O Ministério Público Federal (MPF) recomendou à Fundação Nacional do Índio (Funai) e à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) a continuidade da entrega de cestas de alimentos aos indígenas que vivem em terras ainda não demarcadas no sul do estado, na região de Dourados e Ponta Porã (MS). A Conab deverá quinzenalmente informar ao MPF dados referentes à entrega das cestas e famílias beneficiadas. A recomendação foi expedida em 27 de janeiro. O prazo para resposta é de 48h, contado a partir da data do recebimento. Caso não haja resposta, o MPF adotará as medidas administrativas e ações judiciais cabíveis contra Funai e Conab.
As recomendações também foram enviadas para o Ministério da Justiça, solicitando que o órgão coordene a resposta às mesmas, e assuma seu papel de supervisão ministerial, previsto no decreto nº 200, de 25/02/1967.
“Funai se beneficia da própria torpeza”
No início de 2020, obedecendo a um despacho da direção da Funai em Brasília, foi interrompida a distribuição de cestas de alimentos para as famílias indígenas residentes em terras não demarcadas em Mato Grosso do Sul. O documento alega não ser de responsabilidade da Funai a aquisição e distribuição de cestas às comunidades indígenas, nem existir orçamento para o deslocamento dos servidores que acompanham os caminhões da Conab na entrega dos alimentos.
Uma decisão liminar da Justiça Federal, do final de 2017, em ação ajuizada pelo MPF, já havia determinado que o Estado de Mato Grosso do Sul se encarregasse de cadastrar e distribuir cestas de alimentos para as famílias indígenas de áreas regularizadas, enquanto a União deveria se responsabilizar pelas famílias em áreas de retomada e acampamentos não regularizados. A Funai alega que a responsabilidade descrita na liminar é da União, e não da autarquia, embora esta faça parte da União.
Para o MPF, ao afirmar que as cestas de alimentos não podem ser entregues em áreas indígenas ainda não demarcadas, a Funai “estaria se beneficiando da própria torpeza”, uma vez que a não demarcação dessas terras indígenas foi ocasionada pela demora da própria autarquia em atuar dentro das suas funções legais. De fato, a Funai ainda não finalizou os procedimentos de identificação e delimitação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Em 2007, chegou a assinar junto ao MPF um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), onde se comprometia a agilizar a regularização das áreas reivindicadas pelos indígenas. Pouco avançou desde então.
O MPF constatou, em uma inspeção na Conab na última semana de janeiro, que alguns produtos da cesta básica destinada aos indígenas têm apenas três meses de validade. O perecimento destes produtos pode caracterizar improbidade administrativa por parte dos gestores. As últimas ações de distribuição de cestas básicas nas comunidades indígenas de MS, e que não foram cumpridas, estavam programadas para os dias 21 a 23/01 e 28 a 30/01.
Mato Grosso do Sul concentra a segunda maior população indígena do país, com cerca de 70 mil pessoas. A maior etnia, guarani-kaiowá e guarani-ñandeva, ocupa majoritariamente o sul do estado. Esta região concentra os maiores conflitos por terra, o que faz com que as comunidades vivam em acampamentos na beira das estradas e em áreas de retomadas dentro de fazendas, legalizadas por decisões judiciais.
Clique aqui para ler a recomendação para a Funai e aqui para a recomendação para a Conab.
Assessoria de Comunicação Social
Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul
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Na madrugada dessa segunda-feira, 8, foi incendiada a Casa de Reza, Ongusu, do Ñanderu Getúlio Juca e da Ñandesy Alda Silva, do povo Kaiowá, em Dourados, no Mato Grosso do Sul. O espaço sagrado era chamado de Gwyra Nhe’engatu Amba, na língua kaiowá. A casa de reza (ogapysy ou ongusu) é o lócus principal dos processos de transmissão de conhecimentos deste povo e abrigo de seus objetos de culto como o Yvyrai, Xiru e Mbaraka.
O fogo queimou toda a estrutura de madeira coberta por capim sapé. Os moradores da aldeia não tinham ontem conhecimento sobre a origem do fogo. Eles perceberam as chamas no início da manhã e chamaram o Corpo de Bombeiros, que não conseguiu evitar a destruição do espaço, considerado sagrado pelos Guarani-Kaiowá. A comunidade está apreensiva porque a casa era o abrigo do Xiru, onde os anciãos rezam, cantam e dançam diante dele. O incêndio pode ter implicações que prejudicam as colheitas, o clima, alimentos e para a saúde deste povo.
