Leandro Souza Moura, professor do Departamento de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
A pandemia da Covid-19 traz ao mundo uma situação jamais vivida pela atual geração de habitantes do nosso redondo (sempre bom lembrar) planeta. Do ponto de vista histórico, chama atenção o paralelo com a chamada “gripe espanhola” do início do século XX que, apesar do nome, não surgiu na Espanha. Um olhar atual sobre aquela epidemia traz, em nossos dias, alarmantes preocupações. Já sob a ótica da psicologia, muito há que se estudar e se falar sobre os efeitos do confinamento, aliado ao medo e às preocupações, especialmente dos mais vulneráveis e de seus entes mais próximos. Lamentavelmente, o que têm orientado os discursos, em especial no Brasil e nos países que mais sofreram e estão sofrendo com a pandemia, é um ponto de vista míope, caolho, retrógrado e extremamente enviesado sobre Economia. É óbvio que é importante olhar para a economia, não seria eu, um economista, que diria o contrário. No entanto, mais do que nunca é preciso entender a complexidade do mundo e ser capaz de enxergar a economia em meio a outras também importantes áreas do conhecimento, como a história, a psicologia, a filosofia, a sociologia, a medicina entre outras. Além disso, é desalentador observar a visão e o uso que se faz da área de estudo que escolhi ao me inscrever no vestibular no já longínquo início dos anos 90. Preocupa-me ver reflexões sobre o mundo que encontraremos após a pandemia que focam em aspectos relacionados estritamente à questão econômica e seus desdobramentos, apresentando problemas seculares como se fossem consequências futuras da Covid-19, apesar de tais problemas estarem sempre presentes nos discursos, embora muitas vezes sejam ignorados (quando não provocados) na prática. Daria pra entender, embora eu não seja especialista em psicologia, o subconsciente agindo em pessoas preocupadas com a preservação de seus privilégios tentando justificá-los com um discurso mais palatável de preocupação com os menos favorecidos, mas dói ver esses discursos serem propagados por pessoas já massacradas pelo secular sistema de privilégios de um dos países mais desiguais do planeta.
Vale lembrar que bem antes da Covid-19, já tinha muita gente falando em menos direitos em troca de um trabalho, sem perceber o conteúdo abertamente escravocrata desse discurso. Como era de se esperar, os direitos se foram e os empregos, que continuam no centro das “preocupações”, justificando todas as ações do “governo”, não vieram. Tampouco vieram depois das “salvadoras” reformas trabalhista e da previdência, mas o nosso eterno “agora vai”, na escalada propagandista já encardida do “sou brasileiro e não desisto nunca” induz as pessoas a acreditarem que, finalmente, o que faltava da nossa “cota de sacrifício” pra “salvar a economia” é colocar nossas vidas e as das pessoas próximas em risco.
Se ninguém te contou uma novidade, eu agora vou contar: o estrago na economia está dado, e em boa parte do mundo, independentemente do quanto você arrisque a sua vida. Resta saber três coisas: 1) Quanto tempo levaremos para podermos começar a planejar nossa retomada, inclusive, mas não somente, econômica (necessidade que já existia antes da epidemia, é bom lembrar)?; 2) Sobre quantos cadáveres buscaremos essa retomada?; e 3) Qual a possibilidade de você e de pessoas próximas estarem entre as vítimas?
Inegavelmente a resposta a essas perguntas será melhor à medida que você, as pessoas próximas a você, e a população de onde você vive adotarem os cuidados necessários, respeitarem a ciência e não acreditarem em “mitos”. Se você, em um passado recente, foi infectado pela crença em “mamadeira de piroca” é a chance de se redimir ou de se contaminar de vez, dessa vez literalmente, e com possíveis consequências às pessoas próximas. É preciso ressaltar os chamados “serviços essenciais”. É claro que tem pessoas que não podem deixar de trabalhar, seja pela necessidade do serviço, seja pela necessidade de sobrevivência, e essas merecem todo nosso apoio, cuidado, carinho, atenção, admiração e respeito. É também necessário lembrar que, infelizmente, pessoas já vulneráveis social e economicamente, eventualmente estão sendo obrigadas, coagidas, ameaçadas e, por esse motivo, estão, apesar do medo, indo trabalhar.
Se aprendêssemos a, em vez de colocar o dedo na cara dessas pessoas, repudiarmos e responsabilizarmos os criminosos que atentam contra a vida de seus “colaboradores” e cobrássemos principalmente de quem tem OBRIGAÇÃO de apoiar trabalhadores e pequenos empresários, mas preferem proteger os sempre polpudos lucros dos bancos sem exigir nenhuma contrapartida, certamente já teríamos um mundo pós- pandemia mais evoluído e civilizado. Entretanto a permissividade com pessoas que agridem enfermeiras, que protestam por condições mínimas de trabalho, de quem toda a sociedade depende nesse momento não me deixa ser otimista. A realidade do Brasil 2020, infelizmente, é a de um país que normaliza manifestação barulhenta em frente a hospitais, em meio a uma pandemia, sem ação repressiva da polícia, desde que feita por “cidadãos de bem”. Mas, e se pudéssemos pedir uma mudança simples e definitiva para o período pós-pandemia, o que pediríamos? De minha parte, acredito que deveríamos tirar o “E daí?” do vocabulário. O “E daí?”, como expressão simples com requintes de um sentir-se superior, é uma expressão reveladora de um autoritarismo e de uma prepotência típicos daqueles que são incapazes de ter empatia por quem quer que seja, resumindo o descomunal descaso e a indiferença cotidiana que nos trouxe até aqui. Certamente não fossem os estrondosos “E daí?” que se acumulam historicamente no crescente individualismo sistêmico replicados nas vozes de ministros que “odeiam os povos indígenas”, que querem “passar a boiada” enquanto tratamos de sobreviver, que querem privatizar a “porra” do Banco do Brasil e acham que não valem os esforços de salvar as pequenas empresas, a tal Covid-19 não seria tão grave quanto ora se apresenta.
Certamente ela não seria páreo para um mundo que tivesse aprendido com a história e tirado as lições necessárias da gripe espanhola, da crise de 29, das duas guerras mundiais, das ditaduras e das experiências nazifascistas. A história só se repete como tragédia ou como farsa? Talvez, mas certamente não se repete sem cúmplices, e essa cumplicidade se alimenta do mau-caratismo, da ignorância e do individualismo expressos de maneira resumida e tosca, no cadáver linguístico insepulto mais malcheiroso da história: o “E daí?”. Que ele seja a principal vítima da COVID-19. Beijos no coração de todos e todas. Fiquem em casa.
RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
11 de março de 2020: a Organização Mundial da Saúde utilizou, pela primeira vez, o conceito “pandemia” para se referir à Covid-19. O conceito sempre vem depois da experiência. Como realidade efetiva, a pandemia já existia sabe lá Deus desde quando. A conceituação da doença como pandemia é, antes de tudo, um gesto político que envolve muita coisa para além das bancadas laboratoriais.
Os especialistas são unânimes: ainda não há remédio, ainda não há vacina, apesar dos esforços da comunidade científica. Somente o isolamento social é capaz de retardar a evolução do contágio, garantindo tempo necessário para o preparo dos sistemas de saúde. Ressonou pelo mundo, então, as mesmas palavras de ordem: “Stay at home” ou “Fique em casa”, no belíssimo idioma de Machado de Assis e Guimarães Rosa.
Os cientistas estão corretos, corretíssimos. Pronto! A parte científica dessa reflexão acaba aqui. Agora, começa a parte política. Pois sim, essa discussão não é apenas científica. Não existe discussão “apenas cientifica”. Toda discussão, em alguma medida, é política também.
No momento em que escrevo este texto, o Brasil está assistindo a evolução assustadora na sua curva de contaminação e mortes. Alguns já dizem que em pouco tempo seremos o epicentro mundial da pandemia. Segundo dados da tecnologia de geolocalização, nosso índice médio de isolamento social é de 47%, bem distante dos 70% considerados ideais.
Por que mais da metade da população brasileira não está respeitando o isolamento social?
Os moralistas sanitários têm resposta na ponta de língua. Os moralistas sempre têm resposta na ponta da língua. O tempo do moralismo é o tempo rápido. O moralista é impaciente, é ansioso.
Para o moralista sanitário, os que não obedecem as regras de isolamento social são ignorantes, irresponsáveis, “sem empatia”. O moralista goza com os adjetivos.
O moralista sanitário privatiza a responsabilidade, e ao trazer dilemas estruturais para o plano do comportamento individual, acaba despolitizando uma questão que é essencialmente política.
O governo federal entregou apenas 11% dos leitos prometidos.
Quando a Covid-19 chegou ao Brasil, encontrou o país devastado por uma grave crise democrática, com serviços públicos sendo precarizados e direitos trabalhistas sendo cassados.
Antes da Covid 19, veio a PEC dos Gastos, veio a Reforma Trabalhista, veio a Reforma da Previdência.
Segundo o IBGE, mais da metade da força produtiva brasileira, aproximadamente 38 milhões de pessoas, trabalham na informalidade, sem nenhuma seguridade social.
Pensem aí na idade das cavernas, naquele sujeito que precisa sair pra caçar todos os dias. Se não sai, não come. Esse é o trabalhador informal. O auxílio emergencial de 600 reais não resolve o problema. É pouco e o governo federal, pela combinação da má vontade política com a incompetência administrativa, não consegue fazer o dinheiro chegar aos que mais precisam. A covid 19 mata. A fome mata primeiro.
Segundo o PNAD, 105 milhões de brasileiros não têm acesso ao saneamento básico e 21 milhões não têm água potável em casa pra beber, tomar banho e lavar as mãos.
A Covid-19, e um montão de outras doenças, é transmitida também pelo esgoto.
Mais de 11 milhões de brasileiros moram em favelas, em moradias pequenas, insalubres, com iluminação e ventilação insuficientes, onde se amontoam seis, sete, oito pessoas.
Para o moralista sanitário nada disso importa. A explosão da curva da morte é culpa dos indivíduos, daqueles que não obedecem o isolamento social. O moralista resolve todos os problemas no plano do comportamento individual. O moralista é viciado no comportamento individual. É a sua cocaína.
A ciência diz que o Brasil precisa de 70% de isolamento social para evitar o colapso do sistema de saúde.
Mas para a maioria dos brasileiros, o colapso do sistema de saúde é a normalidade. Também é normal a enchente em janeiro, o desabamento de encosta, a violência do tráfico de drogas, a violência policial. Para a maioria dos brasileiros, a Covid-19 é um problema entre outros tantos.
No Brasil, os pobres sempre são grupo de risco.
Não estou romantizando os pobres, nem sugerindo que furar o isolamento social é ato de resistência. “Resistência” é daquelas palavras desgastadas a tal ponto de se tornarem um tanto irritantes, quase sem sentido. Se tudo é resistência, nada é resistência.
Para os mais pobres, o isolamento social, simplesmente, não é possível, independente do que diz a ciência. A ciência também diz que eles precisam comer bem, ter o esgoto tratado, ter água potável na torneira. E aí?
Sim, nos bairros de periferia, as pessoas estão vivendo como se nada tivesse acontecendo, como se tudo estivesse normal. Sentam no boteco pra beber cerveja, jogam futebol no campinho, trocam ideia no portão. Não digo que estão certos. Nem digo que estão errados. É que essa não é uma discussão moral. Não é apenas uma discussão científica. É uma discussão também política.
Pra essa gente, a normalidade é estar em constante risco de vida.
Antes de trazer novos problemas, a Covid-19 escancarou os mesmos problemas de sempre. Não subestimo a gravidade da pandemia. Só estou dizendo que o Brasil tem uma dívida histórica com a civilização. Por que a Covid-19 aqui não seria devastadora? Qual seria o milagre?
“É só ficar em casa”, insiste o leitor moralista. O moralista sanitário, como toda moralista, é míope, é tão perigoso quanto o maldito vírus. Se afastem. Se protejam. Se cuidem. Se puderem, fiquem em casa.
A pandemia traz consigo uma mutação não apenas biológica, mas societal.
Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da aids e resistido até a invenção da triterapia [coquetel], ele estaria hoje com 93 anos: teria aceitado de bom grado ter se trancado em seu apartamento na rua Vaugirard? O primeiro filósofo da história a morrer pelas complicações geradas pelo vírus da imunodeficiência adquirida nos deixou algumas das noções mais eficazes para pensar sobre a gestão política da epidemia que, em meio ao pânico e à desinformação, se torna tão útil como uma boa máscara cognitiva.
A coisa mais importante que aprendemos com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (não existe uma política que não seja uma política dos órgãos). Mas o corpo não é para Foucault um organismo biológico dado no qual o poder age. A própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, colocá-lo em funcionamento, definir seus modos de reprodução, prefigurar as modalidades de discurso através das quais esse corpo se torna ficcionalizado até poder dizer “eu”. Todo o trabalho de Foucault poderia ser entendido como uma análise histórica das diferentes técnicas através das quais o poder gerencia a vida e a morte das populações.
Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou “Vigiar e Punir” e o primeiro volume da “História da Sexualidade”, Foucault usou a noção de “biopolítica” para falar de uma relação que o poder estabeleceu com o corpo social na modernidade. Ele descreveu a transição do que chamou de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinar” como o passo de uma sociedade que define a soberania em termos de decisão e ritualização da morte para uma sociedade que gerencia e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas se estendiam como uma rede de poder que transbordava a esfera legal ou a esfera punitiva, tornando-se uma força “somatopolítica”, uma forma de poder espacializado que se estendia por todo o território até penetrar no corpo individual.
Durante e após a crise da Aids, vários autores expandiram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e suas relações com as políticas imunológicas. O filósofo italiano Roberto Espósito analisou as relações entre a noção política de “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de “imunidade”. Comunidade e imunidade compartilham a mesma raiz, munus, em latim o munus era o tributo que alguém tinha que pagar para viver ou fazer parte da comunidade. A comunidade é cum(con)munus (dever, lei, obrigação, mas também oferece): um grupo humano religado por uma lei e uma obrigação comuns, mas também por um presente e por uma oferta. O substantivo immunitas é uma palavra proprietária derivada da negação do munus. Na lei romana, a immunitas era uma dispensação ou um privilégio que exonera alguém dos deveres corporativos comuns a todos. Aquele que foi exonerado estava imune. Enquanto quem estava com fome era aquele que tinha todos os privilégios da vida comunitária removidos.
Roberto Espósito nos ensina que toda biopolítica é imunológica: supõe uma definição de comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia entre os órgãos isentos de impostos (aqueles que são considerados imunes) e aqueles que a comunidade considera potencialmente perigosos (os demuni) e que serão excluídos em um ato de proteção imunológica. Esse é o paradoxo da biopolítica: todo ato de proteção implica uma definição de imunização da comunidade, segundo a qual a comunidade se dará a autoridade para sacrificar outras vidas, em benefício da idéia de sua própria soberania. O estado de exceção é a normalização desse paradoxo insuportável.
O vírus atua à nossa imagem e semelhança, apenas reproduz e estende a toda a população as formas dominantes de manejo biopolítico e necropolítico que já estavam trabalhando no território nacional.
A partir do século 19, com a descoberta da primeira vacina contra varíola e os experimentos de Pasteur e Koch, a noção de imunidade migrou do campo do direito e adquiriu significado médico. As democracias liberais e patriarcais-coloniais européias do século XIX constroem o ideal do indivíduo moderno não apenas como um agente econômico econômico livre (masculino, branco, heterossexual), mas também como um corpo imune radicalmente separado que não deve nada à comunidade. Para Espósito, a maneira pela qual a Alemanha nazista caracterizou parte de sua própria população (os judeus, mas também os ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência) como corpos que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é um exemplo paradigmático dos perigos do manejo imunológico. Essa compreensão imunológica da sociedade não acabou com o nazismo, mas, pelo contrário, sobreviveu na Europa legitimando políticas neoliberais para administrar suas minorias racializadas e populações migrantes. É esse entendimento imunológico que forjou a comunidade econômica europeia, o mito de Shengen e as técnicas da Frontex nos últimos anos.
Em 1994, no livro “Flexible Bodies”, a antropóloga Emily Martin, da Universidade de Princeton, analisou a relação entre imunidade e política na cultura americana durante as crises de poliomielite e AIDS. Martin chegou a algumas conclusões relevantes para analisar a crise atual. A autora afirma que a imunidade corporal não é apenas um mero fato biológico, independente de variáveis culturais e políticas. Pelo contrário, o que entendemos por imunidade é construído coletivamente através de critérios sociais e políticos que alternadamente produzem soberania ou exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte.
Se repensarmos a história de algumas das epidemias globais dos últimos cinco séculos sob o prisma oferecido por Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Martin, é possível elaborar uma hipótese capaz de assumir a forma de uma equação: diga-me como sua comunidade constrói sua soberania política e eu lhe direi quais serão as formas de suas epidemias e como você as enfrentará.
Covid 19. Proteção e isolamento.
As diferentes epidemias materializam na esfera do corpo individual as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações em um determinado período. Para colocar nos termos de Foucault, uma epidemia radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas aplicadas ao território nacional até o nível da anatomia política, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo, uma epidemia permite estender a toda a população as medidas de “imunização” política que foram aplicadas até agora de maneira violenta contra aqueles que eram considerados “estrangeiros” tanto dentro como nos limites do território nacional.
A gestão política das epidemias encena a utopia da comunidade e as fantasias imunes de uma sociedade, exteriorizando seus sonhos de onipotência (e os fracassos retumbantes) de sua soberania política. A hipótese de Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Martin não tem nada a ver com uma teoria do complô. Não é a ideia ridícula de que o vírus seja uma invenção de laboratório ou um plano maquiavélico para estender ainda mais políticas autoritárias. Pelo contrário, o vírus atua à nossa imagem e semelhança, nada mais é do que replicar, materializar, intensificar e estender à toda a população, as formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já estavam trabalhando no território nacional e em seus limites. Portanto, cada sociedade pode ser definida pela epidemia que a ameaça e pela forma como se organiza frente a ela.
Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu a cidade de Nápoles pela primeira vez em 1494. O empreendimento colonial europeu havia acabado de começar. A sífilis era como a arma de partida para a destruição colonial e as políticas raciais que viriam com eles. Os ingleses chamavam de “a doença francesa”, os franceses diziam que era “o mal napolitano” e os napolitanos que vinham da América: diziam ter sido trazido pelos colonizadores que haviam sido infectados pelos indígenas…
O vírus, como Derrida nos ensinou, é, por definição, o estrangeiro, o outro, o estrangeiro. Infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI a XIX as formas de repressão e exclusão social que dominavam a modernidade patriarcal-colonial: a obsessão pela pureza racial, a proibição dos chamados “casamentos mistos” entre pessoas de diferentes classe e “raça”, bem como as múltiplas restrições que pesavam nas relações sexuais e extraconjugais. O que estará no centro do debate durante e após esta crise é quais serão as vidas que estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas.
A utopia da comunidade e o modelo de imunidade da sífilis é o do corpo branco burguês sexualmente confinado na vida conjugal como núcleo da reprodução do corpo nacional. Portanto, a prostituta tornou-se o corpo vivo que condensou todos os significantes políticos abjetos durante a epidemia: uma mulher trabalhadora e muitas vezes racializada, um corpo fora das normas domésticas e matrimoniais que fez da sexualidade sua forma de produção, a trabalhadora sexual foi visibilizada, controlada e estigmatizada como o principal vetor da disseminação do vírus. Mas não foi a repressão da prostituição ou o confinamento de prostitutas em bordéis nacionais (como Restif de la Bretonne imaginou) que curou a sífilis. Muito pelo contrário. O isolamento das prostitutas apenas as tornou mais vulneráveis à doença. O que curou a sífilis foi a descoberta de antibióticos e especialmente da penicilina em 1928, precisamente um momento de profundas transformações da política sexual na Europa com os primeiros movimentos de descolonização, o acesso das mulheres brancas ao voto, as primeiras descriminalizações da homossexualidade e uma relativa liberalização da ética do casamento heterossexual.
