.

    Até quando isso vai durar? Alguns acreditam que a crise econômica desidratará Bolsonaro. Pra isso seria necessário um verdadeiro colapso econômico, com crise de abastecimento e mais da metade da população ativa em total desocupação. É difícil imaginar uma economia tão complexa como a brasileira colapsando nesse nível. Além de tudo, os aplicativos vêm atenuando o desmonte do mercado de trabalho formal, e ainda sob os aplausos de alguns trabalhadores, que se sentem mais “livres” nas novas relações de trabalho.

    A insatisfação com a opressão patronal que por mais de cem anos foi o centro da identidade ideológica da esquerda foi apropriada pelo capital na chave do empreendedorismo. O capitalismo tem impressionante capacidade de transformação.

    A insatisfação coletiva com a reforma da previdência também não é pra já. No Chile demorou 30 anos.

    Mas ainda que o colapso econômico venha e que a paciência da população com Bolsonaro acabe, nada garante que essa energia política fluirá à esquerda.

    A esquerda perdeu a capacidade de induzir utopias e está marcada com a cicatriz da “velha política”, da corrupção.

    Caso Bolsonaro desidrate, o mais previsível é que outra liderança de direita se beneficie, outro personagem capaz de encenar a “nova política”, de se mostrar como um outsider da política institucional. Sérgio Moro é candidato óbvio. Inclusive, a tal pesquisa do Datafolha mostra que Moro é ainda mais popular que o próprio Bolsonaro.

    Luciano Huck também é candidato forte.

    A sensação que dá é de que a esquerda precisa de um outsider pra chamar de seu, alguém completamente desvinculado da política institucional. Nomes não faltariam: Wagner Moura, Lázaro Ramos, Dráuzio Varella. Na cena baiana surgiu recentemente Guilherme Belitani, presidente do Esporte Clube Bahia. Personagem bastante interessante, muito interessante mesmo.

    Há momentos na história em que pra mudar a realidade é necessário, antes, aceitá-la.