O local era referência cultural da comunidade e já recebeu mitos eventos como o Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, o Kunhangue Jeroky Guasu, além de receber diariamente crianças para serem batizadas, benzidas, fazerem tratamentos médicos tradicionais, além de orientação espiritual. O incêndio ocorreu na Aldeia Jaguapiru, Terra Indígena de Dourados. Estas casas são referência espiritual do povo indígena auto-denominado Kaiowá.
Os Kaiowá são um dos povos que pertencem ao grupo mais abrangente de populações Guarani residentes no Brasil (composta também pelos Guarani Mbya e pelos Guarani Ñandeva).
A forma tradicional dos kaiowá se organizarem socialmente é formando núcleos comunitários constituídos por um número variado de parentes e liderados por um casal de mais idade (ñanderu e ñandesy, que pode ser traduzido para o português como “nosso pai” e “nossa mãe”). Esta comunidade é formada por varias famílias extensas, sendo o senhor Getúlio e a senhora Alda dois de seus líderes religiosos tradicionais.
A comunidade mora na Reserva Indígena de Dourados, que consiste num complexo multi-comunitário, abrigando centenas de outros núcleos familiares. A Reserva é composta por duas grandes aldeias (Jaguapiru e Bororó) e possui aproximadamente 17 mil habitantes. A área é reconhecida pelo Estado, mas num tamanho muito menor que o território tradicional, e em condições que tornam muito difícil a reprodução da cultura. A reserva foi criada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1917, com 3.600 hectares inicialmente reservados aos indígenas da etnia kaiowá, que já ocupavam o local e suas imediações.
“Quando andei em terras sem mato grosso, sem ouro, o que encontrei foi morte, foi choro, foi falta de rima. Criança cheia de água no olho, terra lisa de árvore, gente escondida no mato pintadas de preto na cara, vermelho forte no peito e arco em punho.
Gente com medo e alerta. Gente bonita. Mulheres velhas, bem velhas, dançando como fadas, na solidão grande dos campos de cana e numa solidão de árvores. Tudo seria triste não fosse índio. Tudo seria fraco não fosse palavra e solo. Aqui é morte que encontro na busca da terra sem males.
Sinto um vazio de mim brasileiro no horizonte, uma ausência de pátria, um país não cidadão. Já não sei qual é a fronteira da razão quando crianças choram de medo diante de fazendeiro e policial, nem entendo lavoura no solo cheio de casas no meio de gente .
Em bando me recebem, índios guarani-kaiowás, cantando, em apelo, em beira de covas, corpos desaparecidos na relva, pés no chão batendo forte, pegando suave nas mãos.
Penoso entender o afeto entre a dor de tantos. Aqui solidão é palavra grande e funda , com cabaça entre os dedos. Na terra nua, limpa e desinfetada do agronegócio, surge o índio, impávidos cocares e límpidos chocalhos como armas do espírito, movimentos secretos na hora da defesa, aos quatro cantos cardeais.
Som de tratores e caminhonetes se misturam a gritos e estalidos de tiros. Em poesia pobre a imprensa local versa a dor da aldeia.
Suporta-se com paciência a cólica alheia, como bem escreveu Nelson Rodrigues em 68 citando Machado de Assis.
Bicas incorrem dentro da alma no Mato Grosso do Sul, lágrima é água salgada.
A relatora da ONU Victoria Tauli-Corpuz não havia ainda encerrado sua visita ao Mato Grosso do Sul, onde foi para avaliar a situação de violência vivida pelo povo guarani-kaiowá, quando os índios já foram novamente atacados a tiros por pistoleiros das fazendas em torno. O índio Isael Reginaldo ficou ferido, com 10 perfurações pelo corpo
Pistoleiros a cavalo e em caminhonetes realizaram três ataques contra índios durante a visita da relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, ao Mato Grosso do Sul, aonde foi para avaliar a situação de violência vivida pelo povo Guarani-Kaiowá na região. Tratou-se de uma clara tentativa de intimidação. Jornalistas Livres presenciaram um dos ataques, realizado no dia 12/03 contra a aldeia Ita Poty, na divisa dos municípios de Dourados e Itaporã (MS), pouco depois de outro, em que saiu ferido o indígena Isael Reginaldo.