Meio século depois, a AIDS era para a sociedade neoliberal heteronormativa do século XX o que a sífilis havia sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros casos surgiram em 1981, precisamente no momento em que a homossexualidade não era mais considerada uma doença psiquiátrica, depois de décadas de perseguição e discriminação social. A primeira fase da epidemia afetou, prioritariamente, o chamado 4 H: homossexuais, prostitutas (hookers) — profissionais do sexo, hemofílicos e heroinomâmos (heroin users).
A AIDS remasterizou e atualizou a rede de controle sobre o corpo e a sexualidade que a sífilis tecera e que a penicilina e a descolonização, movimentos feministas e gays haviam desarticulado e transformado nas décadas de 1960 e 1970. Como no caso das prostitutas na crise da sífilis, a repressão à homossexualidade causou apenas mais mortes. O que está transformando progressivamente a AIDS em uma doença crônica tem sido a despatologização da homossexualidade, a autonomia farmacológica do Sul, a emancipação sexual das mulheres, o direito de dizer não às práticas sem preservativo e o acesso da população afetada, independentemente de sua classe social ou grau de racialização e a triterapia. O modelo de comunidade/imunidade da Aids tem a ver com a fantasia da soberania sexual masculina, entendida como um direito de penetração inegociável, enquanto qualquer corpo sexualmente penetrado (homossexual, feminino, todas as formas de analidade) é percebido como desprovido de soberania.
Voltemos agora à nossa situação atual. Muito antes do surgimento do Covid-19, já tínhamos iniciado um processo de mutação planetária. Antes do vírus, já estávamos passando por uma mudança social e política tão profunda quanto a que afetou as sociedades que desenvolveram sífilis. No século XV, com a invenção da imprensa e a expansão do capitalismo colonial, passou-se de uma sociedade oral para uma sociedade escrita, de uma forma de produção feudal para uma forma de produção industrial-escrava e de uma sociedade teocrática para uma sociedade regida por acordos científicos em que as noções de sexo, raça e sexualidade se tornariam dispositivos de controle necro-biopolítico da população.
Hoje, estamos passando de uma sociedade escrita para uma cibersociedade, de uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para uma economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e arquitetônico, para formas de controle microprotético e mídia-cibernético. Em outros textos, chamei de farmacopornográfico o tipo de gerenciamento e produção do corpo e a subjetividade sexual dentro dessa nova configuração política. O corpo e a subjetividade contemporâneos não são mais regulados apenas pela passagem por instituições disciplinares (escola, fábrica, casa, hospital etc.), mas, e acima de tudo, por um conjunto de tecnologias biomoleculares, microprotéticas, digitais e de transmissão. e informação.
A vida no cyberespaço. Foto: Engin Akyurt para Unsplash
No campo da sexualidade, a modificação farmacológica da consciência e do comportamento, a globalização da pílula contraceptiva para todas as “mulheres”, bem como a produção de triterapias, terapias preventivas para a AIDS ou viagra são alguns dos índices de gestão da biotecnologia. A extensão planetária da Internet, o uso generalizado de tecnologias de computação móvel, o uso de inteligência artificial e algoritmos na análise de big data, o intercâmbio de informações em alta velocidade e o desenvolvimento de dispositivos globais de vigilância computacional por meio de satélites são índices dessa nova gestão semiotécnica digital. Se eu os chamei de pornográficos, é porque, em primeiro lugar, essas técnicas de biovigilância entram no corpo, penetram na pele, nos penetram; e segundo, porque os dispositivos de biocontrole não funcionam mais pela repressão da sexualidade (masturbatória ou não), mas pelo estímulo ao consumo e à produção constante de um prazer regulado e quantificável. Quanto mais consumimos e mais saudáveis somos, melhor somos controlados.
A mutação que está ocorrendo também pode ser a passagem de um regime patriarcal-colonial e extrativista, de uma sociedade antropocêntrica e de uma política em que uma parte muito pequena da comunidade do planeta humano se autoriza a praticar práticas de predação universal a uma sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. De uma sociedade de energia fóssil a uma sociedade de energia renovável. Também está em questão a transição de um modelo binário de diferença sexual para um paradigma mais aberto, no qual a morfologia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva de um corpo não definem sua posição social a partir do momento do nascimento; e de um modelo heteropatriarcal a formas não hierárquicas de reprodução da vida. O que estará no centro do debate durante e após esta crise é que vidas estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas. É no contexto dessa mutação, da transformação das formas de entender a comunidade (uma comunidade que hoje é o planeta inteiro) e da imunidade onde o vírus opera e se torna uma estratégia política.
Imunidade e política nas fronteiras
O que caracterizou as políticas governamentais dos últimos 20 anos, desde pelo menos a queda das Torres Gêmeas, em face das ideias aparentes de liberdade de movimento que dominavam o neoliberalismo da era Thatcher, foi a redefinição de estados-nação em termos neocoloniais e de identidade e um retorno à ideia de uma fronteira física como condição para a restauração da identidade nacional e da soberania política. Israel, Estados Unidos, Rússia, Turquia e Comunidade Econômica Europeia lideraram o projeto de novas fronteiras que, pela primeira vez em décadas, foram não apenas vigiadas ou protegidas, mas foram reinscritas novamente por meio da decisão de erguer muros e construir diques, e defendido com medidas não biopolíticas, mas necropolíticas, com técnicas de morte.
Como sociedade europeia, decidimos nos construir coletivamente como uma comunidade totalmente imune, fechada ao Oriente e ao Sul, enquanto o Oriente e o Sul, do ponto de vista dos recursos energéticos e da produção de bens de consumo, são o nosso armazém. Fechamos a fronteira na Grécia, construímos os maiores centros de detenção ao ar livre da história nas ilhas que fazem fronteira com a Turquia e o Mediterrâneo, e imaginamos que assim conseguiríamos uma forma de imunidade. A destruição da Europa começou paradoxalmente com essa construção de uma comunidade europeia imune, aberta dentro dela e totalmente fechada para estrangeiros e migrantes.
O que está sendo testado em escala planetária por meio do gerenciamento de vírus é uma nova maneira de entender a soberania em um contexto em que a identidade sexual e racial (eixos da segmentação política do mundo colonial patriarcal até agora) está sendo desarticulado. O Covid-19 deslocou as políticas de fronteira que estavam ocorrendo no território nacional ou no super-território europeu para o nível de cada órgão. O corpo, seu corpo individual, como espaço de vida e estrutura de poder, como centro de produção e consumo de energia, tornou-se o novo território no qual as políticas de fronteira agressivas que projetamos e testamos há anos são expressas agora sob a forma de uma barreira na guerra contra o vírus.
ManifestantesRepressão policial
A nova fronteira necropolítica mudou das costas da Grécia para a porta da casa particular. Lesbos começa agora na sua porta da frente. E a borda não para de fechar, ela empurra até ficar cada vez mais perto do seu corpo. Calais explode na sua cara agora. A nova fronteira é a máscara. O ar que você respira deve ser apenas seu. A nova fronteira é a sua epiderme. O novo Lampedusa é a sua pele.
As políticas da fronteira e as rigorosas medidas de confinamento e imobilização que nós, como comunidade, aplicamos nos últimos anos a migrantes e refugiados — até deixá-los fora de qualquer comunidade — agora são reproduzidos nos corpos individuais. Durante anos, nós os tivemos no limbo dos centros de detenção. Agora somos nós que moramos no limbo do centro de retenção de nossas próprias casas.
Biopolítica na era ‘farmacopornográfica’
As epidemias, devido ao seu apelo a um estado de emergência e à imposição inflexível de medidas extremas, também são grandes laboratórios de inovação social, ocasião para uma reconfiguração em larga escala das técnicas corporais e das tecnologias de energia. Foucault analisou a mudança do gerenciamento da hanseníase para o controle da praga como o processo pelo qual as técnicas disciplinares de especializar o poder da modernidade foram implantadas. Se a hanseníase foi confrontada por medidas estritamente necropolíticas que excluíram o leproso e o condenaram à morte, pelo menos à vida fora da comunidade, a reação à epidemia de peste inventou o gerenciamento disciplinar e suas formas de inclusão exclusivo: segmentação rigorosa da cidade, confinamento de cada corpo em cada casa.
Nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou separação, mas de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta.
As diferentes estratégias adotadas por diferentes países diante da extensão do Covid-19 mostram dois tipos totalmente diferentes de tecnologias biopolíticas. O primeiro, operando principalmente na Itália, Espanha e França, aplica medidas estritamente disciplinares que não são, em muitos aspectos, muito diferentes daquelas usadas contra a praga. Este é o confinamento doméstico de toda a população. Vale a pena reler o capítulo sobre Gestão de Peste na Europa de “Vigiar e Punir” para perceber que as políticas de gestão da Covid-19 da França não mudaram muito desde então. Aqui, funcionam a lógica da fronteira arquitetônica e o tratamento de casos de infecção em ambientes hospitalares clássicos. Essa técnica ainda não mostrou evidências de eficácia total.
Centro de São Paulo às moscas. Foto: Sato do BrasilRuas de São Paulo completamente vazias. Foto: Sato do Brasil
A segunda estratégia, lançada pela Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura, Hong Kong, Japão e Israel, envolve a mudança de controle arquitetônico moderno e técnicas disciplinares para técnicas de bio-vigilância farmacopornográfica: aqui a ênfase está na detecção individual do vírus através da multiplicação de testes e vigilância digital constante e rigorosa dos pacientes através de seus dispositivos móveis de computação. Telefones celulares e cartões de crédito se tornam instrumentos de monitoramento que permitem rastrear os movimentos do corpo individual. Não precisamos de pulseiras biométricas: o celular se tornou o melhor bracelete, ninguém está separado dele ou para dormir. Um aplicativo de GPS informa a polícia dos movimentos de qualquer corpo suspeito. A temperatura e o movimento de um corpo individual são monitorados por meio de tecnologias móveis e observados em tempo real pelo olho digital de um Estado ciber-autoritário para o qual a comunidade é uma comunidade de usuários cibernéticos e a soberania é acima de tudo transparência digital e gerenciamento de big data.
Mas essas políticas de imunização política não são novas e não foram implantadas antes para a busca e captura dos chamados terroristas: desde o início da década de 2010, por exemplo, Taiwan legalizou o acesso a todos os contatos telefônicos telefones em aplicações de encontros sexuais com o objetivo de “impedir” a disseminação da AIDS e prostituição na Internet. O Covid-19 legitimou e ampliou essas práticas estaduais de biovigilância e controle digital, normalizando-as e tornando-as “necessárias” para manter uma certa ideia de imunidade. No entanto, os mesmos Estados que implementam medidas extremas de vigilância digital ainda não consideram a proibição do tráfico e consumo de animais selvagens ou a produção industrial de aves e mamíferos ou a redução das emissões de CO2. O que aumentou não é a imunidade do corpo social, mas a tolerância cidadã frente o controle cibernético estatal e corporativo.
A gestão política do Covid-19 como forma de gerenciar a vida e a morte desenha os contornos de uma nova subjetividade. O que será inventado após a crise é uma nova utopia da comunidade imunológica e uma nova forma de controle do corpo. O sujeito do tecnopatriarcado neoliberal que o Covid-19 fabrica não tem pele, é intocável, não tem mãos. Ele não troca bens físicos ou toca moedas, ele paga com cartão de crédito. Não tem lábios, não tem língua. Ele não fala ao vivo, ele deixa uma mensagem de voz. Não se reúne ou coletiviza. Ele é radicalmente individual. Não tem rosto, tem uma máscara. Seu corpo orgânico está oculto para existir após uma série indefinida de mediações semi-técnicas, uma série de próteses cibernéticas que servem como máscara: a máscara do endereço de email, a máscara da conta do Facebook, a máscara do Instagram. Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um teleprodutor, é um código, um pixel, uma conta bancária, uma porta com um nome, um endereço para o qual a Amazon pode enviar seus pedidos.
Linha de Frente no combate ao Covid 19. Foto: Tedward Quinn para Unsplash
A prisão branda: bem-vindo à telerepública da sua casa
Uma das mudanças centrais nas técnicas farmacopornográficas biopolíticas que caracterizam a crise do Covid-19 é que o lar pessoal — e não as instituições tradicionais de confinamento e padronização (hospital, fábrica, prisão, escola) — agora aparece como o novo centro de produção, consumo e controle biopolítico. Já não se trata apenas de a casa ser o local de confinamento do corpo, como foi o caso da administração de pragas. A casa pessoal tornou-se agora o centro da economia de teleconsumo e teleprodução. O espaço doméstico agora existe como um ponto em um espaço controlado por ciber, um local identificável em um mapa do google, uma caixa reconhecível por um drone.