Nesse dia, índios tentaram retomar seu território tradicional, que atualmente é disputado com fazendeiros da região. Em represália, pistoleiros atacaram o grupo indígena, ferindo Isael, que foi levado para o Hospital de Dourados, com 10 perfurações espalhadas pelo corpo, sangrando muito. Mais tarde, já na beira da estrada e fora da área de litígio, os ataques persistiram. Cerca de 40 índios, que estavam reunidos, bloqueando a estrada, para fechar o acesso à fazenda, foram novamente atacados pelos pistoleiros, que dispararam tiros em sua direção.
A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, esteve no Mato Grosso do Sul (MS) entre os dias 10, 11 e 12 de março. Visitou os tekohas (territórios) chamados de Kurussú Ambá, Guaiviry e Boqueirão no dia 10/03 e Takuara no dia 11/03. Todas áreas de conflitos recentes. Seguindo para Campo Grande, encontrou-se com representantes do povo Terena e demais povos do estado. Dali, Victoria foi para a Bahia.
A visita da relatora Victoria Tauli-Corpuz ao Brasil é decorrência de pedido feito pelos guarani-kaiowás em setembro passado, em que reivindicaram que a ONU adotasse duas medidas urgentes para uma defesa efetiva dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul e do Brasil:
Primeira:“Promover uma investigação independente sobre o ataque sistemático contra os povos indígenas no Brasil, incluindo a responsabilidade do Estado Brasileiro tanto por ação como por omissão”.
Segunda:“Assegurar que todos os acordos comerciais de empresas multinacionais e bancos de investimentos com o Mato Grosso do Sul sejam condicionados à demarcação e devolução de nossos territórios”.
Eliseu Lopes faz denúncia na ONU em setembro de 2015. Foto: CIMI
Na aldeia Kurussú Ambá, o cacique Eliseu Lopes abriu a conversa com a relatora Victoria Tauli-Corpuz denunciando a “violência, matança de lideranças e criminalização de liderança”. Foi seguido pelo cacique Ismar, que disse:
“Sentimos esperança por a senhora pisar em nossa terra, pois nós sofremos demais, há 500 anos.”
“Reivindicamos ao governo (a demarcação da terra) e não nos atendeu, não deu ouvido a nosso sofrimento. O governo esqueceu de nós. E a gente insistiu com nossa terra, nós vamos insistir, nós vamos ter a nossa terra de volta, mesmo [tendo] a nossa liderança ameaçada, nossas criança ameaçadas. Nós não nos intimidamos porque estamos atrás dessa alegria [viver no tekoha]. As nossas crianças querem viver felizes, as nossas lideranças querem viver felizes. Por isso nós queremos que as Nações Unidas (ONU) demarquem nossa terra, que considerem nosso sofrimento, que pressione o governo. Porque estamos abandonados. E aqui estamos com pistoleiros em nosso redor, hoje atirando em nós, em cima e nós estamos assim. O governo está esperando a liderança ser assassinada, o povo ser massacrado.”
Rezador da comunidade
“Passamos por um ataque no dia 30/01, quando o acampamento três foi todo destruído. Foram queimadas as casas, a comunidade está viva porque correram da bala. Se esconderam nas braquiárias (tipo de capim para boi pastar) para escapar com a vida. Se não corresse, ia ter um massacre enorme no estado do Mato Grosso do Sul.”
A pedido do rezador de Kurussú Ambá, vários indígenas da aldeia mostraram à relatora da ONU, entre homens e mulheres, jovens e idosos, as cicatrizes de tiros que carregam em seus corpos. A relatora da ONU fez questão de apalpar os projéteis ainda alojados no corpos dos indígenas guarani-kaiowás.
A relatora da ONU ouviu também lideranças femininas. Escutou o apelo de Leila e a denúncia das condições de vida nas reservas indígenas no Mato Grosso do Sul, entendidas como áreas de confinamento da população guarani-kaiowá. Leila chamou essas reservas indígenas de “chiqueiros”. Recebeu abraço apertado de Victoria Tauli-Corpuz.
“A gente esperou há muitos anos essa justiça, mas nenhum governo, nenhuma autoridade, ninguém fez nada por nós indígenas. A gente foi massacrada, a gente foi matada, a gente derramou nosso sangue para esta terra aqui, mas ninguém não olha por nós. A gente perdeu muito a vida já, nossas liderança, desde mais de 500 anos a gente está derramando o nosso sangue pela nossa terra tradicional. Nós não somos estrangeiros, nós somos aqui do Brasil, original aqui do Brasil”.