Se eu me interessei pela Mansão Playboy em determinada época, era porque ela funcionava na Guerra Fria como um laboratório onde os novos dispositivos para o controle farmacopornográfico do corpo e da sexualidade estavam sendo inventados. Eles foram estendidos a partir do século 21 e agora estão se expandindo para toda a população mundial com a crise do Covid-19. Quando fiz minha pesquisa sobre a Playboy, fiquei impressionado com o fato de Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo, ter passado quase 40 anos sem sair da Mansão, vestido apenas de pijama, roupão e chinelos, bebendo coca-cola e comendo Butterfingers e que ele pode comandar e produzir a revista mais importante dos Estados Unidos sem sair de casa ou mesmo da cama. Complementada com uma câmera de vídeo, uma linha telefônica direta, rádio e música ambiente, a cama Hefner era uma verdadeira plataforma de produção multimídia para a vida de seus habitantes.
Seu biógrafo Steven Watts chamou Hefner de “um recluso voluntário em seu próprio paraíso”. Adaptado a todos os tipos de dispositivos de arquivamento audiovisual e muito antes da existência do telefone celular, Facebook ou WhatsApp, o fundador da Playboy enviou mais de vinte fitas de áudio e vídeo com mensagens e mensagens, desde entrevistas ao vivo até diretrizes de publicação.
Além disso, Hefner instalou um circuito fechado de câmeras na mansão, onde uma dúzia de playmates também moravam, e podia acessar todas as salas em tempo real a partir de seu centro de controle. Coberto com painéis de madeira e cortinas grossas, mas penetrado por milhares de cabos e cheio daquilo que na época era considerado as mais avançadas tecnologias de telecomunicações (e que hoje parece tão arcaico quanto um tantã), era, ao mesmo tempo, totalmente opaco e totalmente transparente. Os materiais filmados pelas câmeras de vigilância também foram parar nas páginas da revista.
A silenciosa revolução biopolítica que a Playboy liderou envolveu, além da transformação da pornografia heterossexual em cultura de massa, o questionamento da divisão que havia fundado a sociedade industrial do século XIX: a separação das esferas de produção e reprodução, a diferença entre a fábrica e o lar e, com ela, a distinção patriarcal entre masculinidade e feminilidade. A Playboy aceitou essa diferença ao propor a criação de um novo enclave de vida: o apartamento de solteiro totalmente conectado às novas tecnologias de comunicação das quais o novo produtor semiótico não precisa sair para trabalhar ou fazer sexo — atividades que, além disso, haviam se tornado indistinguíveis. Sua cama giratória era ao mesmo tempo sua mesa de trabalho, um escritório de direção, uma cena fotográfica e um local de encontro sexual, além de uma televisão de onde foi filmado o famoso programa Playboy After Dark.
A Playboy antecipou os discursos contemporâneos sobre teletrabalho e a produção imaterial que o gerenciamento de crises do Covid-19 transformou em dever do cidadão. Hefner chamou esse novo produtor social de “trabalhador horizontal”. O vetor de inovação social que a Playboy lançou foi a erosão (para não dizer a destruição) da distância entre trabalho e lazer, entre produção e sexo. A vida do playboy, constantemente filmada e transmitida pela mídia da revista e da televisão, era completamente pública, mesmo que o playboy não saísse de casa ou mesmo da cama. Nesse sentido, a Playboy também questionou a diferença entre as esferas masculina e feminina, tornando o novo operador de multimídia o que parecia um oxímoro na época, um homem doméstico.
O biógrafo de Hefner nos lembra que esse isolamento produtivo precisava de apoio químico: Hefner era um consumidor pesado de Dexedrine, uma anfetamina que eliminava a fadiga e o sono. Tão paradoxalmente, o homem que nunca saiu da cama nunca dormiu. A cama como um novo centro de operações multimídia era uma célula farmacopornográfica: só podia funcionar com a pílula contraceptiva, medicamentos que mantinham o nível produtivo em alta e um fluxo constante de códigos semióticos que se tornaram o único alimento verdadeiro que nutria o playboy.
Tudo isso lhe parece familiar agora? Isso tudo parece muito estranho para suas próprias vidas confinadas? Lembremos agora os slogans do presidente francês Emmanuel Macron: estamos em guerra, não saímos de casa nem do teletrabalho. As medidas biopolíticas de gerenciamento de contágio impostas contra o coronavírus fizeram com que cada um de nós se transformasse em um trabalhador horizontal mais ou menos playboynesco. Hoje, o espaço doméstico de qualquer um de nós é dez mil vezes mais técnico do que a cama giratória de Hefner em 1968. Os dispositivos de teletrabalho e controle remoto estão agora na palma da nossa mão.
Em “Vigiar e Punir”, Michel Foucault analisou as células religiosas do confinamento individual como vetores autênticos que serviram para modelar a passagem das técnicas sangrentas e soberanas de controle do corpo e da subjetividade anteriores ao século XVIII para arquiteturas disciplinares e dispositivos de confinamento como novas técnicas de gestão para toda a população. As arquiteturas disciplinares eram versões secularizadas de células monásticas nas quais o indivíduo moderno nasce pela primeira vez como uma alma trancada em um corpo, um espírito de leitura capaz de ler os slogans do Estado. Quando o escritor Tom Wolfe visitou Hefner, ele disse que morava em uma prisão tão mole quanto o coração de uma alcachofra. Poderíamos dizer que a mansão da Playboy e a cama giratória de Hefner, convertidas em objetos de consumo pop, funcionaram durante a Guerra Fria como espaços de transição nos quais se inventa o novo sujeito protético, ultraconectado, bem como as novas formas de consumo e controle da farmacopornografia e biovigilância que domina a sociedade contemporânea. Essa mutação foi ampliada e ampliada ainda mais durante o gerenciamento de crises do Covid-19: nossas máquinas de telecomunicações portáteis são nossos novos carcereiros e nosso interior de casa tornou-se a prisão branda e ultraconectada do futuro.
Dentro de casa. Cuidado com o vão. Arte: Ocupeacidade. Foto: Sato do Brasil
Mutação ou submissão
Mas tudo isso pode ser uma má notícia ou uma grande oportunidade. É precisamente porque nossos corpos são os novos enclaves do biopoder e nossos apartamentos as novas células da biovigilância é que se torna mais urgente do que nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e resistência e lançar novos processos antagônicos.
Ao contrário do que se possa imaginar, nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou separação, mas de um novo entendimento da comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta. Precisamos de um parlamento do corpo planetário, um parlamento não definido em termos de identidade ou política de nacionalidade, um parlamento dos corpos vivos (vulneráveis) que vivem no planeta Terra. O evento Covid-19 e suas consequências nos chamam a nos libertar de uma vez por todas da violênciacom a qual definimos nossa imunidade social.
A cura e a recuperação não podem ser um simples gesto imunológico negativo de afastamento do social, de fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem emergir de um processo de transformação política. Curarmos a nós mesmos como sociedade significaria inventar uma nova comunidade além das políticas de identidade e fronteira com as quais até agora produzimos soberania, mas também além da redução da vida à sua biovigilância cibernética. Seguir vivo, permanecer vivo como um planeta, contra o vírus, mas também contra o que pode acontecer, significa implementar formas estruturais de cooperação planetária. Como o vírus sofre mutação, se queremos resistir à submissão, também devemos sofrer mutações.
É necessário passar de uma mutação forçada para uma mutação deliberada. Devemos nos reapropriar criticamente das técnicas biopolíticas e de seus dispositivos farmacopornográficos. Antes de tudo, é imperativo mudar a relação de nossos corpos com as máquinas de biovigilância e biocontrole: elas não são apenas dispositivos de comunicação. Temos que aprender coletivamente a alterá-las. Mas também é necessário nos desalinhar. Os governos chamam ao confinamento e ao teletrabalho. Sabemos que, na verdade, eles nos chamam à descoletivização e ao telecontrole. Vamos usar o tempo e a força do confinamento para estudar as tradições de luta e de resistência das minorias que nos ajudaram a sobreviver até agora. Vamos desligar os celulares, desconectar a Internet. Façamos o grande blecaute diante dos satélites que nos observam e imaginemos juntos a revolução que virá.
Educação é liberdade. Arte: BijaRi. Foto: Sato do BrasilNuvens ornamentais. Foto: Sato do BrasilPor do sol em Salvador – BA. Foto: Sato do Brasil
“A Terra é um presente para descobrir que somos amados. É preciso pedir perdão à Terra”, escreve o Papa Francisco
Avenida dos Baobás, em Madagascar (Foto: Dennis van de Water)
Justamente porque tudo está conectado (cf. Laudato si ’42; 56) no bem, no amor, justamente por essa razão, toda falta de amor repercute em tudo. A crise ecológica que estamos vivenciando é, acima de tudo, um dos efeitos desse olhar doente sobre nós, sobre os outros, sobre o mundo, sobre o tempo que passa; um olhar doente que não nos faz perceber tudo como um presente oferecido para descobrir que somos amados. É esse amor autêntico, que às vezes nos alcança de maneira inimaginável e inesperada, que nos pede para rever nossos estilos de vida, nossos critérios de julgamento, os valores nos quais baseamos nossas escolhas. De fato, agora se sabe que poluição, mudanças climáticas, desertificação, migrações ambientais, consumo insustentável dos recursos do planeta, acidificação dos oceanos, redução da biodiversidade são aspectos inseparáveis da desigualdade social: da crescente concentração de poder e riqueza nas mãos de muito poucas e das chamadas sociedades do bem-estar, dos insanos gastos militares, da cultura do descarte e de uma falta de consideração do mundo do ponto de vista das periferias, da falta de proteção de crianças e menores, de idosos vulneráveis e crianças ainda não nascidas.
Um dos grandes riscos de nosso tempo, então, diante da grave ameaça à vida no planeta causada pela crise ecológica, é a de não ler esse fenômeno como o aspecto de uma crise global, mas de nos limitarmos a procurar – embora necessárias e indispensáveis – soluções puramente ambientais. Ora, uma crise global requer uma visão e abordagem globais, que passam primeiro por um renascimento espiritual no sentido mais nobre do termo. Paradoxalmente, as mudanças climáticas poderiam se tornar uma oportunidade para nos questionarmos sobre o mistério de ser criado e sobre o quê vale a pena viver. Isso levaria a uma profunda revisão de nossos modelos culturais e econômicos, para um crescimento na justiça e no compartilhamento, na redescoberta do valor de cada pessoa, no empenho para que aqueles que hoje estão à margem possam ser incluídos e aqueles que vierem amanhã ainda possam desfrutar do beleza do nosso mundo, que é e continuará sendo um presente oferecido à nossa liberdade e à nossa responsabilidade.
A cultura dominante – aquela que respiramos através das leituras, dos encontros, das diversões, nas mídia etc. – baseia-se na posse: de coisas, de sucesso, de visibilidade, de poder. Quem tem muito vale muito, é admirado, considerado e exerce alguma forma de poder; enquanto aquele que tem pouco ou nada, corre o risco perder até mesmo seu próprio rosto, porque desaparece, torna-se uma daquelas pessoas invisíveis que povoam nossas cidades, uma daquelas pessoas que não notamos ou com quem tentamos não entrar em contato. Certamente, cada um de nós é, acima de tudo, vítima dessa mentalidade, porque de muitas maneiras somos bombardeados por ela. Desde crianças, crescemos em um mundo em que uma ideologia mercantilgeneralizada, que é a verdadeira ideologia e prática da globalização, estimula em nós um individualismo que se torna narcisismo, ganância, ambições elementares, negação do outro …
Portanto, nessa nossa situação atual, uma atitude justa e sábia, ao invés da acusação ou do julgamento, é acima de tudo a tomada de consciência. Somos envolvidos, de fato, em estruturas de pecado (como São João Paulo II as chamava) que produzem o mal, poluem o meio ambiente, ferem e humilham os pobres, favorecem a lógica da posse e do poder, exploram os recursos naturais, obrigam populações inteiras a deixar suas terras, alimentam o ódio, a violência e a guerra. É uma tendência cultural e espiritual que opera uma distorção em nosso senso espiritual que vice-versa – em virtude de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus – nos orienta naturalmente ao bem, ao amor e ao serviço dos outros. Por essas razões, a virada não pode vir simplesmente do nosso empenho ou de uma revolução tecnológica: sem negligenciar tudo isso, precisamos nos redescobrir pessoas, ou seja, homens e mulheres que reconhecem que são incapazes de saber quem são sem os outros e que se sentem chamados a considerar o mundo à sua volta não como um objetivo em si, mas como um sacramento da comunhão. Dessa maneira, os problemas de hoje podem se tornar oportunidades autênticas, para que possamos nos descobrir verdadeiramente como uma única família, a família humana. Enquanto tomamos consciência de que estamos perdendo a meta, de que estamos dando prioridade ao que não é essencial ou mesmo ao que não é bom e causa mal, o arrependimento e o pedido de perdão podem nascer em nós.
Eu sinceramente sonho com um crescimento da consciência e do sincero arrependimento de todos nós, homens e mulheres do século XXI, crentes e não crentes, de parte de nossas sociedades, por nos deixarmos levar por lógicas que dividem, provocam fome, isolam e condenam. Seria bom se pudéssemos pedir perdão aos pobres, aos excluídos; então poderíamos nos arrepender sinceramente também do mal feito à terra, ao mar, ao ar, aos animais … Pedir e conceder perdão são ações que são possíveis apenas no Espírito Santo, porque Ele é o artífice da comunhão que abre os fechamentos dos indivíduos; e é preciso muito amor para deixar de lado o orgulho, perceber que se cometeu um erro e ter esperança de que novos caminhos sejam realmente possíveis. Portanto, o arrependimento para todos nós, para a nossa era, é uma graça a ser humildemente implorada ao Senhor Jesus Cristo, para que em nossa história essa nossa geração possa ser lembrada não por seus erros, mas pela humildade e sabedoria de ter sabido inverter a rota.