Vídeo de Ruy Sposatti, repórter do Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Cacique Elpídio Pires, da terra indígena Potrero Guasu, município de Paranhos (MS), liderança do Conselho Aty-Guaçu, sobrevivente do ataquede 19/09/2015 contra o acampamento localizado em área retomada de suas terras, foi um dos indígenas que prestaram depoimentos à Comissão Nacional da Verdade. O ataque deixou três feridos, que junto a Elpídio, esperaram sangrando na aldeia durante três horas para serem levados ao hospital, devido ao cerco dos pistoleiros.
Acampamento incendiado durante o ataque. Foto: CIMI
“O Brasil está negando. O Brasil está dizendo que estão tratando bem os pobres, os indígenas, mas estão mentindo. Eles estão mandando relatório bonitinho, mas não é verdade”.
“Isso é uma vergonha aqui no Brasil, nós agradecemos a senhora por ter vindo, porque o Brasil faz parte desta organização. O Brasil assinou com a ONU, ele tem compromisso e não está cumprindo e nós indígenas guarani-kaiowás, nós pedimos também um contato direto, um acesso direto, diretamente com a ONU, para a gente passar a nossa situação, porque em 19/09/2015 eu fui quase matado pela minha terra. Então isso me indignou e isso é uma vergonha pro Brasil. A senhora sente como nós, a senhora tem filho, tem marido. A senhora deve imaginar a perda para uma família. Todo ser humano tem esse sentimento e esse sentimento tem de ser respeitado. Tem na Constituição que garante e nós devemos respeitar, mas não está sendo respeitado. Tá no papel bonitinho, mas não está sendo respeitado e não está sendo feito pelo governo brasileiro. Nós somos tratados como estrangeiro dentro da nossa própria terra. Minha mulher ainda hoje lembra como iria ficar se eu fosse matado. Como que vai ser criar os meus filhos. E ela fica muito triste, muitas vezes ela quer me segurar, mas eu falo, vamos continuar lutando pela nossa terra. Eu estou lutando pela causa justa”.
Elpídio Pires em depoimento à relatora da ONU.
A indignação e coragem deste cacique Guarani-Kaiowá está expressa no volume de sua voz, nos gestos constantes e fortes de suas mãos chacolhando várias vezes no ar a cada frase, sem tirar os olhos de Victória. “Eu não estou defendendo criminosos, eu não estou formando quadrilha, não! Eu estou lutando, porque está em 1988 na Constituição o nosso direito.” A bala que o atingiu em 19/9/2015 ainda está em sua barriga.
O cacique Eliseu Lopes concluiu sua fala pedindo: “Victoria, pressione o governo Dilma, pressione o Congresso e o STF, em Brasília, para que demarque nossas terras e que o governo não faça mais isso: despejo e criminalização das lideranças”.
A relatora da ONU antes do encerramento declarou aos Guarani-Kaiowá em Kurussú Ambá:
“Eu consigo sentir a dor, eu consigo sentir a raiva, a tristeza que vocês comunicaram a mim e eu entendi muito claramente a mensagem que vocês querem que eu repasse para o governo de vocês e para a comunidade internacional. Eu farei todo o possível para levantar estas questões não somente com vosso governo, mas também com a ONU e também para a imprensa, para que a questão de vocês seja conhecida pelo mundo inteiro. Ajudaria a aplicar pressão sob o governo de vocês, se a situação de vocês não fosse só conhecida no Brasil, mas também no resto do mundo. Eu farei minhas recomendações, para destacar o ponto de vocês sobre a questão crucial da demarcação. E eu concordo com vocês de que esta é a única forma”.
Já em território baiano, onde Victória Tauli-Corpuz foi informada dos ataques em Kurussú Ambá e que o indígena Isael Reginaldo, foi alvejado por fazendeiros. Depois de ouvir os relatos dos Tupinambás, ela declarou:
“Devo recomendar que seja instalada uma investigação nacional de violações aos povos indígenas. Depois de ter ouvido reclamações padrões e constantes, acho mesmo que é o caso de uma investigação”. (grifo nosso)
Marcelo Zelic é Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e Coordenador do Projeto Armazém Memória.
Helio Carlos Mello é fotógrafo e membro do Projeto Xingu, da Unifesp.