O que estou dizendo talvez pareça idealista e pouco concreto, enquanto parecem mais viáveis as estradas que visam o desenvolvimento de inovações tecnológicas, a redução no uso de embalagens, o desenvolvimento de energia a partir de fontes renováveis etc.. Tudo isso, sem dúvida, não é apenas um dever, mas necessário. No entanto, não é suficiente. A ecologia é a ecologia do homem e de toda a criação, não apenas de uma parte. Como em uma doença grave, a medicina sozinha não é suficiente, mas é preciso olhar para o doente e entender as causas que levaram ao aparecimento do mal; assim, da mesma forma, a crise de nosso tempo deve ser enfrentada em suas raízes. O caminho proposto consiste, então, em repensar nosso futuro a partir das relações: os homens e as mulheres de nosso tempo têm tanta sede de autenticidade, de rever sinceramente os critérios da vida, de reorientar-se para o que vale, reestruturando a existência e a cultura.
*publicado no livro Nostra Madre Terra. O extrato é publicado por Corriere della Sera, 16-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
DEZ DICAS PARA ENFRENTAR A RECLUSÃO
por Frei Betto
Estive recluso sob a ditadura militar. Nos quatro anos de prisão trancaram-me em celas solitárias nos DOPS de Porto Alegre e da capital paulista, e também, no estado de São Paulo, no quartel-general da PM, no Batalhão da ROTA, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau. Partilho, portanto, 10 dicas para suportar melhor esse período de reclusão forcada pela pandemia:
1. Mantenha corpo e cabeça juntos. Estar com o corpo confinado em casa e a mente focada lá fora pode causar depressão.
2. Crie rotina. Não fique de pijama o dia todo, como se estivesse doente. Imponha-se uma agenda de atividades: exercícios físicos, em especial aeróbicos (para estimular o aparelho respiratório), leitura, arrumação de armários, limpeza de cômodos, cozinhar, pesquisar na internet etc.
3. Não fique o dia todo diante da TV ou do computador. Diversifique suas ocupações. Não banque o passageiro que permanece o dia todo na estação sem a menor ideia do horário do trem.
4. Use o telefone para falar com parentes e amigos, em especial com os mais velhos, os vulneráveis e os que vivem só. Entretê-los fará bem a eles e a você.
5. Dedique-se a um trabalho manual: consertar equipamentos, montar quebra-cabeças, costurar, cozinhar etc.
6. Ocupe-se com jogos. Se está em companhia de outras pessoas, estabeleçam um período do dia para jogar xadrez, damas, baralho etc.
7. Escreva um diário da quarentena. Ainda que sem nenhuma intenção de que outros leiam, faça-o para si mesmo. Colocar no papel ou no computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico.
8. Se há crianças ou outros adultos em casa, divida com eles as tarefas domésticas. Estabeleça um programa de atividades, e momentos de convívio e momentos de cada um ficar na sua.
9. Medite. Ainda que você não seja religioso, aprenda a meditar, pois isso esvazia a mente, retém a imaginação, evita ansiedade e alivia tensões. Dedique ao menos 30 minutos do dia à meditação.
10. Não se convença de que a pandemia cessará logo ou durará tantos meses. Aja como se o período de reclusão fosse durar muito tempo. Na prisão, nada pior do que advogado que garante ao cliente que ele recuperará a liberdade dentro de dois ou três meses. Isso desencadeia uma expectativa desgastante. Assim, prepare-se para uma longa viagem dentro da própria casa.
Especial Epidemias: uma história das doenças e seu combate no Brasil
Em séculos passados, febre amarela e gripe espanhola desafiaram as autoridades. Na última reportagem da série, historiador relata como doenças atingiram o País, que políticas foram adotadas e faz uma reflexão sobre o papel da desigualdade social nas epidemias
Por Fabiana Mariz
Em meio à pandemia de covid-19, o Jornal da USP lança a última reportagem da série “Epidemias”, trazendo uma retrospectiva sobre as principais doenças que abateram o Brasil desde a chegada dos colonizadores portugueses. Quem nos conduz é André Mota, historiador e coordenador do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
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No primeiro vídeo, André Mota faz um relato sobre como o descobrimento do Brasil pelos portugueses trouxe doenças aos indígenas. Que situação epidêmica a Família Real encontrou ao aportar por aqui?
Ele mostra ainda como, mais tarde, a economia cafeeira contribuiu para disseminar doenças no Brasil.
Por fim, o pesquisador relembra os principais fatos históricos relacionados à saúde e conta como surgiu a medicina que conhecemos hoje.
Neste segundo vídeo, o historiador fala sobre a primeira grande epidemia que abateu o Brasil: a febre amarela. E também de um outro desafio enfrentado pela população: a gripe espanhola.
Ele conta quais foram as políticas públicas adotadas e como a Faculdade de Medicina, recém-criada, enfrentou a doença.
Ao final da reportagem, André Mota faz um alerta sobre epidemias futuras, e como a economia pode interferir na ocorrência delas.
Em todo mundo minimamente civilizado, a principal estratégia para achatar a curva de contágio do coronavírus de modo a garantir o atendimento médico aos casos graves é isolar as pessoas em casa. Mas e quando não há casas? Ou os poderes públicos provêm abrigo emergencial com condições de higiene e alimentação, ou estarão nas ruas disseminando o vírus. No momento, a sociedade não pode contar sequer com as entidades que trabalham com essa população mais vulnerável, pois os próprios voluntários passariam a ser vetores do contágio nas ruas e em casa.
Pensando nisso, Christian Francis Braga (@chrismuchacho) coordenador geral do Instituto GAS (@institutogas), que assiste milhares de pessoas em situação de rua na capital e região metropolitana de São Paulo, gravou um vídeo com um apelo ao poder público para evitar que o impacto do coronavírus seja catastrófico nas ruas.
Essa semana os coletivos que agem nas ruas se uniram no Movimento Na Rua Somos Um, pra poder ecoar mais forte este pedido pelo abrigo e isolamento de no mínimo 7.000 pessoas em situação de rua. Ao todo, são 16 entidades aliadas, com centenas de voluntários, nesse apelo, que precisa ser ouvido HOJE!
Amanhã será tarde demais.
Assista o vídeo, compartilhe, pressione.
Conheça, abaixo, os coletivos participantes da inciativa:
1. Instituto GAS: 300 voluntários
2. Sementes de Amor: 10 voluntários
3. Instituto Ninho Social / Projeto Lavanderia: 10 voluntários